segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Política macroeconômica e estratégia de desenvolvimento: uma visão crítica

por Franklin Serrano*




 Para muitos, o regime de política macroeconômica importa apenas para a discussão da estabilidade (ou instabilidade) de curto prazo, o que só afeta de forma muito indireta e mediada o desenvolvimento da economia no longo prazo. No caso do Brasil, no período mais recente, especialmente a partir de 1999, o entendimento da relação entre regime de políticas macroeconômicas e desenvolvimento tem sido fortemente prejudicado pelo fato de que, tanto os defensores quanto a grande maioria dos críticos do regime de política macroeconômica adotado no país, compartilham de uma mesma visão idealizada de seu funcionamento. Este quase consenso inclui os dois pilares principais do regime de política macroeconômica atual: o sistema de metas de inflação e a política fiscal de grandes superávits primários. 

 A grande maioria tanto dos defensores quanto dos críticos do sistema de metas de inflação brasileiro acredita que ele é operado da forma descrita pelo modelo do “novo consenso” ou “nova síntese neoclássica”. Ao mesmo tempo, a imensa maioria dos economistas no Brasil, inclusive dos que se dizem desenvolvimentistas (ou “novos” desenvolvimentistas), apóia a política fiscal de manutenção de vultosos superávits primários, com objetivo de ajudar a estabilizar (ou diminuir) a dívida líquida do setor público, que é considerada um indicador do grau de solvência do Estado brasileiro. 

 Neste artigo, gostaria primeiro de expor minha visão sobre como funciona de fato o sistema de metas de inflação, depois fazer algumas observações críticas sobre a política fiscal e finalmente levantar alguns dilemas de política macroeconômica que surgirão, numa eventual tentativa de criar uma nova estratégia nacional de desenvolvimento.

  Comecemos pela discussão sobre o sistema de metas de inflação. A visão consensual da operação do regime de metas de inflação, aceita inclusive pela maior parte de seus críticos, pode ser sintetizada em três proposições: a) o núcleo ou tendência da inflação é resultado de choques de demanda; b) a taxa de juros é operada com o objetivo de controlar a demanda agregada; e, c) alguma variação na taxa de câmbio ocorre como um efeito colateral das mudanças na taxa de juros.

 Apesar de sua ampla aceitação, estas três proposições básicas, a rigor, só se sustentam se quatro pressupostos fundamentais do modelo teórico do “novo consenso” mencionado acima forem válidos. Estes pressupostos são: i) que o hiato do produto (e/ou do emprego) afeta a inflação de forma sistemática; ii) que os choques inflacionários têm persistência total, isto é, os coeficientes de inércia e de expectativas inflacionárias, somados, se igualam à unidade; iii) que o produto potencial é independente da evolução da demanda; e, iv) que os choques de custo são aleatórios, causados, por exemplo, por safras agrícolas abundantes ou excepcionalmente fracas. 

 Somente se estes quatro pressupostos forem válidos, a visão consensual faz sentido. Os pressupostos 2 e 3 implicam que o Banco Central deve se preocupar exclusivamente com a meta de inflação, pois a política monetária é neutra e a longo prazo não afeta nem o produto, nem a capacidade produtiva da economia. Os demais pressupostos garantem a possibilidade de controlar a inflação, controlando a evolução da demanda agregada (pressuposto 1), e que não se pode (nem se deve) fazer muito para controlar a inflação de custos (pressuposto 4). O pequeno problema é que, no caso da economia brasileira no período de 1999, até agora nenhum destes quatro pressupostos se sustenta. 

 Em primeiro lugar, não se observa uma relação empírica sistemática entre o hiato do produto e a aceleração da inflação (a rigor, nem com o nível da inflação). As estimativas de diversos estudos econométricos mostram a não significância do hiato do produto na chamada Curva de Phillips. Em segundo lugar, no caso da economia brasileira recente, os choques inflacionários não têm persistência total sobre a inflação. Estimativas para a persistência inflacionária no Brasil mostram que esta não pode ser considerada completa, isto é, a soma dos coeficientes da inflação passada (inércia) e futura (medida pelas expectativas inflacionárias) na curva de Phillips é sempre inferior à unidade. Existe uma persistência na inflação, mas esta é somente parcial (em torno de 0,7 no máximo). 

 A terceira hipótese descrita acima, de que produto potencial é independente do produto corrente, é totalmente refutada pela literatura moderna de séries temporais, tanto no Brasil quanto nos demais países. As evidências de existência estatística de uma raiz unitária (e, portanto, de uma tendência estocástica) no PIB mostram que a tendência do produto potencial é fortemente correlacionada com a evolução do produto corrente (a chamada histerese). A presença de histerese significa que os mesmos fatores que causam os ciclos causam a tendência de longo prazo. Como a maioria dos economistas aceita que as flutuações do produto no curto prazo são determinadas por mudanças na demanda agregada, estas evidências de histerese são incompatíveis com o modelo do novo consenso, que supõe que o produto potencial depende apenas de fatores ligados à oferta. A histerese aponta para o fato de que o crescimento da própria capacidade produtiva da economia no longo prazo depende da expansão da demanda efetiva. E o mecanismo de transmissão mais plausível, que explica por que a tendência do crescimento da demanda afeta o produto potencial, vem da constatação (também corroborada por diversos estudos empíricos) que o investimento que cria capacidade para o setor privado é basicamente induzido pela evolução da demanda final de consumo, investimento residencial, exportações e gastos do governo.

 É importante entendermos o efeito combinado destas evidências sobre os pressupostos 2 e 3 para a questão do dilema entre inflação e crescimento. Se os três pressupostos acima fossem válidos e valesse o modelo do novo consenso, um choque de demanda temporário levaria a um aumento no patamar da inflação e um choque de demanda permanente levaria direto à hiperinflação (a curva de Phillips seria aceleracionista). 

 Se além da persistência incompleta levássemos em conta o efeito histerese, veríamos que mesmo um choque de demanda permanente produziria apenas um efeito temporário sobre o nível da inflação (e um efeito permanente sobre o nível de preços). A inflação inicial se dissiparia na medida em que o hiato de produto fosse se fechando endogenamente a média que maturasse o efeito capacidade dos investimentos induzidos pelo maior crescimento da demanda.

 Finalmente, o quarto dos pressupostos da interpretação consensual do sistema de metas, a ideia de que os choques de oferta são aleatórios, definitivamente não se aplica ao Brasil, por diversas razões. Em primeiro lugar, temos os preços monitorados que crescem bem acima dos preços livres de 1999 a 2006. A maior parte dos preços monitorados é atrelada contratualmente ao IGP-M que, em geral, cresceu bem mais do que o IPCA, o que provavelmente implicou numa tendência ao aumento das margens de lucro das empresas destes setores, ao longo do período como um todo. Além disso, os preços internacionais do petróleo crescem desde 1999 e os das demais commodities, desde 2002, impondo crescimento semelhante aos preços dos bens importados (e pressionando para cima os preços no mercado interno dos bens exportáveis). Finalmente, o salário mínimo nominal também tem evoluído continuamente bem acima do IPCA, devido à política do governo de recomposição do seu poder de compra, que está retornando aos níveis dos anos 1960.

 Como nenhum dos quatro pressupostos se sustenta, é evidente que o núcleo da inflação brasileira não é de demanda e o sistema de metas no Brasil não pode funcionar da maneira em que é descrito, consensualmente. Mas ainda assim, o sistema bem ou mal funciona. A inflação crônica não retornou a partir de 1999 e a inflação ficou contida, dentro da faixa estipulada pelas metas em 1999, 2000, 2005, 2006 e 2007 (fi cando acima da meta em 2001, 2002, 2003 e 2004). Então, fica a questão: como é possível controlar a inflação a partir da taxa de juros, numa economia onde não há evidência de que o controle da demanda agregada seja capaz de conter diretamente o aumento de preços ou salários nominais e onde há um conjunto de pressões inflacionárias pelo lado dos custos?

 A resposta é que, na prática, o sistema funciona da seguinte maneira: aumentos da taxa de juros valorizam a taxa de câmbio nominal; as mudanças na taxa de câmbio, por sua vez, com alguma defasagem, têm um forte impacto de custos, diretos e indiretos, sobre todos os preços da economia, inclusive os “livres”. Desde meados de 1999 até agora, apesar da enorme mudança nas condições de comércio, liquidez e taxas de juros da economia mundial, da grande virada da conta corrente brasileira, da mudança de governo e dos movimentos especulativos habituais, se observa, ainda assim, uma forte relação entre o diferencial de juros interno e externo (corrigido pelo risco país) e o nível da taxa de câmbio nominal.

 É a valorização do câmbio, resultante do elevado diferencial de juros, que torna possível a transformação de grandes choques de oferta negativos em dólares em choques de oferta positivos em real. Outro fator de controle da inflação de custos tem sido a política do governo de não repassar integralmente para os preços internos da gasolina e, especialmente, do óleo diesel, as brutais variações externas do preço do petróleo (o que ficou claro quando recentemente o governo reduziu impostos indiretos para compensar o reajuste parcial do preço interno).

 A maioria dos analistas acredita, seguindo a caracterização consensual descrita acima, que o efeito dos juros altos sobre a demanda agregada é o que impede que os choques de custo se transformem em aumentos da taxa de inflação. No entanto, o fato de que não se observa relação sistemática entre o hiato do produto (ou emprego) e a inflação mostra que não é isso o que ocorre. A política de juros elevados, ao valorizar a taxa nominal de câmbio, gera diretamente um choque positivo de custos em moeda local. Assim, dada a ausência do canal de transmissão tradicional da demanda para a inflação e a força do canal de transmissão dos juros para o câmbio e do câmbio para os preços, o efeito dos juros sobre a demanda agregada, na realidade, se torna apenas um efeito colateral da política monetária.

 Note que, mesmo quando a economia sofreu choques cambiais adversos, oriundos de problemas nas contas externas, como em 2002, o papel principal dos juros elevados não foi propriamente conter a demanda para evitar o repasse aos preços da desvalorização inicial, mas sim parar e depois reverter a desvalorização cambial nominal. Não é por outro motivo que, como nos lembra Nelson Barbosa, em todos os anos que a inflação ficou dentro da faixa estipulada como meta (fora o ano de 1999, que marca a transição para o sistema) o câmbio nominal se valorizou. [1] Nos anos mais recentes, o grande diferencial de juros e a contínua valorização nominal do real manteve a inflação dentro da meta, apesar do forte crescimento dos preços internacionais das commodities e do petróleo em dólares.

 A outra característica fundamental do sistema é que, embora o núcleo da inflação brasileira recente seja de custos, não tem havido inflação puxada pelos salários nominais médios (a despeito do grande crescimento nominal do salário mínimo). Em geral, os custos unitários do trabalho em termos nominais só têm crescido menos e depois do aumento da inflação, independentemente do nível de atividade da economia. No fundo, é a ausência de indexação salarial e a baixa resistência salarial real que explicam tanto a pouca persistência dos choques inflacionários, quanto o fato da inflação crônica não retornar, mesmo quando ocorreram grandes desvalorizações cambiais.

 Vemos então que operação concreta do sistema de metas inflacionárias no Brasil tem as seguintes características: i) o núcleo da inflação é de custos; ii) as variações na taxa de juros afetam a taxa de câmbio; iii) as variações no câmbio afetam os custos e, posteriormente, os preços de todos os setores da economia. O primeiro impacto se dá nos preços dos transacionáveis e dos monitorados (estes via indexação ao IGP-M) e, posteriormente, o impacto dos preços por atacado afeta os custos e os índices de preços “livres” e dos não transacionáveis; iv) o efeito dos juros na demanda agregada é, afinal, apenas um efeito colateral da política monetária; e, v) a âncora do sistema é a baixa resistência dos salários reais médios.



 Somente a partir desta caracterização mais realista de como o sistema funciona poderemos discutir adequadamente os dilemas que a política macroeconômica impõe ao desenvolvimento econômico. 

 Passemos agora à discussão da política fiscal. Vamos discutir brevemente três aspectos onde cremos que o quase consenso que existe no Brasil merece ser questionado: a) a relação entre taxa de juros e dívida pública; b) o problema da relação entre o investimento público e o próprio conceito de dívida líquida do setor público; e, c) a questão dos gastos correntes e da carga tributária. 

 Em primeiro lugar, da discussão acima, que mostra que a taxa de juros no Brasil é determinada pela política monetária e manipulada ao nível que for necessário para o sistema de metas de inflação funcionar, segue-se que a evolução da dívida pública é causada pela evolução da taxa de juros real (e da taxa de câmbio). Os substanciais superávits primários que se vêm obtendo no Brasil, há dez anos, não têm sido sufi cientes para determinar a dinâmica da razão dívida pública sobre o PIB, que tem crescido ou diminuído na direção dada pela política monetária que define a dinâmica da taxa de juros e do câmbio.

 Apesar da forte evidência favorável de que as variações maiores da dívida pública são causadas pelas variações da taxa de juros, a maioria dos economistas no Brasil acredita que de alguma forma é a razão dívida pública/PIB que causa as taxas de juros reais elevadas. O argumento, às vezes chamado de “dominância fiscal”, seria de que o spread entre a taxa de juros interna e externa (o chamado “risco-país”) tenderia a subir quando a dívida pública estivesse crescendo, pois os credores internacionais do país passariam a temer um calote. No entanto, é muito difícil entender porque o crescimento da dívida interna, que é paga em moeda nacional (e, portanto, jamais o governo fi cará realmente sem dinheiro para pagá-la), levaria a uma maior probabilidade de calote. Mais estranha ainda é a ideia de que nossos credores externos se preocupariam com o improvável e desnecessário calote interno, em vez de um possível calote da dívida externa, ou com uma súbita desvalorização cambial, se forem detentores de títulos em moeda doméstica, que são os fatores que deveriam ser motivo de preocupação destes agentes, se eles fossem minimamente racionais. Além da implausibilidade teórica, há também substancial evidência que o chamado risco-país é em boa parte exógeno e segue as flutuações dos mercados financeiros internacionais (alguns estudos mostram que metade da flutuação do risco-país é comum a quase todos os países “emergentes”), e a parte idiossincrática dele tem a ver, evidentemente, com as condições de solvência e liquidez das contas externas e não das contas públicas.  



 Mas o problema mais grave parece estar no próprio conceito de dívida líquida do setor público, que é utilizado no Brasil. O “setor público” é definido de forma a englobar não apenas o governo, propriamente dito, mas inclui também todas as empresas estatais menos os bancos públicos. E o conceito de “dívida líquida” por algum motivo não considera que, em geral, o investimento em capital fixo, seja do governo seja das estatais gere um ativo. É o uso deste conceito para fazer política fiscal (aceito acriticamente por todos no Brasil, com a exceção do professor Dércio Munhoz) que cria fortes obstáculos ao crescimento do investimento público. Na Grã-Bretanha, se usa a chamada “regra de ouro”, onde se tenta manter um equilíbrio ao longo do ciclo (mas não a cada instante) entre gastos públicos correntes e receita tributária e, ao mesmo tempo, se permite o financiamento via aumento da dívida pública de todos os gastos do governo em capital fixo. Mesmo nos países da zona do Euro que se submeteram às regras do Acordo de Maastricht, os déficits correntes podem chegar a 3% do PIB, que não é um número muito diferente da média da taxa de investimento público nestes países.

 No Brasil, a muito custo, se retiraram parte dos investimentos da Petrobrás e, mais recentemente, com o PAC, foi permitido que até 0,5% do PIB de investimento público seja descontado da meta de superávit (que, aliás, já foi aumentada de novo). Porém, ninguém questiona a falta de sentido do nosso conceito de “dívida líquida do setor público”, em si. Como pode uma dívida que não desconta a contrapartida de ativos reais ser “líquida”?

 Além disso, a decisão de excluir os bancos públicos do setor público gera toda sorte de distorções. Por que se o BNDES empresta dinheiro para uma prefeitura fazer obras de saneamento (ou para a Eletrobrás comprar uma turbina) a dívida líquida do setor público aumenta? Neste caso, por exemplo, não há transferência de recursos para o setor privado nem aumento algum na dívida mobiliária. Até hoje, apesar da crescente constatação de que será impossível uma retomada do desenvolvimento, sem uma expansão vigorosa do investimento público em infra-estrutura econômica e social, infelizmente ninguém parece querer questionar este peculiar conceito de dívida líquida do setor público. 

 O terceiro ponto onde há quase um consenso total é o de que a carga tributária no Brasil é alta demais e que os gastos correntes do governo estão crescendo, a taxas insustentáveis. O problema aqui é que a carga tributária, que é relativamente alta (e terrivelmente regressiva), é a carga tributária bruta, sem descontarmos as transferências do governo ao setor privado. Mas como o governo brasileiro transfere muitos recursos, tanto aos mais pobres, através da Previdência Social e do programa Bolsa Família, quanto também para os mais ricos, através do pagamento de juros da dívida pública, a carga tributária líquida no Brasil é razoavelmente baixa em termos internacionais (de acordo com Carlos Pinkusfeld Bastos, em 2004, os dados eram: 12,7% para o Brasil; 15,1%, no México; 21,3%, na Espanha; 20,7%, na Irlanda; e 14,25, na Polônia, por exemplo).

 O mesmo tipo de confusão (com freqüência proposital) aparece na discussão dos gastos correntes. É pratica comum, no Brasil, inclusive entre os desenvolvimentistas, somar-se os gastos do governo propriamente dito com as transferências não-financeiras do governo e chamar isso de “gastos correntes”. A seguir, aponta-se que estes gastos assim calculados têm crescido mais que o PIB e, a partir daí, se define que são insustentáveis. Mas os gastos do governo propriamente dito em consumo e investimento não têm, em geral, crescido a taxas maiores que o PIB, no conjunto dos últimos anos. O que tem ocorrido é que, de fato, as transferências do governo têm crescido mais que o produto, em boa parte por conta da bem sucedida política de valorização do salário mínimo. Mas a arrecadação total também tem crescido tanto, que o superávit primário tem sido mantido e recentemente se expandiu. As transferências do governo configuram uma redistribuição de renda para os muito pobres e muito ricos (juros). Mas não se configura uma crescente pressão do gasto público, propriamente dito. 

 A partir deste conjunto de esclarecimentos e observações críticas podemos pensar as dificuldades reais que enfrentaria uma tentativa mais séria de retomar o desenvolvimento. 

 É claro que o regime atual de “juro alto e câmbio baixo” tem grandes custos. Em termos fiscais, aumenta a carga de juros da dívida pública. Em termos distributivos, os juros reais elevados estabelecem um alto custo de oportunidade para o capital, que eleva o piso aceitável das margens de lucros das empresas e concentra a distribuição funcional da renda. Os juros reais elevados atrapalham o crescimento do crédito para o consumo e para a construção civil e, a partir daí, desestimulam o investimento produtivo induzido e o crescimento do próprio produto potencial. O câmbio real cada vez mais valorizado desprotege a indústria local contra as importações, diminuindo sua competitividade, e atrapalha as exportações de produtos industriais mais sofisticados, solidificando uma inserção externa de pouco dinamismo tecnológico, baseada apenas em nossas vantagens absolutas em alguns recursos naturais. 

 Além disso, a tentativa de acelerar o crescimento mantendo em operação o sistema “juro alto câmbio baixo” leva a uma explosão das importações, que cria uma tendência à deterioração progressiva das contas externas, gerando déficits em conta corrente que podem no futuro significar o retorno da restrição externa ao crescimento.

 Por vários destes motivos, é crescente o número de críticos do regime que propõem a transição para um regime de política econômica de “juro baixo e câmbio alto”. O problema é que uma vez que nos demos conta de como o sistema de metas funciona, realmente, se o diferencial de juros for reduzido e o câmbio substancialmente desvalorizado surgem, então, algumas questões complicadas.

 Em primeiro lugar, como manter a inflação sob controle? Recentemente, as taxas de crescimento dos preços internacionais dos alimentos e do petróleo têm sido bem mais elevadas do que a meta de inflação brasileira. Se não for usado o instrumento da valorização cambial, o que se deve fazer?

 Alguns economistas têm sugerido que o Banco Central use controles de crédito de diversos tipos para a demanda agregada, sem ter que elevar a taxa básica de juros (evitando assim a valorização do câmbio). Outros sugeriram (já conseguiram) a ampliação adicional dos já elevados superávits primários fiscais, que diminuiriam o crescimento da demanda agregada, sem a necessidade de aumentar os juros (novamente evitando a valorização do câmbio).

 O problema é que estes críticos não levam em conta que a economia está sofrendo um choque de oferta externo e não um choque de demanda interno. A economia não está superaquecida e o choque externo do aumento do preço dos alimentos e de produtos comercializáveis que usam muito petróleo como insumo (já que o repasse aos preços internos do petróleo tem sido pequeno) diminui por si só os salários reais e desacelera o consumo. Além disso, e mais importante, como vimos acima, não há evidência de que as flutuações no hiato do produto (ou emprego) no Brasil afetem a inflação, nem o grau de repasse de choques de custos. Estas medidas de controle de demanda só teriam o efeito colateral de reduzir o crescimento, viés já existente na política de juros altos, e não afetariam a taxa de inflação, exatamente por não valorizar o câmbio.

 Não é por outro motivo que logo após o governo ampliar a meta do superávit primário para 2008, supostamente para controlar o excesso de demanda, o Banco Central mesmo assim elevou fortemente a taxa de juros, e o câmbio continuou a se valorizar. Neste caso, talvez esteja na hora de começar a se pensar em desindexar de vez os preços monitorados. Além disso, seria interesse seguir diversos outros países que introduziram subsídios aos preços dos alimentos (o que, na prática, já é feito no Brasil para os combustíveis), para evitar que o choque de preços reduza o salário real e gere pressões inflacionárias de custos.

 Por sua vez, se mais adiante houver uma grande desvalorização cambial e a inflação aumentar pouco, e temporariamente, como fi carão os salários reais? É importante notar que, devido à indexação dos preços monitorados ao IGP-M, que é muito afetado pela taxa de câmbio, os salários reais médios serão fortemente reduzidos por uma desvalorização cambial. Curiosamente não tenho visto nenhuma preocupação com este assunto no debate recente, nem entre os desenvolvimentistas.

 Estes difíceis dilemas entre inflação, taxa de câmbio e salários reais, típicos de uma economia em desenvolvimento, podem ser amenizados se houver uma grande expansão do investimento público em infra-estrutura e tecnologia (muito superior ao modesto PAC), que melhore sistematicamente a produtividade, tanto dos setores industriais mais expostos à concorrência externa, quanto a dos setores que produzem direta e indiretamente a cesta de bens e serviços relevante para os salários reais. Isto, porém, só será possível na escala necessária se e quando houver vontade política de excluir todos os investimento públicos das metas de superávit primário. 

 

 


[1] No caso de 1999 o sistema funcionou por poucos meses e a faixa da meta foi ajustada para cima. Note que, em 2003, o câmbio nominal também se valorizou, mas havia se desvalorizado tanto em 2002 que, mesmo assim, a meta não foi atingida, por conta das defasagens entre a flutuação câmbio e a inflação.

 



 

*Economista, professor adjunto do Instituto de Economia, da UFRJ. Graduado pela PUC-RJ, Mestrado no IE-UFRJ e Mestrado e Doutorado na Universidade de Cambridge, Inglaterra.  Deu aulas na CEPAL (Chile) e na Universidade Demontfort, em Leicester, Inglaterra.


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