O texto abaixo é a continuação do capítulo 17 do livro ''god is not Great: how religion poisons everything'', de Christopher Hitchens, publicado aqui com o título 'Teocracia e totalitarismo'.
''Deus está conosco'', dizia a inscrição no cinturão dos soldados nazistas.
Costuma-se esquecer que a tríade do Eixo incluía outro membro - o Japão -, que tinha como chefe de Estado não apenas uma pessoa religiosa, mas na verdade uma divindade. Se a chocante heresia de acreditar que o imperador era Deus algum dia foi denunciada em algum púlpito alemão ou italiano por qualquer prelado, eu fui incapaz de descobrir. No sagrado nome desse mamífero ridiculamente sobreavaliado enormes áreas da China, da Indochina e do Pacífico foram saqueadas e escravizadas. Também em seu nome milhões de japoneses foram martirizados e sacrificados. O culto a esse deus-rei era tão obrigatório e histérico que se acreditava que todo o povo japonês poderia apelar ao suicídio caso sua pessoa fosse ameaçada ao final da guerra. Assim chegou-se a um acordo de que ele poderia ''permanecer'', mas que dali por diante teria de alegar ser apenas um imperador, e talvez de alguma forma divino, mas não estritamente falando de um deus. Essa deferência à força de opinião religiosa deve implicar o reconhecimento de que a fé e a adoração podem fazer as pessoas se comportarem realmente muito mal.
Assim, aqueles que invocam a ''tirania secular'' em comparação com a religião esperam que esqueçamos duas coisas: a ligação entre as igrejas católicas e o fascismo e a capitulação das igrejas ao nacional-socialismo. Essa afirmação não é apenas minha: ela foi admitida pelas próprias autoridades religiosas. Sua consciência pesada nessa questão é ilustrada por um fragmento de má fé que ainda precisa ser combatido. Em sites religiosos e na propaganda religiosa é possível se deparar com uma afirmação supostamente feita por Albert Einstein em 1940:
Sou um amante da liberdade, quando a revolução chegou à Alemanha eu esperei
que as universidades a defendessem, sabendo que elas sempre tinham alardeado
sua devoção à causa da verdade; mas não, as universidades foram imediatamente
silenciadas. Então eu esperei pelos grandes editores dos jornais cujos editoriais
inflamados nos dias passados tinham proclamado seu amor à liberdade; mas eles,
como as universidades, foram silenciados em algumas semanas. (...) Apenas a Igreja
permaneceu firmemente no caminho da campanha de Hitler para eliminar a verda-
de. Eu nunca antes tinha tido qualquer interesse especial pela Igreja, mas hoje sinto
grande afeto e admiração, porque apenas a Igreja teve a coragem e a persistência
de defender a verdade intelectual e a liberdade moral. Assim, sou obrigado a con-
fessar que o que eu antes desprezei hoje louvo sem reservas.
Originalmente publicado na revista Time (sem qualquer fonte verificável), essa suposta declaração foi certa vez citada em uma transmissão nacional de rádio do famoso porta-voz católico americano e clérigo Fulton Sheen, e continua a circular. Como destacou o analista William Waterhoose, ela de modo algum soa como Albert Einstein. Sua retórica é floreada demais, para começar. E não faz qualquer menção à perseguição dos judeus. E faz o Einstein sereno e cuidadoso parecer tolo, por alegar ter um dia ''desprezado'' algo pelo qual ele ''nunca teve especial interesse''. Há ainda outra dificuldade, por essa declaração nunca aparecer em nenhuma antologia das observações escritas ou ditas por Einstein. Finalmente, Waterhoose conseguiu descobrir uma carta não-publicada nos arquivos Einstein de Jerusalém, na qual o velho homem se queixava em 1947 de ter um dia feito uma observação louvando alguns ''religiosos'' (não ''igrejas''), que tinha desde então sido exagerada a ponto de se tornar irreconhecível.
Qualquer um que queira saber o que Einstein realmente disse nos primeiros dias da barbárie de Hitler pode descobrir facilmente. Por exemplo:
Eu espero que condições saudáveis logo se imponham na Alemanha, e no futuro gran-
des homens como Kant e Goethe não sejam simplesmente festejados de tempos em
tempos, mas que os princípios que eles ensinaram prevaleçam na vida pública e na
consciência geral.
Fica muito claro que com isso ele colocava sua ''fé'', como sempre, na tradição iluminista. Aqueles que buscavam representar erroneamente o homem que nos deu uma teoria alternativa para o universo (bem como aqueles que permaneceram silenciosos, ou pior ainda, enquanto seus colegas judeus estavam sendo deportados e destruídos) traem os escrúpulos de suas consciências pesadas.
Quanto ao stalinismo soviético e chinês, com seu exorbitante culto à personalidade e sua indiferença pervertida para com a vida e os direitos humanos, não se pode esperar descobrir grandes coincidências com as religiões pré-existentes. Para começar, a Igreja Ortodoxa Russa tinha sido a principal impulsionadora da autocracia czarista, enquanto o próprio czar era visto como o líder formal de uma fé e algo um pouco mais que meramente humano. Na China, as igrejas cristãs eram fundamentalmente identificadas como as ''concessões'' estrangeiras arrancadas por poderes imperiais, que estavam entre as principais causas da própria revolução. Isso não explica ou desculpa o assassinato de padres e freiras e a violação de Igrejas - não mais do que se deveria desculpar o incêndio de igrejas e o assassinato do clero na Espanha durante a luta da república espanhola contra o fascismo católico -, mas a longa associação da religião com o poder secular corrupto significou que a maioria das nações precisa passar por pelo menos uma fase anticlerical, de Cromwell ao Risorgimento, passando por Henrique VIII e a Revolução Francesa, e nas condições de guerra e colapso que havia na Rússia e na China esses interlúdios foram particularmente brutais. (Devo acrescentar, porém, que nenhum cristão sério deveria esperar a restauração da religião como era em nenhum dos dois países: a Igreja na Rússia era defensora da escravidão e autora de pogrons antijudaicos, e na China os missionários, os comerciantes e concessionários avarentos eram sócios o crime.)
Lenin e Trotsky certamente eram ateus convictos que acreditavam que as ilusões da religião podiam ser destruídas por atos políticos e que nesse meio tempo as propriedades obscenamente ricas da Igreja podiam ser confiscadas e nacionalizadas. Também havia nas fileiras bolcheviques, como entre os jacobinos de 1789, aqueles que viam a revolução como uma religião alternativa, ligada a mitos de redenção e messianismo. Para Josef Stalin, que tinha se preparado para ser padre em um seminário na Geórgia, toda a coisa não passava de uma questão de poder. ''Quantas divisões tem o papa?'' foi a famosa pergunta idiota que ele fez. (A verdadeira resposta a esse sarcasmo cansativo era: ''Mais do que você pensa.'') Depois, Stalin pedantemente repetiu a rotina papal de fazer a ciência se ajustar ao dogma, insistindo que o xamã e charlatão Trofim Lysenko tinha revelado o segredo da genética e prometendo safas extras de vegetais particularmente inspirados. (Milhões de inocentes morreram de doses internas suplicantes em consequência dessa ''revelação''.) Esse César a quem todas as coisas eram devidamente atribuídas se preocupou, à medida que seu regime foi se tornando mais nacionalista e estatista, em manter pelo menos uma igreja-marionete que podia ligar seu tradicional apelo ao dele. Isso foi verdade especialmente durante a Segunda Guerra Mundial, quando a ''Internacional'' foi substituída como hino nacional russo pelo tipo de propaganda musical que havia derrotado Bonaparte em 1812 (isso em uma época em que ''voluntários'' de vários Estados fascistas europeus estavam invadindo o território russo sob a sagrada bandeira de uma cruzada contra o comunismo ''sem deus''.) Em uma passagem muito negligenciada de A revolução dos Bichos, George Orwell permite que Moses, o corvo, havia muito o defensor crocitante de um paraíso além do céu, retorne à fazenda para pregar ás criaturas mais crédulas após Napoleão ter derrotado Bola-de-Neve. Sua analogia com a manipulação da Igreja Ortodoxa Russa por Stalin foi, como sempre, muito precisa. (Os stalinistas poloneses do pós-guerra tinham recorrido à mesma tática, legalizando uma organização católica chamada Pax Christi e dando a ela assentos no Parlamento de Varsóvia, para encanto de comunistas católicos colegas de jornada como Brian Greene.) A propaganda anti-religiosa na União Soviética era do tipo materialista mais banal: um santuário a Lenin frequentemente tinha vitrais, enquanto no museu oficial do ateísmo havia o testemunho de um cosmonauta russa que não tinha visto nenhum deus no espaço sideral. Essa cretinice expressava no mínimo tanto desprezo pelos caipiras simplórios quanto por qualquer ícone realizador de maravilhas. Como colocou o grande laureado da Polônia, Czeslaw Milosz, em seu clássico antitotalitário The Captive Mind, lançado em 1953:
Eu conheci muitos católicos - poloneses, franceses, espanhóis - que eram rígidos stalinistas
no campo da política mas que mantinham certas reservas internas, acreditando que Deus
faria correções assim que as sentenças sanguinárias dos todo-poderosos da História fossem
cumpridas. Eles levaram esse raciocínio ainda mais longe. Argumentam que a História se
desenvolve de acordo com as leis imutáveis que existem pela vontade de Deus; uma delas
é a luta de classes; o século XX marca a vitória do proletariado, que é liderado pelo Partido
Comunista; Stalin, o líder do Partido Comunista, cumpre a vontade de Deus, portanto é
preciso obedecer a ele. A humanidade só pode ser renovada segundo o padrão russo; por
isso nenhum cristão pode se opor à ideia - cruel, é verdade - que irá criar um novo tipo de
homem sobre todo o planeta. Tal raciocínio é frequentemente utilizado por clérigos que são
ferramentas do Partido. ''Cristo é um novo homem. O novo homem é o homem soviético.
Portanto, Cristo é um homem soviético!'', disse Justinian Marina, o patriarca romeno.
Homens como Marina sem dúvida eram odiosos e patéticos, simultaneamente odiosos e patéticos, mas isso em princípio não é pior do que os inúmero pactos feitos entre Igreja e Império, Igreja e monarquia, Igreja e fascismo e Igreja e Estado, todos eles justificados pela necessidade de o fiel fazer alianças temporais pelo bem de objetivos ''superiores'', enquanto se entrega a César (a palavra da qual deriva ''czar''), mesmo quando ele for ''sem deus''.
Um cientista político ou antropólogo teria pouca dificuldade em reconhecer o que os editores e colaboradores de O deus que falhou apresentaram naquela prosa imortal: absolutistas comunistas não tentavam tanto negar a religião, em sociedades que se sabiam saturadas de fé e superstição, quanto substituí-la. A solene elevação de líderes infalíveis que eram fonte de infinita recompensa e bênção; a busca permanente de hereges e cismáticos; os horrendos julgamentos espetaculares que produzem confissões inacreditáveis por intermédio da tortura... nada disso era muito difícil de interpretar em termos tradicionais. Nem a histeria em tempos de peste e fome, quando as autoridades iniciavam uma busca ensandecida a qualquer culpado, menos o real. (A grande Doris Lessing certa vez me disse que deixou o Partido Comunista ao descobrir que os inquisidores de Stalin tinham pilhado os museus da ortodoxia russa e do czarismo e reutilizado os antigos instrumentos de tortura.) Também não o era a incessante invocação de um ''Futuro Radiante'', cuja chegada um dia iria justificar todos os crimes e dissolver todas as pequenas dúvidas. ''Extra ecclesiam, nulla sallus'', como costumava dizer a antiga fé. ''Na revolução, tudo'', como Fidel Castro gostava de lembrar. ''Fora da revolução, nada''. De fato, na periferia de Castro se desenvolveu uma bizarra mutação conhecida, em um oxímoro, como ''teologia da libertação'', cujos padres e até mesmo bispos desenvolveram liturgias ''alternativas'' louvando a noção enganosa de que Jesus de Nazaré na verdade era um socialista militante. Por uma combinação de bons e maus motivos (o arcebispo Romero El Salvador era um homem de coragem e princípios, de uma forma que alguns clérigos de ''comunidades de base'' nicaraguenses não eram), o papado acabou com isso como sendo heresia. Que bom teria sido se ele tivesse condenado o nazismo e o fascismo com o mesmo tom firme e claro.
Em muitos poucos casos, como o da Albânia, o comunismo tentou extirpar a religião inteiramente e proclamar um Estado por completo ateu. Isso apenas levou a cultos ainda mais extremados de seres humanos medíocres, como o ditador Enver Hoxha, e a batismos e cerimônias secretas que comprovaram a absoluta alienação das pessoas comuns do regime. Não há nada no moderno argumento secular que de longe sugira a proibição da observância religiosa. Sigmund Freud estava certo de descrever o impulso religioso, em O futuro de uma ilusão, como essencialmente inextinguível até, ou a não ser, que a espécie humana consiga vencer seu medo da morte ou sua tendência ao wishful thinking. Nenhuma das duas situações parece provável. Tudo o que os totalitários demonstraram é que o impulso religioso - a necessidade de venerar - pode assumir formas ainda mais monstruosas se reprimido. Isso não necessariamente deve ser um cumprimento à nossa tendência à veneração.
Nos primeiros meses deste século eu fiz uma visita à Coreia do Norte. Ali, contido em um quadrilátero hermético de território limitado pelo mar ou por fronteiras quase impenetráveis, há uma terra inteiramente devotada à bajulação. Todos os momentos despertos do cidadão - o súdito - são consagrados a louvar o Ser Supremo e seu Pai. Toda sala de aula ressoa com isso, todos os filmes, as óperas e as peças são dedicados a isso, todas as transmissões de rádio e televisão são voltadas para isso. Assim como todos os livros, todos os locais de trabalho. Eu costumava tentar imaginar em como seria ter de cantar louvores infinitos, e hoje eu sei. Nem o demônio é esquecido: o mal vigilante dos estrangeiros e descrentes é evitado por uma vigilância perpétua, que inclui momentos diários de ritual no trabalho nos quais é inculcado o ódio ao ''outro''. O Estado norte-coreano nasceu aproximadamente na mesma época em que 1984 estava sendo publicado, e quase se pode acreditar que o pai sagrado do Estado, Kim Il Sung, recebeu um exemplar do romance e foi questionado se poderia colocá-lo em prática. Mas mesmo Orwell não tentou dizer que o nascimento do ''Grande Irmão'' foi cercado de sinais e prodígios milagrosos - como pássaros louvando o acontecimento milagroso cantando com vozes humanas. Nem o Partido Interno de Pista Número 1/Oceania gastou bilhões de escassos dólares, em uma época de fome terrível, para provar que o mamífero enganoso Kim Il Sung e seu filho mamífero patético Kim Jong Il eram duas encarnações da mesma pessoa. (Nessa versão da heresia ariana tão condenada por Atanásio, a Coreia do Norte é única por ter um homem morto como Chefe de Estado: Kim Jong Il é o chefe do partido e do exército, mas a presidência é exercida perpetuamente por seu pai morto, o que faz do país uma necrocracia ou uma mausoleucracia, além de um regime que está a apenas uma pessoa da Trindade.) A vida após a morte não é mencionada na Coreia, porque a ideia de deserção em qualquer direção é fortemente desencorajada, mas em compensação não é dito que os dois Kim continuarão a dominá-lo depois que você tiver morrido. Estudiosos do tema podem ver facilmente que o que temos na Coreia do Norte não é tanto uma forma extrema de comunismo - o termo mal é mencionado em meio às tempestades de dedicação extasiada -, mas uma forma pervertida, embora refinada, de confucionismo e veneração aos ancestrais.
Quando eu deixei a Coreia do Norte, com uma sensação mista de alívio, ultraje e pena tão grande que ainda continuo com ela, estava deixando um Estado totalitário, e também religioso. Desde então eu tenho conversado com muitas das valorosas pessoas que estão tentando minar esse sistema atroz interna e externamente. Admito desde já que alguns dos resistentes mais valorosos são cristãos fundamentalistas e anticomunistas. Um desses homens corajosos concedeu há pouco tempo uma entrevista na qual foi honesto o bastante para dizer que tinha dificuldade em pregar a ideia de um salvador para os poucos esfaimados e aterrorizados que tinham conseguido escapar de seu estado-prisão. A própria ideia de um redentor infalível e todo-poderoso, diziam, era conhecida demais deles. Uma tigela de arroz, alguma exposição a uma cultura mais ampla e algum alívio do fardo hediondo do entusiasmo compulsório eram o máximo que eles pediam por hora. Aqueles que têm sorte o bastante de chegar à Coreia do Sul ou aos Estados Unidos podem se ver confrontados por um outro Messias. O criminoso inveterado e sonegador de impostos Sun Myung Moon, líder inconteste da ''Igreja da Unificação'' e grande financiador da extrema-direita nos Estados Unidos, é um dos patronos do golpe do ''design inteligente''. Um personagem importante nesse dito movimento e um homem que nunca deixa de dar a esse guro homem-deus seu adequado nome de ''Pai'' é Jonathan Wells, autor de uma risível diatribe antievolucionista intitulada The icons of evolution. Como o próprio Wells diz de forma tocante: ''As palavras do Pai, meus estudos e minhas preces me convenceram de que eu deveria dedicar minha vida a destruir o darwinismo, assim como muitos de meus colegas unificacionistas já dedicaram suas vidas a destruir o marxismo. Quando o pai me escolheu (junto com cerca de outros 12 outros formados no seminário) para participar de um programa de doutorado em 1978, eu agradeci a oportunidade de combater''. É improvável que o livro do Sr. Wells consiga sequer uma nota de pé de página na história das baboseiras, mas tendo visto o ''paternalismo'' em ação nas duas Coreias, eu tenho uma ideia de como deveria ser o Distrito Consumido do estado de Nova York quando os crentes faziam tudo do seu jeito.
Mesmo resignadamente, a religião tem de admitir que o que está propondo é uma solução ''total'' na qual a fé deve ser de certa forma cega, e na qual todos os aspectos da vida pública e privada devem ser submetido s a uma constante supervisão. Essa vigilância constante e essa sujeição contínua, normalmente implementadas pelo medo na forma de vingança infinita, não despertam invariavelmente as melhores características dos mamíferos. Certamente é verdade que a emancipação da religião nem sempre produz o melhor mamífero. Dois grandes exemplos: um dos maiores e mais iluminados cientistas do século XX, J. D. Bernal, foi um abjeto partidário de Stalin e passou grande parte da vida defendendo os crimes de seu líder. H. L. Mencken, um dos melhores satiristas da religião, era muito entusiasmado com Nietzsche e advogava uma forma de ''darwinismo social'' que incluía a eugenia e o desprezo pelos fracos e doentes. Ele também teve uma quedinha por Adolf Hitler e escreveu uma resenha imperdoavelmente indulgente de Minha luta. O humanismo tem muitos crimes pelos quais se desculpar. Mas ele pode se desculpar por eles, e também corrigi-los, em seus próprios termos e sem ter de abalar ou questionar as bases de qualquer sistema de crenças inalterável. Sistemas totalitários, quaisquer que sejam suas formas externas, são fundamentalistas e como dissemos agora, ''baseados na fé''.
Em seu estudo magistral do fenômeno totalitário, Hannah Arend não estava apenas sendo tribal quando atribuiu um lugar especial ao antissemitismo. A ideia de que um grupo de pessoas - seja ele definido como uma nação ou uma religião - possa ser condenado para todos os tempos, e sem possibilidade de recurso, era (e é) essencialmente totalitária. É terrivelmente fascinante que Hitler tenha começado como propagador desse preconceito enlouquecido, e que Stalin tenha acabado sendo ao mesmo tempo vítima e defensor dele. Mas o vírus foi durante séculos mantido vivo pela religião. Santo Agostinho definitivamente usou o mito do Judeu Errante e o exílio dos judeus em geral como prova da justiça divina. Os judeus ortodoxos não são isentos de culpa. Alegando terem sido ''escolhidos'' em um acordo especial e exclusivo com o Todo-Poderoso, eles provocaram o ódio e a suspeita, e produziram sua própria forma de racismo. Contudo, são acima de tudo os judeus seculares que foram e são odiados pelos totalitários, portanto não há sentido em qualquer ''culpe a vítima''. A Ordem Jesuíta, até o século XX, se recusava, por estatuto, a admitir um homem a não ser que ele pudesse provar que não tinha ''sangue judeu'' por várias gerações. O Vaticano pregou que todos os judeus herdavam a responsabilidade pelo teicídio. A Igreja francesa insuflou a multidão contra Dreyfus e ''os intelectuais''. O islamismo nunca perdoou ''os judeus'' por encontrarem Maomé e decidirem que ele não era o verdadeiro mensageiro. Por enfatizar tribo, dinastia e origem racial em seus livros sagrados, a religião precisa aceitar a responsabilidade de transmitir uma das ilusões mais primitivas da humanidade através das gerações.
A ligação entre religião, racismo e totalitarismo também pode ser encontrada na outra odiosa ditadura do século XX: o sistema vil do apartheid da África do Sul. Aquela não era apenas a ideologia de uma tribo de língua holandesa disposta a extorquir trabalho forçado de povos de um diferente padrão de pigmentação; era também uma forma de calvinismo na prática. A Igreja Reformada Holandesa pregava como dogma que negros e brancos eram biblicamente proibidos de se misturar, quanto mais de coexistir em termos de igualdade. Racismo é totalitário por definição: ele marca a vítima perpetuamente e nega a ela até mesmo o direito de um farrapo de dignidade ou privacidade, até mesmo o direito elementar de fazer amor, casar ou ter filhos com um ente querido da tribo ''errada'' sem ter seu amor anulado pela lei... E essa era a vida de milhões que viviam no ''Ocidente cristão'' em nossos próprios dias. O Partido Nacional, do governo, que também estava altamente contaminado por antissemitismo e que tinha ficado do lado dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, se baseava nos delírios do púlpito para justificar seu próprio mito de sangue de um ''Êxodo'' bôer que deu a eles direitos exclusivos em uma ''terra prometida''. Consequentemente, uma transmutação africânder do sionismo produziu um Estado atrasado e despótico no qual os direitos de todos os outros povos foram abolidos e no qual a sobrevivência dos próprios africânderes acabou ameaçada pela corrupção, pelo caos e pela brutalidade. Nesse momento os anciãos bovinos da Igreja tiveram uma revelação que permitiu o fim gradual do apartheid. Mas isso de modo algum pode admitir o perdão pelo mal que a religião causou enquanto se sentia forte o bastante para fazê-lo. São os muitos cristãos e judeus seculares, e os muitos ateus e agnósticos do Congresso Nacional Africano, que merecem o crédito pela sociedade sul-africana ter sido salva da barbárie total e da implosão.
O último século viu muitos outros improvisos sobre a velha ideia de uma ditadura que podia cuidar de problemas mais que apenas seculares ou cotidianos. Eles variaram de levemente ofensivos - a Igreja Ortodoxa Grega batizou a junta militar golpista de 1967, com as suas viseiras e seus capacetes de aço, de ''a Grécia para os cristãos gregos'' - até o escravizador ''angka'' do Khmer Vermelho no Camboja, que buscou sua autoridade em templos e lendas pré-históricos. (Seu algumas vezes amigo, algumas vezes rival, o já mencionado rei Sihanouk, que conseguiu um abrigo de playboy sob a proteção de stalinistas chineses, também era adepto de ser um deus-rei quando interessava a ele.) Entre um extremo e outro está o xá do Irã, que alegava ser ''a sombra de Deus'', bem como ''a luz dos arianos'', que reprimiu a oposição secular e tomou o cuidado de ser representado como guardião dos santuários xiitas. Sua megalomania foi sucedida por uma de suas primas próximas, a heresia de Khomeini da velayet-i-faqui, ou o completo controle social pelos mulás (que também exibem seu falecido líder como seu fundador e afirmam que suas palavras sagradas nunca podem ser apagadas). No extremo pode ser encontrado o purismo medieval do Talibã, que se dedicou a descobrir novas coisas a proibir (tudo, de música a papel reciclado, que podia conter um pequeno fragmento de polpa de um Corão jogado fora) e novos métodos de punição (homossexuais queimados vivos). A alternativa a esses fenômenos grotescos não é a quimera da ditadura secular, e sim a defesa do pluralismo secular e o direito a não acreditar ou ser obrigado a acreditar. Essa defesa agora se tornou uma responsabilidade urgente e inevitável: uma questão de sobrevivência.
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