A influência da burocracia era, enfim, absoluta e opressiva. Ela, a rigor, confundia-se com o partido único, que, por sua vez, era o mecanismo através do qual ela dominava o Estado, exercia o poder e, não menos importante, garantia os seus privilégios. Nesse sentido, tornou-se óbvio, desde cedo, que a desestalinização iria até o ponto em que o domínio, o poder e os privilégios da burocracia não fossem postos em questão. Esse era, portanto, o seu limite.
O paradoxo da desestalinização reside, sem dúvida, no fato de que ela foi levada a cabo por ex-discípulos de Stálin – como Brejnev, que reprimiu violentamente a tentativa húngara de romper com o Pacto de Varsóvia e tentar um socialismo mais humano –, que conduziram o processo com vistas a atingir apenas soluções parciais e sucedâneas. Segundo Deutscher (1968c, p. 156), os epígonos do stalinismo
''(...) afastaram do Estado que haviam recebido a insanidade do terror e dos expurgos, mas falharam em trazer sanidade à sua atividade. Libertaram o povo soviético do medo, mas foram incapazes de inspirar-lhe esperança. Incentivaram-lhe a pensar por si próprio, mas não lhe permitiram que expressasse pensamentos críticos.''
Conscientes das necessidades sociais e econômicas da URSS, desgastada intensamente por uma crise paralisante³, lograram relativo sucesso nos primeiros anos da desestalinização, especialmente na claudicante base agrícola do país. Logo, porém, o ritmo geral da atividade econômica arrefeceu, mostrando-se, como na era de Stálin, profundamente assimétrico, desigual e lento nas diversas esferas de produção e distribuição, com graves efeitos sobre o conjunto.
Na realidade, o stalinismo causou marcas tão penetrantes na sociedade soviética que a simples desestalinização, por melhores que fossem as intenções dos seus responsáveis, seria, naturalmente, impotente e incapaz de apagá-las, a não ser que ela evoluísse na direção de um amplo e ativo movimento de regeneração do poder, o que significaria a mobilização política dos trabalhadores urbanos e camponeses. Os grupos trotskistas, inspirados nos famosos textos de Trótsky sobre a ''degeneração burocrática'' do socialismo na União Soviética, acalentaram, por décadas, a expectativa de que isso, mais cedo ou mais tarde, viria a acontecer, mas sob a forma de uma reação politicamente consciente das bases da sociedade. É impossível saber, porém, se os líderes da desestalinização, oriundos eles mesmos da burocracia intocada, avaliaram, um dia, o que poderia representar, afinal, a participação e autônoma das massas na definição do ritmo e do alcance do processo que comandavam. O certo é que, utilizando os meios coercitivos e as técnicas repressivas que diziam combater, mantiveram o povo soviético politicamente ''adormecido'', executando certas reformas ''por cima'' e limitadas, que nem de longe punham em risco o seu domínio e os seus privilégios materiais. Décadas mais tarde, Gorbachev seguiria um caminho totalmente inverso. Com o intuito de promover as transformações democráticas enfeixadas na Glasnost e na Perestroika, ele viu-se na contingência de se apoiar no proletariado soviético, como forma de se opor à resistência dos setores mais conservadores da burocracia. Contudo, o ''despertar'' do povo soviético para a atividade de massa reverteu todas as expectativas: ao invés de buscar, como esperavam os trotskistas e o próprio Gorbachev, a assepsia da estrutura de poder e o avanço na direção do socialismo democrático, o povo soviético voltou-se, surpreendentemente, para a negação do socialismo, ou seja, para a ''restauração'' do capitalismo e da economia de mercado, sob a liderança de remanescentes convertidos da própria burocracia stalinista. Deutscher, certamente, chamaria a isto de uma amarga ''ironia da história''.
As reformas propostas por Gorbachev visavam superar e resolver, com a máxima urgência, a crise que, há décadas, bloqueara o pleno desenvolvimento das forças produtivas da União Soviética:
''A perestroika é uma necessidade urgente que surgiu dos processos de desenvolvimento em nossa sociedade socialista. Esta encontra-se pronta para ser mudada e há muito tempo que anseia por mudanças. Qualquer demora para implantar a perestroika poderia levar, num futuro próximo, a uma situação interna exacerbada que, em termos claros, constituiria um terreno fértil para uma grave crise social, econômica e política.'' (Gorbachev, 1989, p. 15)
Após definir perestroika como uma revolução, Gorbachev acrescentou:
''A política é, sem dúvida, a coisa mais importante em qualquer processo revolucionário, e isto vale igualmente para a perestroika. Por isso, damos prioridade às medidas políticas, à democratização ampla e genuína, à luta resoluta contra a rotina burocrática e as violações da lei, ao envolvimento ativo das massas na administração dos recursos do país. Tudo está ligado diretamente à principal questão de qualquer revolução: o poder. Não vamos mudar o poder soviético, é claro, ou abandonar seus princípios fundamentais, mas aprovamos a necessidade de mudanças que fortalecerão o socialismo, fazendo-o mais dinâmico e significativo politicamente. É por isso que temos razão em caracterizar nossos planos para democratização de larga escala da sociedade soviética como um programa para mudanças de nosso sistema político.'' (Gorbachev, 1989, p. 59)
O projeto histórico de Gorbachev tinha duas principais vertentes. A primeira, no plano econômico, tratava-se de liberar as forças produtivas da União Soviética e evitar que a estagnação e o atraso se aprofundassem. O diagnóstico a respeito era, de fato, uma consternação:
''O acadêmico Aganbeguian, o principal conselheiro de Gorbachev, resumiu toda a miséria do baixo rendimento da URSS, sublinhando o fato de que a agricultura soviética produzia menos cereais que os Estados Unidos usando quatro vezes e meia mais tratores que este país. Poderia ter acrescentado que esta produção se fazia com nove vezes mais pessoas 'ocupadas' na agricultura, isto é, que a produtividade do trabalho agrícola na URSS é apenas 10% do que é nos Estados Unidos.'' (Mandel, 1989, p.109)¹
A segunda vertente, é claro, situava-se no plano político, e era o corolário natural da anterior: a intenção expressa de Gorbachev era substituir a gestão burocrática, que, com a sua incúria e desordem paralisantes, mostrou-se ser um verdadeiro obstáculo à modernização do país. Não eram, portanto, objetivos de realização simples. Gorbachev tinha consciência de que os seus propósitos, inevitavelmente, colidiriam com o sistema burocrático de dominação. E é esse aspecto, e suas consequências, que cabe ressaltar, por fim, neste trabalho.
Gorbachev procurou, no início, conduzir uma reforma meramente acidental da máquina burocrática. São, por exemplo, desse período as invectivas contra a corrupção, o alcoolismo, o nepotismo, a lentidão, e outras táticas comuns no aparelho administrativo do país. Na fase seguinte, Gorbachev procurou combinar reformas econômicas com medidas voltadas para a democratização da vida pública. Surgiram, então, as primeiras resistências mais ostensivas contra a sua política vindas da burocracia. Gorbachev resolveu, então, enfrentar a burocracia - e, para tanto, ampliou os espaços de manifestação popular, em busca de apoio para as suas iniciativas. A partir daí, os acontecimentos se precipitaram. Ocorreu, então, um fenômeno absolutamente inusitado pelas suas dimensões e intensidade: o proletariado soviético, que esteve ausente da cena política como autor de um mínimo de autonomia de classe durante mais de cinco décadas, passou a exigir, nas ruas, um aprofundamento e uma maior celeridade nas reformas.
Nesse ponto, e em face do crescimento da pressão popular, o sistema burocrático de dominação aparentemente se dividiu em duas partes, ambas acossando e isolando politicamente Gorbachev, cujo projeto de socialismo democrático punha em risco a estabilidade de suas vantagens.² De um lado, postaram-se os setores mais retrógrados da burocracia, que intentaram, numa cartada desesperada, a deposição militar de Gorbachev, com o objetivo declarado de restaurar o status quo. De outro, reuniram-se os grupos mais interessados no afastamento político de Gorbachev - mas como forma de manter, na nova ordem em emergências, os seus privilégios. Estes últimos, agindo com notável senso de oportunismo político, trouxeram a si os reclamos e a insatisfação do povo soviético, liquidaram o projeto histórico de Gorbachev - e levaram a cabo a derrocada da União Soviética.
A experiência socialista da URSS chegava, de forma melancólica e surpreendente, ao seu fim. Nas ruas, o povo soviético rejubilava-se contra um sistema que lhe prometera, e não cumprira, ''o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade.''
Notas:
1 - Os dados disponíveis sobre a evolução da renda nacional mostram, com clareza, a persistente queda da vitalidade da economia soviética. No quinquênio 1951-55, a renda nacional da URSS cresceu, em média, algo em torno de 11% ao ano; no período seguinte (1965-60), tal crescimento manteve-se a redor dos 9%; entre 1961-65, diminuiu para 6,5%; no quinquênio seguinte (1966-70) apresentou pequena recuperação (7,8%), para decair, novamente, entre 1971-75, para 5,7%; nos períodos seguintes, ou seja, 1976-80 e 1981-85, a renda nacional soviética evoluiu anualmente a taxas de 4,8% e 3,5%, respectivamente, confirmando a tendência declinante dos últimos 35 anos. E não só isso. Entre 1966-70 (média anual) e 1981, a taxa anual de consumo per capta de mercadorias (víveres, não-duráveis e duráveis) passou de 5,4% para 1,8% e o de serviços (pessoais, educação e saúde) caiu de 4,3% para 1,9%!
2 - As vantagens, ou privilégios, materiais da burocracia tomavam duas formas principais: ''maiores rendas monetárias (inclusive renda obtida ilegalmente através da corrupção, suborno, roubo e operações no mercado 'negro' ou 'cinzento') e vantagens não-monetárias oriundas da posição ocupada na estrutura hierárquica da sociedade burocracia (por exemplo, acesso à lojas especiais, uso de residências urbanas e rurais luxuosas etc)''. (Mandel, 1981, p. 117) Isso, claro, sem falar nos privilégios não materiais, como ''prestígio social'', ''poder'' etc.
Bibliografia:
DEUTSCHER, Isaac. Ironias da história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968c.
MANDEL, Ernest. Marxismo revolucionário atual. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
______. Além da perestroika, São Paulo, Busca Vida, 1989, Vol. 1.
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