quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A geopolítica do declínio global americano: Washington contra a China do século XXI

por Alfred McCoy(*)


"O conceito de geopolítica não é oriundo do marxismo. É, pelo contrário, resultante da teorização burguesa acerca da expansão imperialista. Mas isso não impede que este artigo contenha uma muito interessante reflexão e análise das tendências em curso de rearrumação de forças no plano mundial."


 Mesmo para os maiores impérios a geografia é frequentemente o destino. Não saberão disso em Washington, embora as elites políticas americanas, da segurança nacional, da política internacional, continuem a ignorar o básico da geopolítica que formou o destino dos impérios mundiais nos últimos 500 anos. Consequentemente, não entendem o significado das rápidas mudanças globais da Eurásia que estão a minar a grande estratégia para o domínio do mundo que, Washington tem tentado nos últimos setenta anos.

 Uma rápida visão do que se considera uma visão intimista em Washington actualmente revela um mundo de insularidade estonteante. Segundo o cientista político Joseph Nye, de Harvard, conhecido pelo seu conceito de «poder suave», como exemplo, oferecendo uma lista simples da maneira como ele acredita que o poder americano militar, económico e cultural permanece singular e superior, afirmou recentemente que não existe força interna ou global capaz de eclipsar o futuro da América como a primeira potência mundial.

 Para aqueles que apontam Pequim e a sua economia crescente e definem este como o século chinês, Nye oferece um plano de negativas: o rendimento per capita da China «vai levar décadas para se actualizar (se o conseguir) com a América; de uma forma míope «centraliza a sua política primeiramente na sua região»; e não desenvolveu quaisquer capacidades significativas para projecção de uma força global. Acima de tudo, afirma Nye, a China sofre de desvantagens geopolíticas na balança de poder interna asiática, em comparação com a América.

 Ou de outro modo (e nisso Nye é típico da maneira de pensar de Washington) com mais aliados, guerreiros, mísseis, dinheiro, patentes, e filmes de blockbuster do que qualquer outra potência, Washington ganha de olhos fechados.

 Se o Professor Nye pinta o poder por números, o último volume do antigo Secretário de Estado Henry Kissinger, modestamente intitulado Ordem Mundial e apresentado nada menos do que como uma revelação, adopta uma perspectiva nietzschiana. Kissinger em desafio à idade apresenta a política global como plasticina pronta a moldar-se à vontade dos grandes líderes. Assim, na tradição dos grandes diplomatas europeus Charles de Talleyrand e Príncipe Metternick, o Presidente Theodore Roosevelt foi um visionário audaz que iniciou «um papel americano no equilíbrio da Ásia-Pacífico» Por outro lado, Woodrow Wilson com o seu sonho idealista da autodeterminação americana tornou-se geopoliticamente inapto e Franklin Delano Roosevelt não viu a «estratégia global» de aço do dirigente soviético Joseph Stalin. Harry Truman, pelo contrário, venceu a ambivalência nacional ao comprometer a América na formação de uma nova ordem internacional, uma política sabiamente seguida pelos doze presidentes seguintes.

 Entre os mais corajosos, afirma Kissinger, o líder da «coragem, dignidade e convicção» foi George W. Bush, cuja vontade férrea obrigou à «transformação do Iraque do estado mais repressivo do Médio Oriente numa democracia multipartidária» que teria tido êxito se não fosse a subversão «feroz» do seu trabalho pela Síria e o Irão. Numa visão destas a geopolítica não tem espaço; só a visão corajosa de «estadistas» e reis realmente interessa.

 E talvez seja uma perspectiva reconfortante em Washington no momento em que a hegemonia da América está visivelmente a deteriorar-se sob a mudança teutónica no poder global.

 Com os profetas de Washington numa teimosia obtusa no caso do poder geopolítico, talvez esteja na hora de voltar ao básico. Isso significa voltar ao texto fundamental da geopolítica moderna, que continua a ser um guia indispensável, embora fosse publicado num jornal geográfico obscuro há mais de um século.

Sir Halford inventa a geopolítica

 Numa noite fria de Londres em Janeiro de 1904, Sir Halford Mackinder, o director da Escola Londrina de Economia, «encantou» a audiência na Real Sociedade de Geografia em Saville Row com um artigo audazmente intitulado «O Pivot Geográfico da História». Esta apresentação foi, segundo o presidente da sociedade, «um deslumbramento de descrição… raras vezes algo se lhe comparou nesta sala.»

 Mackinder garantia que o futuro do poder global não está, como muitos britânicos na altura imaginavam, no controlo do mar global, mas sim no controlo de um vasto território chamado «Euro-Ásia». Girando o globo da América para colocar a Ásia central no epicentro do planeta e depois levando o eixo da terra para norte um pouco para lá da projecção equatorial de Mercator, Mackinder refez e depois reconceptualizou o mapa mundial.

 O seu novo mapa apresentava a Africa, Ásia e Europa não como continentes separados, mas como uma unidade de terra, uma verdadeira «ilha mundial». O seu conteúdo imenso e profundo — 4000 milhas do Golfo Pérsico ao Mar da Sibéria — era tão grande que só podia ser dominado pelas suas margens na Europa Central ou como ele dizia «a sua marginal marítima» nos mares que a rodeavam.

 A «descoberta da rota do Cabo para as Índias» no século dezasseis, de acordo com Mackinder, «permitiu à Cristandade a maior mobilidade possível de poder… estendendo a sua influência à volta do solo euro-asiático que até aí ameaçara a sua verdadeira existência. Esta maior mobilidade, explicou depois, deu aos marinheiros europeus a superioridade por mais de quatrocentos anos sobre os homens da Africa e da Ásia.

 Mas o «coração» desta vasta massa de terra, uma área «pivot» que se estendia do Golfo Pérsico ao rio Yangtze na China, continuava a ser nada menos que o fulcro de Arquimedes do futuro poder mundial. «Quem dominar o coração domina a ilha-mundo foi o resumo final de Mackinder sobre a situação. Para lá da vasta massa dessa ilha-mundo, que perfaz quase 60% da Terra, fica um hemisfério pouco importante coberto de enormes oceanos e algumas pequenas ilhas. De certeza referia-se à Austrália e à América.

 Para uma geração anterior a abertura do Canal de Suez e o advento dos barcos a vapor aumentou «a mobilidade do poder marítimo» (em relação ao poder da terra). Mas as futuras linhas de caminho-de-ferro farão as maiores maravilhas na estepe, garantiu Mackinder, baixando o custo dos transportes marítimos e mudando o poder da geopolítica. No decorrer do tempo o «estado pivot» da Rússia podia aliado a outro poder como o da Alemanha, expandir-se para além das terras marginais da Eurásia permitindo a utilização de vastos recursos continentais para a construção naval e estaria à vista o domínio do mundo.

 Nas duas horas seguintes, enquanto ele lia um texto denso com referências sintácticas e clássicas próprias de um antigo perfeito de Oxford, a sua audiência sentia que estavam a assistir a algo extraordinário. Várias pessoas ficaram para trocar opiniões. Por exemplo, o famoso analista militar Spencer Willinson, o primeiro a dirigir uma cátedra de História militar em Oxford, declarou que não acreditava na «expansão moderna da Rússia» insistindo que o poder naval dos britânicos e japoneses continuaria a sua função histórica de manter o «equilíbrio entre as forças divididas… na área continental».

 Pressionado pelos seus ouvintes intelectuais a considerar outros factos ou factores, incluindo «o ar como meio de locomoção», Mackinder respondeu: «O meu alvo não é predizer um grande futuro para este ou aquele país, mas apresentar uma fórmula geográfica em que se pode colocar qualquer equilíbrio político. Em vez de acontecimentos específicos, Mackinder procurava uma teoria geral sobre as ligações causais entre a manutenção de uma balança de poder entre o poder do mar como os britânicos ou os japoneses que operavam da marginal marítima e «as dispendiosas forças internas» dentro da terra da Eurásia que tentavam conter.

 Não apenas afirmou Mackinder o que muitos pensavam que iria influenciar a política externa da Inglaterra por várias décadas, mas naquele momento, criara a ciência moderna da geopolítica» — o estudo de como a geografia pode em certas circunstâncias formar o destino de povos, nações e impérios.

 Essa noite em Londres fora há muito tempo. Noutra era. A Inglaterra chorava ainda a morte da Rainha Vitória. Teddy Roosevelt era presidente. Henry Ford acabara de abrir uma pequena fábrica em Detroit para fabricar o seu modelo-A, um carro com uma velocidade de 28 milhas por hora. Apenas há um mês, o «Flyer» dos irmãos Wright subira aos ares pela primeira vez — a 120 pés para ser exacto.

 Sim, nos 110 anos seguintes, as palavras de Sir Halford Mackinder iam oferecer um prisma de precisão excepcional quando procuramos entender a geopolítica tantas vezes obscura a influenciar os maiores conflitos mundiais — duas guerras mundiais, uma guerra-fria, as guerras asiáticas da América (Coreia e Vietname), duas guerras do Golfo Pérsico, e até a infinita pacificação do Afeganistão. O problema hoje é: como pode Sir Halford ajudar-nos a entender não apenas os séculos passados, mas o meio século que ainda está para vir?

A Grã-Bretanha é senhora dos mares

 Na era do poder marítimo que durou cerca de 400 anos — de 1602 até à Conferência de Desarmamento de 1922 — as grandes potências lutaram por dominar a Eurásia através dos mares adjacentes que se estendiam de Londres a Tóquio em 15 000 milhas. O instrumento de poder era, claro, o navio — primeiro de homens, depois navios de guerra, submarinos e porta-aviões, enquanto os exércitos terrestres se afundavam na lama da Manchúria ou na França em batalhas com números terríveis de perdas de vida, os navios imperiais rasgavam os mares, e procuravam dominar as costas e os continentes.

 No pico do poder imperial cerca de 1900, a Grã-Bretanha dominava os mares com uma frota de 300 navios principais e 30 bastiões navais, bases que envolviam a ilha mundo do Atlântico Norte em Scapa Flow através do Mediterrâneo em Malta e Suez até Bombaim, Singapura e Hong Kong. Assim como o Império Romano dominava no Mediterrâneo, fazendo dele o Mare Nostrum (O Nosso Mar), o poderio britânico faria do Oceano Índico o seu «mar privado», garantindo os seus flancos com forças armadas na fronteira nordeste da Índia e impedindo tanto os Otomanos como os Persas de construir bases navais no Golfo Pérsico.

 Assim, Os Britânicos também mantiveram o domínio sobre a Arábia e a Mesopotâmia, terreno estratégico que Mackinder denominava «a passagem terrestre da Europa para as Índias» e a abertura para o coração da ilha mundo. Desta perspectiva geopolítica, o século XIX foi, essencialmente, uma rivalidade estratégica, muitas vezes «o grande jogo» entre a Rússia no comando de quase todo o coração…quase a chegar às fronteiras das Índias, e a Inglaterra «a avançar das portas do mar da Índia para enfrentar a ameaça do nordeste. Por outras palavras Mackinder concluiu, «as realidades finais geográficas» da era moderna eram o poder marítimo contra o poder terrestre ou a Ilha Mundo e o Coração.

 Rivalidades intensas, primeiro entre a Inglaterra e a França, depois Inglaterra e Alemanha, ajudaram a conduzir a uma corrida às armas europeia desenfreada que elevou o preço do poder marítimo a níveis insustentáveis. Em 1805, o Victory com a flâmula do almirante Nelson, com o seu bojo de carvalho de 3 500 toneladas, entrou na batalha de Trafalgar contra a marinha de Napoleão a 9 nós, os seus 100 canhões a disparar balas de 42 libras num alcance não superior a 400 jardas.

 Em 1906, só um século mais tarde, os Britânicos lançaram o primeiro navio de guerra moderno, o HMS Dreadnought, o seu bojo de aço a pesar 20 000 toneladas, as turbinas de vapor que permitiam velocidades acima de 21 nós, e as metralhadoras mecanizadas rápidas de 12 polegadas a disparar bombas de 850 libras a 12 milhas. O custo deste leviatã foi de 1.8 milhões, equivalente a quase 300 milhões de hoje. Dentro de uma década meia dúzia de potências esvaziavam os seus tesouros para fabricar frotas desses navios de guerra letais, extremamente caros.

 Graças a uma combinação de superioridade tecnológica, alcance global e alianças navais com os Estados Unidos e o Japão, a Pax Britanica conseguiu durar um século, de 1815 a 1914. Mas, no final, este sistema global ficou marcado por uma corrida às armas acelerada, diplomacia de grande poder volátil, e uma competição amarga pelo domínio dos oceanos que implodiram numa matança louca da Primeira Guerra Mundial, deixando 16 milhões de mortos em 1918.

O século de Mackinder

 Como o eminente historiador imperial Paul Kennedy observou, «o resto do século vinte provou certa a tese de Mackinder», com duas guerras mundiais vindas da Europa de leste através do Médio Oriente para a Ásia de Leste. Na verdade, a I Guerra Mundial foi, como o próprio Mackinder afirmou mais tarde, «um verdadeiro duelo entre o poder da terra e do mar». No fim da guerra em 1918, o poder do mar — Inglaterra, América e Japão fizeram expedições navais a Arcangelsk, no Mar Negro, e à Sibéria para manter a revolução russa dentro do seu «território».

 Reflectindo a influência de Makinder no pensamento geopolítico na Alemanha, Adolf Hitler arriscou o seu Reino num esforço perdido para capturar o interior da Rússia como «Lebensraum», ou espaço vital, para a sua «raça superior». O trabalho de Sir Halford ajudou a formar as ideias do geógrafo alemão Karl Haushofer, fundador do jornal Zeitschrift für Geopolitik, proponente do conceito de «Lebensraum», e conselheiro de Adolf Hitler e de Rudolf Hess. Em 1942, o Führer enviou um milhão de homens, 10 000 peças de artilharia, e 500 tanques para galgar o Volga em Stalinegrado. No fim, as suas forças sofreram 850 000 feridos, mortos e prisioneiros numa tentativa vã de varar as fronteiras da Europa de Leste para a região pivot da ilha-mundo.

 Um século após o tratado seminal de Mackinder, outro erudito britânico, historiador imperial John Darwin, arguiu no seu resumo magistral Depois de Tamerlão que os Estados Unidos tinham conseguido o seu «império colossal… numa escalada improcedente no dealbar da II Guerra tornando-se a primeira potência na história a controlar os pontos estratégicos sociais «nas duas extremidades da Eurásia» (abreviatura da Euro-Asia de Mackinder). Com receio da expansão chinesa e russa a servir como catalisador para a colaboração» os Estados Unidos ganharam bastiões imperiais na Europa Ocidental e no Japão. Com estes pontos axiais como ancoras, Washington ergueu um arco de bases militares que seguiram o padrão marítimo da Inglaterra e se destinavam abertamente a sitiar a ilha mundo.

A geopolítica axial da América

 Tendo sitiado as extremidades axiais da ilha mundo da Alemanha nazi e do Japão imperial em 1945, nos setenta anos seguintes os Estados Unidos descansaram em camadas cada vezes mais espessas de poder militar para manter a China e a Rússia dentro do território da Eurásia. Separada do seu tronco ideológico, a grande estratégia de Washington da guerra-fria anticomunista da «contenção» era quase um processo de sucessão imperial. Uma Inglaterra esvaziada foi afastada das margens marítimas, mas as realidades estratégicas mantiveram-se essencialmente na mesma.

 Na verdade, em 1943, dois anos antes de acabar a II Guerra Mundial, um Macinder envelhecido publicou o seu último artigo, «A guerra global e a conquista da paz», no influente jornal americano Foreign Affairs. Nele, lembrava aos americanos que aspiravam a uma grande estratégia» uma versão improcedente de hegemonia militar que até o seu «sonho de um poder aéreo global» não mudaria a base geopolítica. «Se a União Soviética emergir dessa guerra como vencedora da Alemanha» avisou, «vai ter o maior poder terrestre do globo, controlando a «maior fortaleza natural na terra.»

 Quando se estabeleceu uma nova Pax Americana, no pós-guerra, a primeira barreira a sério para contenção do poder da União Soviética foi conseguida pela Marinha norte-americana. Os seus navios rodearam o continente euro-asiático, suplementando e depois ultrapassando a marinha britânica: a Sexta Armada atracada em Nápoles em 1946 para controlar o Oceano Atlântico e o Mediterrâneo, a Sétima Armada em Subuc Bay nas Filipinas, em 1947, para o Oceano Pacífico, e a Quinta Armada no Bahrain no Golfo Pérsico desde 1995.

 A seguir, os diplomatas americanos aumentaram muito as alianças militares — o Tratado da Organização Atlântica Norte (1949), O Tratado da Organização do Médio Oriente (1955), o Tratado da Organização do Sudoeste da Ásia (1954), e o Tratado de Segurança dos Estados Unidos-Japão (1951).

 Em 1955, os Estados Unidos teceram uma rede global de 450 bases militares em 36 países, destinada em grande parte, a conter o bloco sino-soviético atrás de uma cortina de ferro que coincidiu num grau surpreendente com o «território» de Mackinder em volta da terra da Eurásia. No fim da Guerra Fria em 1990, o cerco à China comunista e à Rússia mantinha 700 bases no exterior, uma força aérea de 1763 bombardeiros a jacto, um vasto arsenal nuclear, mais de 1000 mísseis balísticos e uma frota de 600 vasos, incluindo 15 navios de guerra nucleares – todos ligados pelo único sistema global de comunicações por satélite.

 No fulcro do perímetro estratégico de Washington em volta da ilha-mundo, a região do Golfo Pérsico tem sido há quase quarenta anos local de constantes intervenções americanas, abertas e secretas. Em 1979 a revolução no Irão significou a perda de um país chave na arcada de poder norte-americano em volta do Golfo e deixou Washington a lutar para restabelecer a sua presença na região. Para esse fim, apoiaria simultaneamente Saddam Hussein no Iraque, na sua guerra contra o Irão revolucionário e armaria os mais extremistas dos mujahedins do Afeganistão contra a ocupação soviética do Afeganistão.

 Foi nesse contexto que Zbigniew Brzezinski, conselheiro de segurança nacional do presidente Jimmy Carter, lançou a sua estratégia para a derrota da União Soviética com uma agilidade geopolítica fantástica pouco compreendida até hoje. Em 1979, Brzezinski, um aristocrata polaco singularmente ligado às realidades políticas do seu continente nativo, persuadiu Carter a lançar a Operação Ciclone com fundos maciços que chegaram a 500 milhões ao ano nos finais de 1980. A sua ideia: mobilizar militantes muçulmanos para atacar a parte macia do ventre da União Soviética na Ásia Central e implantar o Islão radical dentro do território da União Soviética. Era para infligir simultaneamente uma derrota desmoralizante ao exército vermelho no Afeganistão e «libertar a terra da Europa Oriental da órbita de Moscovo. «Não forçamos os Russos a intervir no Afeganistão, afirmou Brzezinski em 1998, explicando o seu golpe de mestre geopolítico nesta edição da guerra fria do Grande Jogo, «mas aumentamos grandemente a probabilidade de que o fizessem… Essa operação secreta foi uma ideia excelente. O seu efeito era atrair os Russos para a armadilha do Afeganistão.

 Interrogado sobre a legalidade desta operação para criar um Islão militante hostil aos Estados Unidos, Brzenzinski, que estudou e citou frequentemente Mackinder, respondeu friamente: «O que é mais importante para a história do mundo? perguntou. «Os talibãs ou o colapso do império soviético? Uns tantos muçulmanos irrequietos ou a libertação da Europa central e o fim da guerra-fria?

 Mesmo a vitória retumbante sobre a guerra-fria com a implosão da União Soviética não transformou os fundamentos geopolíticos da ilha mundo. Como resultado, depois da queda do Muro de Berlim em 1989, o primeiro esforço de Washington no estrangeiro numa nova era envolveria uma tentativa de restabelecer a sua posição dominante no Golfo Pérsico, utilizando a ocupação do Kuwait por Saddam Hussein, como pretexto.
Em 2003, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, o historiador imperial Paul Kennedy voltou ao tratado de Mackinder para explicar o insucesso também inexplicável. «Mesmo agora, com centenas de milhares de tropas americanas nas fronteiras da Eurásia, escreveu Kennedy no Guardian, parece que Washington esta a levar a sério a ideia de Mackinder para garantir o controle do pivot geográfico da história». Se interpretarmos estas anotações de modo sério, a súbita proliferação das bases americanas através do Afeganistão e do Iraque devem ser vistas como mais uma tentativa imperial para uma posição privilegiada à beira da Eurásia, semelhante aos antigos fortes britânicos ao longo da fronteira noroeste da Índia.

 Nos anos seguintes, Washington tentou substituir algumas das suas tropas ineficientes no terreno por drones no ar. Em 2011, a Força Aérea e a CIA rodearam a Eurásia com 60 bases para a sua armada de drones. Então, com o Reaper, armado com mísseis Hellfire e bombas GBU-30 conseguiu um alcance de 1150 milhas, o que significava que dessas bases podiam alcançar alvos na Africa ou na Ásia.

 Significativamente, surgem bases de drones à volta da ilha mundo — de Signonela, Sicília, a Icerlik, Turquia; Djibuti no Mar Vermelho; Qatar e Abu Dhabi no Golfo Pérsico; Ilhas Seicheles no Oceano Índico; Jalalabad, Khost, Kandahar e Sindand no Afeganistão, e no Pacífico, Zamboanga nas Filipinas e a Base Aérea Andersen na ilha de Guam, entre outros. A patrulhar esta periferia, o Pentágono gasta 10 mil milhões numa armada de 99 drones Hawk equipados com câmaras de alta resolução capazes de vigiar tudo num raio de cem milhas, sensores electrónicos que podem comandar comunicações, e máquinas eficientes capazes de voo contínuo de 35 horas e de um alcance de 8.700 milhas.

A estratégia da China

 Os movimentos de Washington, por outras palavras, representam algo velho, mesmo a uma escala inimaginável. Mas a subida da China como a maior economia do mundo, inconcebível há um século, representa algo novo e assim ameaça mudar a geopolítica marítima que formou o poder do mundo nos últimos 400 anos. Em vez de se concentrarem simplesmente em construir uma marinha de águas azuis como a Inglaterra ou uma armada global aérea semelhante aos Estados Unidos a China aproxima-se cada vez mais da ilha mundo numa tentativa de reformar inteiramente os fundamentos geopolíticos do poder global. Está a usar uma estratégia subtil que tem iludido até agora as elites do poder de Washington.

 Após décadas de preparação serena, Pequim começou recentemente a revelar a sua grande estratégia para o poder global, a passos lentos. O seu plano em duas etapas destina-se a construir uma infra-estrutura transcontinental para integração económica da ilha mundo por dentro, enquanto mobiliza forças militares para cortar cirurgicamente o cerne de Washington.

 O primeiro passo foi um projecto estonteante para erguer uma infra-estrutura para a integração económica do continente. Construindo uma elaborada e imensamente dispendiosa rede de linhas férreas de alta velocidade, e alto volume assim como gasodutos e oleodutos através de toda a Eurásia, a China pode realizar a visão de Mackinder de uma maneira diferente. Pela primeira vez na história, o rápido movimento transcontinental de cargas criticas — petróleo, minérios, e produtos manufacturados — será possível a uma escala maciça, interligando potencialmente os vastos territórios numa única zona económica de 6500 milhas de Xangai a Madrid. Deste modo, a liderança em Pequim espera afastar o foco do poder geopolítico da periferia marítima para dentro do coração do continente.

«Os caminhos-de-ferro transcontinentais estão agora a mudar as condições do poder global», escreveu Mackinder em 1904 quando se construiu uma «precária» linha do comboio transiberiano, o mais longo do mundo, que atravessava o continente indo de Moscovo até Vladivostok com 7000 milhas. «Mas antes do fim do século toda a Ásia estará coberta de linhas férreas, acrescentou «os espaços dentro do Império Russo e na Mongólia são tão vastos, as suas potencialidades em petróleo e metais tão incalculavelmente grandes que um vasto mundo económico mais ou menos afastado, tornar-se-á inacessível ao comércio marítimo».

 Mackinder foi um pouco prematuro na sua predição. A revolução russa de 1917, a revolução chinesa de 1949 e os 40 anos subsequentes da guerra fria atrasaram o desenvolvimento real durante décadas, Deste modo o coração da Eurásia não recebeu o crescimento económico e a integração, em parte graças a barreiras artificiais ideológicas — a cortina de ferro e a separação sino-soviética — que impediram a construção de infra-estruturas através da vasta Eurásia. Isso acabou.

 Só alguns anos depois do fim da guerra fria, o antigo Conselheiro da Segurança Nacional Brzezinski, nessa altura um crítico feroz da visão global da política tanto das elites Republicanas como das Democratas, começou a agitar bandeiras vermelhas sobre ao estilo ineficiente da geopolítica de Washington. «Desde que os continentes começaram a interagir politicamente, há cerca de quinhentos anos, escreveu em 1998, essencialmente a parafrasear Mackinder, a «Eurásia tem sido o centro do poder mundial. Um poder que domina a «Eurásia» controla duas das mais avançadas e mais produtivas regiões do mundo… tornando o hemisfério ocidental e a Oceânia geopoliticamente periféricas do continente central global.

 Enquanto tal geopolítica tem iludido Washington, em Pequim foi bem compreendida. Na realidade, na última década a China lançou o maior investimento de infra-estruturas, já mais de três mil milhões de dólares e em aumento desde que Washington começou o sistema de estradas interestaduais americanas nos anos 50. O numero de vias-férreas e oleodutos que foram construídos são inumeráveis. Entre 2007 e 2014, a China cobriu o país com 9000 milhas de novos comboios ultra-rápidos, mais do que no mundo inteiro. O sistema transporta agora 2,5 milhões de passageiros diariamente a alta velocidade, 240 milhas à hora. Quando o sistema estiver completo em 2030, subirá para 16 000 milhas de trilhos de alta velocidade a um custo de 300 mil milhões, ligando todas as maiores cidades da China.

Simultaneamente, a liderança da China, começou a colaborar com os estados próximos num projecto maciço para integrar a rede ferroviária nacional numa grelha transcontinental. Iniciando em 2008, os Alemãs e os Russos juntaram-se aos Chineses para o lançamento da Ponte da Eurásia. Duas rotas, a antiga Transiberiana no norte e uma nova rota a sul ao longo da antiga rota da China através de Kazakhstan vão ligar toda a Eurásia. Na rota a sul mais rápida, contentores de produtos manufacturados de alto custo, computadores, e peças de automóveis começaram a viajar 6.700 milhas de Leipzig na Alemanha, para Chongqing, China, em 20 dias, quase metade dos 35 dias que leva agora por barco.

 Em 2013, a Deutsche Bahn (Comboios Alemães) começou a preparar uma terceira rota entre Hamburgo e Zhengzhou que corta o tempo de viagem para 15 dias, enquanto O Caminho-de-Ferro de Kazakh abriu uma ligação Chongqing-Duisburg com fins semelhantes. Em Outubro de 2014, a China anunciou planos para a construção da via férrea de alta velocidade mais longa que vai atravessar as 4.300 milhas entre Pequim e Moscovo em apenas dois dias.

 Além disso, a China está a construir dois ramais para sueste e sul para as margens da ilha mundo. Em Abril, o presidente Xi Jinpping assinou um acordo com o Paquistão para despender 46 mil milhões num corredor económico China-Paquistão. Auto-estradas, linhas férreas e oleodutos vão estender-se quase 2000 milhas de Kashgar em Xinjang, a província mais ocidental da China, num empreendimento conjunto em Gwadar, no Paquistão, que se iniciou em 2007. A China investiu mais de 200 mil milhões na construção deste porto estratégico em Gwadar no Mar da Arábia, a 370 milhas do Golfo Pérsico. Em 2011 a China também começou a alargar o seu caminho de férreo através do Laos no sudoeste da Ásia com um custo inicial de 6.2 mil milhões. No final, uma linha de alta velocidade levará passageiros e produtos numa viagem de 10 horas de Kunming a Singapura.

 Nesta mesma década dinâmica, a China construiu uma rede intensa de gasodutos e oleodutos transcontinental para importar petróleo de toda a Eurásia dos seus centros populacionais para o norte, centro e sudeste. Em 2009, após uma década de construção, a Corporação Petrolífera Nacional da China, empresa estatal abriu a primeira linha do Cazaquistão-China. Estende-se por 1.400 milhas do Mar Cáspio a Xinjiang.

 Simultaneamente, a CNPC colaborou com o Turquemenistão para inaugurar o gasoduto Ásia Central-China. Cobre 1.200 milhas quase paralela à Kazahstan China o oleoduto, é o primeiro a trazer o gás natural da região para a China. Para passar o Estreito de Malaca controlado pela Marinha Norte-Americana a CNPC abriu um oleoduto Sino-Myanmar em 2013 para transportar tanto o petróleo do médio oriente e o gás natural birmanês a 1.500 milhas da baía de Bengala para as remotas regiões ocidentais da China. Em Maio de 2014, a companhia assinou um acordo de 400 mil milhões, por 30 anos com o gigante russo privado Gazprom para fornecer 38 mil milhões de metros cúbicos de gás natural por ano em 2018 por uma rede ainda a completar para norte de oleodutos através da Sibéria e para a Manchúria.

 Embora maciços esses projectos são apenas parte de uma construção crescente, que nos últimos cinco anos, juntou oleodutos e gasodutos pela Ásia Central e do Sul para o Irão e Paquistão. O resultado será em breve uma infra-estrutura integrada de energia, incluindo as redes da Rússia, estendendo-se pelo centro da Eurásia, do Atlântico ao Mar do Sul da China.

 Para capitalizar esses planos fantásticos de crescimento regional, em Outubro de 2014 Pequim anunciou o estabelecimento de um banco de investimentos de infra-estrutura asiática. Os líderes da China vêem esse banco, esta instituição como um futuro regional, e na realidade a alternativa euro-asiática ao banco mundial norte-americano. Assim, apesar da pressão de Washington de não adesão, 14 países chave, incluindo aliados amigos dos Estados Unidos como a Alemanha, Grã-Bretanha, Austrália e Coreia do Sul assinaram. Simultaneamente, a China começou a estabelecer relações a longo prazo com áreas ricas em recursos na Africa, assim como na Austrália e Sudeste da Ásia, como parte do seu plano de integrar economicamente a ilha-mundo.

 Finalmente, Pequim só agora revelou uma estratégia habilmente designada, para neutralizar as forças militares que Washington colocará à volta do perímetro do continente. Em Abril, o presidente Xi Jinping anunciou a construção desse corredor de pipelines maciço directo da China ocidental ao seu novo porto em Gwadar, no Paquistão, criando a logística para futuros desenvolvimentos navais no Mar da Arábia cheio de petróleo.

 Em Maio, Pequim proclamou o seu exclusivo controle do Mar de Sul da China, expandindo a base naval de Longpo nas ilhas Hainan para a região da primeira fábrica nuclear, acelerando a dragagem para criar novos atóis que se podem transformar em aeroportos militares nas disputadas Ilhas Spratley, e invalidando os voos da Marinha Norte-Americana. Construindo a infra-estrutura de bases militares no Sul da China e nos mares da Arábia, Pequim forja as capacidades futuras para destruir estratégica e cirurgicamente as forças norte-americanas.

 Ao mesmo tempo, Pequim desenvolve planos para desafiar o domínio de Washington sobre o espaço e o ciberespaço em 2020. Espera por exemplo completar o seu sistema próprio de satélite, oferecendo o primeiro desafio ao domínio de Washington sobre o espaço desde que os Estados Unidos lançaram o seu sistema de 26 satélites de comunicação de defesa em 1967. Simultaneamente, Pequim está a desenvolver uma capacidade imensa para a ciberguerra.

 Numa década ou duas caso venha a ser necessário, a China estará pronta a cortar cirurgicamente o cerco continental nalguns pontos estratégicos sem ter de confrontar o poderio global das forças americanas, tornando potencialmente obsoletas vastas armadas americanas de transportadores, cruzadores, drones, aviões de combate e submarinos.

 Desdenhando a visão geopolítica de Mackinder e a sua geração de imperialistas britânicos, a actual liderança norte-americana não entendeu o significado de uma mudança global radical sob a massa da Eurásia. Se a China conseguir ligar a sua indústria crescente com os grandes recursos naturais do coração da Eurásia, então muito possivelmente, como Sir Halford Mackinder predisse naquela noite fria em Londres em 1904, «estará à vista o império do mundo».

Tradução: Manuela Antunes

(*) Alfred W. McCoy, jornalista do TomDispacth, é regente da cadeira Harrington na Universidade Wisconsin-Madison. É editor de ”Império Infinito: Retirada de Espanha, Eclipse da Europa, Declínio da América” e autor de “Vigiando o Império Americano: os Estados Unidos, as Filipinas e o Surgimento do Estado de Vigilância”, entre outros. Realizou um notável trabalho de investigação acerca das ligações entre o crime organizado, os serviços secretos franceses, e norte-americanos e a intervenção imperialista no sudoeste asiático.

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