Nas universidades, a situação é diferente: cansados de tanto marxismo das décadas precedentes e seguindo uma tendência das ciências sociais em outros países, muitos deixaram de lado algumas abordagens reducionistas ligadas a um marxismo ortodoxo e aderiram ao campo mais aberto e pluralista dos Estudos Culturais. No caso da ditadura militar, a hegemonia do marxismo se justificava pela necessidade de engajamento contra o regime e de luta pela democracia. No início dos anos 90, isso já não fazia mais sentido, embora o marxismo ainda seja usado para desmascarar as pretensões totalizantes das políticas neoliberais que invadiram a América Latina desde então.
Mas, Marx ainda é importante hoje? Como clássico sim. Sua teoria possui duas dimensões: a primeira como historicismo e a segunda como filosofia da história. Como historicismo sua teoria está ligada ao materialismo histórico e dialético, ou seja, à interpretação da história das sociedades humanas a partir das características gerais de sua produção econômica material. Nesse sentido, ele procurou compreender as contradições que levaram, ao longo do tempo, à substituição de um modo de produção a outro, observando as mudanças e permanências nesses processos de transição. Modo de produção é a forma como uma sociedade está organizada para produzir os bens necessários à sua sobrevivência, ou seja, pelo trabalho servil, escravo ou assalariado.
Seu objetivo era compreender a evolução e as características da sociedade industrial do século XIX. Para isso, além de um exame cuidadoso dos mecanismos de funcionamento dos sistemas produtivos do passado, também se empenhou em refutar os fundamentos do liberalismo econômico, particularmente Adam Smith, segundo o qual as tensões e desigualdades sociais tenderiam a desaparecer com o livre comércio e a não intervenção do Estado. Marx construiu sua teoria a partir do diálogo e da influência que recebeu de três principais correntes de seu tempo: a economia clássica inglesa, o materialismo alemão e o socialismo francês[1]. Acrescente-se ainda a filosofia de Hegel.
Com base nisso, em sua obra ele desenvolveu e reinterpretou importantes conceitos que se tornaram essenciais para a compreensão do capitalismo de sua época: ideologia, mercadoria, mais-valia, exército industrial de reserva, luta de classes, entre outros. Mas os estudos históricos e econômicos de Marx estavam intimamente associados à sua filosofia da história, isto é, ao fato de ele ter estabelecido leis de desenvolvimento da história e criado uma perspectiva de futuro cujo fim seria a supressão do regime de propriedade e da exploração do homem pelo homem, tendo como protagonista a classe social engendrada pelo sistema capitalista e por ele superexplorada: o proletariado.
Nesse sentido, a Filosofia de Marx não destoa de sua época. O século XIX foi o século das utopias, das filosofias da história, das revoluções sociais, da forte consciência histórica europeia e europeizante que emergiu dos acontecimentos posteriores à Revolução Francesa. Foi uma época em que, como bem assinalou Reinhart Koselleck[2], o ideal de progresso substituiu as escatologias religiosas, ou seja, houve um deslocamento da noção de Providência divina pelo ideal de planejamento humano. Foi nesse espírito que Marx considerou o comunismo, ou a sociedade sem classes, como consequência inevitável do desenvolvimento histórico.
Se esse princípio está hoje desacreditado, devemos compreender que Marx não tinha como antever como se daria a aplicação prática de suas ideias, nem que a revolução socialista jamais aconteceria em um país capitalista rico, mas apenas em regiões periféricas onde uma economia industrial era precariamente incipiente. Embora Bakunin o tenha alertado que um partido que toma o poder e institui uma ditadura, jamais irá abrir mão de tal poder, Marx, inspirado pelo ideal do racionalismo iluminista, acreditava que o socialismo produziria um novo homem.
Chamar os regimes socialistas que vigoraram no século XX e ainda vigoram em Cuba e Coreia do Norte de marxistas é um grande disparate. Em nenhum deles o poder foi tomado pela classe trabalhadora. Em nenhum deles houve socialização dos meios de produção, mas estatização, o que é bem diferente. Em todos eles, a nova classe dirigente, separando-se rigidamente da produtora, tornou-se apenas uma nova classe dominante, a relação entre capital e trabalho não foi abolida e a luta de classes apenas foi sufocada pelo poder todo-poderoso do Estado totalitário.
Foi com Lênin que essa mudança paradigmática foi realizada. Depois de ter observado que os trabalhadores, se deixados por conta própria, apenas desenvolveriam uma consciência sindicalista e não superariam os medos e divisões internas de suas organizações, Lênin transferiu para os intelectuais, e, por extensão, para o partido, a tarefa de condução da revolução. O partido substituiu as classes trabalhadoras como ator histórico e como referência de construção da nova sociedade. Segundo Zygmunt Bauman[3], o modelo de partido de Lênin exigia subserviência, obsequiosidade e servilismo, transformando a sociedade em uma massa de soldados disciplinados. Transformado em doutrina de estado por Stálin, o “marxismo-leninismo”, com seu centralismo democrático, se tornou o modelo por excelência dos partidos comunistas no mundo inteiro. Gramsci também atribuía aos intelectuais um papel importante na reorganização da cultura, mas ao contrário de Lênin, não acreditava que isso deveria ser feito pela imposição dos ideais do partido à sociedade, mas por uma ação pedagógica dos intelectuais junto às massas.
A recaída dos movimentos revolucionários na tentação do totalitarismo também não pode ocupar lugar secundário em nossas reflexões. Poucas teorias foram tão deformadas e tão amplamente usadas para justificar os mais variados atos, de lutas pela liberdade a tiranias. Com isso, vale o conselho de Giannotti[4]: “Atualmente os textos de Marx estão cobertos por camadas e camadas geológicas de reflexões sadias e tolices inomináveis. Cabe voltar à leitura cuidadosa dos textos originais, antes de armar um novo discurso sobre a ‘emancipação’, a ‘democracia radical’ e outras palavras de ordem. Para tanto, é preciso não perder de vista certas escolhas teóricas que Marx fez durante a montagem de sua obra”.
Criticar Marx numa visão retrospectiva é fácil e, como falei no início, muitos fazem isso sem nem mesmo tê-lo lido. Já alguns críticos de plantão apenas associam seu pensamento aos gulags, cometendo anacronismos e desvios de interpretação grosseiros. Para além dos reducionismos de esquerda ou de direita, deve-se destacar que Marx realizou um estudo do sistema capitalista que até agora ninguém conseguiu superar. Sua teoria continua a ser imprescindível para compreendermos o mundo contemporâneo. Ele foi um dos gigantes que mostrou como nossa relação com o mundo está eivada de reificações. A influência de seu pensamento se estendeu a virtualmente todas as áreas das ciências sociais. A teoria marxista teve um papel importante, por exemplo, no desenvolvimento da linguística no século XX e das discussões envolvendo as noções de discurso, sujeito e verdade. No que diz respeito à compreensão da história, Hobsbawm escreveu com bastante clareza[5]: “Marx continua a ser a base essencial de todo estudo adequado de história, porque – até agora – apenas ele tentou formular uma abordagem metodológica da história como um todo, e considerar e explicar todo o processo da evolução social humana. Nesse sentido, ele é superior a Max Weber, seu único rival real enquanto influência teórica sobre historiadores, e, em diversos sentidos, um importante complemento e corretivo”.
Além disso, o marxismo possui uma dimensão humanista também inspiradora: é uma filosofia da liberdade, da autoconsciência, do não conformismo com o status quo, da emancipação do homem frente à sua coisificação, mercantilização, automatização. Se quisermos ser honestos, temos de admitir a centralidade de seu pensamento para a compreensão de nosso mundo, do funcionamento da nossa sociedade e de seus mecanismos de exploração e reprodução. Marx não demonizava o capitalismo como hoje fazem alguns líderes populistas pseudo-marxistas como Hugo Chávez. Antes reconhecia e elogiava o caráter revolucionário e transformador do capitalismo e da burguesia como vanguarda dessas mudanças, mas deplorava aquilo que até hoje o capitalismo produz em escala global: concentração de renda, depauperamento, favelização.
Mas é preciso compreender o contexto sobre o qual e para o qual ele escreveu. O leitor que conferir a obra “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” de Engels, que serviu de referência a Max para redação de O Capital, poderá ter uma visão mais clara de contra o que lutavam os movimentos socialistas do século XIX. A extrema precariedade das condições de trabalho, a extenuante jornada de trabalho, a situação paupérrima dos distritos industriais, a insalubridade das fábricas, os salários baixíssimos, a inexistência de legislação trabalhista e os frequentes abusos dos patrões que, não raramente, castigavam fisicamente seus empregados, são alguns problemas que levaram à emergência desses movimentos na Europa. Nos países do chamado “mundo desenvolvido”, as condições de trabalho e de vida das pessoas não melhoraram por bondade de seus gestores; as lutas sociais tiveram um importante papel nesse processo. Contudo, em um mundo em que o abismo social entre ricos e pobres continua a aumentar exponencialmente e crises econômicas retiram o emprego e a dignidade de milhões de pessoas, as advertências de Marx e a necessidade de retomar e reinterpretar seu pensamento para nossa época continuam sendo imperiosas. Quando de seu funeral, o encerramento do discurso de Engels não poderia ter sido mais certeiro: “seu nome sobreviverá aos séculos e a sua doutrina também”.
[1] Para uma explicação mais detalhada dessas influências, recomendo aos leitores a Introdução de Jacob Gorender para a edição de “A Ideologia Alemã” da editora Martins Fontes, atualmente na terceira edição de 2007.
[2] KOSSELLEC, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora PUC-RJ, 2006.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 213-217.
[4] GIANNOTTI, J.A. Lições de Filosofia Primeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 15.
[5] HOBSBAWM, Eric. Marx e a História. In: ______. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 181.
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