*Texto do professor de História da UFT Bertone Sousa, para seu blog pessoal
A incompreensão do que sejam as políticas de ações afirmativas leva as pessoas a fazerem afirmações inadequadas acerca de sua aplicação. Desde as cotas para negros e índios nas universidades e leis de proteção às mulheres, idosos, entre outros grupos, essas políticas têm como alvo grupos sociais específicos vítimas de discriminação, violência, exclusão e têm como objetivo corrigir e atenuar a desigualdade e promover mais equalização social.
Em geral, os conservadores são contra. Mas eles metem os pés pelas mãos quando colocam o conceito de “direito natural” acima dos direitos sociais e quando desprezam os desníveis e desigualdades existentes para reafirmar dogmas políticos legitimadores dessa ordem e que servem apenas como catalisadores de atitudes preconceituosas. As políticas afirmativas são um importante instrumento para corrigirmos problemas sociais de longa duração e é importante um engajamento social para a superação do preconceito contra determinados grupos. Por isso, nesse texto pretendo discutir o que são e para que servem as políticas afirmativas enfocando as cotas raciais.
Para os conservadores, o governo brasileiro está privilegiando grupos quando cria cotas raciais. O que é então e qual o objetivo dessas políticas? O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. fala com muita propriedade que as cotas para negros e índios nas universidades faz parte de políticas afirmativas para minorias. Nesse caso, estamos falando de minoria sociológica, não numérica. Ou seja, negros não são minoria numérica, mas são sociológica, isto é, eles são maioria na sociedade mas são minoria em termos de inserção em espaços historicamente ocupados por brancos como, por exemplo, as universidades. E o objetivo das políticas afirmativas é garantir direitos a grupos sociais que não possuem hegemonia cultural e que por isso sofrem exclusão, preconceitos e estigmatização.
Que os negros sofrem exclusão social no Brasil é inegável. Eles estão nas favelas, presídios, periferias das grandes cidades, sub-empregos, trabalhos informais, mas não estão nas universidades. Nelas, eles sofrem preconceito porque a elite branca que ocupa esse espaço não está acostumada a conviver com eles nas instituições de ensino superior. E por que os negros estão nas favelas? Porque após a abolição da escravatura, não foram tomadas medidas efetivas para sua inclusão social, escolarização, aquisição de condições de vida e trabalho dignas. Antes, foram abandonados à própria sorte e relegados ao desprezo do restante da sociedade. Então o objetivo das cotas é aumentar a quantidade de negros nas universidades e com isso diminuir o preconceito com a presença deles nesses espaços. As cotas não têm o objetivo de quitar dívidas históricas ou compensar a escravidão do passado, pois nesse caso seriam ineficientes. Mas como política afirmativa pra diminuir o preconceito podem, sim, ser eficazes. As cotas não tomam o negro por inferior, ou menos inteligente.
Quando reclamam do fato de os negros terem de concorrer com os brancos em condições de igualdade, as pessoas estão reproduzindo uma visão elitista espúria, pois o negro não concorre em condições de igualdade com o branco da classe média, que estudou em instituições privadas de melhor qualidade e possui capital social, cultural e econômico que o negro não possui. As cotas não têm o objetivo de serem eternas, assim como aconteceu com as cotas para mulheres nos partidos políticos. Elas tinham o mesmo objetivo: diminuir o preconceito com a participação das mulheres nesses espaços e incentivar sua inserção ali; hoje as cotas para mulheres nos partidos já não são mais necessárias porque o problema foi praticamente resolvido. Aqueles que são contra cotas para negros em geral são racistas ou estão reproduzindo, sem o saber, uma visão de mundo racista que pretende manter esse segmento afastado das instituições de ensino superior. Em 2001, um estudo realizado por Ricardo Henriques para o IPEA constatou que apenas 2% dos estudantes universitários brasileiros eram negros e que dos mais de 20 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza, 70% eram negros.
Nesse sentido, a política afirmativa é uma forma de tratar de forma desigual os desiguais, ou seja, é uma medida reparatória de redução da exclusão e da desigualdade que, de outra forma, não poderia ser solucionada. Por outro lado, dizer que a cota é uma discriminação contra o branco ou contra o próprio negro ou que o negro se sentiria inferiorizado por entrar na universidade por cota é apenas uma forma de desviar a atenção para o problema histórico da discriminação e pressionar a sociedade, inclusive os negros a se colocarem contra as cotas. O uso frequente desses argumentos é apenas um indicativo de que ainda temos um longo caminho até a superação do preconceito em diversos meios sociais, mas sem dúvida, as cotas já se constituem em um passo importante para isso.
Essa ação afirmativa de inclusão dos negros nas universidades não é uma invenção brasileira, pois foi adotada no sistema educacional norte-americano na década de 60, tendo como uma de suas metas justamente a correção do desnível social e o combate à hostilidade e o preconceito institucional contra eles. Além das universidades, empresas, meios de comunicação e órgãos publicitários também foram obrigados por lei a reservarem vagas para contratação de afro-descendentes. Isso proporcionou a ascensão dos negros à classe média, com sua inserção em profissões e instituições de ensino que antes eram representadas praticamente apenas por brancos. Além dos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia também adotaram a medida.
Onde está o erro de raciocínio dos direitistas? No fato de acreditarem que a constituição já protege a todos. A questão é que por sofrer estigma social alguns grupos não são devidamente assistidos pela lei, por isso é preciso criar outra lei não para privilegiá-los, mas para equipará-los aos outros grupos sociais. Foi o que aconteceu com a criação da lei Maria da Penha: foi uma lei criada para combater a violência contra mulheres, já que a constituição federal, por si só, é insuficiente para isso. É por isso que as políticas afirmativas atuam no sentido de proteger minorias sociais contra variados tipos de violência que sofrem no cotidiano. Outros exemplos são o estatuto do idoso e o estatuto da criança e do adolescente.
Então alguém poderia argumentar: por que não se criam leis para proteger japoneses, iltalianos, seus descendentes, etc.? Porque não existem ações sociais contra esses grupos no sentido de excluí-los, estigmatizá-los, discriminá-los. As políticas afirmativas não visam criar leis para beneficiar indiscriminadamente qualquer grupo. Elas visam promover inclusão e/ou proteção a segmentos que sofrem variadas formas de exclusão e/ou violência: negros, índios, mulheres, homossexuais, crianças, idosos, deficientes físicos, etc.
A direita, que prega a lei natural, não quer as políticas afirmativas por não querer ingerência do Estado na vida social, mas na questão do aborto, por exemplo, eles defendem que o Estado intervenha diretamente para coibir essa prática, mas agem movidos muito mais por uma questão de princípios religiosos do que por consciência social. A direita e as elites não têm problema com o preconceito e a exclusão contra variados grupos porque eles não sofrem diretamente com isso. Ao contrário, eles escrevem telenovelas colocando o negro quase sempre como empregado doméstico, naturalizando uma visão do negro como serviçal e perpetuando o preconceito.
Como assinalei anteriormente, a miopia social e interpretações equivocadas de alguns grupos e indivíduos que se colocam como conservadores só tende a ser prejudicial para promovermos políticas sociais e educacionais inclusivas. Em alguns casos, apela-se a teoria de conspiração estapafúrdias, retirando o foco da análise dos problemas sociais propriamente ditos. Os conservadores são contra políticas afirmativas, como são contra movimentos sociais, reforma agrária, esquerda, isto é, são contra tudo o que questione e pretenda criar mecanismos políticos de superação dos desníveis sociais extremos em nossa sociedade e, agindo assim, se colocam contra a própria sociedade e a favor de interesses corporativistas e do silenciamento das minorias sociais. Se pretendemos reduzir os abismos sociais, estender a ação da lei para grupos que não são devidamente assistidos por ela e promover inclusão, as políticas afirmativas são o melhor caminho para isso.
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