A História revela uma vergonhosa ligação entre a religião e o nazifascismo, a besta da contrarrevolução burguesa nos tempos de crise do capitalismo [1]. |
A propaganda recente d'O Boticário envolvendo casais (cis-gêneros) homossexuais e a performance da travesti crucificada na Parada LGBT do último domingo em São Paulo suscitaram uma nova onda de debate público sobre liberdade de expressão, direitos civis e, claro, o embate entre religião e a minoria LGBT. No primeiro caso, conhecidos figurões do cenário religioso nacional voltaram com seus tradicionais mimimis sobre o ''apologia ao homossexualismo''; no segundo, os faniquitos se deveram a uma suposta ''intolerância religiosa'' que teria sido praticada no ato de Viviany Beleboni.
Tudo isso me parece ao mesmo tempo terrivelmente engraçado e terrivelmente angustiante. Engraçado porque demonstra a burrice ou falta de caráter de algumas famosas lideranças religiosas do país, que insistem em afirmar que ''homossexualismo é comportamento e opção do indivíduo'', ignorando o fato simples de que eles mesmos não conseguem lembrar quando foi que optaram por sentir desejo por mulheres (talvez porque nunca o tenham feito...), e que homossexualidade não é comportamento (ou ''ato'', ou ''prática''), mas sim desejo, amor erótico por pessoas do mesmo sexo/gênero. Homossexuais comportam-se de maneiras muito diversas: há gays mais másculos e outros mais efeminados, e lésbicas idem; há aqueles entregues ao amor-livre, há os celibatários; há os extrovertidos e há os tímidos. Há, enfim, uma infinita variedade de comportamentos entre homossexuais (como há entre heterossexuais), exatamente porque a única ligação direta entre essas pessoas é a orientação sexual. Angustiante porque o poder que a bancada parlamentar religiosa (leia-se ''cristã'') está acumulando é tal que pode abalar os alicerces da laicidade de nosso Estado, o que traria uma série de consequências, nenhuma delas boa; e porque o mais recente
Os defensores do projeto de criminalização da ''cristofobia'' (segundo eles tão real quanto a homofobia, ou na verdade a única real entre as duas -- ainda que não tenhamos muitas notícias de jovens cristãos sendo expulsos de casa ao revelarem sua religião aos pais ou mesmo de cristãos sendo agredidos e mortos nas ruas por serem cristãos, no Brasil) afirmam que o que Viviany fez foi ''intolerância religiosa'' e um ''profundo desrespeito'' para com o cristianismo, devendo ser penalizado. Mas que intolerância religiosa foi essa? Até onde sei, Viviany não estava impedindo ou proibindo nenhum tipo de culto -- e é exatamente isso que se conhece por intolerância religiosa! Falemos, então, do ''profundo desrespeito'' ao cristianismo. A própria afirmou, em entrevistas, que não tinha a mínima intenção de ''atacar a igreja'', mas de simbolizar o martírio que a população LGBT sofre em nosso país -- martírio esse cujos dados penso não ser necessário trazer aqui: conhecemos muito bem os casos de agressão física e verbal, expulsão e assassinato contra membros dessa parcela da população, além de coisas como suicídio, evasão escolar e bullying. Mas e se a intenção de Viviany fosse, de fato, ''atacar a Igreja'', criticar o cristianismo? Teria (ou deveria ter) ela esse direito? Para pensar na resposta, talvez seja interessante lermos algumas passagens de livros antigos.
William Hollowitt, em seu Colonization and Christianity: a popular history of the treatment of the natives by the Europeans in all their colonies (Londres, 1838), diz que
As barbaridades e as implacáveis atrocidades praticadas pelas chamadas nações cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que elas conseguem submeter, não encontram paralelo em nenhum período da história universal, em nenhuma raça, por mais feroz, ignorante, cruel e cínica que tenha se revelado.
Bertrand Russel, por sua vez, afirma num artigo intitulado ''Será que a religião capaz de curar nossos problemas?'' (Dagens Nyheter, Estocolmo, novembro de 1954) que
O cristianismo tem se distinguido de outras religiões por sua maior disposição à perseguição. O budismo jamais foi uma religião persecutória. O império dos califas era muito mais gentil para com judeus e cristãos do que os Estados cristãos para com os judeus de maometanos. Não incomodavam os judeus e cristãos, desde que lhe pagassem tributos. O antissemitismo foi promovido pelo cristianismo desde o primeiro instante em que o Império Romano se tornou cristão. O fervor religioso das cruzadas levou a massacres de judeus na Europa Ocidental. Foram cristãos que acusaram Dreyfuss injustamente (...). Em tempos modernos. Em tempos modernos, abominações foram defendidas pelos cristãos, e não apenas quando os judeus eram as vítimas, mas também em outras situações. As abominações do governo do rei Leopoldo no Congo foram escondidas e minimizadas pela Igreja e só tiveram fim devido a agitações causadas principalmente por livres-pensadores. Toda afirmação de que o cristianismo tem exercido influência moral elevada só pode ser mantida pela completa ignorância ou falsificação das evidências históricas.
Certamente que não há uma relação de causalidade entre ser cristão e ser um racista pró-colonialismo ou um antissemita doente, ao menos a partir de um certo conceito de cristianismo (as pessoas que creem que Jesus é Deus e o salvador têm ideias bastante diversas sobre ele...); mas tampouco se pode negar que o cristianismo tenha oferecido justificativa para tantas barbáries (nas quais faltaria incluir coisas como as queimas de mulheres acusadas de bruxaria e/ou de ''hereges'', como Giordano Bruno). Isso, por si só, legitima o direito à crítica do cristianismo.
Engana-se, porém, quem pensa que as causas do direito à crítica do cristianismo (e na verdade de qualquer religião) parem aí. Religiões, como outras formas de ideologia, são conjuntos de ideias sobre como as coisas são (o campo da ciência) e sobre como as coisas devem ser (o campo do direito) -- estas, em boa parte, dependentes daquelas; a realidade objetiva, porém, é uma só (o que invalida aquela máxima de que ''todas as religiões são verdadeiras'', uma verdadeira pérola do relativismo), de forma que se duas pessoas divergem sobre a realidade, e uma delas está certa, a outra TEM de estar errada e, portanto, pode ter suas ideias criticadas por meio do debate científico imparcial. Similar para o direito: as leis que regem nossas vidas individuais e sociais devem estar pautadas na ética e na racionalidade (não exatamente distintas). Não importa com quanto amor e fé se apegue alguém à crença de que o sol gira em torno de nosso planeta (ou que este tem forma plana), sua crença deve ser criticada e falseada, de forma que o conhecimento humano siga progredindo; da mesma forma, se alguém acha que homo/bi/transsexuais devem ser reprimidos, agredidos e talvez mortos, justificando tais opiniões com ideias religiosas, estas devem ser criticadas, uma vez que não são o princípio ideal de referência para a vida coletiva.
O projeto de criminalização da ''cristofobia'' pode dar margens ao total cerceamento da liberdade de crítica do sistema teológico do cristianismo, assim como a seus postulados morais (o que se estende para as doutrinas das mais diversas igrejas cristãs); é, em suma, um perigoso ataque à liberdade de pensamento da qual o iluminismo, findada uma era de trevas, foi símbolo. É o caminho para a teocracia.
É claro que, entretanto, como pesquisador marxista, eu não posso deixar de tentar compreender a influência das forças materiais da sociedade no fenômeno do fundamentalismo religioso e da teocracia. Quem são os grandes nomes do fundamentalismo religioso no poder político? Gente como Magno Malta, João Campos e Eduardo Cunha. O primeiro é membro de um partido-fantoche de direita, o segundo é membro do maior partido burguês do país -- conhecido por seu entreguismo privatista e por sua práxis econômica neoliberal -- e ficou famoso por um projeto que tentava dar poderes de competência do Poder Legislativo a Igrejas, e o terceiro é uma raposa velha de nome imundo na justiça, envolvido em corrupção com as empreiteiras, campeão das grandes mídias nacionais, defensor do lobby dos planos de saúde e que pôs em urgência o voto do projeto de criminalização da cristofobia. Lembremos ainda da união da ''bancada religiosa'' com as bancadas ''da bala'' e ''do boi'', duas expressões do grande capital no Brasil.
Mas por que há essa ligação? Por que o grande capital apoia e encontra apoio no fundamentalismo e no obscurantismo religiosos? A razão é relativamente simples de entender: ideologia. A religião, com seu forte apoio emocional, é capaz de legitimar e proteger as instituições que garantem a manutenção dos privilégios do grande capital, como a propriedade privada. É fácil de imaginar um cristão sentindo aversão a comunistas como o que vos escreve quando lhe é ensinado, por toda a vida, que foi criado por um deus onipotente que ama sua criação e que, entretanto, há um grupo de ''hereges materialistas'' que não creem nele e, ao mesmo tempo, defendem o fim de certas instituições -- que por acaso são as mesmas que garantem os privilégios de certa classe dominante. E mais: não iria ele internalizar que essa divindade é a fonte de toda a moral e a justiça e, portanto, generalizar os ''infiéis'' e ''desobedientes dos desígnios de Deus'' num único grupo, a ser combatido? Não é exatamente isso que os conservadores estão fazendo ao conclamar uma batalha contra ''comunistas-gayzistas-feminazis que querem destruir os valores da família tradicional brasileira''?
Como disse Eric Hobsbawm em Era dos Extremos (São Paulo: Cia. das Letras, 1995),
[...] com menos frequência observou-se a considerável ajuda dada após a guerra por pessoas de dentro da Igreja, às vezes em posições importantes, a fugitivos nazistas ou fascistas de vários tipos, inclusive muitos acusados de horripilantes crimes de guerra. O que ligava a Igreja não só a reacionários anacrônicos mas aos fascistas era um ódio comum pelo Iluminismo do século XVIII, pela Revolução Francesa e por tudo o que na sua opinião dela derivava: democracia, liberalismo e, claro, mais marcadamente, o ''comunismo ateu''.
Acrescente-se o que falou Paul A. Baran, em sua Economia Política do Desenvolvimento (São Paulo: Nova Cultural, 1986):
As classes dominantes dos países subdesenvolvidos não poupam energia para aumentar o domínio das superstições religiosas sobre os espíritos das famintas populações desses países. Que importa a tais classes ou aos imperialistas que essas superstições representem grande obstáculo ao progresso? Que importa a eles ou a seus cúmplices ocidentais que o custo da conservação do obscurantismo religioso seja a fome crescente e a multiplicação da morte? (...) A incapacidade do capitalismo de servir como uma estrutura para o progresso econômico e social obriga seus apologistas e políticos a confiar a estabilidade do sistema mais no circo que no pão, mas na arenga ideológica que na razão.
A juventude e os trabalhadores como um todo devem compreender que a ascensão do fundamentalismo e do autoritarismo religiosos caminham juntamente com a busca pela busca da manutenção do status quo, da dependência e da sujeição de nosso povo frente às elites locais e estrangeiras, e que o caminho para o progresso e o bem-estar social está na ruptura com o atual modo de produção e na utilização da ética e da racionalidade (não exatamente distintas, como já falei) como referência para nossas atitudes individuais e coletivas, assim como para a legislação. Creio fortemente que nosso povo não é ignorante ao ponto de sentir-se seduzido pelos discursos desses pretensos ''mensageiros de Deus'' (e concretos mensageiros da burguesia), mas, diante dos tristes acontecimentos recentes (e de um medo muito distante, mas ainda sim existente, de que os LGBTs possam repetir por aqui o papel que desempenharam os judeus no desenrolar do nazismo), penso que seja importante reforçar nosso combate pelos ideais da emancipação humana.
Não às hordas obscuras fascistas! Viva à luz, à razão e à liberdade!
[1] Sobre a relação do nazismo com a Igreja Católica, ver esse vídeo e esse link; sobre a natureza de classe do nazifascismo, ver esse vídeo.
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