sábado, 8 de agosto de 2015

Reflexões sobre normalidade e desvio social


por Richard Miskolci [1], publicado previamente aqui




RESUMO: O texto expõe como se instituiu uma das oposições fundamentais na organização de nossa sociedade. A partir da reconstrução histórica do processo de normalização chegamos ao movimento sócio-científico da eugenia e a poderosa teoria da hereditariedade sob o qual ela se assentava. A categoria social dos anormais é analisada como produto de discursos e práticas sociais, portanto, historicamente. Por fim, apresentamos algumas considerações sobre a polaridade normalidade e patologia na sociedade contemporânea e a persistência de teorias que visam naturalizar diferenças individuais e desigualdades sociais.

 PALAVRAS-CHAVE: Normal; patológico; sexualidade; hereditariedade; eugenia; degeneração.


 Ao contrário do que reza o senso comum, a distinção entre normalidade e patologia não se circunscreve apenas à área da medicina e é uma das oposições que regem a organização de nossa sociedade. Assim, devemos começar nossas reflexões com duas perguntas que à primeira vista parecem provocações: O que é normal? O que é desvio? A resposta a estas duas questões intercambiáveis não pode ser encontrada nas ciências naturais. O que se qualifica de normal não é um dado natural e evidente, antes o resultado de discursos e práticas sociais. 

 A normalidade tem uma história, é algo que foi construído num processo longo e complicado. Na primeira parte de nosso texto exporemos de forma geral esse processo de normalização e suas principais características. Depois, mostraremos como as práticas sociais e os discursos se associaram com o intuito de controle social no período que vai do fim do século XIX até a Segunda Guerra Mundial, época em que a eugenia se tornou um movimento social e científico poderoso. Mostraremos como a sociedade burguesa constituiu a categoria dos anormais e traçaremos algumas considerações sobre a anormalidade em nossos dias. Nosso principal intuito é o de desconstruir categorias sociais que foram historicamente criadas, mas que a sociedade burguesa tomou como espécies biológicas.

O processo de normalização

 
O processo de normalização de todos os aspectos da vida social durante os últimos séculos foi decisivo para a generalização da normalidade como ideal. A primeira forma de comportamento submetida à normalização foi a linguagem e talvez se possa usar como data marcante a fundação da Academia Francesa em 1635.

 Até 1830 a palavra inglesa normal mantinha como significado corrente o de ortogonal e é na década de 1820 que Auguste Comte (1791-1857) dá à palavra sua primeira conotação médica. Exprimia, assim, sua esperança de que as leis relativas ao estado normal do organismo seriam conhecidas e seria possível estudar a patologia comparada. O uso do termo normal como o conhecemos surge da intersecção do conhecimento sociológico e do médico. Ambos estavam imbuídos do mesmo interesse de medir, classificar e disciplinar os indivíduos de forma a que estes se conformassem à normalidade.

 A norma desvaloriza o existente para corrigi-lo. O termo anormal implica referência a um valor, é um termo apreciativo. Normal vem de normalis, norma, regra. Normal também significa esquadro e, assim, etimologicamente, normal é aquilo que não se inclina nem para a esquerda nem para a direita, portanto é aquilo que é como deve ser; e, no sentido mais usual, o que se encontra na maior parte dos casos de uma espécie ou o que constitui a média numa característica mensurável. Em suma, a individualidade, por caracterizar-se por um afastamento da média é facilmente qualificada de patológica.

 O processo de normalização teve um intuito disciplinar, o qual se relaciona com o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade burguesa. A Revolução Burguesa do século XVIII não marcou apenas a constituição de uma nova sociedade institucional, mas também a invenção de uma nova tecnologia de poder baseada na disciplina. Esse poder disciplinar ou normativo se caracteriza por uma técnica positiva de intervenção e transformação social. O projeto normativo burguês se assenta na norma como um princípio de qualificação e de correção ao mesmo tempo. Assim, a norma não visa excluir ou rejeitar, antes é a pedra de toque de um exame perpétuo de um campo de regularidade dentro do qual se analisa incessantemente cada indivíduo para julgar se ele é conforme a regra ou a norma hegemônica.

 É assim que começou a se instituir o que Michel Foucault denominou de bio-poder, o conjunto de práticas e discursos que instituem a sociedade burguesa e a organizam. Nessa primeira fase, o corpo e a espécie passam a ser considerados paralelos e a espécie humana passa a ser contabilizada, classificada, objeto de estimativas e pesquisas quantitativas. Os governos tornam-se crescentemente preocupados com a “população”, seus fenômenos e variáveis próprias como a natalidade, a mortalidade, a esperança de vida e a incidência de doenças.
  
 O bio-poder se consolidou no século XIX, com o surgimento da família canônica na década de 1830, como instrumento de controle político e regulação econômica. Todos os “desvios” do modelo economicamente produtivo e biologicamente reprodutivo da família burguesa passaram a ser classificados como aberrações. Assim, a família tornou-se o local privilegiado para a distinção entre o normal e o anormal e isso se deu a partir do dispositivo de sexualidade. 

 Na família burguesa, os pais e cônjuges tornaram-se agentes do dispositivo de sexualidade que se apoiava nos médicos, pedagogos e, posteriormente, nos psiquiatras. Entre 1760 e 1780 houve uma grande campanha contra a masturbação na França baseada no temor do incesto. A teoria do incesto foi essencial no processo de estabelecimento da família burguesa porque atribuía às crianças a culpa pelo desejo sexual. Nela, a criança deseja o pai ou a mãe, não o inverso. Além disso, o desejo dos filhos é afirmado como propriedade dos pais, o que os fazia aceitar sem maiores temores o progressivo distanciamento das crianças imposto pelo sistema educacional criado pelo Estado. Por fim, mas não por menos, a possibilidade do incesto tornou desejável a interferência de um médico, um especialista de fora da família. Isso abriria espaço para a aceitação da psiquiatria e, mais tarde, da psicanálise, como regulador familiar.

 É importante frisar que a preocupação com a sexualidade é burguesa, portanto de maior importância nas classes altas da sociedade. No período em que a masturbação preocupava essas classes, a questão primordial para a famí- lia proletária era com a normalização das relações familiares de acordo com o modelo burguês. Assim, as famílias pobres, especialmente entre 1820 e 1840, foram o alvo de campanhas pela formalização das uniões através do casamento, ou ainda pela separação dos membros da família em diferentes camas, até chegar a quartos distintos para pais e filhos. 

 Percebe-se que a sexualidade era vista por todos como um perigo. A família burguesa temia a sexualidade infantil enquanto projetava na família proletária a suspeita de que os adultos ameaçavam sexualmente os filhos. Portanto, nessa época há duas formas de poder, intervenção e controle das famí- lias. No caso burguês vigora desde o início o poder da medicina enquanto nas famílias proletárias o poder é jurídico, de normalização legal das uniões e da estrutura familiar de acordo com os padrões burgueses. 

 Em resumo, é no século XVIII que se inicia o mecanismo psiquiátrico-familiar que desenvolver-se-á durante o século seguinte. A personagem da criança masturbadora fez com que a sexualidade passasse a ser considerada parte do reino da patologia. A masturbação era vista como fonte de doença e, desta forma, surgiu a necessidade do recurso à medicina para racionalizar o espaço familiar.

 Durante o século XIX a psiquiatria buscou abranger o grande domínio que ia da irregularidade familiar à infração legal e, nesse sentido, passou a associar as irregularidades dentro e fora da família. Um criminoso passou a ser julgado não mais por seu crime, mas por seu passado, sua posição dentro da família; portanto, por sua inconformidade à formação normativa. A condena- ção deixou progressivamente de caber ao juiz, o qual apenas sanciona o diagnóstico do expert psiquiátrico [2].

 A psiquiatria tomou como tarefa criar a árvore genealógica de todos os problemas sexuais e, dentro desse intuito, surgiram os grandes tratados de psicopatologia sexual. O primeiro foi publicado em latim por Heinrich Kaan, um médico de Leipzig, em 1844. Seu livro marcou uma nova fase no discurso sobre a sexualidade por afirmar que : “O instinto sexual comanda toda a vida psíquica e física” (KAAN apud FOUCAULT, 1999, p.267). A partir de então, o instinto sexual passou a ser compreendido como a força primária por trás da economia dos instintos.

 A psiquiatria separou a reprodução do instinto sexual. Nessa dissociação analítica reside um projeto, qual seja, o de apresentar o prazer como intrinsecamente ligado às “aberrações sexuais”. As teorias sobre os instintos e suas aberrações são necessariamente ligadas ao “problema” da imaginação e do prazer. A tríade instinto-imaginação-prazer reside por trás de todas as descrições de aberrações sexuais, ou, usando o termo que as abrangeria em uma categoria única: a degeneração.

 Max Nordau afirmou em seu Entartung (Degeneração-1895) que o degenerado seria o “desvio mórbido de um tipo original” (NORDAU apud GILMAN, 1985, p.175). Deve-se ressaltar que o que caracteriza o “anormal” é sua suposta doença. A idéia de um desvio do “tipo original” evoca a temática bíblica da queda e revela que sob o traje de cientificidade a psiquiatria apenas transformou a temática cristã do pecado em doença. Dessa forma, o poder da medicina sucedeu o da religião em nossa sociedade substituindo a questão da morte e do castigo eterno pelo problema da normalidade ou anormalidade, ou ainda, de forma mais clara, saúde ou doença.

Entre 1850 e 1870, a psiquiatria ganhou poder crescente ao abandonar os temas do delírio, a alienação da realidade e se voltar para a questão do comportamento, do desvio e das anormalidades. A referência do discurso psiquiátrico tornou-se o desenvolvimento normativo. Assim, constitui-se numa medicina que não se preocupava com doenças, mas sim com o impasse do patológico.

 Incontáveis foram os teóricos das mais diversas áreas do conhecimento a defenderem reformas sociais baseadas no controle médico da sociedade. B. A. Morel e Gobineau na França consideravam válida a analogia entre classe e raça e definiam a mobilidade de classes como uma forma de “miscigenação”, termo criado pela pseudociência racial da época e que descrevia o temor da degenera- ção inerente dos filhos de pais de origem racial diferente. O mestiço convivia com o estigma de uma fraqueza intrínseca, o fantasma de ter se afastado de suas origens e estar condenado a desenvolver comportamentos desviantes.

 Desvio é um termo apreciativo e relacional, só pode ser aplicado quando se pressupõe o que é “reto”. O desvio é sempre relativo a uma das características do homem considerado padrão por nossa sociedade, ou seja, o homem branco, heterossexual e burguês. O desvio da raça branca o tornaria fraco segundo as teorias eugênicas e psiquiátricas, ou ainda infértil, como atesta o termo utilizado para se referir ao filho de um branco e um negro: mulato, diminutivo para o termo espanhol mulo, ou seja, a cria estéril de um cruzamento de égua com jumento. O desvio da heterossexualidade era visto como uma forma de insanidade ou degeneração sexual. Por fim, qualquer que fosse o desvio da normalidade, o indivíduo afastar-se-ia do padrão burguês e, portanto, da ordem social na qual ele tinha que se inserir.

 A razão principal contida nas categorias da anormalidade vem à luz quando se analisa a criação do Hospital Geral. Apesar dos documentos afirmarem que aquele espaço de reclusão foi criado para alojar apenas loucos, Foucault expõe como o alojamento dos “sem-razão” na verdade se constituiu a partir de uma nova concepção social da pobreza e do trabalho. A pobreza perdeu seu caráter religioso e passou a ser associada a uma desordem moral, um obstáculo à ordem social que a condenou e exigiu sua exclusão. O trabalho, nessa perspectiva, era concebido como a cura da pobreza, de sua origem numa suposta falta de disciplina e adesão aos maus costumes.

 A sociedade burguesa criou a norma da atividade produtiva e passou progressivamente a perseguir os inativos. Na verdade, o próprio termo inatividade mascara a apreciação negativa das atividades sem fins lucrativos, ditas inúteis ou improdutivas. A partir disto, pode-se afirmar que a oposição entre normalidade e patologia deve ser compreendida como o resultado do desenvolvimento da sociedade burguesa, na qual a produtividade econômica e utilidade prática são consideradas os principais padrões de referência de identidade para os indivíduos. O louco e seus companheiros no Hospital Geral, libertinos, venéreos, prostitutas e sodomitas, passaram a constituir a categoria dos anormais, uma categoria que vai abarcar um número crescente de tipos sociais e deixar de se restringir àqueles isolados do convívio social.

 A eugenia

 
Depois do exposto acima temos elementos suficientes para explorar como o discurso científico se relacionou com práticas sociais para constituir a sociedade contemporânea. Exporemos como um movimento científico-social - a eugenia - ampliou o espectro de controle da normalidade de forma a prescindir do isolamento dos indivíduos em instituições fechadas.

 Um grande medo tomou as sociedades centrais durante o final do século XIX, portanto dentro do período histórico imperialista. Esse medo tinha duas faces, uma interna e uma externa. Na Europa, teóricos se esmeravam em apontar a suposta decadência física causada pela industrialização, pela urbanização crescente e pela vida moderna. Além disso, havia o temor de inimigos externos. Ao mesmo tempo em que as nações europeias colonizavam e exploravam a maior parte do mundo, também temiam o contágio por doenças exóticas e a mistura com raças que consideravam inferiores.

 A preocupação com desordem social e decadência que marcou a sociedade Ocidental a partir de meados do século XIX deu origem ao discurso de perigo e perversão que moldou o imaginário burguês. Muitos foram os intelectuais e médicos que advogavam a crença numa tendência social à decadência. Essa tendência foi apontada como biológica e recebeu o nome de degeneração, um termo criado por Bénédict-Augustin Morel baseado na teoria de Darwin do desenvolvimento das espécies. O psiquiatra francês denominou várias patologias somáticas e psicopatológicas como degenerativas em 1857.

 A Segunda Revolução Industrial e a conseqüente constituição de uma nova sociedade deram origem a um grande temor de mudança. As últimas décadas do século XIX presenciaram crescente competição econômica entre as nações e a emergência de novas demandas por parte de grupos marginalizados. Socialmente, o otimismo da Primeira Revolução Industrial começou a dar lugar a um pessimismo generalizado sobre a vida moderna e seus problemas. Esse sentimento forneceu o contexto no qual puderam se desenvolver discursos científicos preocupados com a diagnose, controle e até reforma do que se considerava uma “sociedade em perigo”. “Degeneração” substituiu evolução como a metáfora da época e esse estado decadente era considerado o resultado de muitas causas, entre as quais o vício, a violência, a imigração, o trabalho feminino e o desenvolvimento urbano [3].

 A própria ordem social tendia a ser compreendida em termos vitalistas, o que é explicitado pela adesão das nascentes ciências sociais ao modelo biológico. A analogia entre sociedade e corpo foi formulada pela primeira vez por Auguste Comte no início do século XIX. Na Alemanha, Rudolf Virchov em seu livro Patologia Celular (1858) associava a interação de células no corpo com a interação entre os cidadãos e o corpo político. A doença originar-se-ia apenas de dois modos: através de uma força ativa exterior ou através de uma fraqueza interna, a qual Virchov denominava de degeneração.

 Na França, a associação entre doença moral e sexualidade adentrou na esfera social com a discussão da degeneração social e racial nas obras de Morel e Gobineau. Os teóricos franceses viam a mobilidade de classes como quase tão perigosa quanto a hibridização, ou, para o usar o termo então criado pela pseudociência racial nos Estados Unidos, miscigenação.

 Na Alemanha, onde a saúde pública desenvolvera-se de forma mais rápida do que nos outros países europeus, a obra de Eduard Reich foi de decisiva influência. Reich advogava a crença na necessidade do controle público da degeneração humana, especificamente pelo controle da atividade sexual. Seus livros expunham uma moral rígida que via na masturbação, na falta de supervisão e controle estatal da prostituição - e até mesmo nas alterações da estrutura de classes sociais - fontes de doença social. Seu livro mais influente, o Über die Entartung des Menschen: Ihre Ursachen und Verhütung (Sobre a Degeneração do Homem: sua origem e prevenção, 1868), afirmava que a organização social e política de um país podia causar a corrupção de seus membros. A organização social fundada na escravidão negra era apresentada como potencialmente disseminadora de sexualidade degenerada, mas Reich também condenava outras “ameaças” à ordem política alemã da época, especialmente a democracia.

 O discurso sobre os perigos da vida moderna marcou as nascentes ciências sociais e encontrou expressão clara no que se denominava “anomia”, um suposto comportamento sociopático que poderia resultar em atos dirigidos contra os outros, violência, ou contra si mesmo na forma de suicídio. A ciência social proposta por Auguste Comte (1791-1857) já expunha métodos análogos ao da biologia, mas é em Émile Durkheim (1858-1917) que encontramos de forma mais clara a ambição de criar uma ciência social a partir do modelo das ciências naturais. A definição de Durkheim da sociedade moderna pela solidariedade orgânica ressalta o temor da desagregação e da anomia, assim como revela que a distinção entre o normal e o patológico é uma das bases de seu pensamento. As teorias da definição de gêneros e espécies de sociedades levam a essa distinção porque o intuito do sociólogo era o de separar os funcionamentos normais dos anormais para criar uma espécie de patologia das sociedades e propor alguma forma de reforma social (cf. ARON, 1995, p.342). O cerne do pensamento durkheimniano pode ser descrito como a busca de reconstruir o consenso social e reforçar a autoridade dos imperativos e dos interditos coletivos [4]*.

 Segundo Foucault, a influência das ciências biológicas sobre as humanas no século XIX se deve ao fato de que, ao abordarem a vida de grupos e sociedades, e até a vida “psicológica”, essas ciências não pensaram na estrutura interna do ser humano, mas sim na bipolaridade médica do normal e do patológico. Essa tendência geral a classificar como patológicos estados de inconformidade revela uma classificação moral e legal de um saber que se constitui pela negação das diferenças individuais.

 Além do temor da anomia, havia correntes científicas que afirmavam que a tuberculose, a sífilis, doenças mentais e até o alcoolismo, em suma doenças que atingiam os mais pobres, eram hereditárias. Muitos criam que a “rápida multiplicação” dos “degenerados” seria a grande questão a resolver.

 Como reação ao suposto perigo da degeneração surgiu um movimento que unificava várias áreas do conhecimento sob a mesma retórica da necessidade de proteção da sociedade: a eugenia. O termo eugenia (do grego eugenes, bem nascido) foi criado pelo cientista britânico Francis Galton em 1883 para abarcar os usos sociais da teoria da hereditariedade voltados para a reprodução controlada visando melhores “seres humanos” ou para preservar a “pureza” de determinados grupos étnicos considerados superiores.

A eugenia, como 'ciência', baseava-se nas então recentes teorias da hereditariedade, mas como movimento social estava envolvida em propostas de melhora da hereditariedade pelo encorajamento da reprodução dos “sadios” e, principalmente, pelo desencorajamento da reprodução dos “degenerados”, os quais deveriam abster as futuras gerações da herança de suas más características [5].

 Os “incapacitados” receberam o rótulo científico de degenerados. Essa classificação significava que o indivíduo “degenerado” teria um destino inevitável de fraqueza, doença e comportamento social perigoso. A degeneração era considerada uma condição hereditária adquirida sem nenhuma perspectiva de cura e, portanto, definitiva.

 A teoria da hereditariedade conferiu mais poder à Psiquiatria, o que a transformou numa espécie de tecnologia do casamento. Este poderia ser considerado saudável ou doentio, mas sobretudo compreendido como responsável socialmente. Como afirmou Foucault, com a teoria da hereditariedade a Psiquiatria recebeu o status de ciência da proteção biológica da sociedade.

 A ênfase na hereditariedade como fórmula explicativa da normalidade ou anormalidade de um indivíduo foi intensificada a partir da teoria de continuidade do “germoplasma” (embrião plasmático ou germ plasm em inglês) criada pelo biólogo alemão August Weissmann na década de 1890. Como explica Nancy Leys Stepan: “Weissmann propôs que o germoplasma era completamente independente do resto da célula (o somaplasma) e que o germoplasma era herdado continuamente de uma geração para outra sem alteração por influências externas” (STEPAN, 1996, p.24). O germoplasma que os eugenistas criam ser alterado para pior devido à hereditariedade adquirida seria transmitido para gerações futuras pela reprodução sexual. A herança genética “corrupta” seria inevitavelmente transmitida para os filhos e neles manifestar-se-ia. Segundo os eugenistas, a herança genética degenerada não era passível de correção com a educação ou tratamento médico adequados. Assim, casamentos inter-raciais ou com pessoas “anormais” legariam a seus descendentes as piores características dos pais e à sociedade um indivíduo perigoso.

A teoria de Weissmann do germoplasma parecia ter sido confirmada em 1900 com as leis mendelianas de agrupamento e recombinação de características hereditárias em plantas. A estabilidade das características mendelianas durante cruzamentos genéticos e seu reaparecimento intocado nas várias gerações futuras, em definidos ratios numéricos, levou cientistas a acreditarem na noção weissmanniana da autonomia e inviolabilidade do germoplasma, no qual o material genético seria carregado. Assim, a teoria da hereditariedade reforçou a eugenia e estendeu sua influência a outros discursos [6].

 O alvo dos livros escritos pelos grandes teóricos da degeneração, como Richard von Krafft-Ebing, Cesare Lombroso e Max Nordau, não era nenhuma doença em particular, mas o que passou a ser considerado como o grande perigo: a anormalidade. O discurso de perigo e perversão que marcou a eugenia jamais tentou prover uma terapia para “curar” o indivíduo patológico, antes buscou justificar o aparato médico-jurídico que deu suporte ao processo normativo que instituiu a sociedade burguesa. Esse processo de normalização começou a ser justificado pela teoria da degeneração de Morel, a qual tornou possível demarcar uma área de perigo social e conferir a ela a condição patológica necessária para justificar, e principalmente para exercer, seu controle.

 O conceito de degeneração no qual a Psiquiatria se baseava incentivou um racismo étnico. Esse racismo espalhou a crença na herança de “más” características adquiridas e, através desse discurso do medo, “protegeu” a população da miscigenação e do que era considerado seu resultado: o mestiço ou anormal, não um indivíduo simplesmente doente, mas um irremediavelmente degenerado. É importante sublinhar o fato de que o assim chamado “degenerado” não era uma pessoa doente. Caso o fosse, uma terapia poderia ter sido criada para curar o indivíduo. A degeneração era apresentada, sobretudo, como uma condição de anormalidade herdada e definitiva.

No Brasil, a eugenia teve forte influência na formação das ciências sociais. Em nosso país, essas ciências se desenvolveram inicialmente nos institutos históricos – o Museu Paulista, o Museu Nacional e o Museu Paraense de História Natural - e nas faculdades de Direito do Recife e São Paulo, além das de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Muitos médicos e advogados incorporaram as novas teorias europwias dentro de uma perspectiva ultraconservadora em que o racismo servia como forma de justificação da forte desigualdade social que caracterizava – e ainda caracteriza – a sociedade brasileira [7].

O negro era visto como um impedimento para o avanço da civilização no Brasil e a miscigenação discutida em seu potencial “branqueador” ou de criação de uma nação biologicamente degenerada. Na Europa e Estados Unidos, o Brasil era sempre citado como o exemplo de uma nação sem futuro por causa de sua liberalidade racial [8]. Os documentos das reuniões internacionais sobre Eugenia demonstram o esforço norte-americano no controle da miscigenação na América Latina e a posição ambígua do Brasil, o qual não adotou o controle dos casamentos com as carteiras de controle eugênico que chegaram a ser emitidas na Argentina, mas também não se declarou abertamente como país miscigenado.

 A eugenia continuou poderosa até a ascensão nazista e o programa de “limpeza étnica” alemão que levou ao Holocausto. Depois da Segunda Guerra Mundial, um grande silêncio se impôs sobre ela e até hoje poucos se debruçaram sobre a história sombria dessa corrente científico-social. Essa amnésia coletiva contribui para que novas correntes de interpretação biológica da sociedade ou de indivíduos permaneçam vivas e atuantes. Um dos exemplos dessas teorias é a que busca a determinação genética da orientação sexual, a qual atribuiria aos gays e bissexuais um determinante genético cabal. Alguns afirmam que esse seria um meio de aceitação da homossexualidade como algo natural, inscrito geneticamente nos indivíduos, mas outros, e posicionamo-nos com eles, apontam o interesse oculto nessas pesquisas de testar, marcar, corrigir ou controlar os indivíduos com tal orientação sexual**. Acima de tudo, tais teorias de determinação genética ignoram as variáveis sociais e históricas que construíram a categoria que tentam definir em termos biológicos.

 Os anormais

 O discurso eugênico e psiquiátrico da virada do século XIX para o XX, devidamente associado a práticas sociais, constituiu os anormais como categorias da sociedade burguesa. Um ponto a ser ressaltado nessa criação dos anormais é a ênfase na sexualidade como forma de os caracterizar. O temor de degeneração pairou sobre o discurso que versava sobre os desvios do padrão burguês de sexualidade. No começo do século XIX, a masturbação era vista como o desvio mais problemático, mas progressivamente o alvo dos cientistas voltou-se para a mulher e, por fim, para o homossexual.

 De forma geral, podemos explicar a mudança de tema com relação aos perigos que a suposta degeneração trazia à ordem burguesa caracterizando o que residia de problemático em cada um deles. A luta contra a masturbação marcou a formação da família burguesa porque foi a forma para o controle da sexualidade infantil pelos pais. Posteriormente, com as crianças sob o controle, a mulher foi eleita como alvo por seu papel essencial na reprodução biológica e na educação dos futuros criadores de outras famílias. O adultério masculino jamais foi questão, mas o feminino foi declarado doença e sinal de ninfomania. A mulher normal não podia expressar sensualidade, o que a caracterizaria como prostituta. A prostituição era considerada uma forma de loucura feminina e a prostituta como o oposto da mulher normal.

 No fim do século XIX, o crescimento da vida urbana permitiu a criação de espaços onde minorias sexuais puderam, ainda que timidamente, começar a se expressar. Os homens que se interessavam por seus iguais mal entraram na cena social e já despertaram a ira dos mantenedores da ordem burguesa [9].

 Se o termo homossexual foi definitivamente incorporado ao discurso médico por Westfal em seu texto de 1870 sobre as sensações sexuais contrárias foi o Psychopathia sexualis (1888) de Richard von Krafft-Ebing que apontou esse personagem como o violador dos “instintos naturais”. Krafft-Ebing afirmava a “inversão sexual” como psicopatológica, um sintoma de degeneração inerente e aqueles que a exibiam eram considerados fisicamente incapazes. Otto Weininger, mesmo negando seu aspecto patológico, ainda descrevia a homossexualidade em seu Sexo e Caráter (1903) como anatomicamente visível: “Em todos os casos de inversão sexual, há invariavelmente uma aproximação anatômica do outro sexo” (WEININGER, 1995, p.45).

 Os teóricos da degeneração definiam a homossexualidade não como um tipo de relação sexual, antes como uma inversão do masculino e feminino. Essa concepção transferia a perseguida sodomia para uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma. Foucault afirma que se o sodomita era um reincidente, o homossexual foi declarado uma espécie.

 A classificação e a diagnose de todas as formas de sexualidade que não seguiam a regra da “aliança legítima” da monogamia heterossexual revela seu intuito de impor aos que denominava de desviante uma natureza inexorável que se auto-denunciaria. Essa natureza, quando posta em evidência ou confessada, revelaria sua espécie sexual, o hipotético cerne determinante de todos os seus pensamentos e atos.

 A sociedade burguesa buscava – através do discurso científico – estabelecer uma duvidosa relação entre sexo e verdade. A família, “a célula mater da sociedade” – era considerada o protótipo da saúde e da vida. Esse sistema centrado na aliança legítima apoiava-se num discurso que, ao mesmo tempo em que se revelava consensual sobre a monogamia heterossexual, problematizava e punha em evidência a sexualidade infantil, dos loucos, dos criminosos, o prazer dos que amam seus iguais. A exigência de normalização burguesa não visava expulsar as sexualidades denominadas de pervertidas, antes as classificar em busca de alguma forma de normalizá-las.

 As classificações sexuais fazem parte da retórica da degeneração criada por autores como Krafft-Ebing, Lombroso e Nordau e se baseia em categorias auto-contidas. Em todas as doenças consideradas inerentes a etiologia e os sintomas são os mesmos. Em geral, a análise começa com a exposição de algum tipo de desvio sexual e resulta em perversão sexual. O que salta aos olhos do leitor de uma das Psychopathia Sexualis do século XIX é que seu discurso tem um teor muito baixo não apenas de cientificidade, mas até mesmo carece de racionalidade elementar.

 De qualquer forma, essa carência de racionalidade não impediu tais teorias de exercer forte influência social. Talvez porque a crença na degeneração e os estereótipos dela derivados se assentasse não na racionalidade, antes na projeção de medos coletivos em determinados indivíduos. A sociedade auto-afirmava seu padrão de sexualidade projetando a diversidade em indivíduos e classificando sua diferença como patologia.

 O anormal é uma criação histórica levada a cabo pela sociedade burguesa. Ele não é um desvio de um hipotético tipo original nem uma aberração da natureza, antes a construção teórica e prática de uma sociedade fundada na normalização dos indivíduos. O anormal foi criado por um discurso sobre a anormalidade pois, como observou Foucault, discursos são práticas que sistematicamente formam os objetos de que falam. Assim, devemos estudar esses discursos “criadores”, os interesses que os regiam e buscar determinar seus objetivos. A criança masturbadora, o louco, a ninfomaníaca, o homossexual, o mestiço e o artista neurastênico formam alguns dos ramos da árvore genealógica das anormalidades criada pela psiquiatria no século XIX. Eram poucos personagens a serem incorporados por toda a população, alguns papéis estabelecidos para cada forma de inadaptação social. Essas categorias sociais criadas pelo discurso da degeneração não devem ser tomadas como dados nem se tornar objeto de teorias que buscam comprovar, normalmente em termos biológicos, sua existência. O que deve ser evidenciado é o caráter histórico de tais categorias, as quais não existiam como problema social antes da hegemonia social burguesa.

Perspectivas

 As reflexões sobre normalidade e patologia que apresentamos aqui visam despertar o interesse do leitor com relação a uma história ainda pouco explorada. Esperamos ter introduzido a problemática da formação de nossa sociedade que não se esgotou em seu período formador mas, ao contrário, relegou-nos temas a serem explorados e que fazem parte de nosso presente.

 Diante do quadro histórico-social contemporâneo, ainda marcado pelo passado esboçado em nosso texto, mas com novas problemáticas, devemos enfatizar que as “anormalidades” se disseminaram entre todos sem a necessidade de associação integral a categorias sociais. Ninguém foge à sua parcela de anormalidade em nossos dias, o que não significa que a distinção entre normalidade e patologia tenha se tornado mais flexível nem menos importante na organização de nossa vida em sociedade. O que aconteceu na segunda metade do século XX foi o desenvolvimento de novas técnicas e dispositivos de controle da anormalidade, os quais prescindem do isolamento e/ou aprisionamento dos anormais. Como já observamos anteriormente, a exclusão dos anormais jamais foi o objetivo da normalização, antes a disseminação da norma e dos dispositivos que permitem seu cumprimento. De uns poucos tipos de anormais descritos na literatura científico-legal até a virada do século XIX para o XX chegamos à virada do milênio com uma generalização das anormalidades e, principalmente, de seus mecanismos de correção.

 A anormalidade se tornou um potencial de todo indivíduo, o qual dispositivos de poder se encarregam de examinar, marcar, corrigir. Os anormais não são mais apenas um número limitado de párias sociais como o louco, a prostituta, o homossexual, mas todos nós, que mesmo sendo normais em alguns aspectos somos anormais em outros, circulamos livremente ainda que devidamente sob o controle do dispositivo de normalidade.

 Aos anormais clássicos progressivamente se concederam espaços limitados que permitem um controle de sua indesejada diferença. Essa circunscrição de espaços de exceção protegia a população do contágio por formas diferentes de existência. Afinal, o que se teme no anormal é mais do que sua diferença, é o poder de transformação social de seu estilo de vida. O espaço hegemônico da normalidade visa, sobretudo, a perpetuação e a intensificação das normas que a instituíram.

 Os anormais se caracterizam principalmente por sua forma de viver. Os gays, por exemplo, não seguem o fim da reprodução social ou biológica e, apesar do forte estigma que ainda os marca, têm o potencial de colocar em cheque os fundamentos da ordem vigente e subvertê-la. Isso já é visível nas sociedades centrais, especialmente nas grandes cidades norte-americanas, onde bairros gays e antigos guetos, tornam-se progressivamente centros de irradia- ção cultural com potencial de transformação da ordem reinante [10]. Como observa Pierre Bourdieu:

O movimento gay e lésbico coloca, ao mesmo tempo, tacitamente, com sua existência e suas ações simbólicas, e explicitamente, com os discursos e teorias que produz, um certo número de questões que estão entre as mais importantes das ciências sociais e que, para alguns, são totalmente novas. Esse movimento de revolta contra uma forma particular de violência simbólica, além de suscitar novos objetos de análise, põe profundamente em questão a ordem simbólica vigente e coloca de maneira bastante radical a questão dos fundamentos desta ordem e das condições de uma mobilização bem-sucedida visando a subvertê-la. (BOURDIEU, 1999, p.143)

  Herdamos as categorias criadas para a instituição da sociedade burguesa, mas hoje sabemos que não há natureza biológica determinante e tanto sociedades como indivíduos existem numa história de desigualdades e contradições. Apenas a re-historicização das categorias criadas pela sociedade burguesa pode livrar-nos da inversão de causa e efeito contida na interpretação naturalizante de nossa sociedade. Os anormais nada mais são do que construções sociais naturalizadas, as quais derivam de relações de poder que atribuem a eles uma posição de inferioridade e submissão na ordem social.

 Nossos corpos socializados trazem o passado ao presente e contribuem para a manutenção das categorias sociais e da hierarquia imposta pelo padrão de normalidade burguês. Assim, a desigualdade de poder chega aos indivíduos nos seus próprios corpos e no uso destes, dos prazeres e capacidades reprodutivas [11].

 Depois dessas reflexões, podemos afirmar que a normalidade é um ideal à disposição apenas de quem tem poder para incorporá-la. Ainda que ser normal não seja uma escolha, mas o resultado de um processo de formação e exame constante, essa condição hipotética, a normalidade, só pode ser alcançada pela elite sócio-econômica. O poder econômico sempre esteve por trás da luta pela normalidade e hoje isso é evidente no alto custo das novas técnicas médicas e, principalmente, no caso da cirurgia estética, o passo mais recente na história da conformação dos corpos à normalidade.

 A normalidade não é imposta; ao contrário, seu poder se assenta na sedução do indivíduo com promessas de saúde, felicidade, longevidade e beleza. Essas promessas sedutoras aprisionam-nos em um dispositivo de eterno exame e correção, pois ser normal é um ideal inalcançável que frustra, passo a passo, aqueles que o perseguem.



*''[Por volta da terceira década do século XIX, a sociologia] ...preocupar-se-á em obscurecer certos aspectos da realidade e centrar a análise na dinâmica social, desconhecendo dentro do possível os processos materiais concretos em que esta se baseia. Seu fundador, Auguste Comte, ainda sem deslindar inteiramente sociologia e filosofia, proclamará a ordem social existente como a ordem em si, um organismo perfectível mas imutável, expressão definitiva do normal, contra o que toda ação contrária seria indicativa de um desvio, isto é, uma manifestação de tipo patológico. Aprofundando nessa direção, Émile Durkheim tomará essa ordem como o objeto em si da sociologia e a dotará de um método particular, completando assim sua constituição como ciência especial. A investigação sociológica deverá fundar-se essencialmente na observação empírica dos fenômenos sociais, tomados enquanto coisas, cuja frequência determina seu caráter normal ou patológico. Com isso, se descarta a revolução, que passa à categoria de doença social.'' MARINI, Ruy Mauro. Origem e trajetória da sociologia latino-americana. In: SADER, Emir (org.). Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000.

**''Como um produto dessa visão que a priori entende a homossexualidade como um desvio a explicar, nascem as 'pesquisas' determinadas a desvendar a causa específica da homossexualidade, e desde já, anote-se, específica porque, no preconceito, os homossexuais constituem uma 'espécie à parte', é o chamado 'terceiro sexo'... não é o específico 'o que é próprio de uma espécie'? Como veremos, a procura da causa particular (ou causas) da homossexualidade revela mais os preconceitos de quem fala do assunto do que alguma coisa sobre o 'fenômeno' pretensamente estudado. A pergunta que poderíamos fazer é: por que razão não se procura, na mesma medida, a gênese da heterossexualidade?''. SOUSA FILHO, Alípio de. Teorias sobre a gênese da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude (disponível aqui).

''Não questiono a legitimidade dos cientistas se interrogarem acerca dos fenômenos e procurarem oferecer respostas, novos modelos explicativos. Lembro porém que, no caso em questão, essa busca produziu, até o momento, mais de setenta diferentes teorias sobre as causas da homossexualidade, sem apresentar iguais esforços para se descobrir as da heterossexualidade. Essa unidirecionalidade leva a pensar que estamos, mais uma vez, em busca da sua cura e não de sua compreensão.'' JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Educação e homofobia: o reconhecimento da diversidade sexual para além do multiculturalismo liberal. In: _____ (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: MEC, UNESCO, 2009.

Notas

[1] Departamento de Sociologia – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – 14800-901– AraraquaraSP - Brasil.

[2] Para uma discussão mais detalhada sobre a associação entre o poder judiciário e a psiquiatria, vide a versão publicada em livro do curso de Michel Foucault no Collège de France entre 1974- 1975: Les Anormaux. Hautes Etudes. Paris, 1999.

[3] Degeneração é um conceito biológico que foi utilizado na interpretação de fenômenos sociais. Seu oposto seria a eugenia, compreendida como a ciência que utilizar-se-ia do conhecimento sobre a hereditariedade para o aprimoramento do gênero humano. A degeneração é, sobretudo, o lado sombrio do progresso, como enfatiza Sander L. Gilman em seu prefácio à edição norte-americana do livro de Max Nordau, Degeneration.

[4] O funcionalismo, uma das mais influentes correntes teóricas da sociologia, surgiu ligado ao evolucionismo e foi marcado pelos modelos biológicos de compreensão da sociedade. A questão da integração e coesão da sociedade, compreendida como sistema social, é o problema da teoria funcionalista, a qual teve um grande desenvolvimento nos Estados Unidos, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Ainda que tenham surgido ressalvas quanto ao que se declara anormal como parte do sistema em busca de equilíbrio há sempre o resquício autoritário de condenação do que impede o funcionamento “normal” do sistema social. Em suma, a orientação conservadora baseada na distinção entre normalidade e anormalidade marcou a teoria funcionalista, ou dos sistemas, desde sua criação até suas versões contemporâneas.

[5] Nancy Leys Stepan fornece um panorama histórico da eugenia como movimento científico (e também envolvendo práticas sociais) no primeiro capítulo de seu The Hour of Eugenics – Race, Gender, and Nation in Latin América, 1996.

[6]  A corrente literária do Naturalismo, por exemplo, assentou-se no determinismo biológico e nas teorias da hereditariedade para a caracterização de seus personagens. O desviante tinha na hereditariedade a explicação de seu desvio. Para uma análise mais detalhada do tema, vide o capítulo “Arte e Degeneração” da tese de doutorado Thomas Mann, o Artista Mestiço, 2001.

[7] Lilia Moritz Schwarcz, em seu O Espetáculo das Raças – Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil 1870-1930, apresenta as idéias de alguns desses intelectuais preocupados com a questão nacional (e racial) como Silvio Romero (Recife) e Herman von Ihering (São Paulo).

[8] 8 Nancy L. Stepan observa que em textos europeus “o Brasil era utilizado como o exemplo primário da ‘degeneração’ que ocorria em uma nação racialmente misturada, tropical. Henry Thomas Buckle, Benjamin Kidd, Georges Vacher de Lapouge, Gustave Le Bon, o Conde de Gobineau e vários darwinistas sociais eram amplamente citados por suas teorias da inferioridade negra, da degeneração mulata e da decadência tropical. Dos Estados Unidos a mensagem que vinha era a mesma; como evidência de que ‘mestiços’ não poderiam produzir uma alta civilização, antropólogos apontavam para os latino-americanos, os quais, eles diziam, agora estavam ‘pagando por sua liberalidade racial’. De acordo com pensadores norte-americanos, as misturas ‘promíscuas’ que ocorreram em boa parte da América Latina tinha produzido um povo degenerado, instável, incapaz de desenvolvimento progressivo” (STEPAN, 1996, p.45).

[9]  O papel das cidades grandes no desenvolvimento de comunidades gays é enfatizado por Didier Eribon em seu recente, e já célebre, Reflexiones sobre la cuestión gay (1999, edição espanhola de 2001). George Chauncey desenvolveu reflexões sobre o desenvolvimento da cultura metropolitana e a criação de espaços para a manifestação gay em Gay New York (1995).

[10] Há diversos textos sobre o papel transformador do movimento gay e lésbico, entre os quais destaco o que citamos e que já foi traduzido para o português: o anexo de Pierre Bourdieu ao seu A Dominação Masculina intitulado “Algumas Questões sobre o Movimento Gay e Lésbico”. Aqueles que dominam o inglês podem encontrar bibliografia, informações gerais e até fazer contato com pesquisadores da área através do CLAGS – Center for Lesbian and Gay Studies: http:// web.gsuc.cuny.edu/clags/home.htm.

[11] Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina, explica a construção social dos corpos (e dos gêneros) com ênfase para as relações de poder inscritas nesse processo. O sociólogo francês afirma que a construção social da masculinidade se funda em sua naturalização como forma de legitimar o poder conferido ao homem em nossa sociedade. A naturalização das diferenças e desigualdades é uma forma astuta de esconder o caráter histórico – e mutável – das categorias sociais. Além disso, deve-se enfatizar que o aspecto de classe e poder econômico desempenham papel central no enquadramento na categoria de masculinidade hegemônica, a qual não é acessí- vel a todos.

Referências bibliográficasKRAFT-EBING, R. V. Psychopathia sexualis: a medico-forensic study. New York: Pionner Publications, 1947.

MISKOLCI, R. Doença e diferença, 1999. Disponível em: http:///richardmiskolci.slg.br

MISKOLCI, R. Thomas Mann: o artista mestiço. 2001. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

STEPAN, N. L. The hour of eugenics: race, gender, and nation in Latin America. Itaca: Cornell Univ. Press, 1996.

WEININGER, O. Sex and character. London: Flamingo, 1995.

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