O fenômeno da ''financeirização'' -- o crescimento absurdo do assim chamado ''capital fictício'', isto é, ações empresariais, títulos de dívidas públicas, derivativos etc mais ou menos a partir dos anos 80 -- foi geralmente interpretado dentro da esquerda como uma escolha subjetiva das classes dominantes a fim de aumentar a taxa de exploração ou, o que é mais ou menos a mesma coisa, se apropriar de uma parte maior do excedente produzido na economia. Assim, setores da esquerda propõem uma espécie de aliança com o ''setor progressista'', produtivo, da burguesia contra o ''setor reacionário'', parasitário, representado pelos capitalistas que acumulam capital a partir de empréstimos a juros; uma tal aliança poderia fazer novamente destravar a acumulação e o investimento e assim gerar emprego e renda, como na chamada Era de Ouro do capitalismo ocidental.
E essa visão estiver incorreta? E se o alastrado fenômeno da financeirização houver sido, na verdade, uma forma de o sistema-mundo moribundo continuar sobrevivendo, como alguém que respira por aparelhos? Essa é, pelo que entendi, a tese de Anselm Jappe e Robert Kurz, 2 autores da chamada 'Nova crítica do valor', inspirada na obra de Marx. Deixarei abaixo 2 textos que comentam sobre o tema: um deles é um trecho de ''Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma renovação da crítica da economia política'' (Lisboa: Antígona, 2014), de Robert Kurz; o outro, um trecho de ''As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor'' (Lisboa: Antígona, 2006). Espero que gostem da leitura!
E essa visão estiver incorreta? E se o alastrado fenômeno da financeirização houver sido, na verdade, uma forma de o sistema-mundo moribundo continuar sobrevivendo, como alguém que respira por aparelhos? Essa é, pelo que entendi, a tese de Anselm Jappe e Robert Kurz, 2 autores da chamada 'Nova crítica do valor', inspirada na obra de Marx. Deixarei abaixo 2 textos que comentam sobre o tema: um deles é um trecho de ''Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma renovação da crítica da economia política'' (Lisboa: Antígona, 2014), de Robert Kurz; o outro, um trecho de ''As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor'' (Lisboa: Antígona, 2006). Espero que gostem da leitura!
Anselm Jappe
...[N]o capitalismo nem todo o trabalho é trabalho produtivo. Naturalmente não falamos da utilidade real do trabalho, uma vez que esse nível está ausente da lógica da valorização. Trata-se antes da questão de saber se um trabalho produz mais-valia. Marx dedicou uma certa atenção a esta questão, ao passo que de um modo geral os marxistas a negligenciaram, mostrando-se ainda menos capazes de reconhecer o laço que ela mantém com as crises do capitalismo. Deste modo, os marxistas abandonaram o terreno aos economistas burgueses que presentemente querem fazer crer que cada perda de trabalho nos sectores tradicionais (indústria pesada, agricultura, etc.) é amplamente compensada pelos novos empregos e pelas fantásticas oportunidades de ganho que se abrem e que se abrirão ainda mais num futuro próximo nos serviços, na informática, etc. - ignorando completamente que muitas vezes esses trabalhos, quer sejam «úteis» ou «não», não são «trabalho produtivo» em sentido capitalista.
...[N]o capitalismo nem todo o trabalho é trabalho produtivo. Naturalmente não falamos da utilidade real do trabalho, uma vez que esse nível está ausente da lógica da valorização. Trata-se antes da questão de saber se um trabalho produz mais-valia. Marx dedicou uma certa atenção a esta questão, ao passo que de um modo geral os marxistas a negligenciaram, mostrando-se ainda menos capazes de reconhecer o laço que ela mantém com as crises do capitalismo. Deste modo, os marxistas abandonaram o terreno aos economistas burgueses que presentemente querem fazer crer que cada perda de trabalho nos sectores tradicionais (indústria pesada, agricultura, etc.) é amplamente compensada pelos novos empregos e pelas fantásticas oportunidades de ganho que se abrem e que se abrirão ainda mais num futuro próximo nos serviços, na informática, etc. - ignorando completamente que muitas vezes esses trabalhos, quer sejam «úteis» ou «não», não são «trabalho produtivo» em sentido capitalista.
Para Marx, o único trabalho produtivo - em sentido capitalista -
é o trabalho que cria mais-valia passível de ser reinvestida. Os outros
trabalhos mais não fazem do que consumir os rendimentos daqueles
que os pagam. Se vou ao alfaiate para mandar fazer um fato para meu
uso pessoal, não faço uma despesa produtiva e o alfaiate não fez
um trabalho produtivo em sentido capitalista. Se emprego o mesmo
dinheiro como salário pago a operários da indústria de confecções
cujos fatos produzidos depois revendo, aí trata-se de trabalho produtivo.
A prová-lo está o facto de que a primeira despesa, se a repito um
número suficiente de vezes, me deixa sem dinheiro, ao passo que a
segunda despesa, depois de várias repetições, deveria fazer de mim
um homem rico graças à mais-valia extorquida aos trabalhadores.
Como é natural, o capitalismo não pode renunciar completamente
aos trabalhos «não produtivos». Mas, dado que só o trabalho produtivo
constitui a «essência» do capitalismo, este tem a obrigação de
procurar limitar os trabalhos não produtivos e transformá-los tanto quanto possível em trabalhos produtivos. Por exemplo, um professor,
enquanto tal, não é um trabalhador «produtivo». Mas, diz Marx, se
ele trabalha numa escola privada criando mais-valia para o seu empregador,
então torna-se produtivo (de capital). A distinção que Marx
faz entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo foi fortemente
atacada, e é muitas vezes acusada de só reconhecer o trabalho material,
em particular o trabalho industrial, como produtivo de mais-valia,
com exclusão dos serviços e de todos os trabalhos imateriais que
hoje supostamente constituem a maior parte do trabalho social. Trata-se de uma acusação falsa, porque Marx nunca identificou no plano
conceptual a questão do carácter produtivo ou não produtivo de um
trabalho com o respectivo conteúdo material ou imaterial - mesmo se
a preponderância do trabalho material na sua época lhe sugeria uma
quase identidade empírica.
Contudo, hoje em dia é possível determinar melhor a questão do
trabalho produtivo. Não se pode decidir num caso isolado se um trabalho
é produtivo; a resposta depende da posição desse trabalho dentro
do processo completo de reprodução. Só ao nível do capital global
se pode ver o carácter produtivo ou não produtivo de um trabalho;
as pessoas que no interior de uma empresa estão adstritas às limpezas,
por exemplo, ou à contabilidade, são trabalhadores não produtivos.
Constituem um mal necessário para a empresa. A organização dessas
pessoas em empresas especializadas que oferecem os seus serviços às outras empresas, que deixam portanto de empregar trabalhadores
fixos para essas tarefas, cria mais-valia para os proprietários
de tais empresas de serviços e constitui o segredo daquilo a que se
chama «terciarização». Mas estes lucros para os capitais particulares
anulam-se ao nível do capital global (infelizmente este facto não está
suficientemente desenvolvido na argumentação de Marx), no qual
estas actividades representam sempre uma dedução da mais-valia realizada
pelo capital produtivo. Para que um trabalho seja produtivo, é
preciso que os seus produtos retornem no processo de acumulação
do capital e que o seu consumo alimente a produção alargada do
capital, sendo consumidos por trabalhadores produtivos ou tornando-se bens de investimento para um ciclo que produza efectivamente
mais-valia. Assim compreendida, a diferença entre trabalho produtivo
e trabalho não produtivo não coincide com a distinção entre bens
materiais e serviços, nem com a distinção entre despesas do Estado
e investimentos privados - mesmo sendo verdade que a quase totalidade
das despesas do Estado representam um consumo não produtivo
(armamento, administração pública, educação, saúde, etc.).
É, pois, uma parte da produção industrial que hoje é não produtiva.
Não é apenas a visível diminuição do trabalho no mundo contemporâneo
que põe em crise a valorização, mas mais ainda o recuo
invisível do trabalho produtivo. Só uma muito pequena parte das actividades
levadas a cabo no mundo cria mais-valia e alimenta ainda
o capitalismo. A diminuição do trabalho produtivo é igualmente
causada pelo aumento constante daquilo a que Marx chama (com
uma expressão francesa) os «faux frais», ou seja, os falsos encargos.
Os sectores produtivos têm necessidade de numerosas actividades
a montante, a jusante e ao lado do verdadeiro processo produtivo.
Mas trata-se de trabalhos não produtivos e que muitas vezes não
podem obedecer à lógica do valor. Em parte, estes trabalhos situam-se no interior da empresa, como as limpezas ou a contabilidade
que mencionámos acima. Mas a maior parte dos «falsos encargos»
encontra-se a cargo do Estado. Com os impostos e restantes rendimentos,
o Estado financia tudo o que é demasiado caro, mesmo para
as empresas maiores (a construção de caminhos-de-ferro é o exemplo
histórico mais conhecido), ou que não pode ser organizado segundo
os critérios habituais do lucro, sendo contudo indispensável: a produção
moderna necessita de trabalhadores qualificados, precisando
portanto de um sistema educativo abrangendo toda a sociedade,
coisa que um sistema educativo totalmente privado não seria capaz
de garantir. A «segurança» interna e externa, os transportes, o sistema
sanitário, a administração e muitas outras coisas são necessárias para
que o trabalho produtivo possa desenvolver-se. Em contrapartida, o
trabalho produtivo tem que ceder ao Estado uma parte do seu lucro.
Cada parcela particular de capital, como é natural, fica satisfeita com o facto de encontrar infra-estruturas que funcionam bem e cujo uso é
muitas vezes gratuito. Mas, para o capital global, são falsos encargos
que é preciso limitar o mais possível porque caso contrario poderão
ameaçar a rentabilidade da produção. Desde os começos do capitalismo,
os falsos encargos têm tendência para aumentar constantemente.
As causas são o aumento continuo do capital fixo, sobretudo
sob a forma da cientificização da produção; mas também o efeito
que têm as infra-estruturas sobre a concorrência (um capital que não
tenha à sua disposição auto-estradas para encaminhar os seus produtos,
perderá na competição mundial), as necessidades da pacificação
social, a corrida aos armamentos, a obrigação que o capital tem de
encontrar trabalhadores cada vez mais qualificados ou, pelo menos,
enquadrados nos valores do capitalismo. A tentativa de organizar
estas actividades também sob a forma de empresas capitalistas, típica
da época neoliberal, não altera a situação ao nível do capital global e
arrasta consigo o risco de fazer explodir o quadro social geral dentro
do qual se desenrola a produção de valor.
A sufocação progressiva da produção de valor em virtude do aumento dos falsos encargos e do trabalho improdutivo, bem como a diminuição da massa de lucro que daí resulta, são, no plano lógico, uma consequência inelutável das contradições de base da mercadoria. A realidade histórica confirmou esta dedução lógica. Primeiro porque o capitalismo clássico, caracterizado pelo padrão-ouro - a convertibilidade ilimitada das moedas em ouro -, pelos orçamentos públicos em equilíbrio e pela livre concorrência sem intervenção do Estado, tinha chegado ao fim com a Primeira Guerra Mundial. Depois porque o capitalismo se encontra numa perpétua fuga para a frente; só continua a funcionar porque vai suspendendo as suas próprias leis. O período que vai de 1920 - e a fortiori de 1945 - até 1975 aproximadamente merece hoje, com boas razões, o nome de «fordismo». A partir da indústria automóvel americana e das inovações introduzidas por Henry Ford e Frederick Taylor (linha de montagem, «gestão científica» da força de trabalho, etc.), difundiu-se um novo sistema económico-social, primeiro nos Estados Unidos e depois, a seguir à Segunda Guerra Mundial, também nos outros países ocidentais. O fordismo andou a par dos métodos keynesianos em matéria de política económica; os resultados foram a produção em massa de bens semiduradouros a baixo preço, os salários elevados, o pleno emprego, a democracia política, os investimentos maciços do Estado nas infra-estruturas e nos serviços sociais, a estabilidade monetária e a penetração dos bens de consumo em todos os dominios da vida. Contudo, o «ciclo virtuoso» fordista não estava fundado sobre bases que lhe fossem próprias. Era o Estado, com os seus investimentos, geralmente pagos a crédito, que permitia o rápido crescimento dos sectores não produtivos - por exemplo, com a construção de auto-estradas, sem as quais não teria sido possível a automobilização do mundo. Este crescimento tornou possível um aumento dos sectores produtivos, suficiente em termos absolutos para compensar a diminuição relativa do lucro em cada produto particular. Enchendo completamente o mundo de mercadorias, o fordismo conseguiu adiar por várias décadas a crise estrutural do capitalismo que se manifestara já nos anos vinte, explodindo designadamente com a grande crise de 1929.
A sufocação progressiva da produção de valor em virtude do aumento dos falsos encargos e do trabalho improdutivo, bem como a diminuição da massa de lucro que daí resulta, são, no plano lógico, uma consequência inelutável das contradições de base da mercadoria. A realidade histórica confirmou esta dedução lógica. Primeiro porque o capitalismo clássico, caracterizado pelo padrão-ouro - a convertibilidade ilimitada das moedas em ouro -, pelos orçamentos públicos em equilíbrio e pela livre concorrência sem intervenção do Estado, tinha chegado ao fim com a Primeira Guerra Mundial. Depois porque o capitalismo se encontra numa perpétua fuga para a frente; só continua a funcionar porque vai suspendendo as suas próprias leis. O período que vai de 1920 - e a fortiori de 1945 - até 1975 aproximadamente merece hoje, com boas razões, o nome de «fordismo». A partir da indústria automóvel americana e das inovações introduzidas por Henry Ford e Frederick Taylor (linha de montagem, «gestão científica» da força de trabalho, etc.), difundiu-se um novo sistema económico-social, primeiro nos Estados Unidos e depois, a seguir à Segunda Guerra Mundial, também nos outros países ocidentais. O fordismo andou a par dos métodos keynesianos em matéria de política económica; os resultados foram a produção em massa de bens semiduradouros a baixo preço, os salários elevados, o pleno emprego, a democracia política, os investimentos maciços do Estado nas infra-estruturas e nos serviços sociais, a estabilidade monetária e a penetração dos bens de consumo em todos os dominios da vida. Contudo, o «ciclo virtuoso» fordista não estava fundado sobre bases que lhe fossem próprias. Era o Estado, com os seus investimentos, geralmente pagos a crédito, que permitia o rápido crescimento dos sectores não produtivos - por exemplo, com a construção de auto-estradas, sem as quais não teria sido possível a automobilização do mundo. Este crescimento tornou possível um aumento dos sectores produtivos, suficiente em termos absolutos para compensar a diminuição relativa do lucro em cada produto particular. Enchendo completamente o mundo de mercadorias, o fordismo conseguiu adiar por várias décadas a crise estrutural do capitalismo que se manifestara já nos anos vinte, explodindo designadamente com a grande crise de 1929.
Pelos anos de 1970-1975, o ciclo fordista-keynesiano esgotou-se porque se tornara impossível continuar a financiar os «encargos
secundários». O abandono do padrão-ouro em benefício do dólar, em
1971, e o regresso da inflação nos países ocidentais eram os sinais do
esgotamento do ciclo. Essa crise agravou-se infinitamente por via da
revolução informática. Esta revolução já não instaura um novo modelo
de acumulação: desde o início, a informática torna inúteis - «não rentáveis»
- enormes quantidades de trabalho. Diferentemente do que
se passou com o fordismo, a informática provoca essa inutilidade a
um ritmo tal que já não há extensão do mercado que seja capaz de
compensar a redução da parte de trabalho contida em cada mercadoria.
A informática corta definitivamente o laço entre a produtividade e
o dispêndio de trabalho abstracto incarnado no valor. Ela põe a girar
o «círculo vicioso» a que temos vindo a assistir de há vinte anos a esta parte. O sistema capitalista, para sobreviver numa situação em
que ele mesmo serra o ramo de árvore sobre o qual está sentado - o
trabalho -, é obrigado, mais ainda do que antes, a procurar subterfúgios para fazer coincidir momentaneamente a circulação e a produção
suspendendo praticamente a lei do valor. É importante que nos recordemos
de que a produção de bens de uso não está em crise. Mas se
fosse seguida à letra a lógica do valor, dever-se-ia abandonar quase
toda a produção actual por «falta de rentabilidade». Para evitar chegar
a essa conclusão, o «sujeito autómato» lança-se numa fuga para a
frente cada vez mais desesperada.
O capital fictício
Essa fuga faz-se indirectamente por intermédio do capital fictício, ou seja, pela autonomização dos mercados bolsistas e da especulação. Assim, o capital prolonga a sua vida para lá dos seus limites reais consumindo antecipadamente o seu futuro, isto é, vivendo a crédito. Também o crédito está embrionariamente «contido» na estrutura elementar da mercadoria: a mediação monetária separa a venda da compra porque permite adiar o pagamento. O trabalho e o dinheiro são estádios diferentes do mesmo processo de valorização, mas podem igualmente não coincidir: o dinheiro pode multiplicar-se mais rapidamente que o trabalho morto. Este factor cria a ilusão de que o dinheiro tem o poder místico de crescer por si só, sem a mediação de um processo produtivo no qual fosse consumido trabalho. O juro monetário, em que na aparência se passa directamente do dinheiro a uma quantidade superior de dinheiro (D-D’, na linguagem utilizada no início do terceiro capítulo deste livro), torna-se na consciência comum a verdadeira forma de lucro - apesar de se tratar somente de uma dedução operada sobre o lucro obtido na produção. Na verdade, só é dinheiro «bom» aquele que resulta de um processo bem sucedido de valorização do valor operada pelo trabalho. O dinheiro que representa trabalho não produtivo e o dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança - cuja forma principal é o crédito - acabam por se desvalorizar.
O capital fictício
Essa fuga faz-se indirectamente por intermédio do capital fictício, ou seja, pela autonomização dos mercados bolsistas e da especulação. Assim, o capital prolonga a sua vida para lá dos seus limites reais consumindo antecipadamente o seu futuro, isto é, vivendo a crédito. Também o crédito está embrionariamente «contido» na estrutura elementar da mercadoria: a mediação monetária separa a venda da compra porque permite adiar o pagamento. O trabalho e o dinheiro são estádios diferentes do mesmo processo de valorização, mas podem igualmente não coincidir: o dinheiro pode multiplicar-se mais rapidamente que o trabalho morto. Este factor cria a ilusão de que o dinheiro tem o poder místico de crescer por si só, sem a mediação de um processo produtivo no qual fosse consumido trabalho. O juro monetário, em que na aparência se passa directamente do dinheiro a uma quantidade superior de dinheiro (D-D’, na linguagem utilizada no início do terceiro capítulo deste livro), torna-se na consciência comum a verdadeira forma de lucro - apesar de se tratar somente de uma dedução operada sobre o lucro obtido na produção. Na verdade, só é dinheiro «bom» aquele que resulta de um processo bem sucedido de valorização do valor operada pelo trabalho. O dinheiro que representa trabalho não produtivo e o dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança - cuja forma principal é o crédito - acabam por se desvalorizar.
A necessidade do crédito deriva do aumento contínuo do capital
fixo que ultrapassa as capacidades das empresas. É pois uma consequência
da produtividade aumentada do trabalho. Torna-se então
indispensável investir no presente os ganhos esperados para o futuro.
Enquanto esses ganhos vierem efectivamente no seguimento para
pagar juros e para se poder ampliar a dívida, o endividamento não
é grande problema. Mas, diferentemente do que se passava com os
capitalistas do século XIX, já as empresas da expansão fordista só
podiam financiar-se recorrendo ao crédito. Por outro lado, por causa
da explosão dos encargos «não produtivos», os «falsos encargos»,
uma parte crescente dos créditos servia apenas para alimentar o consumo
não produtivo. Por outro lado ainda, os Estados - que até à
Primeira Guerra Mundial apresentavam orçamentos mais ou menos
equilibrados - tinham começado a endividar-se para poderem assegurar
as condições infra-estruturais necessárias às economias nacionais.
Sendo certo que Keynes pensava que a intervenção do Estado não
devia servir senão para «empurrar» a acumulação de modo a que ela
pudesse depois voltar a arrancar sobre as suas próprias bases, a verdade
é que essas intervenções rapidamente se revelaram uma conditio
sine qua non para o funcionamento da economia, e ao mesmo tempo
um peso em crescimento permanente para as finanças públicas.
Quando se esgotou o mecanismo que compensava a diminuição da produtividade de valor através da ampliação da produção, o
financiamento por via do crédito mudou de natureza. Depois de as
quantidades de créditos em circulação terem ultrapassado largamente
a quantidade de ouro existente, a abolição da convertibilidade do
dólar em ouro (1971) desarticulou o último dispositivo de segurança.
A partir de então, o dinheiro baseia-se exclusivamente na confiança,
e não há limite algum para a sua multiplicação. Mas, em boa verdade,
o dinheiro mais não é do que a incarnação do trabalho abstracto
despendido no interior de processos de valorização suficientemente
rentáveis. Como é natural, o Estado pode imprimir papel-moeda sem
levar em conta a quantidade de trabalho produtivo, tanto mais que
tal quantidade não pode ser medida directamente. Os actores económicos
podem criar dinheiro sob a forma de acções, obrigações,
empréstimos, etc. Mas a quantidade de dinheiro excedente perde
fatalmente o seu valor na inflação ou na deflação. A redução drástica
do trabalho produtivo à escala global faz igualmente com que
o dinheiro perca a sua substância: o dinheiro torna-se «não válido».
Se se calculasse todo o dinheiro que circula no mundo sob todas as
sua formas (acções, obrigações, títulos de dívida, etc.), dividindo-o
de seguida pelo número de habitantes do planeta, chegar-se-ia provavelmente
a uma inflação global de várias centenas porcento. Se
essa hiperinflação não se manifesta ainda, é porque em grande parte
o dinheiro permanece «resguardado» nas estruturas financeiras sob
a forma de acções, de dinheiro «virtual», de «direitos especiais de
levantamento antecipado», etc.
A multiplicação milagrosa do dinheiro suscitou fortes receios no início dos anos setenta - mas as somas em causa nessa altura não eram mais do que uma pequena fracção do «capital fictício» que viria a estar em circulação trinta anos mais tarde. O conceito de «capital fictício» foi desenvolvido por Marx no terceiro volume do Capital para designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação e na expectativa de ganhos futuros; logo que alguém exija o pagamento real das dívidas, a «bolha» não poderá deixar de rebentar com falências em cadeia. Porém, na época de Marx, tratava-se de um epifenómeno de que vinham acompanhadas as crises económicas reais. Os crashes financeiros tinham nesse tempo uma função de purga e não afectavam os processos produtivos reais. Até ao final do ciclo fordista, a especulação financeira seguia mais ou menos o ritmo e as dimensões da acumulação real.
Tudo isso mudou enormemente a partir do momento em que a acumulação real, apesar de todos os créditos, estagnou. A partir de então, o recurso ao crédito serve para estimular uma acumulação inexistente e para prolongar artificialmente a vida de um modo de produção que já está morto. Somente uma quantidade muito pequena dessa liquidez circulante foi emitida directamente pelos Estados; a maior parte são acções, obrigações, créditos, valores imobiliários, «dinheiro electrónico», etc. - o que contribui para tornar este processo completamente incontrolável. Mediante uma reviravolta grotesca, que nem mesmo Marx foi capaz de prever, a produção real passou a ser um apêndice do capital fictício. Os movimentos vertiginosos registados a partir de 1987 nos mercados bolsistas já nada têm a ver com as oscilações conjunturais daquilo que resta da economia real. O capital fictício tornou-se inclusivamente o verdadeiro motor do crescimento. Os ganhos realizados com operações financeiras puramente especulativas tornaram-se um elemento indispensável nas finanças das empresas, dos Estados e dos privados - quer se trate do «milagre económico» americano, financiado com o maior endividamento da história, ou das numerosas famílias americanas que obtêm créditos bancários exclusivamente com base nas acções que detêm e na expectativa de que o respectivo preço venha a subir, ou das empresas, mesmo empresas «sérias», que têm orçamentos equilibrados apenas graças a receitas financeiras. Neste quadro, o famoso endividamento do terceiro mundo não é senão uma pequena parte de todo o capital fictício. Já não são apenas as receitas do Estado, mas também as de toda a sociedade, que se encontram antecipadamente gastas.
Não é possível entrar aqui nos meandros das finanças internacionais e descrever os circuitos internacionais do défice (em que o défice entre os Estados Unidos e o Japão é o mais importante). A derrocada da estrutura financeira efectivar-se-á apenas após um certo período de incubação. Mas terá consequências catastróficas pois ver-se-á então que a acumulação real já terminara há muito. A subida cada vez mais fantástica dos mercados bolsistas segue a par da aparente tranquilidade das instituições económicas internacionais, que sem pestanejar fazem chegar aos países em falência (como a Indonésia, o Brasil ou a Turquia) somas - da ordem das dezenas de milhar de milhões de dólares - que poucos anos antes teriam feito estremecer até aos seus fundamentos as finanças internacionais, como sucedeu no caso da crise do México em 1995. Contudo, os movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a consequência das perturbações na economia real. A economia real não progrediria melhor se fossem abolidos os «excessos» especulativos, como tratam de pregar certos observadores inquietos, por exemplo, George Soros ou Ignacio Ramonet. Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar logo que lhe tenham sido retiradas as muletas da especulação. Com efeito, depois do rebentamento da bolha financeira, ver-se-á que era precisamente ela que durante um certo período escondia o facto de que a acumulação de valor tinha já atingido o seu limite histórico. Naturalmente isso não significará necessariamente o fim da produção de bens de uso - com a condição, contudo, de esta última ser desligada da produção de valor.
A multiplicação milagrosa do dinheiro suscitou fortes receios no início dos anos setenta - mas as somas em causa nessa altura não eram mais do que uma pequena fracção do «capital fictício» que viria a estar em circulação trinta anos mais tarde. O conceito de «capital fictício» foi desenvolvido por Marx no terceiro volume do Capital para designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação e na expectativa de ganhos futuros; logo que alguém exija o pagamento real das dívidas, a «bolha» não poderá deixar de rebentar com falências em cadeia. Porém, na época de Marx, tratava-se de um epifenómeno de que vinham acompanhadas as crises económicas reais. Os crashes financeiros tinham nesse tempo uma função de purga e não afectavam os processos produtivos reais. Até ao final do ciclo fordista, a especulação financeira seguia mais ou menos o ritmo e as dimensões da acumulação real.
Tudo isso mudou enormemente a partir do momento em que a acumulação real, apesar de todos os créditos, estagnou. A partir de então, o recurso ao crédito serve para estimular uma acumulação inexistente e para prolongar artificialmente a vida de um modo de produção que já está morto. Somente uma quantidade muito pequena dessa liquidez circulante foi emitida directamente pelos Estados; a maior parte são acções, obrigações, créditos, valores imobiliários, «dinheiro electrónico», etc. - o que contribui para tornar este processo completamente incontrolável. Mediante uma reviravolta grotesca, que nem mesmo Marx foi capaz de prever, a produção real passou a ser um apêndice do capital fictício. Os movimentos vertiginosos registados a partir de 1987 nos mercados bolsistas já nada têm a ver com as oscilações conjunturais daquilo que resta da economia real. O capital fictício tornou-se inclusivamente o verdadeiro motor do crescimento. Os ganhos realizados com operações financeiras puramente especulativas tornaram-se um elemento indispensável nas finanças das empresas, dos Estados e dos privados - quer se trate do «milagre económico» americano, financiado com o maior endividamento da história, ou das numerosas famílias americanas que obtêm créditos bancários exclusivamente com base nas acções que detêm e na expectativa de que o respectivo preço venha a subir, ou das empresas, mesmo empresas «sérias», que têm orçamentos equilibrados apenas graças a receitas financeiras. Neste quadro, o famoso endividamento do terceiro mundo não é senão uma pequena parte de todo o capital fictício. Já não são apenas as receitas do Estado, mas também as de toda a sociedade, que se encontram antecipadamente gastas.
Não é possível entrar aqui nos meandros das finanças internacionais e descrever os circuitos internacionais do défice (em que o défice entre os Estados Unidos e o Japão é o mais importante). A derrocada da estrutura financeira efectivar-se-á apenas após um certo período de incubação. Mas terá consequências catastróficas pois ver-se-á então que a acumulação real já terminara há muito. A subida cada vez mais fantástica dos mercados bolsistas segue a par da aparente tranquilidade das instituições económicas internacionais, que sem pestanejar fazem chegar aos países em falência (como a Indonésia, o Brasil ou a Turquia) somas - da ordem das dezenas de milhar de milhões de dólares - que poucos anos antes teriam feito estremecer até aos seus fundamentos as finanças internacionais, como sucedeu no caso da crise do México em 1995. Contudo, os movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a consequência das perturbações na economia real. A economia real não progrediria melhor se fossem abolidos os «excessos» especulativos, como tratam de pregar certos observadores inquietos, por exemplo, George Soros ou Ignacio Ramonet. Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar logo que lhe tenham sido retiradas as muletas da especulação. Com efeito, depois do rebentamento da bolha financeira, ver-se-á que era precisamente ela que durante um certo período escondia o facto de que a acumulação de valor tinha já atingido o seu limite histórico. Naturalmente isso não significará necessariamente o fim da produção de bens de uso - com a condição, contudo, de esta última ser desligada da produção de valor.
Robert Kurz
...[Q]ue situação exprime a queda (relativa) da taxa de lucro de foma que começa por ser igualmente relativa no seio do sistema monetário? Já vimos que o crescimento de c/v -- a crescente composição orgânica do capita -- reduz, no plano do valor social global e em termos relativos, a quota-parte da força de trabalho, que é a única que cria valor novo por capital monetário investido, ao passo que os custos do capital material (c), que se referem à parafernália puramente material e se mantêm ''estéreis'' no que diz respeito a uma acumulação ulterior de ''riqueza abstrata'', sobem em termos relativos. Para o capital individual empírico, porém, isto tem como consequência que, com a intensidade do capital a subir, a totalidade dos custos prévios aumenta, ou seja, mais capital monetário tem de ser investido para poder pôr em movimento uma combinação rentável de c/v com hipóteses de conquistar uma quota do mercado competitiva.
Isto também tem a ver com o fato de que, com a crescente quota-parte de ''c'' no plano global do capital, aumenta tanto o grau geral de socialização capitalista como, ao nível da economia empresarial individual, a divisão funcional, a profundidade de abrangência da cadeia de valor e a infraestrutura. O processo, descrito por Marx, de concentração e centralização do capital não é apenas uma consequência de conteúdo material de cientificização e da técnicização. Embora os famosos novos produtos e ramos produtivos, na fase da inovação, ainda possam, em parte, nascer de condições iniciais modestas, a transição para a produção intensiva em termos de tecnologia, material e gestão, dotada das necessárias estruturas de grande envergadura, acontece cada vez mais rapidamente e já não se processa ao longo de gerações, mas logo na geração fundadora.
Nisso nem o outsourcing de algumas funções da economia empresarial, descoberto em tempos recentes e apicado de forma ostensiva, altera alguma coisa. Este método já é uma consequência da enorme subida subida da pressão dos custos que, no entanto, apenas é assim redistribuída; mas nada altera no plano do valor de toda a sociedade, constituindo apenas a maneira de o tacanho cálculo econômico-empresarial no plano do capital individual empírico lidar com a situação de um modo pretensamente ''esperto''. O mundo globalizado dos antros do outsourcing não tem nada a ver nem com a inovação de produtos, nem com novas pequenas empresas ou ramos de negócio independentes, tratando-se de um programa de redução de custos do próprio capital concentrado e centralizado por meio de empresas secundárias apenas formalmente autônomas, falsos independentes e trabalhadores assalariados de segunda e terceira categoria, destituídos de direitos decorrentes de contratação coletiva (o Japão parece ter sido, já há muito, precursor nessa matéria). No entanto, o problema do aumento dos custos prévios ou do constrangimento do recursos crescente ao capital monetário também se aplica aos antros do outsourcing que, embora só existam com base nos salários baixos ou numa auto-exploração desproporcionada, têm igualmente de adiantar os custos dos elementos do (crescente) capital material associado à sua função. E, para os seus fáticos ''capitais-mãe'', a pressão dos custos apenas é atenuada de forma insignificante pela deslocalização para estabelecimentos de baixos salários, uma vez que, de qualquer modo, não para de reduzir a quota-parte relativa dos encargos salariais tanto nas funções econômico-empresariais individuais como no capital global.
No plano empírico dos capitais individuais, o problema do aumento do capital monetário a aplicar nos custos pre´viso de uma produção orientada para o lucro bem sucedida só se tornou significativo no início do século XX, a saber, nos estágios iniciais da segunda revolução industrial (taylorismo, fordismo) -- ou seja, cerca de 30 anos depois da morte de Marx. Assim, se iniciou um processo de um novo tipo cujo cuja caraterística essencial consistia na crescente importância e necessidade do crédito para a produção de mais-valia e lucro, bem como na expansão histórica do sistema de crédito decorrente.
Evidentemente, o crédito e, com ele, o capital financeiro que rende juros tiveram alguma importância desde o início do desenvolvimento capitalista. Marx representou o nexo geral entre o sistema de crédito e o modo de produção capitalista n'O Capital, especialmente no terceiro volume -- por exemplo, o juro como forma derivada da mais-valia produzida, sendo certo que os representantes do ''capital funcional'' (ou seja, do capital produtivo) têm de entregar uma determinada quota-parte, sob a forma de juro, ao capital financeiro, passando pelo sistema bancário. Esta necessidade começa por se manifestar de forma desigual, sobretudo nas fundações de empresas, mas igualmente em casos de forte expansão da produção, assim como em situações especiais, problemáticas ou de emergência, quando há investimentos que têm de ser efetuados sem reservas próprias suficientes, etc. Também o Estado, que só surgiu juntamente com o fetiche do capital, recorreu desde o início ao capital de crédito, sobretudo no financiamento dos custos de armamento e da guerra desde a revolução militar das armas de fogo (nos séculos XVI, XV e XVI). O capital monetário necessário para o crédito consiste nas poupanças particulares dos membros da sociedade, incluindo os trabalhadores assalariados, e nas fortunas privadas passivas acumuladas das formas mais diversas, assim como nas reservas não aplicadas produtivamente, no momento, dos próprios capitais individuais, e concentra-se sobretudo nos bancos, que o emprestam a terceiros (evidentemente, as formas do crédito privado também são uma possibilidade). Marx não só derivou neste contexto a determinação geral da forma econômica do crédito como igualmente, e com as ferramentas da crítica ideológica, as mistificações a ela associadas, que se repercutem tanto na contabilidade das empresas como no ''preconceito popular''. O que aqui está em causa é a aparente ''qualidade oculta'' do capital que rende juros de criar de imediato mais dinheiro a partir de dinheiro (D-D'), visto que, para a consciência fixada na superfície do mercado, o nexo com a produção de mais-valia real já não é visível.
Como a existência do capital monetário que rende juros ou do crédito também tem um caráter processual histórico, este, como já referimos, tem de se expressar de preferência na representação conceitual, na medida em que o lugar histórico no seio do desenvolvimento capitalista o permite. Já Marx viu que o sistema de crédito ganha em importância com o surgimento das sociedades anônimas, se torna o detonador de um desenvolvimento ulterior. No entanto, não associou sistematicamente estas tendências ao problema da queda da taxa de lucro ou até do limite interno e da desvalorização final do valor enquanto tal.
Na realidade, porém, a necessidade de uma aplicação crescente de capital monetário, devido à queda da taxa de lucro e à acrescida intensidade de capital ao longo do século XX, conduziu a que cada vez menos os custos prévios, na sua imparável subida, pudessem ser pagos com base nos lucros correntes. Dito com mais precisão, foi-se reduzindo sucessivamente a capacidade de os capitais individuais criarem, a partir de seus próprios lucros, reservas suficientes para os investimentos necessários em capital material novo. Este problema agudizou-se com o desenvolvimento tecnológico acelerado, decorrente da cientificização. Na mesma medida em que as inovações de produtos enovas técnicas de produção fundamentais se sucediam umas às outras com cada vez maior celeridade e numa frente alargada, também foi aumentando a velocidade correspondente do processo que Marx designou como ''desgaste moral'' do capital material. O que se quer dizer com isto é que meios de produção que, em termos puramente técnico-formais, ainda se encontram intactos têm de ser abatidos e substituídos por já não corresponderem ao padrão social de produtividade, alterado por novas tecnologias, métodos de regulação ou modos de organização de processos.
Ou seja, foi-se tornando cada vez mais impossível, mesmo para os maiores capitais individuais, refinanciarem-se suficientemente só com base nos proventos que eram o retorno de períodos de produção anteriores. O recurso permanente ao sistema de crédito tornou-se, não obstante as resistências iniciais, a conditio sine qua non de uma produção de lucro e participação no mercado continuada. Mas como o crédito e o capital que rende juros foram, desde o início, partes integrantes do capitalismo, tanto na ciência econômica burguesa como no marxismo, esta forma foi, até aos dias de hoje, objeto de uma perspectiva sobretudo a-histórica -- ou, pelo menos, fazia-se de conta (como, por exemplo, em Hilferding) que a importância crescente do crédito apenas correspondia à socialização capitalista crescente e, em geral, à crescente atividade produtiva (o que mais uma vez traduz uma confusão entre o plano do valor abstrato e o plano material do valor de uso). O salto qualitativo na função do crédito para a reprodução capitalista permaneceu largamente irrefletido, para já não falar no potencial de crise inerente a este desenvolvimento.
Contudo, quando o crédito e, com ele, o acesso dos capitais produtivos ao capital monetário alheio desocupado, deixa de ser um fenômeno marginal ou um recurso esporádico para se transformar no pressuposto central da produção ulterior, e ainda por cima num patamar cada vez mais elevado, o eixo temporal da produção social de mais-valia desloca-se fundamentalmente do passado para o futuro. É que se retivermos, com Marx, que a qualidade supostamente oculta do capital que rende juros de criar diretamente mais dinheiro a partir de dinheiro apenas se deve ao ofuscamento, pelas aparências, da superfície do mercado e, na realidade, é mediada pela derivação da produção de mais-valia real, não nos podemos esquecer do fato de esta última não ocorrer sequer na altura em que o crédito é contraído, tendo ainda de se realizar e ser bem sucedida; de outro modo, o crédito, afinal, nem sequer seria necessário. Existe, portanto, uma enorme diferença ente o refinanciamento do capital pelo recurso predominante a uma produção de mais-valia já realizada no passado (por exemplo, sob a forma de reservas), por um lado, e pelo recurso predominante a uma produção de mais-valia futura, ainda nem iniciada e muito menos realizada (sob a forma de crédito), por outro. Por muito que as duas formas de refinanciamento desde sempre tenham andando a par, o aumento relativo da segunda (análogo ao aumento relativo da quota-parte de ''c'' na composição orgânica do capital) sempre constitui uma alteração não só quantitativa, mas também qualitativa na reprodução do capital, tal como no caso da queda da taxa de lucro.
O novo e adicional potencial de crise desta alocação é óbvio, pois se o lucro realizado em períodos produtivos anteriores é um valor seguro, o lucro futuro, ainda por realizar é um valor totalmente inseguro. As condições a crédito a que se recorreu, porém, têm evidentemente de ser satisfeitas, ou seja, o crédito tem de ser reembolsado no fim do seu prazo e, entretanto, têm de se pagar os juros. Torna-se assim necessário que os capitais individuais, que recorrem ao crédito numa medida crescente, se apropriem de uma parte da massa social de mais-valia no mínimo suficiente para poderem pagar os seus créditos e, além disso, alcançar ainda um lucro próprio. Porém, quando isso se torna uma condição universal, não apenas se cria uma pressão adicional sobre os capitais individuais, mas também um problema ''sistêmico'': o refinanciamento, que já não é feito com base na produção passada de mais-valia real, mas na futura, não só requer que a massa de mais-valia cresça, mas que cresça tanto que a sua participação no passado não bloqueie a reprodução corrente posterior.
Por outras palavras, mesmo quando enquanto o capital global vai se expandindo alegremente e a massa absoluta de mais-valia cresce, vai-se criando um defasamento temporal crescente entre a produção de mais-valia prevista e a que realmente se segue, O capitalismo começou a gastar o seu próprio futuro. As cadeias de crédito vão tornando-se cada vez mais longas e cada vez mais delgadas, embora seja apenas delas que brota a mais-valia. Podem quebrar-se a qualquer momento, e é isso que fazem todos os dias e numa extensão crescente. E não é só o risco da participação no mercado, crescentemente financiada com o recurso ao crédito, que deste modo aumenta para os capitais individuais, mas também o risco ''sistêmico'' de um colapso do sistema de crédito que afete diretamente o capitalismo na sua totalidade, pelo menos transitoriamente (enquanto a expansão ainda predominar). Em termos fundamentais, isso significa que esse potencial abstrato de crise, já referido por Marx no primeiro volume de O Capital, das compras e vendas que não coincidem no local e no tempo se potencia historicamente no plano do sistema de crédito; pois é aqui, afinal, que a contração do crédito e o posterior serviço da dívida se encontram defasados temporal e estruturalmente de modo ainda mais óbvio e numa medida ainda maior.
Isto também tem a ver com o fato de que, com a crescente quota-parte de ''c'' no plano global do capital, aumenta tanto o grau geral de socialização capitalista como, ao nível da economia empresarial individual, a divisão funcional, a profundidade de abrangência da cadeia de valor e a infraestrutura. O processo, descrito por Marx, de concentração e centralização do capital não é apenas uma consequência de conteúdo material de cientificização e da técnicização. Embora os famosos novos produtos e ramos produtivos, na fase da inovação, ainda possam, em parte, nascer de condições iniciais modestas, a transição para a produção intensiva em termos de tecnologia, material e gestão, dotada das necessárias estruturas de grande envergadura, acontece cada vez mais rapidamente e já não se processa ao longo de gerações, mas logo na geração fundadora.
Nisso nem o outsourcing de algumas funções da economia empresarial, descoberto em tempos recentes e apicado de forma ostensiva, altera alguma coisa. Este método já é uma consequência da enorme subida subida da pressão dos custos que, no entanto, apenas é assim redistribuída; mas nada altera no plano do valor de toda a sociedade, constituindo apenas a maneira de o tacanho cálculo econômico-empresarial no plano do capital individual empírico lidar com a situação de um modo pretensamente ''esperto''. O mundo globalizado dos antros do outsourcing não tem nada a ver nem com a inovação de produtos, nem com novas pequenas empresas ou ramos de negócio independentes, tratando-se de um programa de redução de custos do próprio capital concentrado e centralizado por meio de empresas secundárias apenas formalmente autônomas, falsos independentes e trabalhadores assalariados de segunda e terceira categoria, destituídos de direitos decorrentes de contratação coletiva (o Japão parece ter sido, já há muito, precursor nessa matéria). No entanto, o problema do aumento dos custos prévios ou do constrangimento do recursos crescente ao capital monetário também se aplica aos antros do outsourcing que, embora só existam com base nos salários baixos ou numa auto-exploração desproporcionada, têm igualmente de adiantar os custos dos elementos do (crescente) capital material associado à sua função. E, para os seus fáticos ''capitais-mãe'', a pressão dos custos apenas é atenuada de forma insignificante pela deslocalização para estabelecimentos de baixos salários, uma vez que, de qualquer modo, não para de reduzir a quota-parte relativa dos encargos salariais tanto nas funções econômico-empresariais individuais como no capital global.
No plano empírico dos capitais individuais, o problema do aumento do capital monetário a aplicar nos custos pre´viso de uma produção orientada para o lucro bem sucedida só se tornou significativo no início do século XX, a saber, nos estágios iniciais da segunda revolução industrial (taylorismo, fordismo) -- ou seja, cerca de 30 anos depois da morte de Marx. Assim, se iniciou um processo de um novo tipo cujo cuja caraterística essencial consistia na crescente importância e necessidade do crédito para a produção de mais-valia e lucro, bem como na expansão histórica do sistema de crédito decorrente.
Evidentemente, o crédito e, com ele, o capital financeiro que rende juros tiveram alguma importância desde o início do desenvolvimento capitalista. Marx representou o nexo geral entre o sistema de crédito e o modo de produção capitalista n'O Capital, especialmente no terceiro volume -- por exemplo, o juro como forma derivada da mais-valia produzida, sendo certo que os representantes do ''capital funcional'' (ou seja, do capital produtivo) têm de entregar uma determinada quota-parte, sob a forma de juro, ao capital financeiro, passando pelo sistema bancário. Esta necessidade começa por se manifestar de forma desigual, sobretudo nas fundações de empresas, mas igualmente em casos de forte expansão da produção, assim como em situações especiais, problemáticas ou de emergência, quando há investimentos que têm de ser efetuados sem reservas próprias suficientes, etc. Também o Estado, que só surgiu juntamente com o fetiche do capital, recorreu desde o início ao capital de crédito, sobretudo no financiamento dos custos de armamento e da guerra desde a revolução militar das armas de fogo (nos séculos XVI, XV e XVI). O capital monetário necessário para o crédito consiste nas poupanças particulares dos membros da sociedade, incluindo os trabalhadores assalariados, e nas fortunas privadas passivas acumuladas das formas mais diversas, assim como nas reservas não aplicadas produtivamente, no momento, dos próprios capitais individuais, e concentra-se sobretudo nos bancos, que o emprestam a terceiros (evidentemente, as formas do crédito privado também são uma possibilidade). Marx não só derivou neste contexto a determinação geral da forma econômica do crédito como igualmente, e com as ferramentas da crítica ideológica, as mistificações a ela associadas, que se repercutem tanto na contabilidade das empresas como no ''preconceito popular''. O que aqui está em causa é a aparente ''qualidade oculta'' do capital que rende juros de criar de imediato mais dinheiro a partir de dinheiro (D-D'), visto que, para a consciência fixada na superfície do mercado, o nexo com a produção de mais-valia real já não é visível.
Como a existência do capital monetário que rende juros ou do crédito também tem um caráter processual histórico, este, como já referimos, tem de se expressar de preferência na representação conceitual, na medida em que o lugar histórico no seio do desenvolvimento capitalista o permite. Já Marx viu que o sistema de crédito ganha em importância com o surgimento das sociedades anônimas, se torna o detonador de um desenvolvimento ulterior. No entanto, não associou sistematicamente estas tendências ao problema da queda da taxa de lucro ou até do limite interno e da desvalorização final do valor enquanto tal.
Na realidade, porém, a necessidade de uma aplicação crescente de capital monetário, devido à queda da taxa de lucro e à acrescida intensidade de capital ao longo do século XX, conduziu a que cada vez menos os custos prévios, na sua imparável subida, pudessem ser pagos com base nos lucros correntes. Dito com mais precisão, foi-se reduzindo sucessivamente a capacidade de os capitais individuais criarem, a partir de seus próprios lucros, reservas suficientes para os investimentos necessários em capital material novo. Este problema agudizou-se com o desenvolvimento tecnológico acelerado, decorrente da cientificização. Na mesma medida em que as inovações de produtos enovas técnicas de produção fundamentais se sucediam umas às outras com cada vez maior celeridade e numa frente alargada, também foi aumentando a velocidade correspondente do processo que Marx designou como ''desgaste moral'' do capital material. O que se quer dizer com isto é que meios de produção que, em termos puramente técnico-formais, ainda se encontram intactos têm de ser abatidos e substituídos por já não corresponderem ao padrão social de produtividade, alterado por novas tecnologias, métodos de regulação ou modos de organização de processos.
Ou seja, foi-se tornando cada vez mais impossível, mesmo para os maiores capitais individuais, refinanciarem-se suficientemente só com base nos proventos que eram o retorno de períodos de produção anteriores. O recurso permanente ao sistema de crédito tornou-se, não obstante as resistências iniciais, a conditio sine qua non de uma produção de lucro e participação no mercado continuada. Mas como o crédito e o capital que rende juros foram, desde o início, partes integrantes do capitalismo, tanto na ciência econômica burguesa como no marxismo, esta forma foi, até aos dias de hoje, objeto de uma perspectiva sobretudo a-histórica -- ou, pelo menos, fazia-se de conta (como, por exemplo, em Hilferding) que a importância crescente do crédito apenas correspondia à socialização capitalista crescente e, em geral, à crescente atividade produtiva (o que mais uma vez traduz uma confusão entre o plano do valor abstrato e o plano material do valor de uso). O salto qualitativo na função do crédito para a reprodução capitalista permaneceu largamente irrefletido, para já não falar no potencial de crise inerente a este desenvolvimento.
Contudo, quando o crédito e, com ele, o acesso dos capitais produtivos ao capital monetário alheio desocupado, deixa de ser um fenômeno marginal ou um recurso esporádico para se transformar no pressuposto central da produção ulterior, e ainda por cima num patamar cada vez mais elevado, o eixo temporal da produção social de mais-valia desloca-se fundamentalmente do passado para o futuro. É que se retivermos, com Marx, que a qualidade supostamente oculta do capital que rende juros de criar diretamente mais dinheiro a partir de dinheiro apenas se deve ao ofuscamento, pelas aparências, da superfície do mercado e, na realidade, é mediada pela derivação da produção de mais-valia real, não nos podemos esquecer do fato de esta última não ocorrer sequer na altura em que o crédito é contraído, tendo ainda de se realizar e ser bem sucedida; de outro modo, o crédito, afinal, nem sequer seria necessário. Existe, portanto, uma enorme diferença ente o refinanciamento do capital pelo recurso predominante a uma produção de mais-valia já realizada no passado (por exemplo, sob a forma de reservas), por um lado, e pelo recurso predominante a uma produção de mais-valia futura, ainda nem iniciada e muito menos realizada (sob a forma de crédito), por outro. Por muito que as duas formas de refinanciamento desde sempre tenham andando a par, o aumento relativo da segunda (análogo ao aumento relativo da quota-parte de ''c'' na composição orgânica do capital) sempre constitui uma alteração não só quantitativa, mas também qualitativa na reprodução do capital, tal como no caso da queda da taxa de lucro.
O novo e adicional potencial de crise desta alocação é óbvio, pois se o lucro realizado em períodos produtivos anteriores é um valor seguro, o lucro futuro, ainda por realizar é um valor totalmente inseguro. As condições a crédito a que se recorreu, porém, têm evidentemente de ser satisfeitas, ou seja, o crédito tem de ser reembolsado no fim do seu prazo e, entretanto, têm de se pagar os juros. Torna-se assim necessário que os capitais individuais, que recorrem ao crédito numa medida crescente, se apropriem de uma parte da massa social de mais-valia no mínimo suficiente para poderem pagar os seus créditos e, além disso, alcançar ainda um lucro próprio. Porém, quando isso se torna uma condição universal, não apenas se cria uma pressão adicional sobre os capitais individuais, mas também um problema ''sistêmico'': o refinanciamento, que já não é feito com base na produção passada de mais-valia real, mas na futura, não só requer que a massa de mais-valia cresça, mas que cresça tanto que a sua participação no passado não bloqueie a reprodução corrente posterior.
Por outras palavras, mesmo quando enquanto o capital global vai se expandindo alegremente e a massa absoluta de mais-valia cresce, vai-se criando um defasamento temporal crescente entre a produção de mais-valia prevista e a que realmente se segue, O capitalismo começou a gastar o seu próprio futuro. As cadeias de crédito vão tornando-se cada vez mais longas e cada vez mais delgadas, embora seja apenas delas que brota a mais-valia. Podem quebrar-se a qualquer momento, e é isso que fazem todos os dias e numa extensão crescente. E não é só o risco da participação no mercado, crescentemente financiada com o recurso ao crédito, que deste modo aumenta para os capitais individuais, mas também o risco ''sistêmico'' de um colapso do sistema de crédito que afete diretamente o capitalismo na sua totalidade, pelo menos transitoriamente (enquanto a expansão ainda predominar). Em termos fundamentais, isso significa que esse potencial abstrato de crise, já referido por Marx no primeiro volume de O Capital, das compras e vendas que não coincidem no local e no tempo se potencia historicamente no plano do sistema de crédito; pois é aqui, afinal, que a contração do crédito e o posterior serviço da dívida se encontram defasados temporal e estruturalmente de modo ainda mais óbvio e numa medida ainda maior.
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