quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Para uma sociologia ''em mangas de camisa''


O texto abaixo consiste no item V da ''Segunda parte'' do livro ''Introdução Crítica à Sociologia Brasileira'' (RJ: UFRJ, 1995 [1957]), de Alberto Guerreiro Ramos



 Não se divisa até agora no pensamento sociológico latino-americano nenhuma transformação correlata àquela que é liderada, no setor econômico, pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).

 Caracteriza a atuação da CEPAL o propósito de tornar a política e o pensamento econômico dos países latino-americanos fatores operativos do seu desenvolvimento. Desta maneira, ao propor soluções para os problemas de desenvolvimento, parte da consideração dos recursos disponíveis e não das conveniências e necessidades idealisticamente concebidas. Todo o esforço deste organismo internacional é o de formular os princípios de uma estratégia econômica cuja assimilação habilite o economista latino-americano, em suas atividades de aconselhamento, a contribuir para a direção dos fatores produtivos de cada país, de modo a acelerar a sua velocidade de capitalização.

 Nestas condições, a renda nacional passa a ser objeto de atenção especial do economista. É ela que marca o compasso, a espécie e as normas das políticas econômicas, as quais devem procurar sempre combinar os fatores nacionais de produção de modo a serem atingidos os níveis mais altos de rentabilidade. Este novo modo de ver tornou-se, no campo econômico, o suporte de uma atitude antitransplantativa. Um dos prógonos desta corrente de ideias, Raúl Prebisch [1], advertia, em 1951, que a urgente necessidade atual de capitalização nas atividades internas é muitas vezes incompatível com o empenho de reproduzir nos países menos desenvolvidos as formas de existência dos mais desenvolvidos, entre os quais se destacam, desde logo, os Estados Unidos, porque estas formas de existência, as modalidades de consumo que elas implicam, assim como as modalidades de capitalização, resultam de altos ingressos [rendas] a que gradualmente chegaram esses países pelo aumento de sua produtividade; e sua mera transfusão aos países menos desenvolvidos, sem um esforço deliberado de seleção e adaptação, provoca tensões que noutros tempos não se apresentavam.

 Com essas ideias coadunavam-se, perfeitamente, uma das recomendações submetidas ao plenário do II Congresso Latino-americano de Sociologia, elaboradas pela Comissão de Estruturas Nacionais e Regionais, que tive a honra de presidir. Estava assim redigida:

 No exercício de atividades de aconselhamento, os sociólogos latino-americanos não devem perder de vista as disponibilidades de renda nacional de seus países, necessárias para suportar os encargos decorrentes das medidas propostas.


 Como expus linhas atrás, fui derrotado na defesa deste princípio. Não obstante, a mim me parece que a sociologia latino-americana deve ingressar nessa trilha. O que tem prejudicado, entre nós, a sociologia, neste particular, é o confinamento do sociólogo nos quadros academicamente definidos como sendo os próprios desta disciplina. Desta forma, o profissional perde de vista o significado econômico do seu trabalho. Num país carecente da consciência orgânica de suas necessidades, isto é um desastre, porque, na medida que o sociólogo, com tal deficiência de formação, adquire prestígio pessoal ou é ouvido ou levado a sério, pode induzir agências governamentais ou particulares à aplicação funesta de recursos.

 O que tem levado sociólogos latino-americanos a obnubilar-se, neste particular, é o fato de considerar idênticos, na presente época, o momento de seus países e o de países mais desenvolvidos. Em geral, não se lembram de comparar os seus países com os que consideram como paradigmas, em termos de fase. Ao contrário, seu critério é o da contiguidade ou justaposição [2].

 Eis um recente flagrante: um sociólogo latino-americano aconselhou, como medida fundamental de uma reforma agrária no Brasil, a criação de escolas secundárias em cada município, proporcionalmente ao número de pessoas, semelhante ao que se verifica nos Estados Unidos. Segundo ele, o menor dos nossos municípios deveria manter, pelo menos, um estabelecimento de ensino secundário, com, no mínimo, cinco professores trabalhando em regime de tempo integral. E rematava o conselho com esta observação: o município que, no período de dois anos, a partir da promulgação da norma, não a tivesse cumprido, perderia o status de municipalidade.  

 A sugestão merece restrições sob muitos pontos de vista, ainda mesmo que a escola secundária de que se trata seja de tipo radicalmente diverso daquele a que, entre nós, se aplica a designação, isto é, o ginásio ou colégio. Mas a sua contra-indicação é óbvia do simples ponto de vista da renda nacional do país. Faça-se a conta de quanto dinheiro seria necessário investir na concretização desse propósito, para que se enxergue o absurdo que a medida representaria. Admitamos, porém, que o governo, num ato de loucura, resolvesse pôr em prática o conselho. Onde encontrar os professores? Como manter nas escolas secundárias uma população de adolescentes cuja psicologia e cuja situação econômica se constituiriam em fatores impeditivos da escolaridade? Como localizar estabelecimentos secundários, num quadro demográfico rarefeito, de modo que cada um deles funcionasse com o mínimo de alunos tecnicamente requeridos? Por esse e outros motivos, é temerária a observância à risca de aconselhamentos de autoridades estrangeiras, sem levar em conta as suas respectivas equações nacionais.

 Muitos técnicos, no Brasil, se conduzem exatamente como esse sociólogo norte-americano quando, por exemplo, aconselham que devamos gastar em serviços de saúde três dólares por pessoa, que devemos ter um posto de puericultura para cada 10.000 pessoas, um leito para cada óbito de tuberculose, cinco leitos de hospital-geral para cada mil habitantes, 60.000 médicos, 100.000 enfermeiros, 165.000 leitos para doentes mentais. Ou quando calculam outras necessidades institucionais, à luz do mesmo critério. Para eles, os problemas sociais se resolvem por meio de regra de três. Uma das mais espetaculares ilustrações desta concepção aritmética dos problemas sociais é um famoso levantamento do ISSB, principalmente na parte relativa à saúde.

 Confundem nesta conduta, os efeitos com a causa. Na verdade, os altos níveis de bem-estar são inseparáveis do processo que os criou. São resultados, por assim dizer, automáticos de um processo de desenvolvimento. Portanto, são os fatores deste processo que urge instalar aqui; é uma dinâmica econômico-social que se terá de promover.

 Na correção de tais hábitos de pensar é que a contribuição do sociólogo poderia ser das mais oportunas. O sociólogo, de todos os especialistas, é o que está mais habilitado, pelos instrumentos intelectuais que possui, a superar a visão parcelada das necessidades do país, substituindo-a por uma visão unitária de sua contextura. 

 A estratégia do desenvolvimento de um país é condicionada pela particular dinâmica de sua contextura, a qual, em cada fase histórica, apresenta a sua prioridade específica de necessidades de desenvolvimento. Desta forma não são necessariamente transferíveis, em dado momento, de um país para outro, quando estão em diferentes fases de desenvolvimento, os critérios de ação social.

 Uma das razões desta intransferibilidade decorre de fatores culturológicos. A atual sociologia das transplantações nos centros norte-americanos e ingleses parece enxergar somente os impedimentos culturológicos, neste terreno. Mas uma razão importante daquela intransferibilidade se exprime em termos de recursos disponíveis.

 A necessidade básica de um país subdesenvolvido como o Brasil é obter combinação ótima dos seus fatores econômicos, tendo em vista acelerar o incremento de sua taxa de investimentos em bens de produção. Imperativos de contabilidade social impõem atitude seletiva na realização de medidas. Estas não têm valor absoluto; ao contrário, sua eficácia depende das relações dominantes em determinado momento das estruturas nacionais e regionais.

 O trabalho sociológico em país periférico, muito menos do que qualquer outro, não pode permanecer descomprometido do processo de acumulação de capital. Como outras nações latino-americanos, o Brasil não atingiu a taxa anual mínima de investimentos líquidos necessária para atender ao custo do seu desenvolvimento econômico e nem poderá atingir a este montante por processo espontâneo. E a consciência deste fato deve ser suficientemente eloquente para converter o trabalho científico, em todos os setores, ao interesse nacional.

 Orientado neste sentido o trabalho sociológico em nosso país tem diante de si o caminho para emancipar-se do mecenato. O verdadeiro sociólogo, no Brasil, não precisaria de subvenções de favor ou de comprometer-se com a burocracia cartorial a fim de dedicar-se aos seus estudos. Ficará preso a essa contingência, se insistir em suas tendências acadêmicas e academizantes. É cada vez mais crescente a demanda de especialistas em sociologia capazes de vincular as suas atividades científicas às tarefas de promoção da autarquia econômica do país. Quero dizer, uma sociologia ''me mangas de camisa'' pode viver, hoje, no Brasil, dos proventos de sua efetiva utilidade para o esforço de construção nacional.

 É verdade que, atualmente, a orientação aqui preconizada desperta forte resistência e sistemáticas antipatias, tanto mais quanto ameaça falsas posições e falsas reputações. Reconheço que este modo de ver, pelo seu caráter pioneiro, não é o mais cômodo. Por outro lado, contraria poderosos interesses investidos e se afigura incompreensível, esquisito, difícil, a uma legião de pessoas sinceramente equivocadas. Paga-se, ás vezes, ônus pesado pelas ideias. E nem todos estão dispostos para tanto,

 Mas nada disto deve obscurecer o fato de que o Brasil está amadurecendo. O grau de expansão de suas forças produtivas e as contradições cada vez mais agudas entre tais forças e os quadros institucionais vigentes estão tornando incoercível a mudança qualitativa da vida brasileira, em todos os seus aspectos.

 Trata-se de um processo. E contra um processo é inútil lutar.


Notas 
[1] PREBISCH, Raúl. Problemas teóricos e práticos do desenvolvimento econômico, números 7 e 8, setembro e dezembro de 1951. Também: FURTADO, Celso. ''Formação de Capital e Desenvolvimento Econômico''. In Revista Brasileira de Economia, setembro de 1952.
[2] Pretendo ter feito uma aplicação clara da faseologia em meus estudos sobre mortalidade infantil, os quais contrariam os pontos de vista oficiais sobre a matéria. Vide especialmente: GUERREIRO RAMOS. ''O Problema da Mortalidade Infantil no Brasil''. In Sociologia, março de 1951. 

 

  

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