sábado, 23 de agosto de 2014

A evolução do ''tipo'' homossexual da Idade Moderna aos dias atuais

O texto a seguir compõe um trecho do capítulo 4 do livro ''XY: Sobre a Identidade Masculina.'' Por motivos de dificuldade técnica, não pude subscrever as notas bibliográficas nele contidas, que exemplificam a riqueza investigativa da obra. Boa leitura.



O estatuto do sodomita antes do século XIX

 A sodomia é uma categoria ''vale-tudo'' que compreende contatos sexuais - não necessariamente anais - entre homens, homens e animais, homens e mulheres, desafiando a reprodução. Michel Foucault assinala sua inclusão na lista dos pecados graves, ao lado do estupro (relações fora do casamento), do adultério, do desvio de menores, do incesto espiritual ou carnal e da carícia recíproca. Embora chamados comumente de ''infames'', os sodomitas escapam a qualquer classificação precisa. Montesquieu, interrogando-se sobre esse crime estranho, punido com o fogo, admitia que ''muitas vezes ele é impenetrável''.


 Sob o Ancien Régime, a sodomia era proibida por motivos religiosos. Era chamada ''pecado mudo'' ou ''vício abominável'', sobre o qual era melhor não falar ao povo. Para mostrar a imprecisão do conceito de sodomia, Pierre Hahn teve a boa ideia de consultar o manual dos confessores. Assim, o Tratado de sodomia, do padre L.M. Sinistrati d'Ameno (de meados do século XVIII), faz diferenciações sutis, que não podem deixar de surpreender o leitor do século XX. Para o sábio eclesiástico, a sodomia se define como a relação carnal entre dois machos ou duas fêmeas, mas nem por isso todos os atos ''homossexuais'' são constitutivos desse crime. Para que exista crime, é necessário que haja coito, introdução do pênis no ânus, ''a fim de que se distinga da simples volúpia (polução, masturbação) obtida mutuamente entre macho e macho ou entre fêmea e fêmea''. O pecado existe quando nos enganamos de vaso! Segundo alguns doutores, ''a intromissão do membro viril  no vaso posterior deveria acontecer com regularidade, e seria preciso que houvesse descarga de sêmen no interior do ânus. Esta era a sodomia 'perfeita', e neste caso os pecadores só podiam ser absolvidos pelo papa ou os bispos''. Em troca, se o macho copulava pelo ânus com uma mulher, a sodomia era ''imperfeita'', e um simples confessor podia absolvê-los.

 No século XVIII, o crime se laiciza, e o vocabulário muda. Fala-se cada vez menos em 'sodomia' (rejeição à referência bíblica) e cada vez mais em pederastia (sobretudo a partir de 1740) ou infâmia (jargão da polícia). Segundo Maurice Lever, a laicização do delito homossexual, que se torna ''pecado filosófico'' contra o Estado, a ordem e a natureza (fala-se também em ''amor antifísico''), dessacraliza o vício, que não cheira mais a enxofre. O crime se banaliza, torna-se apenas um delito. Seja qual for a opinião dos filósofos, a homossexualidade nunca é descrita como uma identidade específica. A sodomia é uma aberração temporária, uma confusão da natureza, nada mais. Mesmo que Rousseau, Voltaire ou Condorcet não tenham escondido a repulsa que lhes inspirava pessoalmente tal prática, eles nunca procuraram acusar ''o criminoso''. Ao contrário. Voltaire insiste na ideia de mal-entendido: ''Os jovens machos de nossa espécie, educados juntos, sentindo esta força que a natureza começa a manifestar neles, e não encontrando o objeto de seus instintos, lançam-se sobre aquele que lhes é semelhante.'' Nenhum motivo para estigmatizar pela vida inteira um ser humano! Amigo de Voltaire, Condorcet, tão sensível à noção de Direitos do Homem, propõe descriminalizar a sodomia, desde que ''não envolva violência''.

 O mais tolerante de todos foi, sem dúvida, Diderot. Nos seus escritos, especialmente no Entretien, que se segue ao Rêve de d'Alembert, a homossexualidade não só perde todo traço de pecado ou infâmia como adquire um status de um prazer delicioso, do mesmo calibre que a masturbação. Para Diderot, que fala sob a máscara do Dr. Bordeu, a abstinência nos torna loucos, o que é, para ele, uma oportunidade de prestar uma vibrante homenagem ao prazer sexual.  O estado de necessidades deve ser satisfeito a qualquer preço. Depois de ter legitimado as práticas solitárias, Diderot-Bordeu fala a Mademoiselle de Lespinasse, que não acredita no que ouve, sobre a superioridade da homossexualidade, em nome do princípio do prazer e da partilha deste. O Código Penal francês de 1791 não mais condenaria a sodomia em si mesma. Essa tolerância, confirmada pelo Código de 1810, teria fim com a lei de 18 de abril de 1832, que instituiu o crime da pedofilia. Em troca, o Código Penal continuou fechando os olhos para as relações heterossexuais entre um adulto e um menor... É verdade que o estatuto do pederasta está em vias de mudar radicalmente e suscita novas interrogações.

Século XIX: definição da identidade pela preferência sexual


 A última terça parte do século vitoriano assiste ao surgimento de novas concepções sobre a homossexualidade. O sodomita, que antes era apenas uma aberração temporária, dá lugar ao ''homossexual'', que caracteriza uma espécie particular. Com a invenção de novas palavras - ''homossexual'' e ''invertido'' - para designar aqueles que se interessam pelo mesmo sexo, altera-se a ideia que se faz deles. A criação de uma palavra corresponde, neste caso, à criação de uma essência, de uma doença psíquica e de um mal social. O nascimento do ''homossexual'' é o nascimento de uma problemática e de uma intolerância que sobreviveram até nossos dias.


 Pierre Hahn data de 1857 a primeira pesquisa sobre os homossexuais franceses, feita pelo doutor Tardieu e policiais. Com ela começa a caçada aos pederastas, que interessam cada vez mais à polícia, aos juízes e à esfera médico-legal. Segundo o grande médico, esse vício tende a crescer a cada dia... e os escândalos públicos determinam uma repressão mais rigorosa da pederastia, dos estupros e dos atentados ao pudor cometidos contra crianças. Mais curioso é que são os próprios homossexuais que se põem na frente do fogo, inventando a problemática identificatória. Eles querem que seja reconhecida a sua especificidade, ou seja, o que chamaríamos hoje de direito à diferença. É um húngaro, o doutor Benkert, que cria, em 1869, o termo homossexualidade e pede ao Ministro da Justiça a abolição da velha lei prussiana contra essa prática. Na mesma época, um antigo magistrado de Hanôver, Heinrich Ulrichs, ele mesmo homossexual, analisa a homossexualidade sob o triplo ponto de vista do historiador, do médico e do filósofo. Infelizmente, de suas ilustradas distinções entre pederastia e aqueles a quem chamou de ''uranistas'' só sobreviveria a definição dos últimos: ''Uma alma feminina caída sobre um corpo de homem.'' Sem pretender, Ulrichs dirige a pederastia para o caminho escorregadio de patologia mental. É com base nesta crença em uma espécie de terceiro sexo que o psiquiatra alemão Westphal publica em 1870 seu estudo sobre A inversão congênita do sentimento sexual com consciência mórbida do fenômeno, Havelock Ellis define o invertido como uma anomalia congênita e Hirschfeld fala do ''sexo intermediário''.

 Pouco a pouco, todo mundo concorda em vê-los como doentes. Em 1882, Magnan e Charcot os batizam de ''invertidos sexuais'' e os situam no quadro das degenerescências. ''No final do século, nenhum homem podia se considerar sadio, normal, se não afirmasse sua identidade sexual dos pés à cabeça.'' O nascimento da homossexualidade patológica caminha lado a lado com o surgimento da ''raça maldita'', nas palavras de Marcel Proust, e também com o advento da normalidade heterossexual. A identidade sexual torna-se um destino. Graças à influência decisiva das Psicopatias sexuais de Richard Krafft-Ebing, a extrema atenção dada aos pervertidos e à anormalidade lança nova luz sobre o ''normal''. A sexualidade masculina ''normal'' provém de um ''instinto'' cujo objeto natural seria o outro sexo. Cria-se o conceito de heterossexualidade para descrever essa normalidade, que postulava uma diferença radical entre os sexos, ao mesmo tempo que ligava de modo indissolúvel a identidade de gênero (ser um homem ou uma mulher) e a identidade sexual.

 Em suma, o discurso médico do século XIX transformou os comportamentos sexuais em identidades sexuais. Os pervertidos, depois dos libertinos, dão aos indivíduos uma nova especificidade. Enquanto o sodomita, observa Foucault, era apenas o sujeito jurídico dos atos proibidos, ''o homossexual do século XIX tornou-se um personagem: um passado, uma história e uma infância; uma morfologia também, com uma anatomia indiscreta e uma fisiologia misteriosa. Nada do que ele é, no total, escapa à sua sexualidade (...). O homossexual é agora uma espécie.'' Depois da alma platônica e da razão cartesiana, o sexo tornou-se a última verdade do ser.

 A incorporação da homossexualidade ao campo da medicina deveria tê-la protegido dos julgamentos morais. Isto não aconteceu. A problemática das ''perversões'' permitiu todas as ambiguidades. Não se distinguem a doença e o vício, o mal psíquico e o mal moral. Operou-se um consenso para estigmatizar esses homens efeminados, incapazes de se reproduzir! Na Inglaterra, assim como na França,  as atitudes anti-homossexuais estão ligadas ao temor do declínio do império. Não têm conta os textos que evocam com angústia as consequências desastrosas da redução da natalidade! O homossexual ameaça a nação e a família. Mas ele é também um ''traidor da causa masculina''. Os próprios médicos condenam esses homens efeminados, que não cumprem suas obrigações de homens. Acusam-lhes de falta de grandeza da alma, de coragem e devoção; deploram sua vaidade, suas indiscrições, suas tagarelices. Em suma, são ''mulheres frustradas, homens incompletos''.

 A estigmatização dos homossexuais é, sem dúvida, resultado do processo de classificação das sexualidades. Por ironia da história, os próprios homossexuais e os sexólogos que se apresentaram como reformistas são, em grande parte, os responsáveis pelo confinamento dos ''desviantes'' no terreno da anormalidade. O melhor exemplo desta derrapagem vem do sexólogo Havelock Ellis. Acreditando estar reforçando a tolerância da sociedade burguesa à sexualidade, ele desenvolveu o argumento do caráter inato e irresponsável desta última: não se pode fazer nada, ela é de nascença. Como resultado, ''a hipótese de uma homossexualidade determinada biologicamente se impôs na literatura médica do século XX, acarretando todo tipo de tentativas hormonais e cirúrgicas para mudar lésbicas e homossexuais masculinos em heterossexuais.''

 Jeffrey Weeks demonstrou brilhantemente a responsabilidade dos sexólogos na formação do ''tipo'' homossexual. A despeito de seu fervor científico, a sexologia não era neutra nem simplesmente descritiva. Dizia o que devíamos ser e o que fazia de nós normais. A obsessão pela norma determinou um considerável esforço para definir o anormal. Multiplicaram-se as explicações etiológicas: corrupção ou degeneração, caráter inato ou trauma de infância... Produziram-se tipologias complexas, distinguindo diferentes homossexualidades...

 Ellis distingue o invertido e o pervertido; Freud, o invertido absoluto e o contingente. Clifford Allen define doze tipos, entre os quais o compulsivo, o nervoso, o neurótico, o psicótico, o psicopata e o alcoólatra. Richard Harvey recenseia 46 espécies de homossexuais... e Kinsey inventa o continuum do heterossexual ao homossexual. Depois disso, como observa J. Weeks, muitos sexólogos compreenderam o perigo dessas tipologias rígidas. Mas era tarde demais. Uma vez imposto o tipo do ''homossexual'', tornou-se impossível escapar dele. As práticas sexuais passaram a ser o critério de descrição da pessoa. Isto significa que os sexólogos criaram  o homossexual, como pensam Michel Foucault e Jonathan Ned Kartz? Sim e não. As práticas homossexuais existem em toda parte e desde sempre. Mas, ''até que a sexologia lhe colocasse um rótulo, a homossexualidade era apenas uma parte difusa do sentimento de identidade. A identidade homossexual, tal como a conhecemos, é, portanto, uma produção de classificação social, cujo principal objetivo era a regulação e o controle, Nomear era aprisionar.''

 O século XX não tirou o homossexual de sua prisão. Um século após o de Oscar Wilde, muitos dos nossos contemporâneos continuam a olhá-lo como um tipo sexual criminoso, na melhor das hipóteses um doente ou um desviante. Duas razões podem explicar essas atitudes discriminatórias. A primeira deve-se à nossa ignorância: depois de 150 anos de estudos e polêmicas, ainda não sabemos definir com precisão esse comportamento fluido e multiforme, cuja origem não se conhece claramente. A multiplicidade de explicações reforçou o mistério e, portanto, a estranheza. A outra razão é de ordem ideológica. Uma vez que a nossa concepção de masculinidade é heterossexual, a homossexualidade desempenha o útil papel de contraste, e sua imagem negativa reforça a contrário o aspecto positivo e desejável da heterossexualidade.


Elisabeth Badinter, nascida em 5 de março de 1944, é historiadora, autora e professora de filosofia na  École Polytechnique em Paris. Em 1992, lançou  livro ''XY: Sobre a Identidade Masculina'', cuja versão brasileira veio pela editora Nova Fronteira.


Nenhum comentário:

Postar um comentário