sábado, 18 de março de 2017

''Soberania do consumidor'' no capitalismo é uma piada (de mau gosto)

Um típico retardado que acreditava (ou fingia acreditar) em ''soberania do consumidor'': o apologista austríaco do capitalismo Ludwig von Mises  

 Sim, esse post foi inspirado pela recente polêmica envolvendo as gigantes da produção de carne JBS e BRF, mas diria que ao menos à primeira vista não se aplica diretamente ao caso, visto que este se assemelha mais à assimetria de informações entre ofertadores e clientes. Ainda assim, podemos dizer que os elementos trazidos nos excertos abaixo ajudam a questionar se, caso as relações de produção não fossem outras -- isto é, se a produção não tivesse como finalidade a satisfação das necessidades das pessoas, e não a maximização de lucro --, veríamos esse tipo de coisa. E mais: são um balde de água fria na consciência ingênua que crê ser o capitalismo um paraíso do consumo e da harmonia de interesses.

''O consumidor não é mais livre do que o produtor. Sua opinião estabelece-se na relação entre seus meios e suas necessidades. Uns e outras são determinados pela sua situação social, ela mesma dependente de toda a organização social. Sim, o operário que compra batatas e a mulher teúda e manteúda que compra seus vestidos de seda seguem ambos a sua própria opinião. A diversidade, porém, de suas opiniões se explica pela diferença de posições que ocupam no mundo, a qual é produto da organização social.'' - Karl Marx, Miséria da Filosofia, 1847. 

"Contradição do modo de produção capitalista: os trabalhadores são importantes para o mercado, enquanto compradores de mercadorias. Mas, como vendedores de sua mercadoria, a força de trabalho, tem a sociedade capitalista a tendência para rebaixá-los ao menos preço possível. -- Outra contradição: as épocas em que a produção capitalista emprega todas as suas forças revelam-se, em regra, épocas de superprodução, pois as forças de produção nunca podem ser empregadas além do ponto em que, além de se produzir mais valor, é possível realizá-lo; a venda das mercadorias, a realização do capital-mercadoria e, portanto, da mais-valia, está porém limitada, não pelas necessidades de consumo da sociedade, mas pelas necessidades de consumo de uma sociedade em que a maioria é pobre e está sempre condenada à pobreza." - Karl Marx, O Capital, livro II: o processo de circulação do capital, 1885.  

''Em primeiro lugar, dentro do capitalismo, a demanda efetiva é apenas em parte uma questão de preferência dos consumidores. Ainda mais importante é a questão básica da distribuição de renda, que por sua vez é um reflexo das relações de produção ou, em outras palavras, do que os marxistas chamam de estrutura de classes da sociedade. Marx foi enfático quanto a esse ponto. (...) Os economistas ortodoxos, embora a maioria deles aborde o problema do valor através de uma teoria da preferência dos consumidores, têm sido geralmente obrigados, na prática, a reconhecer a primazia da produção e da distribuição da renda, sempre que atacam as questões da evolução econômica.'' - Paul Marlor Sweezy, Teoria do Desenvolvimento Capitalista, 1956.

''Há primeiro toda a questão da formação e do papel das preferências do consumidor. Por muito tempo, a opinião padrão, embora raramente articulada, da economia burguesa foi que as preferências dos consumidores são uma emanação da natureza humana, subindo numa escada sem fim das necessidades mais simples de alimento, roupas e abrigo e até as exigências da sensibilidade educada por todos os refinamentos e luxos da civilização desenvolvida. Em todos os níveis de renda as necessidades e desejos são idênticos e universalmente partilhados. Segue-se automaticamente que, à parte a distribuição da renda, sobre a qual podem existir diferenças legítimas de opinião, e à pare a provisão de bens e serviços que só podem ser consumidos coletivamente, é absolutamente impossível formular um argumento racional contra permitir que as preferências do consumidor desempenhem o papel dominante na determinação da alocação de recursos e na composição da produção social. Precisamente quando esta opinião foi contestada pela primeira vez eu não sei, mas ela certamente passou pelo que pode ser chamado de interrogatório preliminar tão cedo quanto o trabalho pioneiro de [Arthur] Pigou sobre a economia do bem-estar; e nos últimos anos ela tem sido submetida ao ataque combinado de várias direções (xepeiros de corrupções administrativas como Vance Packard, [John Kenneth] Galbraith etc). O argumento desses iconoclastas burgueses naturalmente é que as preferências dos consumidores são manipuladas pelos anunciantes e vendedores monopolistas e que os desejos portanto não refletem mais as verdadeiras necessidades, e toda a explicação da 'soberania do consumidor' está portanto desacreditada.
 A reação [da teoria econômica] ortodoxa a esta linha de argumentos tem sido geralmente admitir que há alguma verdade nela mas não o suficiente para invalidar o argumento subjacente de respeitar as preferências do consumidor. É verdade que as pessoas não precisam de carros cobertos de cromados com modelos novos todos os anos, mas precisam de carros;  e, como o fracasso do Edsel e a popularidade crescente dos carros econômicos importados mostram, há limites à sua manipulabilidade. Os excessos tendem assim a produzir seus próprios corretivos, e os custos sociais envolvidos afinal de contas não são tão grandes assim.
 Se o debate está limitado a esse nível, parece-me que os ortodoxos levam claramente a melhor. Mas do ponto de vista radical estes argumentos e contra-argumentos nem sequer arranham a superfície do problema. O que é esta necessidade de carros? Ela é bastante real, não há dúvidas quanto a isso. Segundo uma pesquisa da Gallup, 81% dos operários americanos vão e vêm do trabalho de automóvel (New York Times, 30 de maio de 1971). A maioria deles não pode chegar lá de qualquer outra maneira, portanto sua necessidade de carros é tão verdadeira quanto a sua necessidade de emprego. Mas esta é uma necessidade que emana da natureza humana, ou uma necessidade que foi criada por um certo tipo de sociedade? A resposta naturalmente é óbvia. Segue-se que para comprar um tipo de carro ou outro, mas se a sociedade que torna necessário ter um carro a fim de ir para o trabalho tem algum sentido. Note que o que está em discussão aqui não é só o meio de transporte porém, mais importante ainda, um padrão locacional que implica a separação universal da residência e do trabalho. Não só este padrão de separação é um fenômeno muito recente historicamente, como existe também desta forma extrema apenas nos Estados Unidos. (A pesquisa Gallup mencionada acima também descobriu que na Alemanha Ocidental, o segundo país que mais usa carros dos sete investigados, só 45% dos trabalhadores viajam de carro, ao passo que 22%, comparados com apenas 6% nos Estados Unidos, vão a pé para o trabalho.)'' - Paul Marlor Sweezy, Comentário [sobre o livro ''A economia política da nova esquerda''], 1972.

''[Na economia dependente latino-americana] a estrutura do consumo individual corresponde à distribuição da renda, que compreende a mais-valia não acumulada [incluindo, portanto, parcela dos lucros, juros e renda da terra] e o capital variável [salários]. Já vimos como a superexploração do trabalho [isto é, a remuneração da força de trabalho abaixo de seu valor] corresponde  á elevação da taxa de mais-valia; é normal, portanto, que a parte relativa à mais-valia não acumulada aumente em detrimento da que se refere ao capital variável. Nisso reside a razão da distribuição de renda altamente concentrada que encontramos na economia dependente, na qual, no melhor dos casos, apenas 20% da população têm níveis de consumo aceitáveis ou mais que aceitáveis, enquanto 80% vivem em condições de baixo consumo.'' - Ruy Mauro Marini, El ciclo del capital en la economia dependente, 1979.

''Adam Smith, antecipando em vários aspectos a análise de Marx, reconheceu explicitamente que a principal razão que explicava a tendência dos salários no sentido do nível de subsistência era a maior força contratual dos 'masters' (os capitalistas) em relação aos trabalhadores, derivada seja do apoio estatal, seja da maior facilidade dos 'masters' para unirem-se (na maioria dos casos, tacitamente), seja de sua maior capacidade de resistir por longo tempo em caso de lutas, greves, etc. De acordo com este ponto de vista mais flexível que o de Ricardo, ele afirmou que um rápido crescimento econômico podia levar a um aumento de salários, criando uma escassez de trabalhadores que induziria os 'masters' a romper seu tácito acordo de não aumentar os salários; ao passo que admitiu poderem os salários cair inclusive aquém do nível de subsistência num contexto de declínio da sociedade.
Marx desenvolveu tais indicações de Smith numa teoria cíclica do nível de salários, o qual termina por depender da interação entre salário efetivo e volume do 'exército industrial de reserva' dos desempregados. Os aumentos de salário real acima da subsistência obtidos durante um período de rápida acumulação e desemprego diminuído seriam anulados em razão das inovações técnicas e da acumulação mais lenta, que, causadas pelo aumento do salário, reconstituiriam afinal o 'exército industrial de reserva'.
'Demonstra-se assim que estes autores tiveram em comum não tanto a ideia de um salário determinado pelo nível de subsistência quanto a concepção mais geral de um salário regulado por forças econômicas e sociais' (...).'' - Pierangelo Garegnani e Fabio Petri, Marxismo e teoria econômica hoje, 1989.




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