A. Jappe |
O valor em crise
Um modo de produção organizado para alimentar as necessidades
e os caprichos dos estratos dominantes, como o feudalismo,
pode ter muitos defeitos, mas nunca poderá ser destrutor e autodestrutor
como é a sociedade guiada pelo «sujeito autómato». Um
sistema que não é tautológico e que está orientado para um objectivo
encontra sempre o seu limite e o seu ponto de equilíbrio. Pode
dizer-se que todas as sociedades que existiram até hoje são cegas.
Não houve nenhuma que verdadeiramente dispusesse de maneira
consciente das suas próprias forças e na qual não houvesse mediação
fetichista. Porém, essas sociedades, em comparação com a sociedade
capitalista, quase não tinham dinâmica própria. O que torna a sociedade
moderna tão perigosa é o facto de estar sujeita a um dinamismo
muito forte que ela não consegue de modo nenhum controlar porque
está inteiramente entregue ao seu médium fetichista.
Esta ausência de limites só surge no mundo com o dinheiro, ou
seja, quando o dinheiro se torna o objectivo da produção. O dinheiro enquanto incarnação do valor tem por única finalidade o seu próprio
crescimento (1): «Fixado enquanto riqueza, enquanto forma universal
da riqueza, enquanto valor que vale como tal, ele [o dinheiro] é, por
conseguinte, essa tendência constante para ultrapassar o seu limite
quantitativo: um processo sem fim.» (2) Não se trata de uma qualidade
suplementar que lhe advenha do exterior, mas sim de uma qualidade
que lhe vem da sua estrutura de base (3). Com efeito, a desmesura
que caracteriza o capital, Marx a deduz do próprio conceito de capital;
o que significa que o capital e a sua desmesura só terão fim conjuntamente.
Vimos já que o valor só se conserva com o seu próprio
crescimento na circulação. Mas Marx deduz também a desmesura da
«contradição que opõe os caracteres gerais do valor à sua existência
material numa mercadoria determinada», assunto de que fala no Short
outline de 1858. Na sua terceira determinação formal - o dinheiro
enquanto dinheiro -, o dinheiro, que não representa senão uma
quantidade maior ou menor da riqueza geral, torna-se uma contradição
visível: enquanto riqueza geral, o dinheiro é a quinta-essência
de todos os valores de uso e tem a capacidade de tudo comprar. Ao mesmo tempo, porém, sob esta forma, o dinheiro é sempre um
quantum determinado e limitado de dinheiro e, consequentemente,
um representante limitado da riqueza geral. Esta contradição entre
o carácter qualitativamente ilimitado e quantitativamente limitado
do dinheiro suscita um progresso quantitativamente infinito, no qual
o dinheiro, por intermédio desse seu crescimento permanente, procura
aproximar-se da riqueza total. Isso acontece a partir do momento
em que o dinheiro, tendo deixado de estar ligado a necessidades concretas,
se torna o objectivo da produção: «A condição prévia para que
exista o valor de troca, sob a forma de qualquer outra mercadoria, é a
necessidade particular do valor de uso particular em que ele incarna:
para o ouro e o dinheiro, expressão da riqueza abstracta, não existe
qualquer limite deste tipo.» (4) Este carácter tautológico, o aspecto dinâmico do capitalismo e o encadeamento forçado de todas as sociedades
na «história» são, pois, apenas aspectos diferentes da mesma
coisa (5). A sociedade baseada na produção de mercadorias, com a sua universalidade exteriorizada e abstracta, é necessariamente sem limites,
destrutiva e autodestrutiva (6). Tal resultado encontra-se já contido
no respectivo conceito, como Marx pôs em relevo em diferentes ocasiões:
«O capital, porém, na medida em que representa a forma universal
da riqueza - o dinheiro é o impulso sem limite nem medida
para a ultrapassagem do seu próprio limite. Para o capital qualquer
fronteira é e só pode ser um limite excessivo. Se já não sentisse
uma dada fronteira como um limite, deixaria de ser capital: dinheiro
produzindo-se a si mesmo. A partir do momento em que deixasse de
sentir uma determinada fronteira como um limite e se sentisse bem
dentro dessa fronteira enquanto fronteira, tal significaria que o capital
teria recuado de valor de troca para valor de uso, da forma universal
da riqueza para uma existência substancial determinada da riqueza.» (7) O capital que não procura aumentar recai no estado de tesouro: uma
acumulação inerte, fora da circulação.
Mesmo a abolição final do capitalismo será, segundo Marx, um
efeito da sua falta de obstáculos, por via da qual o capital se transforma
no seu próprio limite maior, trabalhando em direcção à sua própria
abolição (8). A teoria da crise é uma das partes mais originais da obra de
Marx, e ele mesmo criticava à economia política burguesa o facto de
se tornar completamente «vulgar» ao tratar do problema da crise (9). Em
Marx, na verdade, a teoria da crise é no fundamental fragmentária e
não desprovida de contradições. Mas pode dizer-se que toda a análise
que Marx faz do capitalismo é essencialmente uma «teoria da crise»
orientada para o fim «apocalíptico» com o qual previa coroar a sua crítica da economia política (10). Marx analisou longamente, sobretudo no
terceiro volume do Capital, as crises cíclicas enquanto forma normal
do funcionamento do capitalismo, em que a prosperidade nunca é
uma coisa estável. Mas desenvolveu também a teoria da «crise final»,
que entendia ser inevitável por força do limite interno inultrapassável
do capitalismo. Fê-lo sobretudo nos Grundrisse: mas até ao fim da
vida Marx insistiu no facto de que a dinâmica do capitalismo levá-lo-á
a uma crise que terminará na completa ruína" (11). Para Marx, a coincidência
essencial entre capitalismo e estado de crise não é apenas resultante de Incoerências quantitativas entre os diferentes factores
da economia capitalista (incoerências que faziam as delícias da teoria
do subconsumo, florescente na época keynesiana). A tendência do
capitalismo para a crise é algo que está já contido na estrutura da
mercadoria com a respectiva separação fundamental entre a produção
e o consumo (12), entre o particular e o universal. Cada nova etapa da
crise mais não faz do que desdobrar uma vez mais este potencial de
crise: «Permanece, pois, esta verdade: a forma mais abstracta da crise
(e, em consequência, da possibilidade formal da crise) é a própria
metamorfose da mercadoria, na qual, somente enquanto movimento
desenvolvido, se encerra a contradição - implicada na unidade da
mercadoria - entre valor de troca e valor de uso, e na sequência entre
dinheiro e mercadoria. Mas o que transforma esta possibilidade da
crise em crise não está contido nesta própria forma: o que ela contém
é apenas o facto de estar aí presente a forma para uma crise. Na
análise da economia burguesa é este o ponto importante. As crises
do mercado mundial têm que ser entendidas como algo que sintetiza
realmente e igualiza violentamente todas as contradições da economia
burguesa. Os diversos momentos assim sintetizados nessas crises
devem, pois, necessariamente surgir em cada esfera da economia
burguesa e desenvolver-se aí, e à medida que mais penetramos nessa
esfera é preciso, por um lado, desenvolver novas determinações do
conflito e, por outro lado, demonstrar a recorrência e a persistência
das suas formas abstractas nas suas formas mais concretas. Pode,
pois, dizer-se: sob a sua primeira forma, a crise é a metamorfose da
própria mercadoria, a disjunção da compra e da venda.» (13) Esta longa
citação é útil porque é suficiente para dar a compreender que se pode
falar de uma unidade entre teoria do valor e teoria da crise em Marx.
A crise não é uma interrupção temporária que vem perturbar o funcionamento
«normal» do capitalismo. A crise constitui antes a verdade
do capitalismo. Assim sendo, no «conceito», na «forma elementar»
do capitalismo não está apenas contido o facto de o capitalismo ser
«louco», mas também o facto de ele só poder evoluir através de fricções contínuas para acabar finalmente por se desmoronar sob o peso
da sua própria lógica, ou melhor, da sua não lógica.
No fundo, todas as crises do capitalismo são causadas pela
ausência de uma comunidade, de uma unidade social. De uma certa
maneira, essa unidade reconstitui-se na crise de uma forma violenta:
«E a crise mais não é do que o violento pôr em prática da unidade das
fases do processo de produção, que se autonomizaram uma em face
da outra.» (14) Nas páginas dos Grundrisse sobre o fim do trabalho, de
onde retirámos algumas das citações que apresentámos acima, Marx
prevê o desmoronamento da produção do valor precisamente como
consequência do desenvolvimento da lógica do valor. Preconiza a
abolição do trabalho enquanto base da riqueza social: «O roubo do
tempo de trabalho de outrem, sobre o qual assenta a riqueza actual,
surge como uma base miserável quando comparada àquela outra,
recentemente desenvolvida, que foi criada pela grande indústria, ela
mesma. A partir do momento em que o trabalho sob a sua forma
imediata deixou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho
deixa necessariamente de ser a sua medida e, em consequência, o
valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso. O sobretrabalho
da massa deixou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza
geral, da mesma maneira que o não-trabalho de alguns deixou de
ser a condição do desenvolvimento dos poderes universais do cérebro
humano. Isto significa a derrocada da produção assente sobre o
valor de troca, e o processo de produção material imediato perde ele
mesmo a forma de penúria e de contradição.» (15)
Os marxistas tradicionais, contrariamente ao que se tornou lugar-comum nesta matéria, pouco caso fizeram da teoria marxiana da
crise. Quando dela se ocuparam, foi em geral em termos puramente
quantitativos e autonomizando os diferentes elementos da crise.
Mesmo os raros teóricos da crise que alguma vez existiram, como
Rosa Luxemburg, Henryk Grossmann e Paul Mattick (16), reportavam-se
em geral aos esquemas de reprodução contidos no segundo volume
do Capital, a hiperprodução e o subconsumo. Prognosticavam a derrocada
do capitalismo, mas sem a deduzirem da estrutura da mercadoria. Para eles, o verdadeiro problema do capitalismo era a baixa
tendencial da taxa de lucro. Marx deu de facto muita importância
a essa redução. Trata-se de uma consequência da contradição mais
visível do capitalismo: o capital tem sempre necessidade de absorver
trabalho vivo, que é a única fonte de mais-valia. Ao mesmo tempo,
a concorrência leva inevitavelmente os capitalistas a substituir o trabalho
pelo emprego de capital fixo, ou seja, de máquinas, que permitem
aumentar a produtividade de cada força de trabalho empregue.
A longo prazo, o capital investido consiste numa percentagem sempre
maior de capital fixo e cada vez menor de capital variável, despendido
em salários. Marx chama a este fenómeno «o aumento da composição
orgânica do capital». Mas isto significa também que o lucro diminui,
mesmo se o grau de exploração aumenta. Marx, ele mesmo, enumerou
uma série de factores que retardam esta tendência de diminuição,
como a redução dos preços dos factores do capital fixo. Contudo,
sublinha que a longo prazo essa diminuição acentuar-se-á cada vez
mais, uma vez que a sua principal causa não é eliminável.
Não é propriamente claro se Marx considerava este fenómeno
como um limite interno absoluto que permitisse prever com segurança
que um dia o capitalismo «deixará de funcionar». Na verdade,
Marx não se colocou verdadeiramente o problema, porque tinha a
expectativa, como depois dele os marxistas, de que o capitalismo,
muito antes de alcançar o seu limite interno e de se desmoronar sobre
si mesmo - segundo Rosa Luxemburg, o processo que aí conduz
poder-se-ia prolongar mais ou menos até à «extinção do Sol» -, desapareceria
por uma outra razão: com o proletariado, o capitalismo cria
o seu próprio inimigo, o seu «coveiro». Segundo esta expectativa,
cada crise cíclica aumentaria a consciência do proletariado e reduzir-lhe-ia a paciência. A crise não seria, pois, mais do que um agravamento
da luta de classes e simultaneamente o respectivo resultado.
Esta explicação da crise pelas lutas do proletariado atingiu o paroxismo
com a «extrema-esquerda» e o seu voluntarismo subjectivista
que se opunha ao «objectivismo» entorpecido da ortodoxia marxista.
Para os «subjectivistas», o próprio facto de se estudarem as leis que regulam o funcionamento da sociedade capitalista equivale a aprová-
-las e servi-las. Para eles todos os momentos são bons para «desferir
golpes», basta apenas querer intensamente fazê-lo. A crítica que
dirigiam aos outros marxistas era na verdade de natureza puramente
moral: tratava-se, segundo eles, de traidores que não queriam lançar
na batalha as massas que comandavam. De facto, os marxistas de
todas as cores estavam e continuam a estar unidos pela sua ignorância
tácita do limite interno, lógico, do capitalismo. Recusam a ideia
de que o capitalismo possa desembocar numa crise absoluta: com
efeito, este tipo de crise seria precisamente uma crise das próprias
formas - a mercadoria, o Estado, o dinheiro - que eles querem conquistar
para as administrarem «democraticamente» ou «em benefício
do proletariado». Se detestam a teoria da derrocada é porque ela prevê
também o fim do proletariado e do próprio trabalho.
A esperança de que o capitalismo acabasse por desaparecer porque
um proletariado sempre mais numeroso, mais miserável, mais
concentrado, mais consciente e mais organizado o viesse a abolir
terminou antes ainda de chegar ao fim o capitalismo. Nestas circunstâncias,
é a outra parte da teoria da crise de Marx que se torna actual:
aquela parte da teoria em que Marx antecipou no plano lógico a crise
final. O único erro de Marx foi considerar crises finais as crises da sua
época, que de facto não eram mais do que crises de crescimento, e
nem sequer das mais graves. Foi necessário ainda mais um século para
se chegar ao ponto em que a autocontradição inerente ao capitalismo
começa a impedir o respectivo funcionamento e em que a máquina
entra em aceleração vertiginosa. O que vem hoje à luz do dia é uma
crise muito mais profunda do que as que no passado desencadeavam
desproporções quantitativas momentâneas. A contradição entre
o conteúdo material e a forma valor conduz à destruição do primeiro.
Esta contradição torna-se particularmente visível na crise ecológica e
apresenta-se então como um «produtivismo», como produção tautológica
de bens de uso - produção essa que, contudo, mais não é do
que a consequência da transformação tautológica do trabalho abstracto
em dinheiro. A produção como fim em si não significa a maior produção possível de valores de uso, como se se tratasse de uma
espécie de cobiça de algo de concreto - é desta maneira falsa que
o problema é frequentemente apresentado pela argumentação dos
ecologistas. A questão fulcral neste domínio não tem a ver com uma
irreprimível pulsão de alguém para se rodear de riquezas materiais ou
para transformar o mundo. A gigantesca dissipação das bases naturais
da vida, que caracteriza o capitalismo actual, também não é a consequência
da necessidade de alimentar uma população mundial que
cresceu enormemente, ao contrário do que pretendem fazer crer os
inúmeros neomalthusianos, como também não é consequência dos
desejos «exagerados» dessa mesma população. É antes o resultado
da lógica tautológica do sistema da mercadoria. Seis mil milhões de
seres humanos poderiam viver muito melhor do que presentemente
produzindo e trabalhando muito menos do que hoje.
A produção de valor e de mais-valia, o único objectivo dos sujeitos
da mercadoria, pode comportar também uma diminuição da produção
de valores de uso, mesmo dos mais importantes. É o que se
verifica no caso cada vez mais frequente da desindustrialização de
países inteiros nos quais a produção se reduz aos sectores cujos produtos
são susceptíveis de ser exportados, mesmo que se trate apenas
de amendoim. A «produção pela produção» significa a maior acumulação
possível de trabalho morto. Os ganhos de produtividade,
designadamente o aumento da produção de valores de uso, em nada
alteram o valor produzido em cada unidade de tempo. Uma hora
de trabalho continua a ser uma hora de trabalho, e se nessa hora
se produzem sessenta cadeiras em vez de uma, tal significa que em
cada cadeira está contida apenas a sexagésima parte de uma hora:
a cadeira «vale» assim apenas um minuto. O aumento das forças produtivas,
empurrado pela concorrência, não aumenta de modo algum
o valor de cada unidade de tempo: este facto constitui um limite inultrapassável
à criação de mais-valia, cujo crescimento se torna progressivamente
mais difícil. Para produzir a mesma quantidade de valor
torna-se necessária uma produção sempre mais ampliada de valores
de uso e consequentemente um consumo acrescido dos recursos naturais. Ao proprietário do capital, se não quer ser eliminado pela
concorrência, torna-se necessário produzir as sessenta cadeiras na
esperança de encontrar uma procura compensadora. Pode inclusivamente
tentar criar essa procura, sem levar em conta a relação real
entre necessidades e recursos no interior da sociedade. A redução da
taxa de lucro comporta a necessidade de aumentar continuamente a
produção de mercadorias para bloquear a queda da massa de lucro.
É precisamente porque os ganhos de produtividade só aumentam a
mais-valia indirectamente que é preciso fazer crescer continuamente
essa produtividade (17). O mundo concreto, todo ele, vê-se assim consumido
a pouco e pouco para que seja conservada a forma valor (18).
Na sociedade baseada no valor, a produtividade acrescida do trabalho
transforma-se numa calamidade porque é a razão profunda da crise
ecológica. Trata-se de uma manifestação da oposição entre forma
abstracta e conteúdo concreto que atravessa toda a história do capitalismo.
O valor descrito por Marx caracteriza-se pelo facto de não proceder no
vazio, antes estar sempre na obrigação de lutar contra as resistências
do concreto. A forma abstracta procura tornar-se independente do
conteúdo concreto e das suas leis. Mas o conteúdo continua sempre
a juntar-se com ela porque uma forma sem conteúdo é coisa que não
pode existir. O pensamento de Marx caracteriza-se precisamente pela
importância atribuída à natureza, lato sensu, por exemplo, quando
Marx põe em relevo o papel do valor de uso, negligenciado pelos
economistas clássicos, e quando sublinha que o trabalho não é apenas
processo de valorização, mas também processo de produção (19).
Quase todo o pensamento burguês reflecte a lógica do valor no que
toca ao facto de esta pressupor a existência de uma forma autonomizada
que pode continuar eternamente a desenvolver-se sem nunca
encontrar resistência da parte de um conteúdo ou de uma substância.
Os economistas burgueses raciocinam sempre em termos quantitativos
e acreditam que é possível aumentar o valor tanto quanto se
queira sem ter que temer nenhum limite objectivo, como a capacidade limitada de consumo da sociedade, as leis que decorrem do
valor de uso do capital fixo ou o carácter limitado dos recursos naturais
e da força de trabalho disponível. E enquanto este último dado
é mais ou menos natural, muito mais numerosos são os limites que,
sem deixarem de ser sociais, revestem em virtude do seu carácter fetichista
um aspecto quase natural, como acontece com a queda da taxa
de lucro ou a superprodução. A forma, na medida em que é algo do
âmbito do pensamento, é quantitativamente ilimitada, ao passo que
o conteúdo tem sempre barreiras concretas. A convicção segundo
a qual seria possível manipular infindavelmente a realidade soçobra
o mais tardar no momento da crise; a existência de uma realidade
incontornável, de uma substância que tem as suas próprias leis, vem
então à luz do dia. Todas as teorias relativistas, desde o positivismo
ao pós-modernismo, contestaram sempre este facto. O esquecimento
dos fundamentos naturais é precisamente o que distingue o pensamento
burguês moderno da teoria de Marx. Vê-se assim por que
motivos a crítica marxiana da economia política, longe de ser incapaz
de explicar a crise ecológica ou de dela dar conta, como por vezes
se pretende, oferece pelo contrário para essa crise a única explicação
estrutural que não se limita a um conjunto de apelos morais.
Por outro lado, essa produtividade acrescida do trabalho - que
enquanto tal poderia ser naturalmente um bem para toda a humanidade
- produz de uma maneira mais directa o desmoronamento da
sociedade baseada no valor (20). Paradoxalmente, o capitalismo atinge o
seu próprio limite em virtude da sua maior força, a saber, a libertação
das forças produtivas: o dispêndio individual de força de trabalho é
cada vez menos o factor principal da produção. São as ciências aplicadas,
bem como os saberes e capacidades difundidos ao nível social,
que se tornam directamente a força produtiva principal. A necessidade
de calcular o trabalho efectuado por cada um, e portanto o valor
que lhe compete, transforma-se então numa «couraça» que sufoca
as possibilidades produtivas, porque o trabalho individual deixa de
ser mensurável. O dispêndio de trabalho deixa de poder constituir a forma social da riqueza e deixa de ser a condição para que o individuo
participe nos respectivos frutos. A ciência, enquanto força produtiva,
aboliu a identificação entre «trabalho» e «metabolismo com a natureza»
porque ela criou um processo produtivo no qual o «produtor» se
encontra muitas vezes «ao lado» dos meios de produção, limitando-
-se a controlá-los e a dirigi-los. Estas novas forças produtivas são obra
da sociedade no seu todo; quando um novo procedimento (digamos,
um novo produto de software) é inventado, o seu «valor» não
se encontra nos produtos (ou encontra-se neles somente em doses
homeopáticas). Determinar o trabalho dispensado por cada produtor
individual passa então a ser algo de tão impossível quanto de inútil.
Nesta situação, a «troca» de unidades de trabalho perde a sua razão
de ser, como Marx havia predito relativamente ao comunismo (21). Com
efeito, a troca só é necessária em circunstâncias em que os produtores
estão separados uns dos outros e em que só as coisas se encontram
socializadas. Hoje em dia, porém, a separação dos produtores já não
tem base material ou técnica e deriva exclusivamente da forma do
valor abstracto, a qual perde assim definitivamente a sua função histórica.
Deste modo, o funcionamento efectivo da produção liberta-se
cada vez mais da lógica do valor que se transforma numa arcaica
camísa-de-forças. É justamente o que Marx, numa sua profecia contida
nos Çrundrisse, tinha previsto como um dos resultados possíveis
da sociedade do valor. Infelizmente verifica-se que não se trata de
uma saída pacífica e gradual para fora da sociedade capitalista, uma
saída que precisasse apenas de encontrar tradução no plano político
- como pretendem certas concepções que se reportam a essas páginas
de Marx, ou como proclamam aqueles que, mesmo sem teoria
alguma, apresentam grandes «descobertas», do tipo free software,
como se representassem a ultrapassagem do capitalismo. A forma
valor continua a existir, não porque as classes dominantes hajam
decidido que assim devia ser, mas por se tratar de uma forma fetichista
não percebida como tal pelos sujeitos. Longe de se dissipar, a forma valor, embora «objectivamente» ultrapassada, entra cada vez
mais em colisão com o conteúdo material que ela ajuda a criar.
Tal verifica-se sobretudo no facto de uma sociedade, para a qual
o trabalho é a essência e o único motor, abolir o trabalho tornando
portanto quase impossível a produção de valor e consequentemente a
produção de mais-valia. Dissemos acima que a queda da taxa de lucro
acompanhou toda a evolução do capitalismo. Mas durante muito
tempo essa queda foi compensada, e mesmo sobrecompensada, pelo
aumento da massa do lucro. Bastava que o modo de produção se
ampliasse mais rapidamente do que a queda da taxa de lucro: se em
dez anos, graças à utilização de novas tecnologias, a parte do capital
variável (ou seja, a parte de salário) contida numa mercadoria decresce
20 a 10%, e portanto a taxa de lucro (supondo uma taxa de mais-
-valia, ou seja, um grau de exploração, estável de 50%) diminui 10 a
5%, mas se ao mesmo tempo se produz três vezes mais mercadorias,
então a massa de lucro cresceu 50% e pode portanto alimentar um
ciclo alargado da produção. Esta possibilidade foi prevista por Marx
e realizou-se efectivamente durante mais de um século. Contudo, é
evidente que esta evolução há-de chegar um dia a um ponto em que
a massa de lucro do capital global começará a diminuir até atingir um
limite absoluto.
Com efeito, não basta ao capital absorver trabalho. O capital tem
que o fazer com um nível de rentabilidade suficiente, e esse nível é
estabelecido em cada momento pela concorrência e pelo uso que esta
faz do capital fixo. Se com cem mil Euros investidos em máquinas de
última geração é possível fazer com que um único trabalhador, mesmo
que se lhe paguem dois mil Euros mensais, produza dez mil pares de
sapatos, para quem não pode investir tão pesadamente no capital fixo
torna-se não rentável empregar trabalho: mesmo dez trabalhadores
pagos a duzentos Euros por mês não conseguiriam produzir, usando
instrumentos arcaicos, mais do que mil pares de sapatos. Dito de
outro modo, para que o consumo de força de trabalho seja rentá
vel, são necessários investimentos enormes, coisa que se exprime no
facto muito visível de que um emprego «custa» cada vez mais (22).
Trabalho produtivo e trabalho improdutivo
Esta ausência de limites só surge no mundo com o dinheiro, ou seja, quando o dinheiro se torna o objectivo da produção. O dinheiro enquanto incarnação do valor tem por única finalidade o seu próprio crescimento (1): «Fixado enquanto riqueza, enquanto forma universal da riqueza, enquanto valor que vale como tal, ele [o dinheiro] é, por conseguinte, essa tendência constante para ultrapassar o seu limite quantitativo: um processo sem fim.» (2) Não se trata de uma qualidade suplementar que lhe advenha do exterior, mas sim de uma qualidade que lhe vem da sua estrutura de base (3). Com efeito, a desmesura que caracteriza o capital, Marx a deduz do próprio conceito de capital; o que significa que o capital e a sua desmesura só terão fim conjuntamente. Vimos já que o valor só se conserva com o seu próprio crescimento na circulação. Mas Marx deduz também a desmesura da «contradição que opõe os caracteres gerais do valor à sua existência material numa mercadoria determinada», assunto de que fala no Short outline de 1858. Na sua terceira determinação formal - o dinheiro enquanto dinheiro -, o dinheiro, que não representa senão uma quantidade maior ou menor da riqueza geral, torna-se uma contradição visível: enquanto riqueza geral, o dinheiro é a quinta-essência de todos os valores de uso e tem a capacidade de tudo comprar. Ao mesmo tempo, porém, sob esta forma, o dinheiro é sempre um quantum determinado e limitado de dinheiro e, consequentemente, um representante limitado da riqueza geral. Esta contradição entre o carácter qualitativamente ilimitado e quantitativamente limitado do dinheiro suscita um progresso quantitativamente infinito, no qual o dinheiro, por intermédio desse seu crescimento permanente, procura aproximar-se da riqueza total. Isso acontece a partir do momento em que o dinheiro, tendo deixado de estar ligado a necessidades concretas, se torna o objectivo da produção: «A condição prévia para que exista o valor de troca, sob a forma de qualquer outra mercadoria, é a necessidade particular do valor de uso particular em que ele incarna: para o ouro e o dinheiro, expressão da riqueza abstracta, não existe qualquer limite deste tipo.» (4) Este carácter tautológico, o aspecto dinâmico do capitalismo e o encadeamento forçado de todas as sociedades na «história» são, pois, apenas aspectos diferentes da mesma coisa (5). A sociedade baseada na produção de mercadorias, com a sua universalidade exteriorizada e abstracta, é necessariamente sem limites, destrutiva e autodestrutiva (6). Tal resultado encontra-se já contido no respectivo conceito, como Marx pôs em relevo em diferentes ocasiões: «O capital, porém, na medida em que representa a forma universal da riqueza - o dinheiro é o impulso sem limite nem medida para a ultrapassagem do seu próprio limite. Para o capital qualquer fronteira é e só pode ser um limite excessivo. Se já não sentisse uma dada fronteira como um limite, deixaria de ser capital: dinheiro produzindo-se a si mesmo. A partir do momento em que deixasse de sentir uma determinada fronteira como um limite e se sentisse bem dentro dessa fronteira enquanto fronteira, tal significaria que o capital teria recuado de valor de troca para valor de uso, da forma universal da riqueza para uma existência substancial determinada da riqueza.» (7) O capital que não procura aumentar recai no estado de tesouro: uma acumulação inerte, fora da circulação.
Mesmo a abolição final do capitalismo será, segundo Marx, um efeito da sua falta de obstáculos, por via da qual o capital se transforma no seu próprio limite maior, trabalhando em direcção à sua própria abolição (8). A teoria da crise é uma das partes mais originais da obra de Marx, e ele mesmo criticava à economia política burguesa o facto de se tornar completamente «vulgar» ao tratar do problema da crise (9). Em Marx, na verdade, a teoria da crise é no fundamental fragmentária e não desprovida de contradições. Mas pode dizer-se que toda a análise que Marx faz do capitalismo é essencialmente uma «teoria da crise» orientada para o fim «apocalíptico» com o qual previa coroar a sua crítica da economia política (10). Marx analisou longamente, sobretudo no terceiro volume do Capital, as crises cíclicas enquanto forma normal do funcionamento do capitalismo, em que a prosperidade nunca é uma coisa estável. Mas desenvolveu também a teoria da «crise final», que entendia ser inevitável por força do limite interno inultrapassável do capitalismo. Fê-lo sobretudo nos Grundrisse: mas até ao fim da vida Marx insistiu no facto de que a dinâmica do capitalismo levá-lo-á a uma crise que terminará na completa ruína" (11). Para Marx, a coincidência essencial entre capitalismo e estado de crise não é apenas resultante de Incoerências quantitativas entre os diferentes factores da economia capitalista (incoerências que faziam as delícias da teoria do subconsumo, florescente na época keynesiana). A tendência do capitalismo para a crise é algo que está já contido na estrutura da mercadoria com a respectiva separação fundamental entre a produção e o consumo (12), entre o particular e o universal. Cada nova etapa da crise mais não faz do que desdobrar uma vez mais este potencial de crise: «Permanece, pois, esta verdade: a forma mais abstracta da crise (e, em consequência, da possibilidade formal da crise) é a própria metamorfose da mercadoria, na qual, somente enquanto movimento desenvolvido, se encerra a contradição - implicada na unidade da mercadoria - entre valor de troca e valor de uso, e na sequência entre dinheiro e mercadoria. Mas o que transforma esta possibilidade da crise em crise não está contido nesta própria forma: o que ela contém é apenas o facto de estar aí presente a forma para uma crise. Na análise da economia burguesa é este o ponto importante. As crises do mercado mundial têm que ser entendidas como algo que sintetiza realmente e igualiza violentamente todas as contradições da economia burguesa. Os diversos momentos assim sintetizados nessas crises devem, pois, necessariamente surgir em cada esfera da economia burguesa e desenvolver-se aí, e à medida que mais penetramos nessa esfera é preciso, por um lado, desenvolver novas determinações do conflito e, por outro lado, demonstrar a recorrência e a persistência das suas formas abstractas nas suas formas mais concretas. Pode, pois, dizer-se: sob a sua primeira forma, a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a disjunção da compra e da venda.» (13) Esta longa citação é útil porque é suficiente para dar a compreender que se pode falar de uma unidade entre teoria do valor e teoria da crise em Marx. A crise não é uma interrupção temporária que vem perturbar o funcionamento «normal» do capitalismo. A crise constitui antes a verdade do capitalismo. Assim sendo, no «conceito», na «forma elementar» do capitalismo não está apenas contido o facto de o capitalismo ser «louco», mas também o facto de ele só poder evoluir através de fricções contínuas para acabar finalmente por se desmoronar sob o peso da sua própria lógica, ou melhor, da sua não lógica.
No fundo, todas as crises do capitalismo são causadas pela ausência de uma comunidade, de uma unidade social. De uma certa maneira, essa unidade reconstitui-se na crise de uma forma violenta: «E a crise mais não é do que o violento pôr em prática da unidade das fases do processo de produção, que se autonomizaram uma em face da outra.» (14) Nas páginas dos Grundrisse sobre o fim do trabalho, de onde retirámos algumas das citações que apresentámos acima, Marx prevê o desmoronamento da produção do valor precisamente como consequência do desenvolvimento da lógica do valor. Preconiza a abolição do trabalho enquanto base da riqueza social: «O roubo do tempo de trabalho de outrem, sobre o qual assenta a riqueza actual, surge como uma base miserável quando comparada àquela outra, recentemente desenvolvida, que foi criada pela grande indústria, ela mesma. A partir do momento em que o trabalho sob a sua forma imediata deixou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa necessariamente de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso. O sobretrabalho da massa deixou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral, da mesma maneira que o não-trabalho de alguns deixou de ser a condição do desenvolvimento dos poderes universais do cérebro humano. Isto significa a derrocada da produção assente sobre o valor de troca, e o processo de produção material imediato perde ele mesmo a forma de penúria e de contradição.» (15)
Os marxistas tradicionais, contrariamente ao que se tornou lugar-comum nesta matéria, pouco caso fizeram da teoria marxiana da crise. Quando dela se ocuparam, foi em geral em termos puramente quantitativos e autonomizando os diferentes elementos da crise. Mesmo os raros teóricos da crise que alguma vez existiram, como Rosa Luxemburg, Henryk Grossmann e Paul Mattick (16), reportavam-se em geral aos esquemas de reprodução contidos no segundo volume do Capital, a hiperprodução e o subconsumo. Prognosticavam a derrocada do capitalismo, mas sem a deduzirem da estrutura da mercadoria. Para eles, o verdadeiro problema do capitalismo era a baixa tendencial da taxa de lucro. Marx deu de facto muita importância a essa redução. Trata-se de uma consequência da contradição mais visível do capitalismo: o capital tem sempre necessidade de absorver trabalho vivo, que é a única fonte de mais-valia. Ao mesmo tempo, a concorrência leva inevitavelmente os capitalistas a substituir o trabalho pelo emprego de capital fixo, ou seja, de máquinas, que permitem aumentar a produtividade de cada força de trabalho empregue. A longo prazo, o capital investido consiste numa percentagem sempre maior de capital fixo e cada vez menor de capital variável, despendido em salários. Marx chama a este fenómeno «o aumento da composição orgânica do capital». Mas isto significa também que o lucro diminui, mesmo se o grau de exploração aumenta. Marx, ele mesmo, enumerou uma série de factores que retardam esta tendência de diminuição, como a redução dos preços dos factores do capital fixo. Contudo, sublinha que a longo prazo essa diminuição acentuar-se-á cada vez mais, uma vez que a sua principal causa não é eliminável.
Não é propriamente claro se Marx considerava este fenómeno como um limite interno absoluto que permitisse prever com segurança que um dia o capitalismo «deixará de funcionar». Na verdade, Marx não se colocou verdadeiramente o problema, porque tinha a expectativa, como depois dele os marxistas, de que o capitalismo, muito antes de alcançar o seu limite interno e de se desmoronar sobre si mesmo - segundo Rosa Luxemburg, o processo que aí conduz poder-se-ia prolongar mais ou menos até à «extinção do Sol» -, desapareceria por uma outra razão: com o proletariado, o capitalismo cria o seu próprio inimigo, o seu «coveiro». Segundo esta expectativa, cada crise cíclica aumentaria a consciência do proletariado e reduzir-lhe-ia a paciência. A crise não seria, pois, mais do que um agravamento da luta de classes e simultaneamente o respectivo resultado. Esta explicação da crise pelas lutas do proletariado atingiu o paroxismo com a «extrema-esquerda» e o seu voluntarismo subjectivista que se opunha ao «objectivismo» entorpecido da ortodoxia marxista. Para os «subjectivistas», o próprio facto de se estudarem as leis que regulam o funcionamento da sociedade capitalista equivale a aprová- -las e servi-las. Para eles todos os momentos são bons para «desferir golpes», basta apenas querer intensamente fazê-lo. A crítica que dirigiam aos outros marxistas era na verdade de natureza puramente moral: tratava-se, segundo eles, de traidores que não queriam lançar na batalha as massas que comandavam. De facto, os marxistas de todas as cores estavam e continuam a estar unidos pela sua ignorância tácita do limite interno, lógico, do capitalismo. Recusam a ideia de que o capitalismo possa desembocar numa crise absoluta: com efeito, este tipo de crise seria precisamente uma crise das próprias formas - a mercadoria, o Estado, o dinheiro - que eles querem conquistar para as administrarem «democraticamente» ou «em benefício do proletariado». Se detestam a teoria da derrocada é porque ela prevê também o fim do proletariado e do próprio trabalho.
O valor descrito por Marx caracteriza-se pelo facto de não proceder no vazio, antes estar sempre na obrigação de lutar contra as resistências do concreto. A forma abstracta procura tornar-se independente do conteúdo concreto e das suas leis. Mas o conteúdo continua sempre a juntar-se com ela porque uma forma sem conteúdo é coisa que não pode existir. O pensamento de Marx caracteriza-se precisamente pela importância atribuída à natureza, lato sensu, por exemplo, quando Marx põe em relevo o papel do valor de uso, negligenciado pelos economistas clássicos, e quando sublinha que o trabalho não é apenas processo de valorização, mas também processo de produção (19). Quase todo o pensamento burguês reflecte a lógica do valor no que toca ao facto de esta pressupor a existência de uma forma autonomizada que pode continuar eternamente a desenvolver-se sem nunca encontrar resistência da parte de um conteúdo ou de uma substância. Os economistas burgueses raciocinam sempre em termos quantitativos e acreditam que é possível aumentar o valor tanto quanto se queira sem ter que temer nenhum limite objectivo, como a capacidade limitada de consumo da sociedade, as leis que decorrem do valor de uso do capital fixo ou o carácter limitado dos recursos naturais e da força de trabalho disponível. E enquanto este último dado é mais ou menos natural, muito mais numerosos são os limites que, sem deixarem de ser sociais, revestem em virtude do seu carácter fetichista um aspecto quase natural, como acontece com a queda da taxa de lucro ou a superprodução. A forma, na medida em que é algo do âmbito do pensamento, é quantitativamente ilimitada, ao passo que o conteúdo tem sempre barreiras concretas. A convicção segundo a qual seria possível manipular infindavelmente a realidade soçobra o mais tardar no momento da crise; a existência de uma realidade incontornável, de uma substância que tem as suas próprias leis, vem então à luz do dia. Todas as teorias relativistas, desde o positivismo ao pós-modernismo, contestaram sempre este facto. O esquecimento dos fundamentos naturais é precisamente o que distingue o pensamento burguês moderno da teoria de Marx. Vê-se assim por que motivos a crítica marxiana da economia política, longe de ser incapaz de explicar a crise ecológica ou de dela dar conta, como por vezes se pretende, oferece pelo contrário para essa crise a única explicação estrutural que não se limita a um conjunto de apelos morais.
Trabalho produtivo e trabalho improdutivo
Por outro lado, no capitalismo nem todo o trabalho é trabalho produtivo. Naturalmente não falamos da utilidade real do trabalho, uma vez que esse nível está ausente da lógica da valorização. Trata- -se antes da questão de saber se um trabalho produz mais-valia. Marx dedicou uma certa atenção a esta questão, ao passo que de um modo geral os marxistas a negligenciaram, mostrando-se ainda menos capazes de reconhecer o laço que ela mantém com as crises do capitalismo. Deste modo, os marxistas abandonaram o terreno aos economistas burgueses que presentemente querem fazer crer que cada perda de trabalho nos sectores tradicionais (indústria pesada, agricultura, etc.) é amplamente compensada pelos novos empregos e pelas fantásticas oportunidades de ganho que se abrem e que se abrirão ainda mais num futuro próximo nos serviços, na informática, etc. - ignorando completamente que muitas vezes esses trabalhos, quer sejam «úteis» ou «não», não são «trabalho produtivo» em sentido capitalista Para Marx, o único trabalho produtivo - em sentido capitalista - é o trabalho que cria mais-valia passível de ser reinvestida. Os outros trabalhos mais não fazem do que consumir os rendimentos daqueles que os pagam. Se vou ao alfaiate para mandar fazer um fato para meu uso pessoal, não faço uma despesa produtiva e o alfaiate não fez um trabalho produtivo em sentido capitalista. Se emprego o mesmo dinheiro como salário pago a operários da indústria de confecções cujos fatos produzidos depois revendo, aí trata-se de trabalho produtivo. A prová-lo está o facto de que a primeira despesa, se a repito um número suficiente de vezes, me deixa sem dinheiro, ao passo que a segunda despesa, depois de várias repetições, deveria fazer de mim um homem rico graças à mais-valia extorquida aos trabalhadores (23). Como é natural, o capitalismo não pode renunciar completamente aos trabalhos «não produtivos». Mas, dado que só o trabalho produtivo constitui a «essência» (24) do capitalismo, este tem a obrigação de procurar limitar os trabalhos não produtivos e transformá-los tanto quanto possível em trabalhos produtivos. Por exemplo, um professor, enquanto tal, não é um trabalhador «produtivo». Mas, diz Marx, se ele trabalha numa escola privada criando mais-valia para o seu empregador, então torna-se produtivo (de capital) (25). A distinção que Marx faz entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo foi fortemente atacada, e é muitas vezes acusada de só reconhecer o trabalho material, em particular o trabalho industrial, como produtivo de mais-valia, com exclusão dos serviços e de todos os trabalhos imateriais que hoje supostamente constituem a maior parte do trabalho social. Trata- -se de uma acusação falsa, porque Marx nunca identificou no plano conceptual a questão do carácter produtivo ou não produtivo de um trabalho com o respectivo conteúdo material ou imaterial - mesmo se a preponderância do trabalho material na sua época lhe sugeria uma quase identidade empírica.
Contudo, hoje em dia é possível determinar melhor a questão do trabalho produtivo. Não se pode decidir num caso isolado se um trabalho é produtivo; a resposta depende da posição desse trabalho dentro do processo completo de reprodução. Só ao nível do capital global se pode ver o carácter produtivo ou não produtivo de um trabalho; as pessoas que no interior de uma empresa estão adstritas às limpezas, por exemplo, ou à contabilidade, são trabalhadores não produtivos. Constituem um mal necessário para a empresa. A organização dessas pessoas em empresas especializadas que oferecem os seus serviços às outras empresas, que deixam portanto de empregar trabalhadores fixos para essas tarefas, cria mais-valia para os proprietários de tais empresas de serviços e constitui o segredo daquilo a que se chama «terciarização». Mas estes lucros para os capitais particulares anulam-se ao nível do capital global (infelizmente este facto não está suficientemente desenvolvido na argumentação de Marx), no qual estas actividades representam sempre uma dedução da mais-valia realizada pelo capital produtivo. Para que um trabalho seja produtivo, é preciso que os seus produtos retornem no processo de acumulação do capital e que o seu consumo alimente a produção alargada do capital, sendo consumidos por trabalhadores produtivos ou tornando-se bens de investimento para um ciclo que produza efectivamente mais-valia. Assim compreendida, a diferença entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo não coincide com a distinção entre bens materiais e serviços, nem com a distinção entre despesas do Estado e investimentos privados - mesmo sendo verdade que a quase totalidade das despesas do Estado representam um consumo não produtivo (armamento, administração pública, educação, saúde, etc.). É, pois, uma parte da produção industrial que hoje é não produtiva (26).
Não é apenas a visível diminuição do trabalho no mundo contemporâneo que põe em crise a valorização, mas mais ainda o recuo invisível do trabalho produtivo. Só uma muito pequena parte das actividades levadas a cabo no mundo cria mais-valia e alimenta ainda o capitalismo (27). A diminuição do trabalho produtivo é igualmente causada pelo aumento constante daquilo a que Marx chama (com uma expressão francesa) os «faux frais», ou seja, os falsos encargos. Os sectores produtivos têm necessidade de numerosas actividades a montante, a jusante e ao lado do verdadeiro processo produtivo. Mas trata-se de trabalhos não produtivos e que muitas vezes não podem obedecer à lógica do valor. Em parte, estes trabalhos situam- -se no interior da empresa, como as limpezas ou a contabilidade que mencionámos acima. Mas a maior parte dos «falsos encargos» encontra-se a cargo do Estado. Com os impostos e restantes rendimentos, o Estado financia tudo o que é demasiado caro, mesmo para as empresas maiores (a construção de caminhos-de-ferro é o exemplo histórico mais conhecido), ou que não pode ser organizado segundo os critérios habituais do lucro, sendo contudo indispensável: a produção moderna necessita de trabalhadores qualificados, precisando portanto de um sistema educativo abrangendo toda a sociedade, coisa que um sistema educativo totalmente privado não seria capaz de garantir. A «segurança» interna e externa, os transportes, o sistema sanitário, a administração e muitas outras coisas são necessárias para que o trabalho produtivo possa desenvolver-se. Em contrapartida, o trabalho produtivo tem que ceder ao Estado uma parte do seu lucro. Cada parcela particular de capital, como é natural, fica satisfeita com o facto de encontrar infra-estruturas que funcionam bem e cujo uso é muitas vezes gratuito. Mas, para o capital global, são falsos encargos que é preciso limitar o mais possível porque caso contrario poderão ameaçar a rentabilidade da produção. Desde os começos do capitalismo, os falsos encargos têm tendência para aumentar constantemente. As causas são o aumento continuo do capital fixo, sobretudo sob a forma da cientificização da produção; mas também o efeito que têm as infra-estruturas sobre a concorrência (um capital que não tenha à sua disposição auto-estradas para encaminhar os seus produtos, perderá na competição mundial), as necessidades da pacificação social, a corrida aos armamentos, a obrigação que o capital tem de encontrar trabalhadores cada vez mais qualificados ou, pelo menos, enquadrados nos valores do capitalismo. A tentativa de organizar estas actividades também sob a forma de empresas capitalistas, típica da época neoliberal, não altera a situação ao nível do capital global e arrasta consigo o risco de fazer explodir o quadro social geral dentro do qual se desenrola a produção de valor.
A sufocação progressiva da produção de valor em virtude do aumento dos falsos encargos e do trabalho improdutivo, bem como a diminuição da massa de lucro que daí resulta, são, no plano lógico, uma consequência inelutável das contradições de base da mercadoria. A realidade histórica confirmou esta dedução lógica. Primeiro porque o capitalismo clássico, caracterizado pelo padrão-ouro - a convertibilidade ilimitada das moedas em ouro -, pelos orçamentos públicos em equilíbrio e pela livre concorrência sem intervenção do Estado, tinha chegado ao fim com a Primeira Guerra Mundial. Depois porque o capitalismo se encontra numa perpétua fuga para a frente; só continua a funcionar porque vai suspendendo as suas próprias leis. O período que vai de 1920 - e a fortiori de 1945 - até 1975 aproximadamente merece hoje, com boas razões, o nome de «fordismo». A partir da indústria automóvel americana e das inovações introduzidas por Henry Ford e Frederick Taylor (linha de montagem, «gestão científica» da força de trabalho, etc.), difundiu-se um novo sistema económico-social, primeiro nos Estados Unidos e depois, a seguir à Segunda Guerra Mundial, também nos outros países ocidentais. O fordismo andou a par dos métodos keynesianos em matéria de política económica; os resultados foram a produção em massa de bens semiduradouros a baixo preço, os salários elevados, o pleno emprego, a democracia política, os investimentos maciços do Estado nas infra-estruturas e nos serviços sociais, a estabilidade monetária e a penetração dos bens de consumo em todos os dominios da vida. Contudo, o «ciclo virtuoso» fordista não estava fundado sobre bases que lhe fossem próprias. Era o Estado, com os seus investimentos, geralmente pagos a crédito, que permitia o rápido crescimento dos sectores não produtivos - por exemplo, com a construção de auto- -estradas, sem as quais não teria sido possível a automobilização do mundo. Este crescimento tornou possível um aumento dos sectores produtivos, suficiente em termos absolutos para compensar a diminuição relativa do lucro em cada produto particular. Enchendo completamente o mundo de mercadorias, o fordismo conseguiu adiar por várias décadas a crise estrutural do capitalismo que se manifestara já nos anos vinte, explodindo designadamente com a grande crise de 1929.
Pelos anos de 1970-1975, o ciclo fordista-keynesiano esgotou- -se porque se tornara impossível continuar a financiar os «encargos secundários». O abandono do padrão-ouro em benefício do dólar, em 1971, e o regresso da inflação nos países ocidentais eram os sinais do esgotamento do ciclo. Essa crise agravou-se infinitamente por via da revolução informática. Esta revolução já não instaura um novo modelo de acumulação: desde o início, a informática torna inúteis - «não rentáveis» - enormes quantidades de trabalho. Diferentemente do que se passou com o fordismo, a informática provoca essa inutilidade a um ritmo tal que já não há extensão do mercado que seja capaz de compensar a redução da parte de trabalho contida em cada mercadoria. A informática corta definitivamente o laço entre a produtividade e o dispêndio de trabalho abstracto incarnado no valor. Ela põe a girar o «círculo vicioso» a que temos vindo a assistir de há vinte anos a esta parte. O sistema capitalista, para sobreviver numa situação em que ele mesmo serra o ramo de árvore sobre o qual está sentado - o trabalho -, é obrigado, mais ainda do que antes, a procurar subterfú gios para fazer coincidir momentaneamente a circulação e a produção suspendendo praticamente a lei do valor. É importante que nos recordemos de que a produção de bens de uso não está em crise. Mas se fosse seguida à letra a lógica do valor, dever-se-ia abandonar quase toda a produção actual por «falta de rentabilidade». Para evitar chegar a essa conclusão, o «sujeito autómato» lança-se numa fuga para a frente cada vez mais desesperada.
O capital fictício
Essa fuga faz-se indirectamente por intermédio do capital fictício, ou seja, pela autonomização dos mercados bolsistas e da especula ção. Assim, o capital prolonga a sua vida para lá dos seus limites reais consumindo antecipadamente o seu futuro, isto é, vivendo a crédito. Também o crédito está embrionariamente «contido» na estrutura elementar da mercadoria: a mediação monetária separa a venda da compra porque permite adiar o pagamento. O trabalho e o dinheiro são estádios diferentes do mesmo processo de valorização, mas podem igualmente não coincidir: o dinheiro pode multiplicar-se mais rapidamente que o trabalho morto. Este factor cria a ilusão de que o dinheiro tem o poder místico de crescer por si só, sem a mediação de um processo produtivo no qual fosse consumido trabalho. O juro monetário, em que na aparência se passa directamente do dinheiro a uma quantidade superior de dinheiro (D-D’, na linguagem utilizada no início do terceiro capítulo deste livro), torna-se na consciência comum a verdadeira forma de lucro - apesar de se tratar somente de uma dedução operada sobre o lucro obtido na produção. Na verdade, só é dinheiro «bom» aquele que resulta de um processo bem sucedido de valorização do valor operada pelo trabalho. O dinheiro que representa trabalho não produtivo e o dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança - cuja forma principal é o crédito - acabam por se desvalorizar.
A necessidade do crédito deriva do aumento contínuo do capital fixo que ultrapassa as capacidades das empresas. É pois uma consequência da produtividade aumentada do trabalho. Torna-se então indispensável investir no presente os ganhos esperados para o futuro. Enquanto esses ganhos vierem efectivamente no seguimento para pagar juros e para se poder ampliar a dívida, o endividamento não é grande problema. Mas, diferentemente do que se passava com os capitalistas do século XIX, já as empresas da expansão fordista só podiam financiar-se recorrendo ao crédito. Por outro lado, por causa da explosão dos encargos «não produtivos», os «falsos encargos», uma parte crescente dos créditos servia apenas para alimentar o consumo não produtivo. Por outro lado ainda, os Estados - que até à Primeira Guerra Mundial apresentavam orçamentos mais ou menos equilibrados - tinham começado a endividar-se para poderem assegurar as condições infra-estruturais necessárias às economias nacionais. Sendo certo que Keynes pensava que a intervenção do Estado não devia servir senão para «empurrar» a acumulação de modo a que ela pudesse depois voltar a arrancar sobre as suas próprias bases, a verdade é que essas intervenções rapidamente se revelaram uma conditio sine qua non para o funcionamento da economia, e ao mesmo tempo um peso em crescimento permanente para as finanças públicas.
Quando se esgotou o mecanismo que compensava a diminui ção da produtividade de valor através da ampliação da produção, o financiamento por via do crédito mudou de natureza. Depois de as quantidades de créditos em circulação terem ultrapassado largamente a quantidade de ouro existente, a abolição da convertibilidade do dólar em ouro (1971) desarticulou o último dispositivo de segurança. A partir de então, o dinheiro baseia-se exclusivamente na confiança, e não há limite algum para a sua multiplicação. Mas, em boa verdade, o dinheiro mais não é do que a incarnação do trabalho abstracto despendido no interior de processos de valorização suficientemente rentáveis. Como é natural, o Estado pode imprimir papel-moeda sem levar em conta a quantidade de trabalho produtivo, tanto mais que tal quantidade não pode ser medida directamente. Os actores económicos podem criar dinheiro sob a forma de acções, obrigações, empréstimos, etc. Mas a quantidade de dinheiro excedente perde fatalmente o seu valor na inflação ou na deflação. A redução drástica do trabalho produtivo à escala global faz igualmente com que o dinheiro perca a sua substância: o dinheiro torna-se «não válido». Se se calculasse todo o dinheiro que circula no mundo sob todas as sua formas (acções, obrigações, títulos de dívida, etc.), dividindo-o de seguida pelo número de habitantes do planeta, chegar-se-ia provavelmente a uma inflação global de várias centenas porcento. Se essa hiperinflação não se manifesta ainda, é porque em grande parte o dinheiro permanece «resguardado» nas estruturas financeiras sob a forma de acções, de dinheiro «virtual», de «direitos especiais de levantamento antecipado», etc.
A multiplicação milagrosa do dinheiro suscitou fortes receios no início dos anos setenta - mas as somas em causa nessa altura não eram mais do que uma pequena fracção do «capital fictício» que viria a estar em circulação trinta anos mais tarde. O conceito de «capital fictício» foi desenvolvido por Marx no terceiro volume do Capital para designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação e na expectativa de ganhos futuros; logo que alguém exija o pagamento real das dívidas, a «bolha» não poderá deixar de rebentar com falências em cadeia. Porém, na época de Marx, tratava-se de um epifenómeno de que vinham acompanhadas as crises económicas reais. Os crashes financeiros tinham nesse tempo uma função de purga e não 'afectavam os processos produtivos reais. Até ao final do ciclo fordista, a especulação financeira seguia mais ou menos o ritmo e as dimensões da acumulação real.
Tudo isso mudou enormemente a partir do momento em que a acumulação real, apesar de todos os créditos, estagnou. A partir de então, o recurso ao crédito serve para estimular uma acumulação inexistente e para prolongar artificialmente a vida de um modo de produção que já está morto28. Somente uma quantidade muito pequena dessa liquidez circulante foi emitida directamente pelos Estados; a maior parte são acções, obrigações, créditos, valores imobiliários, «dinheiro electrónico», etc. - o que contribui para tornar este processo completamente incontrolável. Mediante uma reviravolta grotesca, que nem mesmo Marx foi capaz de prever, a produção real passou a ser um apêndice do capital fictício. Os movimentos vertiginosos registados a partir de 1987 nos mercados bolsistas já nada têm a ver com as oscilações conjunturais daquilo que resta da economia real. O capital fictício tornou-se inclusivamente o verdadeiro motor do crescimento. Os ganhos realizados com operações financeiras puramente especulativas tornaram-se um elemento indispensável nas finanças das empresas, dos Estados e dos privados - quer se trate do «milagre económico» americano, financiado com o maior endividamento da história, ou das numerosas famílias americanas que obtêm créditos bancários exclusivamente com base nas acções que detêm e na expectativa de que o respectivo preço venha a subir, ou das empresas, mesmo empresas «sérias», que têm orçamentos equilibrados apenas graças a receitas financeiras. Neste quadro, o famoso endividamento do terceiro mundo não é senão uma pequena parte de todo o capital fictício. Já não são apenas as receitas do Estado, mas também as de toda a sociedade, que se encontram antecipadamente gastas.
Não é possível entrar aqui nos meandros das finanças internacionais e descrever os circuitos internacionais do défice (em que o défice entre os Estados Unidos e o Japão é o mais importante). A derrocada da estrutura financeira efectivar-se-á apenas após um certo período de incubação. Mas terá consequências catastróficas pois ver-se-á então que a acumulação real já terminara há muito. A subida cada vez mais fantástica dos mercados bolsistas segue a par da aparente tranquilidade das instituições económicas internacionais, que sem pestanejar fazem chegar aos países em falência (como a Indonésia, o Brasil ou a Turquia) somas - da ordem das dezenas de milhar de milhões de dólares - que poucos anos antes teriam feito estremecer até aos seus fundamentos as finanças internacionais, como sucedeu no caso da crise do México em 1995. Contudo, os movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a consequência das perturbações na economia real. A economia real não progrediria melhor se fossem abolidos os «excessos» especulativos, como tratam de pregar certos observadores inquietos, por exemplo, George Soros ou Ignacio Ramonet. Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar logo que lhe tenham sido retiradas as muletas da especulação. Com efeito, depois do rebentamento da bolha financeira, ver-se-á que era precisamente ela que durante um certo período escondia o facto de que a acumulação de valor tinha já atingido o seu limite histórico. Naturalmente isso não significará necessariamente o fim da produção de bens de uso - com a condição, contudo, de esta última ser desligada da produção de valor.
A «desvalorização do valor» não é somente uma crise económica, antes significa uma crise total: o colapso de toda uma «civilização». A produção de mercadorias já não constitui um sector no quadro da vida social, antes ocupa nela uma parte cada vez maior, tanto geograficamente como no interior da sociedade, tanto em extensão como em intensidade. O final desta produção de mercadorias será portanto catastrófico para todo o planeta. Uma derrocada do capitalismo em 1900 teria sido muito mais limitada nas suas consequências. Hoje em dia, a sociedade mercantil, depois de ter sequestrado todos os recursos da humanidade, retira-os aos homens e renuncia quase completamente à sua utilização. Os homens já não podem pôr em acção os seus próprios meios, porque o fetiche da «rentabilidade» não o permite. Ao mesmo tempo, o «sujeito autómato» já não pode incorporar a força de trabalho que está disponível em grandes quantidades: todas as forças produtivas têm que passar pelo buraco da agulha da respectiva transformação em valor, e esse buraco torna-se cada vez mais estreito.
O valor conduz à sua própria abolição precisamente por causa dos seus sucessos. A vitória definitiva do capitalismo sobre os restos pré-capitalistas representa também a sua derrota definitiva. Quando o capitalismo, plenamente desenvolvido, coincide com o seu conceito, não se chega a uma situação que signifique o fim de toda e qualquer possibilidade de crise, mas antes pelo contrário chega-se àquilo que é o início da verdadeira crise. Com efeito, a transformação do trabalho em valor não pode ter lugar se não estiver rodeada por um grande número de outras actividades que, por seu turno, não podem seguir os critérios da rentabilidade e da transformação em valor, ou são actividades em que o dispêndio de trabalho não é sequer determinável. Os «falsos encargos» da produção representam somente uma parte de tais actividades, e uma parte que se encontra ainda no interior do campo «económico». Muito mais espalhadas, ainda que incalculáveis, encontram-se todas aquelas actividades que são indispensáveis à reprodução social e que se desenrolam fora da esfera «económica». Pode falar-se de um «reverso obscuro» da valorização, ou seja, de uma enorme zona de sombra sem a qual não existiria a luz daquilo que vale como «produção». A parte mais importante destas actividades que não são consideradas «trabalho», e que portanto não são pagas, é efectuada pelas mulheres. «O valor é o macho» diz o título de um ensaio de Roswitha Scholz, publicado na revista Krisis, n.° 12 (1992) (29). Apesar do seu carácter abstracto, o valor não é «neutro» no plano do sexo, porque se baseia numa «cisão»: tudo o que é susceptível de criar valor é «masculino». As actividades que em caso algum podem tomar a forma do trabalho abstracto, e sobretudo a criação de um espaço protegido onde o trabalhador possa repousar das suas fadigas, são estruturalmente «femininas» e não são pagas. É uma das razões pelas quais a sociedade capitalista negou durante muito tempo à mulher o estatuto de «sujeito» (por exemplo, o direito de voto). Na sociedade mercantil, só o indivíduo que despende trabalho abstracto é considerado como sujeito de pleno direito. As outras actividades, por mais fatigantes e necessárias que sejam, mas que não alcançam a «dignidade» de se ser consumido directamente pela máquina da valorização, permanecem marcadas com o sinal da inferioridade. É, pois, uma consequência da lógica do valor o facto de se considerar que a mulher que trata do sogro idoso não «trabalha», ao passo que o marido, que produz bombas ou porta-chaves, esse sim, «trabalha». É certo que nas últimas décadas muitas mulheres passaram a ser «sujeitos», no sentido da mercadoria, chegando mesmo por vezes a ocupar lugares de direcção. Mas para tanto precisaram de se tornar «machos»: com efeito, a «cisão» operada pelo valor implica também que o sujeito capitalista desenvolva em si mesmo somente as qualidades necessárias ao sucesso no mundo do trabalho, e essas qualidades são estruturalmente consideradas como sendo «masculinas»: autodisciplina, racionalidade, lógica, firmeza relativamente a si próprio e aos outros. A própria parte «feminina» dos indivíduos é inteiramente delegada nas mulheres que devem utilizá-la para «mobilar» o repouso do guerreiro. O facto de hoje em dia essas qualidades, que são evidentemente culturais, poderem estar dissociadas dos seus portadores biológicos mais não faz do que reforçar o mecanismo estrutural: aquele que, homem ou mulher, se comportasse no mundo do trabalho segundo critérios tradicionalmente «femininos», como a compaixão, não iria muito longe.
As propostas no sentido de alterar esta situação pelo pagamento do «trabalho» doméstico ou dos cuidados com a educação das crian ças não conduzem a nada. Já não falando no seu carácter ilusório numa época em que o Estado se vê forçado - não por más escolhas políticas - a diminuir as suas despesas sociais, estas propostas significariam estender a lógica do valor e do trabalho abstracto a novos sectores em vez de se reconhecer o respectivo fracasso. O valor entra em colapso precisamente no momento em que procura transformar toda a actividade humana, cada movimento de respiração e cada pensamento, em trabalho abstracto para contrariar o esgotamento do trabalho. Mas na sua maior parte estas actividades, entre as quais os cuidados prestados às crianças, a afectividade nas relações humanas (que também faz parte da «reprodução da força de trabalho»), as actividades domésticas, não podem, pela sua própria natureza, entrar na camisa-de-forças do valor. Pode imaginar-se que seria possível romper a lógica que reconhece o estatuto de sujeito somente a quem exerce «trabalho abstracto», mas não é possível transformar cada um dos indivíduos à escala mundial num tal sujeito no próprio momento em que o estreitamento do valor expulsa cada vez mais gente desse estatuto - um desempregado, por exemplo, ou o indivíduo que recebe ajuda pública já perderam uma parte da sua «dignidade» em face do valor.
No final da sua trajectória histórica, o pior mal que o capitalismo faz aos homens já não é a exploração. É sobretudo a expulsão. O estádio final do capitalismo não se caracteriza pela existência de um proletariado cada vez maior e cada vez mais revolucionário - também porque a diminuição do capital variável faz com que o trabalho assalariado perca a sua importância e portanto faz com que o proletariado clássico perca também a influência que teve. O estádio final do capitalismo caracteriza-se, pelo contrário, pela ausência de pessoas que valha a pena explorar. Poder-se-ia objectar à crítica do valor que, se a mais-valia não é senão uma categoria derivada, daí deveria decorrer a possibilidade de uma produção de valor sem mais-valia. Na verdade tal coisa é impossível. Mesmo se a taxa e a massa do lucro baixam continuamente, têm contudo que continuar a existir de um modo qualquer, porque caso contrário a produção de valor enquanto tal perderia a sua razão de ser e retrocederia para a produção de bens de uso. Mas não decorrerá daí a existência necessária de uma classe explorada de trabalhadores assalariados? Formalmente, sim, no sentido de que efectivamente terá que haver alguém que produz mais valor do que aquele que recebe. Contudo, tal facto não precisa de corresponder necessariamente à ideia tradicional de massas operárias exploradas (ao passo que o marxismo se fixou numa certa forma de existência histórica e empírica da categoria lógica do «trabalhador»). Nos nossos dias, a nível mundial, um pequeno estrato de trabalhadores produtivos, frequentemente muito bem pagos, consegue, com um emprego extremamente elevado de capital fixo, produzir para os seus empregadores uma mais-valia muito maior do que aquela que produziriam grandes quantidades de trabalhadores com salários baixos - também porque os produtos dos primeiros, em virtude dos mecanismos que regulam a concorrência no mercado mundial, se apropriam de uma parte sobredimensionada da criação mundial de valor. A necessidade de criar mais-valia continua a existir estruturalmente no capitalismo, mas hoje exprime-se menos na «exploração» (sobretudo se se identifica essa «exploração» com a «pobreza», porque um operário europeu, por maior que seja o seu sobretrabalho, é um indivíduo rico, à escala mundial) do que no facto de uma parte crescente da humanidade ser expulsa do processo de produção, consequentemente posta à margem de todas as possibilidades de reprodução e de sobrevivência. A absorção de trabalho vivo continua a ser o «carburante» do modo de produção capitalista, mas onde essa absorção efectivamente funciona garante pelo menos a sobrevivência dos explorados. Hoje em dia, contudo, há populações inteiras que já não são «úteis» para a lógica da valorização. Já não se trata de um exército crescente de proletários, mas sim de uma humanidade supérflua: eis o estádio final do capitalismo ao qual ele é conduzido pela necessidade contínua de criar mais-valia. O capitalismo pode ter triunfado sobre os adversários que assumiu serem os seus, mas não pode vencer a sua própria lógica. É o resultado da contradição entre as capacidades elaboradas pela espécie humana e a sua forma efectiva alienada (30).
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