quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Marx e a economia política clássica

O texto abaixo corresponde a uma seção -- intitulada ''Ricardo e Marx'' -- do capítulo 2 de ''Tempo, trabalho e dominação social'' (São Paulo: Boitempo, 2014), de Moishe Postone. Espero que gostem da leitura!




 Em Political Economy and Capitalism, Maurice Dobb oferece uma definição da lei de valor semelhante à dada por [Paul Marlor] Sweezy: 

A lei de valor era um princípio de relações de troca entre mercadorias, inclusive a força de trabalho. Era simultaneamente um determinante do modo em que o trabalho era alocado entre diferentes indústrias na divisão social geral do trabalho e da distribuição de produtos entre as classes. [1]

 Ao interpretar valor como categoria de mercado, Dobb caracteriza o capitalismo essencialmente como um sistema de regulação social não consciente. A lei do valor, de acordo com Dobb, indica que “um sistema de produção e troca de mercadorias pode operar por si só, sem regulação coletiva nem propósito único” [2] . Ele descreve a operação desse modo “automático” de distribuição com referência às teorias da economia política clássica [3]: a lei de valor mostra que “essa disposição da força de trabalho social não era arbitrária, mas seguia uma lei determinada de custo em virtude da ‘mão invisível’ de forças competitivas de Adam Smith” [4]. A formulação de Dobb deixa explícito o que está implícito nas interpretações da lei do valor de Marx — o fato de essa lei ser basicamente semelhante à “mão invisível” de Adam Smith. A questão é, entretanto, se as duas podem realmente ser identificadas. Dito de forma mais geral: qual é a diferença entre a economia política clássica e a crítica de Marx da economia política? 

 Os economistas clássicos, de acordo com Dobb, “ao demonstrar as leis do laissez-faire ofereceram uma crítica das ordens anteriores da sociedade; mas não ofereceram uma crítica histórica do próprio capitalismo” [5]. Esta última tarefa foi a contribuição de Marx [6]. Tal como está, há pouco a objetar na declaração de Dobb. Entretanto, é necessário especificar o que Dobb quer dizer com a crítica social em geral e a crítica do capitalismo em particular.

 De acordo com Dobb, o elemento crítico fundamental da economia política era indicar que a regulação da sociedade pelo Estado, apesar de considerada essencial sob o mercantilismo, era desnecessária [7]. Ademais, ao mostrar que as relações que controlam o comportamento dos valores de troca são relações entre pessoas na condição de produtores, a economia tornou-se primariamente uma teoria da produção [8]. Ela implicava que uma classe consumidora, que não tinha nenhuma relação ativa com a produção de mercadorias, não desempenhava papel econômico positivo na sociedade [28/9]. Assim, os ricardianos, por exemplo, podiam usar a teoria para atacar os interesses vinculados à terra pois, na visão deles, os únicos fatores ativos na produção são o trabalho e o capital - mas não a renda agrária [10]. Em outras palavras, a noção de Dobb de crítica social é uma crítica de agrupamentos sociais não produtivos do ponto de vista da produtividade. 

 A crítica histórica do capitalismo de Marx, de acordo com Dobb, envolveu a tomada de uma teoria clássica do valor e, refinando-a, aplicou contra a burguesia. Marx, afirma, foi além dos ricardianos ao mostrar que o lucro não podia ser explicado com referência a nenhuma propriedade intrínseca do capital, e que somente o trabalho era produtivo [11]. No centro do argumento de Marx está o conceito de mais-valor. Ele partiu de uma análise da estrutura de classes da sociedade capitalista - em que os membros de uma classe numerosa não têm propriedade e são forçados a vender sua força de trabalho para sobreviver — e em seguida mostrou que o valor da força de trabalho como mercadoria (a quantidade necessária para sua reprodução) é menor que o valor produzido pelo trabalho em ação [12]. A diferença entre os dois constitui o mais-valor apropriado pelos capitalistas.

 Ao localizar a diferença entre a análise de Marx e economia política clássica na teoria do mais-valor, Dobb admite que as duas têm em comum teorias substancialmente idênticas do valor e da lei do valor. Assim, ele afirma que Marx “tomou posse” da teoria de valor da economia política [32/13] e a desenvolveu mostrando que o lucro é função apenas do trabalho [14]. Consequentemente, “a diferença essencial entre Marx e a economia política clássica estava [...] na teoria do mais-valor” [15]. De acordo com essa interpretação muito comum, “a teoria de valor de Marx é uma versão mais refinada e consistente da teoria de valor do trabalho de Ricardo” [16]. Portanto, sua lei de valor tem também uma função semelhante - explicar a operação do modo laissez-faire de distribuição em termos do trabalho. Entretanto, o próprio Dobb mostra que embora a categoria de valor e a lei do valor desenvolvida pela economia política clássica ofereçam uma crítica das ordens anteriores da sociedade, elas não oferecem sozinhas a base de uma crítica histórica do capitalismo [36/17]. Então, a implicação dessa posição é que a crítica de Marx do capitalismo ainda não é expressa pelas categorias com que ele começou sua crítica da economia política — categorias como mercadoria, trabalho abstrato e valor são desenvolvidas no nível lógico inicial da sua análise [18]. Pelo contrário, esse nível da sua análise é implicitamente tomado como prefácio de uma crítica; presumivelmente, ele apenas prepara o terreno para a “crítica real”, que começa pela introdução da categoria mais-valor [19].

 A questão de se as categorias iniciais da análise marxiana expressam uma crítica do capitalismo está relacionada à questão de se elas fundamentarem teoricamente a característica dinâmica histórica daquela sociedade [20]. De acordo com Oskar Lange, por exemplo, a superioridade real da economia marxiana está “no campo da explicação e antecipação de um processo de evolução econômica” [21]. Ainda assim, partindo de uma interpretação da lei de valor semelhante a de Dobb e Sweezy, Lange argumenta que “o significado econômico da teoria do valor-trabalho [...] nada mais é que uma teoria estática do equilíbrio econômico” [22]. Como tal, ela só é realmente aplicável à economia de trocas pré-capitalista de pequenos produtores independentes e não é capaz de explicar o desenvolvimento capitalista [23]. A base real da análise de Marx sobre a dinâmica do capitalismo, de acordo com Lange, é um dado institucional: a divisão da população em uma classe que possui os meios de produção, e uma classe que só possui a sua força de trabalho [24]. E por essa razão que o lucro capitalista só pode existir numa economia progressista [25]. O progresso técnico resulta das necessidades dos capitalistas de evitar que os salários cresçam a ponto de engolir os lucros [45/26]. Em outras palavras, partindo da interpretação comum da teoria do valor de Marx como essencialmente parecida com a da economia política clássica, Lange argumenta que existe uma lacuna entre os “conceitos econômicos específicos” estáticos usados por Marx e sua “especificação definida da estrutura em que se desenvolve o processo econômico na sociedade capitalista” [27]. Somente esta última é capaz de explicar a dinâmica histórica da formação social. A lei do valor, de acordo com Lange, é uma teoria de equilíbrio; como tal, ela nada tem a ver com a dinâmica de desenvolvimento do capitalismo. 

 Vimos que, se a teoria marxiana de valor for basicamente a mesma da economia política clássica, ela não fornece diretamente, nem pode fornecer, a base para uma crítica histórica do capitalismo nem para uma explicação do seu caráter dinâmico. (Então, por implicação, a minha reinterpretação deve mostrar que as categorias marxianas básicas desenvolvidas no nível lógico inicial da sua análise são de fato críticas do capitalismo e implicam uma dinâmica histórica imanente.) 

 De acordo com as interpretações resumidas até agora, a teoria de Marx do valor-trabalho desmistifica (ou ''desfetichiza'') a sociedade capitalista revelando ser o trabalho a verdadeira fonte de toda riqueza social. Essa riqueza é distribuída “automaticamente” pelo mercado e é apropriada pela classe capitalista de maneira não aberta. O significado essencial da crítica de Marx é, portanto, revelar sob a aparência de troca de equivalentes a existência da exploração de classe. Considera-se que o mercado e a propriedade privada dos meios de produção são as relações capitalistas de produção essenciais, expressas pelas categorias do valor e mais-valor. A dominação social é tratada como função da dominação de classe que, por sua vez, está enraizada na “propriedade privada na terra e no capital” [28]. No âmbito dessa estrutura geral, as categorias do valor e mais-valor expressam como o trabalho e seus produtos são distribuídos numa sociedade de classe baseada no mercado. Mas eles não são interpretados como categorias de formas particulares de riqueza e trabalho. 

 Qual é a base dessa crítica do modo burguês de distribuição e apropriação? Nas palavras de Dobb, ela é uma “teoria da produção” [29]. Como já vimos, Dobb considera ser essa a teoria que, ao identificar as classes que verdadeiramente contribuem produtivamente para a sociedade econômica, oferece uma base para colocar em questão o papel das classes não produtivas. A economia política clássica, pelo menos na forma ricardiana, mostrou que a classe dos grandes proprietários de terras não era produtiva; Marx, ao desenvolver a teoria do mais-valor, fez o mesmo com a burguesia. 

 Deve-se notar, e isso é crucial, que essa posição implica que o caráter da crítica de Marx sobre o capitalismo é basicamente idêntico ao da crítica burguesa sobre as ordens anteriores da sociedade. Nos dois casos, trata-se de uma crítica das relações sociais sob o ponto de vista do trabalho. Mas, se o trabalho é o ponto de vista da crítica, ele não é, nem pode ser, seu objeto. O que Dobb chama de “teoria da produção” gera uma crítica não da produção, mas do modo de distribuição, e o faz baseado numa análise da “verdadeira” fonte produtiva da riqueza, o trabalho.

 Nesse ponto, pode-se perguntar se a crítica marxiana é fundamentalmente semelhante em estrutura à economia política clássica. Como já vimos, esse entendimento pressupõe que a teoria marxiana de valor é idêntica à da economia política; portanto, sua crítica do capitalismo ainda não é expressa pelo nível lógico inicial da sua análise. Vista assim, a crítica de Marx começa mais tarde na exposição da sua teoria em O capital, a saber, na distinção que faz entre as categorias de trabalho e força de trabalho e, por associação, no seu argumento de que o trabalho é a única fonte de mais-valor. Em outras palavras, considera-se que sua crítica se interessa primariamente em demonstrar que a exploração é estruturalmente intrínseca ao capitalismo. O pressuposto de que a categoria de valor de Marx é basicamente a mesma de Ricardo indica que suas concepções do trabalho que constitui valor devem também ser basicamente idênticas. A ideia de que o trabalho é a fonte da riqueza e o ponto de vista de uma crítica social é, como já observado, típica da crítica social burguesa e tem origem nos textos de John Locke e encontrou sua expressão mais consistente na economia política de Ricardo. A leitura tradicional de Marx — que interpreta suas categorias como as da distribuição (o mercado e a propriedade privada) e identifica as forças de produção no capitalismo com o processo (industrial) de produção - depende, em última análise, da identificação da noção de trabalho como fonte de valor de Ricardo, com a de Marx.

 Mas essa identificação é enganosa. A diferença essencial entre a crítica de Marx da economia política e a economia política clássica é exatamente o tratamento do trabalho. 

 É verdade que, ao examinar a análise de Ricardo, Marx o elogia assim:

A base, o ponto de partida da fisiologia do sistema burguês [...] é a determinação do valor pelo tempo de trabalho. Ricardo começa com isso e força a ciência [...] a examinar como ficam as coisas com a contradição entre os movimentos aparentes e reais do sistema. Esse é então o grande significado histórico de Ricardo para a ciência. [30]

 Mas essa homenagem não implica, de forma alguma, que Marx tenha adotado a teoria do valor-trabalho de Ricardo. Nem se devem entender as diferenças entre os dois apenas em termos dos métodos diferentes de apresentação analítica. É verdade que, no que se refere a Marx, a exposição de Ricardo avançou depressa e diretamente demais da determinação da grandeza do valor pelo tempo de trabalho até a consideração de se outras relações e categorias econômicas contradizem ou modificam essa determina­ção [31]. Marx age de modo diferente: no final do primeiro capítulo de Contribuição à crítica da economia política, relaciona as principais objeções à teoria do valor-trabalho e afirma que elas serão respondidas pelas suas teorias de salário, capital, concorrência e renda [32]. Essas teorias são expostas por categoria ao longo dos três livros d’O capital. No entanto, seria enganoso sustentar, como Mandei, que elas representam “a contribuição própria de Marx para o desenvolvimento da teoria econômica” [33] — como se Marx tivesse se limitado a repassar a teoria de Ricardo e não tivesse desenvolvido uma crítica fundamental dela.

 A principal diferença entre Ricardo e Marx é muito mais fundamental. Marx não se limita a tornar mais consistente “a determinação do valor de troca pelo tempo de trabalho” [34]. Afinal, depois de ter adotado e refinado a teoria do valor-trabalho de Ricardo, Marx o critica por ter postulado uma noção indiferenciada de “trabalho” como fonte de valor sem ter examinado em mais detalhe a especificidade do trabalho produtor de mercadoria: 

Ricardo parte da determinação dos valores relativos (ou valores de troca) das mercadorias pela “quantidade de trabalho”. [...] Mas Ricardo não examina a forma - a característica peculiar do trabalho que cria o valor de troca ou se manifesta em valores de troca — a natureza desse trabalho. [35] 

 Ricardo não reconheceu a determinação histórica da forma do trabalho associada com a forma-mercadoria das relações sociais, mas, pelo contrário, a trans-historizou: “Ricardo considera a forma burguesa de trabalho como a forma natural e eterna do trabalho social” [36]. E é precisamente essa concepção trans-histórica do trabalho constituinte de valor que impede uma análise adequada da formação social capitalista.  

 A forma de valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata, mas também mais geral do modo burguês de produção, que assim se caracteriza como um tipo particular de produção social e, ao mesmo tempo, um tipo histórico. Se tal forma é tomada pela forma natural eterna da produção social, também se perde de vista necessariamente a especificidade da forma de valor, e assim também da forma-mercadoria e, num estágio mais desenvolvido, da forma-dinheiro, da forma-capital etc. [37]

 Uma análise adequada do capitalismo só será possível, de acordo com Marx, se partir de uma análise do caráter historicamente específico do trabalho no capitalismo. A determinação inicial e básica dessa especificidade é o que Marx chama de “duplo caráter” do trabalho determinado por mercadoria.

O melhor com relação ao meu livro é 1. (o entendimento total dos fatos depende disso) o duplo caráter do trabalho dependendo de ele se expressar como valor de uso ou valor de troca — como já enfatizado no primeiro capítulo; 2. O tratamento da mais valia independentemente das suas formas particulares, como lucros, juros, renda etc. [38]

 Na segunda parte deste livro desenvolverei uma discussão extensa da noção de Marx do “duplo caráter” do trabalho no capitalismo. Neste ponto notarei apenas que, de acordo com o relato do próprio Marx, sua crítica do capitalismo não começa com a introdução da categoria de mais-valor; ela começa no primeiro capítulo d’O capital com a sua análise da especificidade do trabalho determinado por mercadoria. Isso marca a distinção fundamental entre a crítica de Marx e a economia política clássica, distinção de que depende o “entendimento total dos fatos”. Smith e Ricardo, de acordo com Marx, analisaram a mercadoria em termos de uma noção indiferenciada de “trabalho” [39] como “Arbeit sans phrase” [59/40]. Se sua especificidade histórica não for reconhecida, o trabalho no capitalismo será considerado de maneira trans-histórica e, em última análise, acrítica como ‘“o' trabalho” [41], ou seja, como “a atividade produtiva dos seres humanos em geral, pela qual eles medeiam seu metabolismo material com a natureza, despojado [...] de toda forma social e caráter determinado” [42]. Mas, de acordo com Marx, o trabalho social per se — “a atividade produtiva dos seres humanos em geral” — é um reles fantasma, uma abstração que, considerada por si só, não existe de forma alguma [43].

 Então, contrariamente à interpretação comum, Marx não adota a teoria do valor-trabalho de Ricardo, torna-a mais consistente e a usa para provar que o lucro é criado apenas pelo trabalho. Ele escreve uma critique da economia política, uma crítica imanente da teoria do valor-trabalho clássica. Marx toma as categorias da economia política clássica e desvela sua base social historicamente específica não examinada. Assim, ele as transforma de categorias trans-históricas da constituição de riqueza em categorias críticas da especificidade das formas de riqueza e relações sociais no capitalismo. Ao analisar o valor como uma forma historicamente determinada de riqueza, e expor a natureza “dupla” do trabalho que a constitui, Marx argumenta que o trabalho que cria valor não pode ser adequadamente entendido como trabalho tal como é geralmente entendido, ou seja, como uma atividade intencional que muda a forma da matéria de uma maneira determinada [44]. Ou melhor, o trabalho no capitalismo possui uma dimensão social adicional. O problema, de acordo com Marx, é que, apesar de o trabalho determinado por mercadoria ser social e historicamente específico, ele se apresenta numa forma trans-histórica como uma atividade que medeia entre seres humanos e natureza, como “trabalho”. Então, a economia política clássica se baseou na forma trans-histórica da aparência de uma forma social historicamente determinada.

 É crucial a diferença entre uma análise baseada na noção de “trabalho”, como na economia política clássica, e outra baseada no conceito do duplo caráter, concreto e abstrato, do trabalho no capitalismo; nas palavras de Marx, esse é “todo o segredo da concepção crítica” [45]. Ela resume a diferença entre uma crítica social que parte do ponto de vista do “trabalho”, um ponto de vista que não é ele próprio examinado, e outra em que a forma do trabalho em si é objeto de investigação crítica. A primeira permanece confinada nos limites da formação social capitalista, ao passo que a segunda aponta além dela. 

 Se a economia política clássica oferece a base para uma crítica da sociedade do ponto de vista do “trabalho”, a crítica da economia política resulta numa crítica daquele ponto de vista. Portanto, Marx não aceita a formulação de Ricardo do objetivo da investigação político-econômica, a saber, “determinar as leis que regulam essa distribui­ção” da riqueza social entre as várias classes da sociedade [46], pois tal investigação toma como verdadeira a forma do trabalho e da riqueza. Pelo contrário, em sua crítica Marx redefine o objeto da investigação. O centro do seu interesse passa a ser as formas de trabalho, riqueza e produção no capitalismo, e não somente a forma de distribuição.

 A redeterminação fundamental de Marx sobre o objeto da investigação crítica também implica uma importante reconceituação analítica da estrutura da ordem social capitalista.

 A economia política clássica expressou a crescente diferenciação histórica entre Estado e sociedade civil e se interessou pela segunda esfera. Já se argumentou que a análise de Marx foi uma continuação desse estudo e que ele identificou a sociedade civil como a esfera social governada pelas formas estruturantes do capitalismo [47]. Como elaborarei adiante, as diferenças entre as abordagens de Marx e as da economia política sugerem que ele tenta ir além da conceituação da sociedade capitalista em termos da oposição entre Estado e sociedade civil. A crítica de Marx da economia política (escrita depois da ascensão da produção industrial em larga escala) argumenta de maneira implícita que o que é central à sociedade capitalista é o seu caráter direcionalmente dinâmico, uma dimensão da vida social moderna que não pode ser adequadamente baseada em nenhuma dessas esferas diferenciadas da sociedade moderna. Ele prefere tentar entender essa dinâmica delineando outra dimensão social da sociedade moderna. E essa a significância fundamental da sua análise da produção. Marx investiga a esfera da sociedade civil, mas em termos das relações burguesas de distribuição. Sua análise da especificidade do trabalho no capitalismo e das relações capitalistas de produção tem outro objetivo teórico; é uma tentativa de basear e explicar a dinâmica histórica da sociedade capitalista. Portanto, a análise de Marx sobre a esfera da produção não deve ser entendida em termos de “trabalho” nem consideradas como privilegiando o “ponto de produção” sobre outras esferas da vida social. (De fato, ele indica que a produção no capitalismo não é um processo puramente técnico regulado pelas relações sociais, mas que incorpora essas relações; ele determina e é determinado por elas.) Como tentativa de elucidar a dimensão social historicamente dinâmica da sociedade capitalista, a análise de Marx da produção argumenta implicitamente que essa dimensão não pode ser entendida em termos de Estado ou sociedade civil. Pelo contrário, a dinâmica histórica do capitalismo desenvolvido embute e transforma cada vez mais essas duas esferas. Portanto, não está em questão a importância relativa “da economia” e “do Estado”, mas a natureza da mediação social no capitalismo, e a relação entre essa mediação e a dinâmica direcional característica dessa sociedade.


Notas

[1] Maurice Dobb, Political Economy and Capitalism, cit., p. 70-1.
[2] Ibidem, p. 37.
[3] Ibidem, p. 9.
[4] Ibidem, p. 63.
[5] Ibidem, p. 55.
[6] Idem.
[7] Ibidem, p. 49.
[8] Ibidem, p. 38-9.
[9] Ibidem, p. 50.
[10] Idem.
[11] Ibidem, p. 58.
[12] Ibidem, p. 58-62.
[13] Ibidem, p. 67.
[14] Ibidem, p. 56, 58.
[15] Ibidem, p. 75.
[16] Ver, por exemplo, Ernest Mandel, The Formation o f E conomic Thought o f Karl Marx, cit., p. 82-8; Paul Walton e Andrew Gamble, From Alienation to Surplus Value (Londres, Sheed and Ward, 1972), p. 179; George Lichtheim, Marxism: An Historical and Critical Study (Nova York/ Washington, Praeger, 1965), p. 172s.
[17] Maurice Dobb, Political Economy and Capitalism, cit., p. 55.
[18] Essa posição está intimamente ligada à interpretação espúria dos primeiros capítulos d’O capital como uma análise de um estágio pré-capitalista de “simples produção de mercadorias”. Discutirei essa questão com mais detalhes a seguir.
[19] Martin Nicolaus fornece um exemplo mais recente dessa abordagem: na introdução da sua tradução dos Grundrisse, Nicolaus afirma que “com o conceito de ‘força de trabalho’, Marx resolve a contradição intrínseca da teoria clássica de valor. Ele preserva o que é bom nela, a saber, a determinação do valor pelo tempo de trabalho [...]. Ao romper as limitações nela contidas, Marx transformou a velha teoria no seu oposto; de uma legitimação da dominação burguesa na teoria [...] que explica como a classe capitalista enriquece com o trabalho dos operários”. Martin Nicolaus, “Introdução”, em Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy (trad. Martin Nicolaus, Londres, Penguin, 1973, p. 46).
[20] Ver Henryk Grossman, Marx, die klassische Nationalökonomie und das Problem der Dynamik (Frankfurt, Europäische Verlagsanstalt, 1969).
[21] Oskar Lange, “Marxian Economics and Modern Economic Theory”, em David Horowitz (org.), Marx and Modern Economics (Londres, MacGibbon & Kee, 1968), p. 76. (Esse artigo foi publicado na edição de junho de 1935 de The Review o f Economic Studies.)
[22] Idem.
[23] Ibidem, p. 78-9.
[24] Ibidem, p. 81.
[25] Ibidem, p. 82.
[26] Ibidem, p. 84.
[27] Ibidem, p. 74.
[28] Maurice Dobb, Political Economy and Capitalism, cit., p. 78.
[29] Ibidem, p. 39.
[30] Karl Marx, Theories of Surplus Value (trad. Renate Simpson, Moscou, Progress, 1968), parte 2, p. 166 [ed. bras.: Teorias da mais-valia: história critica do pensamento econômico, trad. Reginaldo SantAnna, São Paulo, Bertrand Brasil, 1987].
[31] Ibidem, p. 164.
[32] As objeções relacionadas por ele são as seguintes: primeira, dado o tempo de trabalho como a medida imanente de valor, como os salários serão determinados nessa base? Segunda, como a produção baseada no valor de troca determinado apenas pelo tempo de trabalho pode levar ao resultado de ser o valor de troca do trabalho inferior ao valor de troca do seu produto? Terceira, como, com base no valor de troca, poderia surgir um preço de mercado diferente desse valor de troca? (Em outras palavras, valores e preços não são idênticos.) Quarta, como pode acontecer de mercadorias que não contêm trabalho terem valor de troca? (Ver Contribuição à crítica da economia política, cit., p. 191-2.) Muitos críticos da teoria de valor de Marx parecem não saber que ele reconhece esses problemas para não mencionarem as suas soluções propostas.
[33] Ernest Mandel, The Formation of Economic Thought of Karl Marx, cit., p. 82-3.
[34] Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, cit., p. 91.
[35] Idem, Theories of Surplus Value, cit., parte 2, p. 164.
[36] Idem, Contribuição à crítica da economia política, cit., p. 90.
[37] Idem, O capital, cit., Livro I, nota 32, p. 155.
[38] Marx para Engels, 24 de agosto de 1867, em Marx-Engels Werke (a partir de agora MEW), v. 31 (Berlim, Dietz, 1956-1968), p. 326.
[39] Karl Marx, “Results of the Immediate Process of Production'’ cit., p. 992.
[40] Marx para Engels, 8 de janeiro 1868, MEW, v. 32, p. 11.
[41] Karl Marx, Capital, cit., Livro III, p. 954.
[42] Idem.
[43] Idem.
[44] “Os economistas, sem exceção, não entenderam a questão simples segundo a qual se a mercadoria é uma dualidade de valor de uso e valor de troca, o trabalho representado na mercadoria tem também de ter duplo caráter, ao passo que a mera análise de trabalho sans phrase, como em Smith, Ricardo etc. deverá por toda parte enfrentar o inexplicável. Esse é, na verdade, todo o segredo da concepção crítica”. Marx para Engels, 8 de janeiro de 1868, MEW, v. 32, p. 11.
[45] Idem.
[46] David Ricardo, Principles of Political Econony and Taxation, (org. Piero Sraffa e Maurice Dobb, Cambridge, University Press for the Royal Economic Society, 1951), p. 5.
[47] Ver, por exemplo, Jean Cohen, Class and Civil Society, cit.

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