Bertone de Oliveira Sousa, professor do curso de História da UFT que já teve artigos reproduzidos neste blog, recentemente lançou em seu blog o artigo ''Dez coisas que a esquerda brasileira ainda precisa aprender'', parecido com uma publicação anterior chamado ''Notas avulsas'': um conjunto de teses do autor sobre a nossa realidade. Gostaria de fazer aqui uma crítica às teses divulgadas nesse artigo mais recente.
1. O PT promoveu inclusão social, mas isso não deveria lhe dar o direito de saquear o país. Em última análise, os mensalões e petrolões foram roubos aos próprios trabalhadores, que agora são forçados a pagar os prejuízos. O PT se mostrou tão patrimonialista quanto qualquer outro partido e somente se mantém no poder porque a direita, apesar de também ser patrimonialista, não quer inclusão nem ascensão social, por isso não consegue ser oposição e vencer eleições. E como não há oposição, o PT se destrói por dentro como vem fazendo. A direita nunca vai querer políticas sociais, por isso sempre vai vociferar contra elas. A crise atual ocorre porque o governo deixou de fazer reformas importantes e agora tem que recuar das políticas sociais e deixar a economia decrescer. Isso não tem a ver com “ódio burguês ou elitista”, isso é resultado apenas de má administração e fisiologismos partidários.
Que o PT é patrimonialista e corrupto como suas contrapartes mais à direita todos nós sabemos; o elemento diferenciador dessa tese do professor seria a de que a ''crise atual'' ocorre somente porque o governo deixou de fazer as tais reformas, e que essa negligência seria apenas resultado de má administração e fisiologismos partidários. Ok, mas por que houve (e há) má administração e fisiologismos partidários? Talvez convenha dizer que o oligopólio midiático e a estrutura de financiamento das campanhas cerceiam o potencial de conscientização dos partidos à esquerda, gerando uma conjuntura conservadora que dificulta o progressismo. Veja bem, não estou dizendo que nestes anos todos o governo estivesse completamente impedido de fazer reformas mais à esquerda, mas que a conjuntura conservadora, somada ao fato de que o governo negligenciou a conscientização da classe trabalhadora (''Mas classe não existe, e nem luta de classes!'', dirá o professor), são um forte impedimento a essas reformas. O governo federal petista, em 2003, optou por um caminho que buscava conciliar os interesses de classe antagônicos. Por um período de mais ou menos 10 anos esse modelo pôde funcionar devido a um cenário externo favorável, mas caiu por terra recentemente. Eis a real causa da crise. E o ''ódio burguês e elitista'' agora exige austeridade e até mesmo intervenção militar, para jogar mais esta crise do capitalismo -- que, não sabe o professor Bertone, ameaça jogar-nos em mais uma recessão mundial nos próximos 2 ou 3 anos -- na conta dos trabalhadores e dos mais pobres (mais informações sobre o impacto da depressão econômica mundial no Brasil aqui e aqui).
2. Não existe imprensa golpista no Brasil. Quem faz golpe são militares, milícias ou grupos armados tomando as ruas e prédios governamentais. Imprensa faz oposição e oposição não é golpe.
De fato, a imprensa sozinha não é capaz de derrubar um governo. Esqueceremos, porém, coisas como o apoio dado por tantos e tantos jornais conservadores ao impedimento de João Goulart, ainda que esse estivesse muito mais à esquerda que Dilma? Esqueceremos como a própria emissora que levou o neoliberal Fernando Collor de Melo, recentemente absolvido das acusações utilizadas como justificativa para o impeachment por falta de provas, tirou-lhe do poder?
3. Não existe luta de classes no mundo contemporâneo. Existem, sim, ricos e pobres e suas diferenças não se manifestam mais na forma de luta de classes. Marx usou esse conceito no século XIX como parte de uma filosofia da história em que o desenvolvimento produtivo da sociedade capitalista levaria de forma inevitável à ditadura do proletariado, que seria a passagem para a abolição de todas as classes. O conceito de classe, em Marx, sobrepuja o indivíduo, cujos pensamentos e modos de viver são condicionados por sua posição em uma classe social, compreendida como unidade sólida. Nossa época é a da afirmação do indivíduo, das minorias e da rejeição a ideologias coletivistas. Os pobres não querem revolução social nem são movidos por ideais classistas, eles querem consumir, querem ampliação de direitos e integração. Algumas lideranças de esquerda perceberam a importância disso ainda na década de 1870 e criaram a social-democracia. Hoje, evocar “luta de classes” apenas serve para jornalistas pagos pelo governo polarizarem debates e inflamarem ânimos. Somente. Tirando isso é um conceito fora de tempo.
Devo dizer que essa é, de todo o texto, minha tese favorita, por apresentar explicitamente a forma pós-moderna de pensar do professor Bertone. Diz ele que já não há luta de classes no mundo contemporâneo; por que então estariam sindicatos lutando por coisas como o aumento do salário mínimo e de outros benefícios trabalhistas, com a oposição dos patrões e proprietários, que querem margens de lucro sempre maiores? Essa oposição de interesses, que não é meramente a oposição de interesses individuais mas sim de interesses de grupos, é simplesmente o antagonismo de classes inseparável do capitalismo. Bertone diz que o conceito de luta de classes era praticamente apenas uma desculpa, uma justificativa para a conclusão da filosofia da história de Marx, e que os pobres de hoje querem simplesmente consumir, ter seus direitos ampliados e aumentar sua integração aos frutos da civilização moderna; o professor inverte Marx, que primeiro partiu da análise da produção material da vida para daí desenvolver sua filosofia da história (ou, em outras palavras, primeiro descobriu a luta de classes no capitalismo para dai então concluir que esta levaria à ditadura do proletariado e então à abolição das classes), e esquece que, para poder consumir e integrar-se, os pobres precisam ganhar mais (um valor a mais que talvez, diria eu, seus empregadores -- donos dos meios de produção -- não estejam afim de pagarem), e que para terem seus direitos ampliados (e aqui eu entendo direitos sociais, como saúde e educação públicas de qualidade, além de emprego), é preciso que o governo aloque recursos do setor capitalista e até mesmo de outros consumidores. Um último adendo: a social-democracia festejada por Bertone no final do parágrafo é a mesma que apoiou a permanência de alguns países na primeira guerra mundial quando estavam em seus governos -- permanência essa combatida pelos ''atrasados'' comunistas e socialistas.
Há algum tempo, aliás, escrevi um texto sobre luta de classes que pode ser lido aqui.
4. É preciso entender que não faz mais sentido colocar os adjetivos “socialista” e “comunista” em siglas de partido, ainda mais quando vêm acompanhados do substantivo “liberdade”. Alguém saberia dizer o que é um socialismo com liberdade? Alguém sabe dizer como construir o socialismo sem que isso resulte no fracasso das experiências do século passado? Por que o partido que reúne esses dois termos apenas defende lugares onde não há liberdade?
Bertone não justifica o porquê de não ''fazer mais sentido'' colocar os adjetivos ''socialista'' e ''comunista'' em siglas de partido; não é o normal a se fazer quando uma organização política com um projeto de nação socialista ou comunista se forma? É também risível o que Bertone fala a seguir, repetindo como um papagaio a propaganda de certos liberais do Ocidente. O socialismo -- o regime de propriedade pública dos meios de produção com um Estado proletário -- é essencialmente libertário, exatamente pelo fato de que os trabalhadores já não precisam se submeter às condições que a classe capitalista monopolizadora dos meios de produção impõe àqueles para que obtenham seu ganha-pão, e a possibilidade de um planejamento racional e democrático da produção social permite a satisfação das necessidades humanas individuais. Talvez Bertone esteja falando de um Estado autoritário, fortemente repressor, cujos membros teriam absoluto poder sobre a população; diz também ele que as experiências socialistas do passado foram um fracasso. Pois bem, se eu puder usar a Rússia soviética como exemplo de que Bertone está errado, gostaria de apresentar 2 citações do famoso historiador Isaac Deutscher e deixar as conclusões por conta dos leitores:
''No curso desse decênio [1929-1939] a produção de eletricidade por ano elevou-se de 6 para 40 bilhões de kWh; a produção de carvão passou de 30 para 133 milhões de toneladas; a de petróleo, de 11 para 32 bilhões de toneladas; a de automóveis, de 1400 para 211 mil unidades. Antes da revolução, o número de médicos era de 20 mil, em 1937 passou a 105 mil. O número de leitos de hospital passou de 175 para 618 mil. Em 1914, 8 milhões de pessoas frequentavam escolas de todos os níveis; em 1928, 12 milhões de pessoas, em 1938, 31,5 milhões. Em 193, 112 mil pessoas estudavam em estabelecimentos de nível universitário; em 1939, 620 mil. Antes da revolução, as bibliotecas públicas possuíam 640 livros para cada 10 mil habitantes; em 1939, 8610.''
''Os deputados dos sovietes não eram escolhidos por um período fixo. O eleitorado tinha o direito de substituí-los por outros a qualquer momento. Sua composição renovava-se, portanto, através de frequentes eleições suplementares. Por isso, eles se transformaram num reflexo perfeito do cambiante estado de espírito popular. Esta era a fonte de uma incomparável autoridade moral. Além de dar representação semi-parlamentar às classes inferiores, eram também o poder executivo de fato, com a qual a administração normal jamais poderiam competir.''
Lembremos que a URSS foi aquela que conseguiu crescer 2125% nos dois primeiros Planos Quinquenais de Stálin, esmagou o exército nazista, se recuperou rapidamente da destruição causada pela guerra e ainda lançou o primeiro homem ao espaço (além de prover uma logística que pôde proteger os alemães orientais do inverno marcado pela fome com o qual sua contraparte ocidental, enteada dos EUA, sofreu). O gráfico abaixo demonstra o crescimento do PIB (repare na ausência de recessões) na pátria socialista:
O socialismo falhou; reverta para capitalismo! |
Aquele que ainda acreditar na tese direitista da ''impossibilidade de uma economia socialista eficiente'', leia esse texto.
5. Cuba não é um exemplo de saúde e educação que ainda se possa elogiar. Vários países construíram excelentes índices de educação e saúde pública sem sacrificar as liberdades individuais de seus cidadãos e nem abrir mão da democracia, como fez Cuba.
Farei outra citação:
“Cuba é internacionalmente reconhecida por seus êxitos nos campos da educação e da saúde, com um serviço social que supera o da maior parte dos países em vias de desenvolvimento e em certos setores se compara ao dos países desenvolvidos. Desde a Revolução Cubana, em 1959, e do subsequente estabelecimento de um governo comunista com partido único, o país criou um sistema de serviços sociais que garante o acesso universal à educação e à saúde, proporcionado pelo Estado. Esse modelo permitiu a Cuba alcançar a alfabetização universal, erradicar certas doenças, [prover] acesso geral à água potável e salubridade pública de base, [atingir] as taxas mais baixas da região de mortalidade infantil e uma das maiores expectativas de vida. Uma revisão dos indicadores sociais de Cuba revela uma melhora quase contínua de 1960 até 1980. Vários indicadores principais, como a expectativa de vida e a taxa de mortalidade infantil continuaram melhorando durante a crise econômica do país nos anos 90 [...]. Atualmente, os serviços sociais de Cuba são parte dos melhores do mundo em desenvolvimento, como documentam numerosas fontes internacionais, incluindo a Organização Mundial da Saúde, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, além de outras agências da ONU e o Banco Mundial […]. Cuba supera amplamente a América Latina, o Caribe e outros países de renda média nos indicadores principais: educação, saúde e salubridade pública”. (Barbara Bruns & Javier Luque, Profesores excelentes. Cómo mejorar el aprendizaje en América Latina y el Caribe, Washington, Banco Mundial, 2014, pp. 87-88)
''Cuba possui altos índices de saúde e educação, com um alto Índice de Desenvolvimento Humano: de 0,815 em 2014. De acordo com os dados apresentados pelas Nações Unidas, Cuba foi a única nação em todo o mundo que em 2006 atingiu a definição de desenvolvimento sustentável do World Wide Fund for Nature, com uma pegada ecológica de menos de 1,8 hectares per capita, 1,5 hectares, e um Índice de Desenvolvimento Humano de mais de 0,855.'' Mais informações sobre a saúde e educação de Cuba aqui. Sobre o suposto caráter ditatorial de Cuba, sugiro a leitura do texto da professora Anita Leocádia Prestes, ''O sistema político de Cuba: uma democracia autêntica''. |
6. A democracia socialista é totalitarismo. Só existia (e só existe) para o partido e sua nomenklatura, que encarna a vontade da coletividade sem consultá-la. Hoje não falamos mais em “democracia burguesa”, falamos genericamente em democracia e pensando o acesso das minorias e a inclusão dos pobres nela. É nessa via que a esquerda ainda pode ser bem-sucedida porque a direita governa para os ricos e em detrimento dos pobres. Por isso, a direita sempre terá os pobres contra ela. A única alternativa que sobrou à democracia ocidental é o radicalismo islâmico.
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Quanta asneira! Vá estudar, professor!
ResponderExcluirBertone Souza, um dos melhores historiadores
ResponderExcluirO dono do Blog tá precisando Bobbio e seus livros sobre democracia, aí sim ele pode debater com o Bertone
ResponderExcluirler
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