quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Robert Kurz: preço, valor e totalidade


 Segue abaixo um (longo) trecho de ''O Estatuto social global das categorias e o individualismo metodológico a respeito do conceito de capital'', 9º capítulo do livro ''Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política'' (Lisboa: Antígona, 2014), de Robert Kurz, que me parece ser o autor de uma das mais bem elaboradas frentes da crítica da economia política atualmente, e que infelizmente faleceu em 2012. Até onde me é de conhecimento, este texto não está disponível em nenhum outro lugar da internet lusófona, então espero que vocês aproveitem!


Kurz (1943-2012)


 É esclarecedor que já nos inícios da análise da forma do valor feita por Marx se fale da relação global total como ''trabalho global'' (a que, a bem dizer, tanto se referem os combatentes da ortodoxia recente como os da Nova Leitura de Marx*, mas sem perceberem o alcance desta definição). Ora, também Max diz que o trabalho abstrato despendido por mercadoria individual tem de se ''afirmar'' como parte do trabalho global, mas a mediação entre a produção ou o dispêndio de trabalho por mercadoria individual e o todo social ou o ''trabalho global'' não é feita ou apenas figura na remissão para a produtividade social média como condição para a ''validade'' do dispêndio de trabalho individual. Esta definição, embora esteja certa, é completamente insuficiente para explicar a relação entre a produção parcial individual e a produção global, mantendo-se ainda no horizonte do individualismo metodológico. Do verdadeiro contexto de mediação complexo do ''processo global'' apenas se fala no terceiro livro [de O Capital, AM], embora aí já se encontre numa relação de tensão não resolvida face à análise da forma do valor ou da forma da mercadoria que consta do primeiro livro, ainda fixada na mercadoria individual ideal-típica.

 Se o capital for o verdadeiro pressuposto da forma de mercadoria, continua ainda assim a aplicar-se que o capital global ou o ''processo global'' do capital tem de ser o verdadeiro pressuposto do capital individual e, com ele, também da mercadoria individual. Desta perspectiva, que faz seu um entendimento dialético da totalidade e já não segue o individualismo metodológico com o seu raciocínio modelar, a exposição de Marx só pode referir-se, no fundo, ao todo mediado em si mesmo da relação fetichista do capital. As categorias reais do capital que são objeto da exposição teórica de Marx devem, por isso, ser entendidas desde o início e em todos os planos da exposição como meras categorias do todo social, do capital global e do seu movimento global, enquanto massa global que não pode ser abarcada de uma forma empírica imediata porque, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos, é diferente do movimento empírico dos capitais individual, No entanto, este último é o único que se apresenta aos agentes na prática, ao passo que o verdadeiro movimento do capital global real só pode ser registrado de forma empírica com base nos seus efeitos sociais (sobretudo em tempos de crise). É precisamente este o problema que não é tido em devida conta tanto pela Nova Leitura de Marx quanto pelos intérpretes tradicionais.

 Apenas e só o capital global, o todo fetichista, é a entidade categorial que julgamos conhecer como ''o capital'', entidade que é, no entanto, de acordo com a leitura habitual do primeiro livro da obra principal de Marx, é entendida por princípio como o capital individual, quer seja de forma empírica ou (de modo ligeiramente mais refletido) de forma ideal-típica, ou então ''em geral'', referindo-se esta generalidade somente ao elemento individual geral ou abstrato, e não à totalidade como generalidade (negativa) verdadeira. Desta perspectiva, o caráter do capital enquanto a realidade objetiva do fetiche acaba por permanecer oculto, pois no plano do capital individual parece ainda tratar-se de um acontecimento que possa ser apreendido com os meios da teoria da ação que, em certa medida, se resume ao cálculo subjetivo e em que se defrontam esses mesmos agentes e não aparece, na sua perspectiva limitada, como um objeto distinto, nomeadamente a entidade pressuposta do ''processo global'', desaparece num mundo composto por fatos imediatos. Por isso, os conceitos correntes da relação do capital são, por um lado, definidos de modo subjetivista, tanto no marxismo tradicional como na economia política ou no pensamento pós-moderno, ao passo que, por outro lado, o motivo condicionante não reconhecido como tal toma a forma  da objetividade positiva e intransponível de ''leis'' exteriores. É precisamente a ideologia pós-moderna que pode percepcionar o capital, no melhor dos casos, como um pormenor abstrato, porque já quase considera esta pequena elevação de abstração como uma generalização inadmissível. No entanto, o que transcende os sujeitos agentes e perfaz o movimento real de valorização é o todo do ''sujeito automático'', o apriorismo constitutivo e transcendental que apenas se manifesta no capital individual, mas não o é em termos categoriais. Só o capital global é o movimento espontâneo do valor, como um ''monstro que respira'' que se apresenta diante dos agentes, embora sejam estes que o produzam -- uma espécie de Adam Kadmon negativo da sociabilidade inconsciente ou, nas palavras de Marx, o ''valor que se valoriza a si mesmo, um monstro animado que começa a 'trabalhar' como se tivesse o diabo no corpo'' (Marx, 1965/1890, p. 209).

 Porém, se as determinações categoriais de Marx forem, contrariamente a entendimento sugerido pelo primeiro livro [de O Capital, AM], definidas deste modo como válidas apenas para o capital global ou o ''processo global'', isso tem consequências decisivas para a relação entre a essência e a aparência ou (na apresentação conceitual) para a relação entre a teoria e a empiria. Dito de outro modo, desta perspectiva alterada, a relação entre a forma de valor (qualidade) e a dimensão do valor (quantidade) não pode de modo algum ser explicada com base na produção individual de mercadorias ou na mercadoria individual (e com base no ato individual de realização no mercado), noção que ainda assim, devido aos moldes em que decorre a sua exposição, se infiltrou na argumentação de Marx respeitante ao ''começo'', uma vez que ainda não é aí que é formulada a lógica do contexto de mediação social global, Tudo o que Marx disse sobre a substância e a dimensão do valor não pode referir-se à mercadoria individual (nem mesmo ideal-típica), tal como erroneamente parece ser o caso no seu desenvolvimento analítico da forma de valor enquanto tal, mas apenas ao capital global e, com ele, a qualidade enquanto objetividade do valor e a respectiva quantidade não são coincidentes.

 A produção individual constitui já a priori uma parte da produção global capitalista e, por conseguinte, o dispêndio individual de trabalho constitui uma parte do ''trabalho global''. Por outras palavras, e diferentemente do que resulta a fixação inicial de Marx na mercadoria individual, a energia humana abstrata não se ''infiltra'' de imediato na mercadoria individual produzida em cada caso, mas é objetivamente agregada, por detrás das costas dos agentes individuais da produção, a uma massa total da substância social do valor socialmente produzido. Evidentemente, neste contexto, mantém-se correta a determinação de que apenas a energia de trabalho despendida com uma produtividade que corresponda à média social é ''válida''; mas precisamente não no que diz respeito ao trabalho despendido com a mercadoria individual, mas sim ao seu contributo para a massa global da substância social do valor.

 Agora, as metamorfoses do capital também têm de ser entendidas categorialmente, na unidade de forma e substância, como processo social global que se desenrola por detrás das costas dos agentes e, portanto, também inclui o movimento de realização. Mas as mesmas metamorfoses apresentam-se de um modo completamente diferente no plano empírico e no que diz respeito aos capitais individuais e aos seus representantes que, afinal, não podem assumir o ponto de vista da sua própria relação global. O movimento de realização no mercado, porém, é mediado pela concorrência universal, e é este movimento mediador da concorrência que determina, por sua vez, a concepção dos sujeitos funcionais e o seu comportamento. A verdadeira produção de valor substancial como um todo é que desaparece na percepção distorcida pelo filtro das relações de concorrência.

 Do ponto de vista do capital individual, parece que se aplica um determinado dispêndio de capital monetário, os custos (prévios) da produção, não se distinguindo entre a força de trabalho, a única que produz valor novo, e o capital material, que se limita a transferir valor produzido anteriormente (que se manifesta ao comprador desse capital material precisamente como meros custos). E nem pode ser de outra maneira, porque para o capital individual não conta minimamente o valor produzido pela força de trabalho que adquiriu, nem tão-pouco o verdadeiro valor que tenha sido produzido pelos seus fornecedores enquanto contributo para a massa global de valor. Pelo contrário, para o capital individual apenas são relevantes os preços manifestos (e  realizados) como custos ou proveitos da venda, os quais não têm qualquer relação direta com o plano do valor e, por isso, também não representam meras modificações de ''valores individuais''.

 O objetivo e o desígnio do capital individual consistem, na altura da venda no mercado, em atingir, para além da recuperação dos custos despendidos, no mínimo, um lucro igual ao lucro médio da sociedade. Este varia de ramo para ramo e está sujeito a diversas modificações que são, todas elas, determinadas pelas relações de mercado e de concorrência, não procedendo imediatamente do plano elementar do valor social global. Para o capital individual, é uma necessidade vital não ficar abaixo do lucro médio por períodos prolongados e, para alcançar esse fim, tem de se impor na concorrência que impera no mercado. Da sua perspectiva, que não deixa de ser acertada quanto a esse ponto, o resultado da venda assim alcançado não tem rigorosamente nada a ver com a quantidade da força de trabalho por ele aplicada ou com a quantidade de trabalho por esta despendida mas, aparentemente, também nada a ver com com quantidades de trabalho em termos gerais. É também esta a perspectiva da economia política, que assim assume o ponto de vista ''teórico'' do limitado capital individual,  como ainda teremos de explicar com maior precisão. E tudo isto não deixa de estar correto, mas justamente apenas para o capital individual, que nem sequer pode conhecer o seu próprio contexto social condicionante no plano de valor substancial.

 Daí também decorre claramente que -- e por que razão -- o conceito de valor de Marx é completamente diferente do da ciência econômica burguesa. Apesar da contínua determinação ''individual'' do valor em Marx, o seu conceito de valor acaba por só poder ser derivado do capital enquanto relação global total. O conceito burguês de ''criação de valor'', porém, refere-se unicamente à relação entre custos prévios e proveitos (do capital individual); e isto de um modo em tudo independente da verdadeira e substancial constituição de valor (no conjunto da sociedade) pela energia do trabalho humano. É, portanto, determinado pelo ponto de vista do capital individual. A relação de custos e proveitos é extrapolada para a soma dos capitais individuais, de onde decorre uma imagem errada da verdadeira criação de valor.

 No entanto, esta perspectiva está perfeitamente correta enquanto se aplica realmente ao capital individual, apenas estando distorcida e invertida no que diz respeito ao processo global ou à reprodução do capital global, que é o que na realidade determina a reprodução dos capitais individuais -- mas o capital individual, afinal, nem sequer pode assumir este ponto de vista, que não lhe diz respeito, e a economia política também não corresponde à sua vocação. Ora, como é que se apresenta o assunto do ponto de vista do todo, a assumir unicamente numa atitude de distanciamento teórico? A totalidade da quantidade de trabalho despendida de forma ''válida'' (correspondente ao padrão de produtividade) nos capitais individuais agrega-se, por detrás das costas dos agentes, a uma massa social total de valor ou mais-valia. E é só neste plano que os termos valor e mais-valia são válidos e reais em sentido rigoroso. O capital é aqui um todo social que, no entanto, tem de se realizar como esse todo através da mediação da produção e da concorrência de capitais individuais no mercado. A massa de valor global que é produzida pelo trabalho global é representada pela massa de mercadorias, independentemente da força de trabalho despendida nas mercadorias como únicos protagonistas reais, tal como também foi produzida por eles como contributo para a massa global.

 E eis aqui o ponto decisivo: os capitais individuais não se realizam por aquela massa de valor que foi produzida por eles de forma individual, entre quatro paredes, mas por aquela quota-parte da massa de valor agregada por toda a sociedade que arrebatam na concorrência e de que conseguem apropriar-se. Não existe nenhuma relação imediata entre o dispêndio de trabalho realizado pelo capitalista individual e o lucro desse capitalista individual e, portanto, por conseguinte, não existe essa relação entre a quantidade de trabalho despendida em uma mercadoria e a dimensão do seu valor -- que, em boa verdade, não é mais do que a dimensão do seu preço, visto que o valor nem sequer pode ser avaliado de forma individual; ele subjaz ao sistema de preços no plano da totalidade da sociedade, o que é diferente.

 Em Marx, porém, a relação apresenta-se, no primeiro livro d'O Capital, como sendo uma relação imediata entre a quantidade de trabalho e a dimensão individual do valor, porque a sua lógica de exposição trata, à moda do individualismo metodológico, a relação entre a objectualidade do valor e a dimensão do preço, na realidade mediada no plano da totalidade da sociedade, com base na mercadoria individual ideal-típica, e a relação ente a mais-valia e a dimensão do lucro com base no capital individual ideal-típico, ao passo que a real mediação entre a dimensão do valor e a dimensão do lucro apenas é tematizada no terceiro livro como a lógica do ''processo global''. É assim que surge a discrepância entre o primeiro livro (determinação do valor individual) e o terceiro (determinação do capital global). O célebre problema da transformação, a saber, a transformação de supostos ''valores individuais'' em ''preços de produção'', por princípio de uma dimensão diferente daqueles, mediados no plano da totalidade da sociedade é, deste modo, um pseudoproblema que resulta unicamente da inflexão no curso da exposição de Marx. No que diz respeito à dimensão do valor, não existe qualquer relação imediata com a quantidade individual de trabalho e o seu resultado individual, mas apenas uma dimensão total do valor do capital global, que se apresenta na mercadoria individual como uma parte da mesma não determinada de forma individual, mas unicamente através da mediação da concorrência, sob a forma do preço. Só  preço (afixado e realizado) é individual; o valor é sempre relativo à totalidade da sociedade. O preço só é empírico como resultado da concorrência; o valor é, por princípio, não empírico, como determinação essencial de toda a sociedade que apenas pode manifestar-se através da relação de mediação.

 Se assim não fosse, portanto, se a dimensão fosse realmente determinada de modo fundamentalmente linear pelo dispêndio individual de trabalho para a mercadoria individual , e se o preço apenas divergisse dessa dimensão individual ''verdadeira'' do valor devido a ''modificações'' que, no plano da totalidade da sociedade, voltariam a compensar-se, como oscilações do mercado, etc., nesse caso, a concorrência universal teria de se apresentar como totalmente supérflua e inexplicável ou até de ser atribuída a disposições subjetivas. Pelo contrário, o preço realizável é apurado por intermédio da concorrência, cujo movimento não produz o valor, mas o distribui de forma desigual.

 Todo o debate marxista, como também a crítica burguesa de Marx, nunca conseguiram ir além de tomar o ''valor individual'' por base inquestionável e depois tentar explicar a diferença relativamente ao preço de produção de alguma forma matemática, através de diversas ''tentativas de conversão'' (um exemplo típico de como a ''matematização'' no lugar errado se pode substituir à clarificação conceitual), ou querer demonstrar, precisamente por essa via, que a determinação do valor com base na substância do trabalho, feita por Marx, já estaria ferida de erro no momento da partida, tal como demonstraria o seu próprio rumo analítico incerto no terceiro livro.

 Mais uma vez: os ''valores individuais'' nem sequer existem; pelo contrário, o valor ou a mais-valia (afinal, é nisso que consiste o fim-em-si [do capital-fetiche, AM]) agregam-se objetivamente numa massa global de âmbito da metamorfose do capita global, ao passo que, no plano ''individual'', existem apenas apropriações de uma parte dessa massa global que se distinguem do contributo próprio em temos de lógica e grandeza empírica e são mediadas pela concorrência -- apropriações que se manifestam sob a forma dos preços ou da sua realização, sendo esta última, ao mesmo tempo, um momento na realização do valor ou da mais-valia do capital global. O valor constitui unicamente uma categoria do capital global, enquanto, no plano individual dos capitais individuais e dos sujeitos ''econômicos'' ou funcionais, a única coisa que existe empiricamente são os preços, cujo caráter de valor substancial ''para eles'' nem sequer se apresenta como tal, apenas se fazendo notar indiretamente nas repercussões do processo global que se desenrola por detrás das suas costas.

 Poder-se-ia que assim já não existiria nenhuma correspondência entre o valor e o preço, e que os preço seriam, a bem dizer, puramente arbitrários. No entanto, essa objeção não sai do individualismo metodológico entranhado e passa ao lado do problema. Pois, se o valor for somente uma categoria da totalidade da sociedade ou do capitalismo, deve existir, sim, a correspondência entre o valor (como massa global no singular) e os preços (como determinação individual das muitas mercadorias e capitais individuais no plural, sob forma de uma quota-parte do valor mediada pela concorrência), mas mais uma vez precisamente no plano do todo, e apenas aí. Só neste plano, a massa do valor e a massa dos preços (a soma das quotas-partes individuais da massa do valor) têm de acabar por corresponder uma à outra -- não de forma imediata e exata, mas de um modo processual e flutuante; caso contrário, a discrepância faz-se sentir, produzindo sinais de crise. Com efeito, é o que Marx acaba por dizer no terceiro livro, embora se atenha à determinação do valor individual proveniente do começo da sua exposição como um apriorismo.

 Assim sendo, a célebre equivalência não se verifica de modo algum no plano da chamada ''troca'' entre a mercadoria individual e o dinheiro; esta relação é incongruente na sua essência. Por isso, também não é uma ''troca'', mas precisamente o movimento de realização do capital, que se desenrola em atos individuais de realização desconexos e mediados pela concorrência no plano dos preços, enquanto o princípio de equivalência só é válido no plano da totalidade da sociedade. Dito isto, porém, qualquer concepção que separe este princípio do seu conteúdo material, puramente funcional e fetichista, e o transforme nu postulado de justiça subjetivo revela-se como um idealismo da troca ideológico ao mais alto grau, que reinterpreta falsamente a concorrência total no mercado como uma autonomia subjetiva de sujeitos da circulação. Esta crítica, já formulada acima, encontra agora a sua fundamentação mais circunstanciada. Que o ''sujeito automático'', no seu movimento de mediação da mediação, tenha de corresponder a si próprio em termos quantitativos constitui uma ''justiça'' e ''autonomia''  para esquecer, enquanto a ''liberdade'' e a ''autonomia'' dos agentes individuais consistem apenas em lutarem entre si, até a morte, pela massa de valor ou da mais-valia, arrancando à boca uns dos outros os nacos de valor, sem que haja nesse processo qualquer equivalência subjetiva ou individual.

 Pela ordem inversa, porém, os preços também não podem ser arbitrários do ponto de vista individual dos capitais individuais em concorrência. Desta perspectiva particular, o preço a se realizar, o preço a realizar tem de recuperar os custos despendidos, acrescidos de um determinado lucro. O preço (sobretudo enquanto preço exigido, não realizado) de um automóvel não pode, por isso, ser igual ao de uma escova de dentes. No entanto, esta relação de custos e proveitos (para o capitalista individual) não se processa diretamente no plano do valor, na medida em que o que está em causa aqui não são os custos específicos da força de trabalho, que é a única (no plano da totalidade da sociedade) a acrescentar valor, e o seu contributo para a massa de valor novo, mas apenas os custos globais empíricos (força de trabalho e capital material morto) do capital individual. Como estes custos prévios, no caso do automóvel, e mesmo num estado de desenvolvimento supremo das forças produtivas imposto pela concorrência, nunca podem ser tão baixos como no caso da escova de dentes (sem mencionar que, também no caso desta, a produtividade tem de crescer continuamente), existe aqui sempre uma diferença entre os custos de despendidos em cada caso  que tem de se repercutir nos preços. Indiretamente, esta diferença está mediada com o plano do valor, na medida em que não só o lucro enquanto resultado é uma quota-parte da massa do valor de toda a sociedade, como o mesmo também se aplica, evidentemente, aos custos prévios. Acontece que a quota-parte dos custos prévios na massa de valor de toda a sociedade é maior num carro do que numa escova de dentes. É ele que tem de ser recuperado no mínimo (mais o lucro) e, por isso, o preço não pode ser arbitrário, antes se orientando no seu cálculo pelos custos prévios respeitantes a cada mercadoria. No entanto, não existe qualquer relação direta e, por isso, uma congruência fundamental ou estrutural entre o plano do valor, por um lado, e o plano do preço ou dos custos, por outro. A relação empiricamente tangível não pressupõe nenhuma relação individual entre o trabalho individual despendido e a dimensão do valor, mas apenas aquela que existe entre os custos prévios, o preço e o lucro, e que resulta unicamente da referência, mediada pela concorrência, à massa de valor e de mais-valia de toda a sociedade. Tanto os fabricantes de automóveis como os de escovas de dentes concorrem entre si, concorrendo também os vários ramos uns com os outros pelo poder de compra da sociedade (e não custa imaginar que sujeitos capitalistas prescindam mais depressa da escova de dentes, do jantar, da roupa lavada, etc. que do automóvel).

 Por outro lado, é tudo menos garantido que o preço mínimo necessário seja realmente alcançado. Afinal, e como é sabido, existem permanentemente na concorrência perdedores que já não alcançam um lucro suficiente ou que nem sequer atingem um preço que cubra os seus próprios custos (os custos prévios). Nesse caso, têm de vender os produtos abaixo do custo, compensar temporariamente as perdas contraindo empréstimos ou acabar por ir à falência. Isso só quer dizer que já não podem participar individualmente na luta pela massa social de mais-valia, o que faz parte do dia-a-dia capitalista.

 Se este problema se exacerba para além dos habituais casos isolados, a ponto de constituir uma massa crítica, tal se deve a uma desproporção no conjunto da sociedade entre a produção real de valor e de mais-valia e a massa das mercadorias traduzidas em preços. Assim sendo, a crise não consiste, afinal, no fato de a mais-valia realmente produzida já não poder ser ''realizada'' de forma suficiente (tal como figura parcialmente em Marx e de forma continuada no marxismo tradicional) mas, pelo contrário, no fato de ter sido produzida massa de mais-valia real em consideravelmente menor quantidade que a totalidade dos preços ainda não realizados, ou de o valor real, por um lado, e o ''valor ideal'' (apenas concebido sob a forma de preços), por outro, divergirem muito no plano da totalidade da sociedade (este problema será abordado com maior pormenor nos capítulos seguintes). Da perspectiva dos capitais individuais e ainda mais dos sujeitos econômicos individuais, isto constitui um mistério, justamente porque o todo se encontra fora do seu campo de visão funcionalmente estreito, com as suas contradições.

 Ora,s e observarmos esta problemática no âmbito da histórica da economia política, verifica-se, nessa transição -- constatada por Foucault -- do paradigma (subjetivo) da circulação para o paradigma (subjetivo) do trabalho, um déficit fértil em consequências. Enquanto clássicos burgueses, tanto Adam Smith como David Ricardo, embora façam a transição da doutrina subjetiva (da circulação) do valor para a doutrina subjetiva, mantêm o ponto de vista do individualismo metodológico que, no fundo, é proveniente do paradigma ''pré-diluviano'' da circulação. O dispêndio de trabalho como determinação quantitativa é referido à mercadoria individual de forma ideal-típica e deverá reaparecer também individualmente em cada ''troca''. Este déficit dos clássicos burgueses deve-se à sua abordagem afirmativa e apologética, uma vez que o olhar sobre o todo logo poria em evidência tanto a sua constituição paradoxal como as contradições internas desta, tendo, por isso, de ser tabuizado. Deste modo, também a historicidade da explicação teórica, associada à doutrina do valor-trabalho objetivo, encalha a meio do caminho, uma vez que se comporta como objetivo o problema da crise, geralmente tabuizado.

 O individualismo metodológico constitui agora a charneira que, como demonstramos acima, faz com que a doutrina do valor objetivo do trabalha cai de novo numa teoria do valor da circulação, ou seja, na doutrina do valor subjetivo ''neoclássica''. A tematização vaga e envergonhada da relação global substancial, que ainda assim se detivera de forma contrafactual numa relação individual, é agora anulada e substituída por uma reinterpretação na circulação. O ponto de vista do limitado capital individual ou do sujeito econômico individual em geral, que em termos teóricos nunca fora abandonado, é reconduzido à sua esfera habitual, o mercado, e ao seu padrão ideológico de percepção. Por isso, o desenvolvimento da ''economia neoclássica'' radicaliza a perspectiva microeconômica da economia política até o sacrifício, hoje quase completo, da própria identidade de uma ciência do todo econômico.

 A determinação do valor como abstração funcional de uma avaliação dos benefícios subjetivos de participantes individuais no mercado mata vários coelhos com uma só cajadada: as contradições de uma determinação individual do valor são aparentemente resolvidas e o fetiche do capital, como relação social global, desaparece no cálculo do homo oeconomicus, tal como as crises, que já nem podem ser pensadas no âmbito desta lógica econômica reduzida e que supostamente resultam apenas do fator ''externo'' de atos falhos, uma vez mais subjetivos (por exemplo, intervenções políticas). E, como se tudo isso não bastasse, a abstração subjetiva e individual presta-se muito bem a ser ''matematizada'' e extrapolada na soma dos agregados sociais de avaliação dos proveitos, mesmo que essas grandezas ''sem substância'' já nada tenham a ver com a realidade capitalista, e muito menos com a empírica. A ''beleza'' matemática destes modelos é, por assim dizer, obra do esteticismo econômico irreal de uma teoria que já não o é, aproximando-se antes de uma espécie de artesanato intelectual.

Ora, em que relação com o seu objeto burguês é que se encontra, a este respeito, a crítica feita por Marx à economia política? Na exata medida em que Marx concede à doutrina do valor-trabalho objetivo de Smith e Ricardo um conteúdo ''científico'', por muito inacabado e errado que seja, esta concessão não remete apenas para um apego geral ao pensamento iluminista ou progressista burguês, mas igualmente para uma afinidade parcial com a reflexão redutora, própria do individualismo metodológico, do problema da substância, especialmente nos clássicos burgueses, tal como ela afinal também se manifesta no ''começo'' de Marx com a sua fixação conceitual analítica na mercadoria individual ideal-típica.

 No entanto, o conceito marxiano de substância já se distingue neste plano, em primeiro lugar, do dos clássicos burgueses, virando o conceito de ''trabalho abstrato'', adotado de Hegel, de forma crítico-materialista, desligando deste modo o conceito de substância como energia do trabalho humano abstrato (dispêndio de nervo, músculo e cérebro) tanto da sua definição econômica burguesa como ''trabalho'', na sua incomensurável forma sensível concreta e abstração meramente nominal, como da definição puramente ideal de Hegel, fazendo-o remontar ao seu caráter de fetiche ''realmente abstrato'' ou paradoxalmente ''sensível e abstrato''.

 Em segundo lugar, Marx, contrariamente aos clássicos burgueses, não se fica pelo conceito de circulação -- ainda assim por ele parcialmente mantido -- de uma produção universal e ''simples'' de mercadorias, desenvolvendo antes o conceito de capital como fim-em-si da ''riqueza abstrata'' e do ''sujeito automático'', embora também o fizesse sobretudo no plano do capital individual ideal-típico.

  Em terceiro lugar, Marx chega finalmente, no terceiro livro d'O Capital, ao conceito de uma relação social global dotada de uma qualidade própria e transversal, a desenrolar-se ''por detrás das costas'' dos agentes, ideia completamente alheia a Smith e Ricardo. No entanto, devido a sua lógica de exposição, Marx envolve-se em contradições entre a análise da forma de valor do ''começo'', ainda apegada ao individualismo metodológico burguês, e a reflexão final e inconsequente das categorias fundamentais de uma relação global que não se manifesta enquanto tal de imediato e está mediada em si mesma.

2 comentários:

  1. Cara, que bom que pegaste este texto! Tu o traduziste? Bora discutir sim, mas tem de ser numa sessão skype. Sou prof de economia na UFRGS e pesquisadora do trabalho e do valor há anos. Veja aí Glaucia Campregher

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    1. Peço desculpas por demorar tanto a responder!

      Então, na verdade eu transcrevi o texto do livro lançado pela Antígona lá em Portugal (achei um exemplar dele na Saraiva).

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