quarta-feira, 17 de junho de 2015

O que é ser ateu?

por Bertone Sousa, para seu blog pessoal

Prometeu, de Nicolas-Sébastien Adam.


 Provavelmente nenhum grupo sofre tanta troça e preconceito no Brasil como os ateus. Não, não se trata de um discurso de vitimização, há estatísticas que o comprovam. Mas também é preciso dizer que muitas pessoas que se dizem ateias não têm muita clareza do que isso significa. Dessa incompreensão advém a iniciativa de alguns pela busca de reconhecimento social o que, mesmo em um estado laico, pode ser um erro. O ateísmo nasceu como uma postura negativa: não define uma minoria sociológica, não define um credo, nem mesmo é importante pra definir um indivíduo ou sua posição na sociedade.

 Recentemente, um estudante da UFAC (Universidade Federal do Acre) ganhou notoriedade porque, sendo ateu, queimou uma bíblia em uma manifestação na universidade. Inicialmente animado com a repercussão de seu ato, ele afirmou que não se arrependia e pretendia repeti-lo. Após ler a carta aberta de um padre que chamou a atenção para a importância da tolerância e do respeito à diversidade religiosa, o estudante respondeu dizendo que repensou sua ação e se arrependia dela. Pressionado pela possibilidade de responder judicialmente pelo gesto, ele declinou de outra tentativa de queimar uma bíblia.

 O gesto do estudante de queimar a bíblia traz à superfície um elemento alarmante em nossa sociedade: parte considerável da juventude que se diz ateia não tem referenciais fora de uma denegação pueril da religião e de um conjunto de leituras redutivas e desconexas. Basta ver os fóruns de discussão  na internet onde se reúnem para perceber que a ignorância tomou o lugar de discussões inteligentes e a razão, se é que um dia a cultivaram, foi reduzida a um materialismo cientificista risivelmente prosaico. Exemplos poderiam ser citados à exaustão, mas não vêm ao caso.

 Uma das questões para se entender isso é que essa juventude se beneficia de um ambiente político de ampla liberdade de expressão somado uma cascata inesgotável de informações e publicações com as quais, ou em contato com as quais, não sabe o que fazer, então absorve frases ou pensamentos sem compreender o que quer criticar. Em meu texto Neoateísmo ou a estupidez irreligiosa, chamei a atenção para os leitores de Richard Dawkins que entraram na moda do ateísmo cientificista sem compreenderem historicamente a religião.

 Dawkins esteve no Brasil recentemente. Em uma entrevista à Revista Galileu, ele se sentiu incomodado com  perguntas que não conseguiu responder e, para disfarçar, tentou fugir ao assunto. Um exemplo: o entrevistador lhe pergunta se ele consegue imaginar uma religião que não fosse cega pelo dogma, ao que Dawkins titubeia, demonstra não saber o que significa religião e arremata: “Eu realmente não sei, apenas não tenho interesse por religião. Isso é uma revista de ciência, não vamos falar de ciência?”. A pergunta foi interessante e a resposta tão inesperada quanto ríspida.

 Logo depois o entrevistador lhe pergunta sobre mitos e sua opinião sobre o papel dos mitos no passado e no presente, ao que ele responde: “Nunca entendi muito bem o que é um mito, quer dizer, ele é uma história, e eu suponho que seja uma história com algum significado antropológico. Uma tribo terá histórias tribais sobre a origem das coisas. Estou ciente delas, não acho que sejam muito interessantes sob meu ponto de vista, eu sou um cientista”. É muito curioso que Richard Dawkins, que precisa afirmar diariamente que Deus não existe, não saiba o que é religião ou mito e ache que nada disso tem a ver com ciência. Quando diz “eu sou um cientista”, Dawkins quer fugir de perguntas que expõem suas deficiências intelectuais, como se o que ignora não tivesse relação com a ciência e se esconde sob um título como em uma torre de marfim. Vendo sua fala, é impossível não sentir falta de um Carl Sagan, que conseguia estabelecer pontes com outras áreas do conhecimento fora de sua especialidade e isso refletia em seus vídeos e livros brilhantes e enxutos de dogmatismos.

 No texto sobre neo-ateísmo escrevi que Dawkins não é um intelectual de se jogar fora. Ele publicou bons livros e quando critica as pretensões de cientificidade do criacionismo ou do Design Inteligente, se mostra judicioso. Mas sua abordagem da religião falha por sua falta de conhecimento histórico, como quando disse, em uma dessas conferências no Brasil, que a religião é como um vírus para a mente humana ou ao comparar Deus com o monstro do espaguete voador, dois entes, se é que podemos chamar o monstro do espaguete assim, que não possuem nenhuma relação ou ponto em comum, nem mesmo a não-existência. Não que Deus ou o monstro do espaguete existam como existe esta mesa, este computador ou este lápis e é isso o que escapa a seu pensamento reducionista.

Não há dúvida de que a ciência, através da astrofísica, da genética e da neurociência tem nos ajudado a compreender questões que antes pertenciam ao domínio da metafísica ou da teologia, hoje reduzidas a pó, mas o ateísmo professado por alguns de seus expoentes pode se tornar problemático por uma razão essencial: as ciências naturais tornaram Deus dispensável para explicar a origem da vida e até mesmo do cosmo, assim como a neurociência tem contribuído para compreender os efeitos da meditação e da oração na mente, mas não podem explicar a função social das religiões. Mas há um contraponto que podemos incluir: Foi nos Estados Unidos que o neoateísmo (como é conhecido o movimento de crítica e combate à religião que aproxima cientistas e intelectuais de várias áreas) ganhou força, porque lá, diferentemente do que ocorreu na Europa ocidental, a secularização não implicou um afastamento da religião da esfera pública, ou uma desfiliação religiosa significativa e isso também reflete na área científica, onde pululam concepções pseudo-científicas que buscam aproximar religião de ciência, das quais o Design Inteligente talvez seja o mais notável.

 Enquanto o ateísmo crescia na Europa no século 19, nos Estados Unidos movimentos de despertar religioso combatiam os valores racionalistas oriundos da Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que valorizavam o planejamento e a eficiência econômica, a educação, os direitos individuais, o avanço tecnológico, a urbanização e o aperfeiçoamento moral. Um movimento conhecido como “evangelicalismo” ou “evangelicismo” combateu o deísmo até torná-lo marginal na sociedade e empreendeu um amplo projeto de evangelização do país. Pregadores como Jonathan Edwards, John Wesley (ambos no século 18), Charles Grandison Finney e Dwight Lyman Moody (século 19) se tornaram líderes de movimentos religiosos avivalistas anti-deístas e anti-materialistas com ampla penetração na sociedade norte-americana.

 Essa tensão ganhou notoriedade internacional pelo menos desde 1925, quando John Scopes, um professor de Biologia no Estado do Tennessee foi julgado e condenado por ensinar o evolucionismo em uma escola pública estadual, o que era proibido por lei naquele Estado. Embora o veredito tenha sido revogado depois, o caso Scopes expôs a dificuldade que as autoridades e a sociedade norte-americana tinham com as descobertas da ciência moderna que contrariavam a narrativa da criação no Gênesis. Hoje, quase cem anos depois, o ensino do evolucionismo não é mais proibido nos Estados Unidos, mas ainda há uma forte resistência daquela sociedade de aceitar que o Gênesis não é um relato científico. Esse cenário contribui para a popularidade, naquela sociedade, de excentricidades teológicas como William Lane Craig.

 Isso torna compreensível e em vários aspectos também importante as críticas e ataques que Dawkins, Sam Harris, Daniel Dennett e outros acadêmicos fazem à religião e à pseudo-ciência. Mas também é preciso admitir que o ataque frontal pode produzir resultados opostos ao que desejam, na medida em que a denegação combativa da religião leve a um reforço do sentimento fundamentalista de muitos religiosos. Nesse sentido, o esclarecimento é mais importante do que o ataque e, nesse caso, esclarecer implica começar a fazer as pessoas entenderem a diferença entre mito e ciência.

 E aqui voltamos a Dawkins. Se ele não sabe o que é religião, mito  e dogma e mesmo assim se considera apto a dizer que a religião é como um vírus de computador, além de isso não explicar a religião, não se torna admirável que, sob o mote de um pretenso ateísmo, jovens comecem a queimar bíblias em universidades. Isso não chega a ser pior do que os Grupos de Oração Universitários, que tentam trazer suas igrejas para dentro da universidade e nos dois casos temos a exacerbação do dogmatismo, em campos opostos. Um ateu que queima bíblias não é mais inteligente do que um cristão que acredita na literalidade do Gênesis.

 O ateísmo moderno é filho do Iluminismo do século 18, do anticlericalismo que vicejou na França daquele contexto e se desenvolveu no século seguinte na Europa ocidental na esteira do avanço das ciências da natureza. Embora poucos intelectuais iluministas fossem ateus, como Diderot e D’Holbach, a concepção predominante no movimento foi o deísmo, que aceitava a existência de Deus, a criação e o governo do mundo por ele, mas rejeitava a revelação (por isso o deísmo foi fortemente combatido pelos movimentos avivalistas nos Estados Unidos).  O ateísmo é produto da moderna sociedade industrial e do avanço ciências e da luta por direitos e liberdades em um contexto de consolidação e expansão do sistema econômico capitalista.

 Ainda no século 19, a crítica superior da bíblia, originada na Alemanha, afastou os milagres e intervenções sobrenaturais dos eventos ali narrados para compreender sua historicidade. Foi a partir daí, por exemplo, que nasceu a figura do Jesus histórico, isto é, o Jesus que não nasceu de uma virgem, não ressuscitou e fez milagres, mas existiu historicamente e que cabe entender sua existência e ação como personagem histórico. Hoje sabemos que os autores da bíblia não pretendiam escrever relatos históricos e, como a Ilíada e Odisseia, é um livro fundador da cultura ocidental. Um estudante universitário que compreenda isso, mesmo sendo ateu, saberá que não faz sentido queimar uma bíblia. Mas pra isso ele também precisa entender que religião não é vírus de computador e que Deus e o monstro do Espaguete voador, mesmo que se queira negar a existência de ambos, não são a mesma coisa.

 Não compreendemos mais a religião a partir de alguns sentidos pelos quais eram abordadas até o início do século 20, como ópio do povo (Marx), platonismo para o povo (no caso do cristianismo, Nietzsche) ou neurose universal (Freud). Essas abordagens eram metáforas, não explicações da religião. A diferença é que quando Dawkins fala da religião como vírus, não fala como metáfora, mas literalmente. Se não usasse um discurso tão simplório talvez não tivesse se tornado uma celebridade. Ele é, de longe, o mais midiático do movimento neo-ateu e talvez graças a ele ateus se reúnam em templos aos domingos como uma paródia mambembe das religiões.

 Aí alguns religiosos podem dizer: “Ah, não existem ateus, quando o avião está caindo todos eles chamam por Deus”. Não, não é bem assim. Eu disse no início que o ateísmo não é um credo no sentido que as religiões o são, então é preciso defini-lo: é uma postura diante da vida; ser ateu não é repetir todos os dias que Deus não existe, é viver como se Deus não existisse. O ateu é alguém que encontrou estabilidade em sua vida emocional e social sem precisar de valores religiosos (uma postura que a maior parte da sociedade não pode adquirir). Isso só pode ser resultado de muitos anos de estudos e reflexões e da aquisição de uma cultura histórica e científica a partir da qual o indivíduo adota referenciais de vida e de conduta que prescindem da experiência e dos dogmas religiosos. Isso não torna o ateu necessariamente mais inteligente, mas deve torná-lo apto a entender que não é viável e talvez nem mesmo desejável que as crenças religiosas desapareçam.

 A existência humana é frágil, efêmera e caótica; as doenças e a morte são traumáticas e a vida é carente de sentidos. A religião atribui significados a esse estado de coisas, explica, a partir do mito, o sofrimento e a morte elaborando compensadores para ambos e confere estabilidade emocional e social. Apelar à história para argumentar que as religiões podem se tornar perseguidoras e assassinas não anula o seu papel como agências produtoras de sentidos e de cultura. Somente em condições econômicas, políticas e sociais muito específicas o ateísmo pode ganhar terreno. O que pode se tornar um problema é que, para muitas pessoas, o ateísmo está relacionado à ausência de moralidade e de ética, como no pensamento de Dostoievski de que “se Deus não existe, então tudo é permitido”. Essa visão parte da incapacidade de dissociação de moralidade e ética de religião. Durante milênios, as religiões foram as fontes inspiradoras dos valores morais e somente na modernidade, especialmente no Ocidente, essa relação se rompeu.

 Se existe algo para o que os ateus devem atentar em nossa época é para a importância de manter a religião afastada do controle do poder político, assim como vigiar pelas liberdades individuais e contra a intervenção de princípios religiosos na legislação. Ser ateu é ser, acima de tudo, secularista – o ateísmo não pode vicejar em um ambiente onde a religião tenha o controle do Estado, assim como a própria liberdade de consciência fica seriamente ameaçada nesse contexto.. Isso não significa anular a voz dos religiosos na política e mesmo que queiramos pensar mudanças na legislação que envolvem questões morais, não podemos deixar de dialogar com as religiões.

 O ateísmo contemporâneo somente pode ser eficaz se se afirmar como secularista, enfatizando as liberdades individuais, a tolerância e o esclarecimento (pautas que não são exclusivamente ateístas) em lugar dos reducionismos e de uma militância que por vezes pode atrair mais rejeição do que resultados positivos. Na área da ciência, cabe a reafirmação do ateísmo metodológico, isto é, o reconhecimento de que a ciência não prova Deus e é indiferente a crenças e valores religiosos. O ateísmo metodológico postula que um pesquisador não deve incluir a ação de Deus ou entes sobrenaturais na explicação de fenômenos naturais ou mesmo históricos. Esse princípio foi usado, por exemplo, por Bart D. Ehrman no debate com William Lane Craig sobre o tema da existência ou não de evidências da ressurreição de Jesus Cristo (clique aqui para assistir) e é amplamente aceito no meio científico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário