Crianças operárias do século XIX. |
Quem leu o primeiro volume de O Capital sabe que Marx faz aí a afirmação de que o "trabalho" possui, na sociedade mercantil-capitalista, uma dupla dimensão: por um lado, ele é "trabalho concreto", isto é, uma atividade material e tecnicamente específica que define a materialidade do produto -- criando, portanto, valores de uso; por outro, ele é "trabalho abstrato", "dispêndio de nervo, músculo e cérebro" indiferenciado e que constitui a substância do "valor", a forma da riqueza numa sociedade de produtores mercantis, isto é, de sujeitos formalmente independentes que produzem visando o intercâmbio de seu produto por outros produtos e, mais recentemente, por dinheiro.
A idéia que fica daí é que o "trabalho abstrato" é social e historicamente específico, restrito à sociedade mercantil (sendo a sociedade capitalista uma sociedade mercantil mais desenvolvida), enquanto o "trabalho concreto" é universal e acompanha os seres humanos por natureza; tal ideia foi e é largamente reproduzida pelos marxistas -- os quais, se também comunistas (se é que é possível ser "marxista" sem ser comunista), reivindicavam e reivindicam a eliminação do "trabalho abstrato" pela eliminação da propriedade privada e pela substituição da produção mercantil por uma produção socialista, racional e conscientemente planejada.
Acredito, no entanto, de que essa "naturalização" feita por Marx e pelos marxistas do "trabalho" (concreto) é incoerente com as linhas gerais da crítica à economia política realizada pelo autor. Nos Grundrisse, por exemplo, Marx censura os economistas políticos clássicos afirmando que:
"se a forma determinada do capital é assim abstraída e é enfatizado só o conteúdo [material da produção]..., naturalmente que nada é mais fácil do que demonstrar que o capital é uma condição necessária de toda a produção humana. A demonstração é feita justamente pela abstração das determinações específicas que fazem do capital um momento de uma fase histórica particularmente desenvolvida da produção humana."
Assim, o "método" de abstrair da forma social específica em que a atividade produtiva toma sob o modo de produção capitalista é um procedimento equivocado, pois nunca há a atividade produtiva "em-si" ou "por si mesma", mas sempre a atividade produtiva mediada por certas relações sociais, por certa organização social.
E eis que isso nos leva um passo à frente na crítica da economia política, pois o caráter social e historicamente específico da atividade produtiva -- criadora de "valores de uso" -- no modo de produção capitalista não é simplesmente o fato de uma de suas dimensões, o "trabalho abstrato", ser o conteúdo do "valor", mas sim o fato de ser ela própria, enquanto "trabalho", uma imposição, uma atividade forçada, que significa sofrimento para o indivíduo negativamente condicionado enquanto "trabalhador". Vê-se isso, por exemplo, pela própria etimologia da palavra, que vê a origem de "trabalho" em "tripalium", um instrumento de tortura utilizado em escravos (que aliás eram, na Grécia Antiga, os encarregados da produção -- de maneira que os nobres podiam se dedicar à ciência, à arte, à filosofia, à poesia etc).
Assim, o comunismo não deve ser apenas o "movimento real" que elimina o "trabalho abstrato" e o "valor" econômico ao substituir a produção mercantil pela produção socialista, planejada visando a satisfação das necessidades humanas, mas também a progressiva libertação da humanidade em relação ao "trabalho", deixando a produção material por conta das máquinas e permitindo, assim, que as pessoas possam se ocupar com aquilo que realmente lhes dá prazer, que os caracteriza como pessoas, seres dotados de personalidade própria; permitindo, enfim, a libertação da humanidade e o início da História verdadeiramente humana.
Obs. Para uma análise da trajetória temporal do conceito de "trabalho" em Marx, sugiro ver o muito bom artigo de um camarada: A aporia do conceito de trabalho em Marx
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