Poucas pessoas entenderam quando Marilena Chauí comentou em uma palestra que a classe média é fascista, mesmo que depois a filósofa da USP tenha explicado didaticamente o sentido de sua frase. Marilena partiu de uma definição marxista de classe média para argumentar como seu desejo de tornar-se classe dominante a conduz ao extremismo político, como no Fascismo. Hoje, enquanto vivemos um momento político conturbado, podemos perceber o quanto a classe média brasileira (não aquela que ascendeu socialmente no governo Lula, mas a classe média no sentido tradicional, a quem Marilena se reportou) flerta com ideias autoritárias. Os panelaços contra Dilma são ações exclusivas desse segmento. São eles que vão às ruas protestar contra o governo e falar contra corrupção usando a camisa da seleção brasileira e a logomarca da CBF! São eles quem falam de “doutrinação de esquerda” nas escolas, pedem outro golpe militar e gritam palavras de ordem para expulsar a esquerda do jogo democrático.
Parte dessa direita quer ser liberal, mas ela não entende que o liberalismo não funciona em países com grandes bolsões de pobreza, por isso sua defesa do fim das políticas sociais não encontra eco na sociedade; ela não compreende que as políticas sociais não são “esmolas”, mas promovem ascensão e reduzem o abismo entre ricos e pobres, além de expandir o emprego e o aumento dos pequenos empreendimentos. Esse foi um dos principais acertos do governo Lula, e parte considerável dessa classe média não compreende que apenas se mantem nessa posição em decorrência dessas políticas cujo fim advogam.
A direita que vai às ruas, na verdade, não está insatisfeita com a corrupção (senão não usaria a camisa da CBF), mas com a democracia. O sentimento de derrota é algo com que muitos não conseguem lidar e com a quarta vitória consecutiva do PT numa eleição presidencial o ressentimento saiu às ruas para manifestar nada mais do que ódio incontido: houve um cartaz defendendo feminicídio, bonecos de Lula e Dilma enforcados em um viaduto, entre outras aberrações que só a direita é capaz de fazer. Curiosamente, querem voltar ao espírito de 1964 e falam de um comunismo que não existe mais. Essa direita que lê apenas Veja e compreende apenas os textos prosaicos de Reinaldo Azevedo e Olavo de Carvalho está aquém até mesmo de uma discussão de ideias, porque não tem ideias, apenas papagueia o que lê de seus líderes. Foi assim que Lobão ascendeu a uma posição de destaque em seu meio. Não importa se você nunca leu nada, ser anti-petista já te projeta como um expoente e um intelectual entre eles.
Culto ao irracionalismo. É isso que vemos hoje no Brasil e é isso o que essas manifestações representam. Numa entrevista ao Jornal Brasil de Fato, a historiadora da USP Maria Aparecida de Aquino teceu algumas considerações importantes sobre as causas do golpe de 1964 e as posturas da direita atualmente. Vou reproduzir alguns trechos da entrevista e retorno a seguir:
Enquanto você tem nos países considerados avançados, como Inglaterra, França, Alemanha, uma determinada caracterização das elites, na medida em que não existe um distanciamento tão grande entre aquele que pertence à elite e aquele que está alijado na sociedade, no Brasil e em outras nações, você tem uma distância imensa. Existem nações em que o menor salário e o maior não ultrapassa dez vezes. Aqui não dá para mensurar quantas vezes ultrapassa. Consequentemente esse distanciamento tão grande faz com que essa elite nossa não seja tão permissiva.
Ela não admite, ela não é democrática. Ela é cruel, mesquinha. No momento em que ela diz “não podem se sentar à mesa”, ela está negando o próprio desenvolvimento. Porque é do acesso dessas pessoas a bens que elas não teriam, e a possibilidade que elas teriam que, inclusive, você tem o maior desenvolvimento do país. Quanto mais gente consumindo, partilhando, mais o país será desenvolvido. Nossa elite nega inclusive o desenvolvimento. O seu próprio desenvolvimento. É predatória, talvez seja o melhor adjetivo para ela.
[…]Hoje pouca coisa [mudou]. Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em 1964. As elites não evoluíram, não avançaram. Enquanto o Brasil mudou muito, para melhor, um país que inclui muito mais pessoas, e não só por causa dos últimos anos, vem num processo de inclusão muito importante. A realidade que vivemos hoje está a léguas de diferença da realidade de 50 anos atrás. Talvez a única que que persista é uma atitude semelhante das elites, infelizmente.[…]Quando você analisa as elites que estavam posicionadas em 1964 elas são claramente golpistas. Elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem, para sua destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo.Hoje você tem uma elite que tem um pouco de receio. Ela tem um pouco de receio de dizer “para nós acabou a brincadeira, a bola é minha e não brinco mais” e assumir uma caracterização abertamente golpista. Não que ela não flerte. Não que ela não seja capaz de embarcar em um aventura terrível, pela forma como age, pelas considerações que ela faz.Um exemplo foi quando a presidenta Dilma se elegeu. Ela teve uma capacidade eleitoral bastante grande no Nordeste. Quando você olha as redes sociais falando dos nordestinos, você vai ver a cara dessa elite. Ela é exatamente aquilo. Ela começa a dizer: “é esse tipo de gente que elegeu, e nós somos melhores”. Ela tem condições, desejo e vontade de flertar abertamente [com o autoritarismo].Ou seja, hoje você tem um processo ou uma proposta de inclusão social, que de uma maneira ou de outra dá o acesso às pessoas que não teriam a determinadas instâncias, desde a casa própria até o ensino universitário.Essa proposta descontentava, como descontenta hoje. A proposta de inclusão. Se o Brasil vive um momento de crise, se é que existe a crise, se ela não é fabricada pelos meios de comunicação, essa crise se deve fundamentalmente a esse descontentamento. São os mesmos grupos, a mesma raiz, que não aceita que as pessoas que não têm nem acesso às migalhas passem a se sentar na mesa.[…]Uma coisa é pensarmos no Brasil como um país jovem, que está vivendo um processo de ascensão das chamadas classes médias, quanto a isso não há dúvida, mas é um erro achar que nesse mesmo processo progressivo também terá o mesmo processo no sentido de qual leitura eles terão da realidade brasileira. Infelizmente, a leitura que se tem, na média, é conservadora.Isso se deve à formação do Brasil, uma escolarização muito baixa. Teve o acesso das pessoas ao ensino, mas é um ensino transformador? Quando se pega a escola pública, que atende à vasta maioria, essa educação transforma sua mentalidade, prepara para os novos tempos? Se tivesse uma imprensa que fosse muito mais plural, também contribuiria para que tivéssemos esses debates ampliados.
Retornando…
Recentemente Olavo de Carvalho escreveu em uma rede social que um dos motivos pelos quais a esquerda encontra tanto apoio no Nordeste em termos eleitorais por conta do Bolsa Família é porque os ricos deixaram de dar esmola. Lembrei disso ao ler a entrevista de Aquino quando ela diz as elites querem que os pobres vivam de migalhas. É essa a mentalidade da direita. No Brasil, quando os pobres começam a não depender de esmolas isso começa a incomodar. Eu disse em outro texto que o PT deixou de fazer reformas e investimentos importantes e isso contribuiu para o ajuste fiscal que agora pesa sobre os trabalhadores e reflete em um sensível aumento do desemprego.
Mas a direita não está preocupada com o desemprego. Nunca esteve. A direita jamais foi às ruas protestar quando dezenas de milhares de pessoas se submetiam a condições degradantes em filas quilométricas por um vaga de emprego durante o governo FHC. Também não está preocupada com a corrupção. Jamais se manifestou contra ela. E a corrupção não é exclusiva do PT, ela está presente em toda a nossa política partidária e nas prefeituras dos mais remotos rincões do país. Ela vai às ruas porque não suporta cotas para negros, porque a desigualdade social foi reduzida demais pra seu gosto e porque não consegue mais vencer eleições presidenciais.
Sua defesa do liberalismo é ranheta. O liberalismo prega o estado mínimo apenas para os pobres, ele prega que o estado não deve investir em políticas sociais mas deve manter os arrochos salariais e proteger os interesses dos banqueiros e das grandes corporações empresariais, livrando-os da bancarrota sempre que necessário. Ora, o PT não deixou de atender a esses interesses também, porém, não deixou de descontentar quem acha que fazer políticas sociais é fazer comunismo.
Como disse a historiadora da USP, “ela [a direita] não é democrática. Ela é cruel, mesquinha”. E agora sai às ruas para mostrar essa face que por tanto tempo escondeu sob a máscara liberal. Essa direita quer o apoio da sociedade nas ruas. Mas suas medidas econômicas, tão logo implementadas, perdem essa base de apoio e a sociedade se volta novamente para a esquerda. Ela é mesquinha porque seu projeto econômico é reduzir o papel do estado na economia e isso acarreta desemprego, terceirizações, perdas de direitos trabalhistas; e não é democrática porque, não conseguindo vencer eleições, quer criminalizar a esquerda, quer ditadura, cassação de direitos civis e políticos. Em todo caso, a direita representa o retrocesso, o irracionalismo.
PS.: CLIQUE AQUI para acessar ao vídeo onde Marilena Chauí explica a classe média.
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