segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O que é o livre mercado?


Um bom e nobre defensor do livre mercado e da livre-concorrência: Miltinho



''A livre concorrência, como farejou corretamente o sr. Wakefield em seu comentário a Smith, jamais foi elaborada pelos economistas, por mais que tagarelem sobre ela e que seja a base de toda a produção burguesa, da produção fundada no capital. Ela só foi compreendida negativamente, i.e., como negação dos monopólios, das corporações, das regulações legais etc. Como negação da produção feudal. No entanto, ela também tem de ser algo por si mesma, porque um mero 0 é uma negação vazia, a abstração de um obstáculo que imediatamente emerge de novo sob a forma, por exemplo, de monopólio, monopólios naturais etc. Conceitualmente, a concorrência nada mais é do que a natureza interna do capital, sua determinação essencial, que se manifesta e se realiza como ação recíproca dos vários capitais uns sobre os outros, a tendência interna como necessidade externa.) (O capital existe e só pode existir como muitos capitais e, consequentemente, a sua autodeterminação aparece como ação recíproca desses capitais uns sobre os outros.)''

''A concorrência, porque aparece historicamente como dissolução de obrigação corporativa, regulamentação governamental, alfândegas internas e similares no interior de um país, e no mercado mundial como supressão de  barreiras, proibição ou proteção – em suma, porque aparece historicamente como negação dos limites e barreiras peculiares às fases de produção que precederam o capital; porque historicamente foi qualificada e saudada pelos fisiocratas, de modo totalmente correto, como laissez faire, laissez passer; por essas razões, ela passou a ser considerada por esse aspecto puramente negativo, por esse seu aspecto puramente histórico, o que levou, por outro lado, à bobagem ainda maior de considerá-la como o conflito dos indivíduos libertados de suas cadeias e determinados exclusivamente por seus próprios interesses – como repulsão e atração dos indivíduos livres em relação uns com os outros e, desse modo, como a forma absoluta de existência da individualidade livre na esfera da produção e da troca. Nada pode ser mais falso. 1) Se a livre concorrência dissolveu as barreiras de relações e modos de produção anteriores, é preciso considerar,  em primeiro lugar, que aquilo que para ela é barreira, para os modos de produção anteriores era limite imanente, dentro do qual eles se desenvolviam e movimentavam em conformidade com sua natureza. Tais limites só se convertem em barreiras depois que as forças produtivas e as relações comerciais evoluíram suficientemente para que o capital enquanto tal pudesse começar a atuar como o princípio regulador da produção. Os limites que ele derrubou eram barreiras para o seu movimento, desenvolvimento, realização. Com isso, de modo algum ele aboliu todos os limites nem todas as barreiras, mas só os limites que não lhe correspondiam, que para ele eram barreiras. No interior de seus próprios limites – por mais que, de uma perspectiva mais elevada, eles se apresentem como barreiras da produção e, enquanto tais, são postos por seu próprio desenvolvimento histórico –, ele se sente livre, sem barreiras, i.e., limitado unicamente por si mesmo, unicamente por suas próprias condições de vida. Exatamente como a indústria corporativa, em seu apogeu, encontrou na organização corporativa a liberdade plena de que precisava, i.e., encontrou nela as relações de produção que lhe correspondiam. Pois foi ela própria que as pôs a partir de si mesma e as desenvolveu como suas condições imanentes e, por isso, de forma alguma como barreiras exteriores e restritivas. O aspecto histórico da negação, por parte do capital, do sistema corporativo etc. por meio da livre concorrência, nada mais significa que o capital, suficientemente fortalecido pelos modos de comércio adequados a ele, derrubou as barreiras históricas que perturbavam e tolhiam o movimento adequado a ele. No entanto, a concorrência está muito distante de ter simplesmente esse significado histórico ou de ser simplesmente essa coisa negativa. A livre concorrência é a relação do capital consigo mesmo como outro capital, i.e., o comportamento real do capital como capital. As leis internas do capital – que só aparecem como tendências nos estágios históricos preliminares do seu desenvolvimento – são postas pela primeira vez como leis; a produção fundada no capital só se põe em suas formas adequadas na medida em que e à proporção que a livre concorrência se desenvolve, pois ela constitui o livre desenvolvimento do modo de produção fundado no capital; o livre desenvolvimento de suas condições e de si mesmo como processo que reproduz continuamente essas condições. Na livre concorrência, não são os indivíduos que são liberados, mas o capital. Enquanto a produção baseada no capital constituir a forma necessária e, em consequência, a mais apropriada para o desenvolvimento da força produtiva da sociedade, o movimento dos indivíduos dentro das puras condições do capital aparece como sua liberdade; liberdade que, então, também é dogmaticamente garantida enquanto tal pela contínua reflexão sobre as barreiras derrubadas pela livre concorrência. A livre concorrência é o desenvolvimento real do capital. Por ela é posto para o capital singular, como necessidade exterior, o que corresponde à natureza do capital [, ao] modo de produção fundado no capital, o que corresponde ao conceito do capital. A coerção recíproca que os capitais exercem dentro dela uns sobre os outros, sobre o trabalho etc. (a concorrência dos trabalhadores entre si é apenas outra forma da concorrência dos capitais), é o desenvolvimento livre e simultaneamente real da riqueza como capital. Tanto é assim que os mais profundos pensadores econômicos, como Ricardo, p.ex., pressupõem o domínio absoluto da livre concorrência para poderem estudar e formular as leis adequadas do capital – que aparecem ao mesmo tempo como as tendências vitais que o governam. Mas a livre concorrência é a forma adequada do processo produtivo do capital. Quanto mais desenvolvida ela for, tanto mais puras se manifestam as formas do movimento do capital. O que Ricardo, p. ex., admitiu com isso, apesar da sua própria opinião, é a natureza histórica do capital e o caráter estreito da livre concorrência, que não é senão o livre movimento dos capitais, i.e., seu movimento dentro das condições que não pertencem a nenhuma condição preliminar dissolvida, mas são suas próprias condições. O domínio do capital é o pressuposto da livre concorrência, exatamente como o despotismo romano dos césares era o pressuposto do livre “direito privado” romano. Enquanto o capital é fraco, ele próprio procura ainda apoiar-se nas muletas dos modos de produção do passado ou que estão desaparecendo com o seu surgimento. Tão logo ele se sente forte, joga as muletas fora e se movimenta de acordo com as suas próprias leis. Tão logo ele começa a sentir a si próprio como obstáculo do desenvolvimento e a tomar consciência disso, ele busca refúgio em formas que, parecendo aperfeiçoar o domínio do capital pela contenção da livre concorrência, são ao mesmo tempo os prenúncios da sua dissolução e da dissolução do modo de produção baseado nele. O que reside na natureza do capital só é realmente posto para fora dele, como necessidade exterior, pela concorrência, que nada mais significa que os muitos capitais impõem uns aos outros e a si próprios as determinações imanentes do capital. Por isso, nenhuma categoria da economia burguesa, [nem] mesmo a primeira, como, p. ex., a determinação do valor, devém efetiva, [a não ser] pela livre concorrência; i.e., pelo processo efetivo do capital, que aparece como interação recíproca dos capitais e de todas as outras relações de produção e comércio determinadas pelo capital. Daí, por outro lado, a sandice que significa considerar a livre concorrência como o desenvolvimento último da liberdade humana; e [de considerar] a negação da livre concorrência = a negação da liberdade individual e da produção social fundada na liberdade individual. Trata-se de fato somente do desenvolvimento livre sobre um fundamento estreito – o fundamento do domínio do capital. Em consequência, esse tipo de liberdade individual é ao mesmo tempo a mais completa supressão de toda liberdade individual e a total subjugação da individualidade sob condições sociais que assumem a forma de poderes coisais, na verdade, de coisas superpoderosas – de coisas independentes dos próprios indivíduos que se relacionam entre si. O desenvolvimento daquilo que constitui a livre concorrência é a única resposta racional à sua divinização pelos profetas de classe média ou à sua demonização pelos socialistas. Quando se diz que, no âmbito da livre concorrência, os indivíduos, ao perseguirem exclusivamente o seu interesse privado, realizam o interesse comum ou, melhor dizendo, o interesse geral, isso nada mais significa que, sob as condições da produção capitalista, eles se pressionam mutuamente e, em consequência, o seu próprio entrechoque é somente a reprodução das condições sob as quais acontece tal interação. Aliás, a ilusão acerca da concorrência como a pretensa forma absoluta da individualidade livre, assim que desaparece, é uma prova de que as condições da concorrência, i.e., da produção fundada sobre o capital, já são sentidas e pensadas como barreiras e, em consequência, já são e se tornam barreiras cada vez mais. A afirmação de que a livre concorrência = forma última do desenvolvimento das forças produtivas e, em consequência, da liberdade humana, nada mais significa que o domínio da classe média é o fim da história mundial – certamente uma ideia agradável para os parvenus fora de moda.''

- Karl Marx, Fundamentos da Crítica da Economia Política ('Grundrisse')



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