Até março deste ano, momento
em que este artigo foi escrito,
a economia brasileira está submetida
ao mais longo ciclo de aperto em
sua política monetária desde a adoção do regime de metas de inflação,
em junho de 1999: a taxa básica de
juros vem subindo há vinte meses,
desde abril de 2013, tendo saído de
uma meta de 7,25% ao ano para os
atuais 14,25%. Em dois anos, a taxa
quase dobrou e atualmente está
no mesmo patamar em que se encontrava
em agosto de 2006. Simultaneamente,
a economia brasileira
também está submetida a um
ajuste fiscal bastante severo: a despeito
dos economistas mais conservadores
acusarem a incapacidade
do governo federal em implementar
uma política de austeridade, as
despesas do governo central encolheram
13% nos doze meses acumulados
de dezembro de 2014 a
novembro de 2015, quando descontada
a inflação [1].
A combinação de aperto monetário
com austeridade fiscal,
contudo, não foi capaz de assegurar
uma trajetória declinante
da inflação: medida pelo Índice
de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA), calculado pelo Instituto
Brasileiro de Geogra fia e Estatística
(IBGE), a inflação de 2015
foi de 10,6%, muito superior aos
6,4% de 2014. Pela primeira vez
desde 2005, a inflação escapou à
meta estipulada pelo Conselho
Monetário Nacional (CMN).
O fracasso da ortodoxia em
combater a inflação é evidente e
sustenta-se exclusivamente numa
pro fissão de fé, não existindo
uma única evidência para a hipótese de excesso de demanda a ser
combatida pela elevação da taxa
básica de juros ou pelo ajuste
fiscal: o consumo das famílias
tem caído sistematicamente desde
2014; a utilização da capacidade
instalada da indústria está
em queda livre desde 2014, tendo
alcançado em janeiro de 2016
patamares inferiores aos observados
durante a crise financeira
de 2008; e o PIB caiu 3,8% em
2015, contra um crescimento pífio de 0,1% em 2014, configurando
aquela que será a maior recessão
desde a eclosão da crise da
dívida externa dos anos 1980.
Claro está que a aceleração inflacionária ocorrida ao longo do
ano de 2015 tem suas causas nos
dois tipos de choques aos quais a
economia brasileira esteve submetida
no último ano: o reajuste
de diversos preços administrados,
como o petróleo e a energia
elétrica; e a forte desvalorização
cambial, superior a 46%. Em situações
como esta, os efeitos desses
choques poderiam ser ao menos
parcialmente absorvidos por
políticas de desonerações fiscais
que pudessem mitigar esses efeitos;
contudo, deterioradas pelas
despesas financeiras, que alcançaram
o equivalente a 9% do PIB
em 2015, e acossadas pelo austericídio
que tomou conta da equipe
econômica e da oposição, as
finanças públicas não puderam
absorver os efeitos desses choques
e o governo foi forçado a acomodá-los
na forma de mais inflação.
Diante do óbvio, como explicar
a insistência do Banco Central
em elevar a taxa básica de juros?
Até meados de 2011, a taxa
de câmbio cumpriu um papel decisivo na estratégia de estabilização dos preços. Em trajetória de
apreciação desde 2003, o câmbio
contribuiu para contra-arrestar
os efeitos altistas de outros
custos, como os salários e os preços das commodities. Reconhecendo,
contudo, os efeitos deletérios
da combinação juros altos /
câmbio valorizado sobre a economia
– aumento da despesa financeira
e da dívida interna, perda
de competitividade da indústria
com risco de desindustrialização – o governo Dilma Rousse
buscou realinhar essas duas variáveis em seu primeiro mandato,
reduzindo a taxa Selic e buscando
uma taxa de câmbio mais competitiva
e favorável ao setor industrial.
A ameaça do banco central
norte-americano de elevar suas
taxas de juros forneceu os elementos
decisivos para reverter a
trajetória de valorização do Real.
Desde então, a inflação no Brasil
tem se aproximado sistematicamente
do teto da meta de nida
pelo CMN. Ocorre, contudo,
que a estratégia de desvalorização cambial teria efeitos já previstos
sobre a inflação, e o contrapeso
seria oferecido por meio do controle
de outros componentes de
custos: o subsídio à energia elétrica, com impactos no orçamento
primário, e o represamento dos
reajustes dos preços dos combustíveis,
com impactos sobre a saúde financeira da Petrobras, especialmente
sob o contexto de forte
elevação dos preços internacionais
desta commodity, que não foram
repassados ao consumidor.
Finalmente, os dois anos de seca
que abateram as regiões Sudeste
e Sul também contribuíram para
o aumento dos preços de diversos
gêneros alimentícios e também
exerceram pressões adicionais sobre
as tarifas de energia elétrica,
porque obrigaram o uso de
energia termoelétrica, cujo custo
maior de geração também foi repassado
ao consumidor.
Sem condições de manter represados
os preços dos combustíveis e da energia, o governo anunciou
fortes reajustes nestes preços
no início de 2015. Em situações
normais, esta política poderia ser
compensada por tentativas de, ao
menos, estabilizar a taxa de câmbio,
mitigando seus efeitos in acionários.
Contudo, as enormes
instabilidades de natureza interna
e externa ocorridas ao longo
de 2015 – déficit em transações correntes superior a 4% do
PIB, ameaça de aumento da taxa
de juros nos Estados Unidos,
ameaça de perda do grau de investimento
– geraram um cenário no qual a taxa de juros Selic,
mesmo majorada, não foi capaz
de compensar o súbito aumento
do prêmio de risco, perdendo sua capacidade de influenciar a taxa
de câmbio – que se desvalorizou
em 46% entre janeiro e dezembro
de 2015 – e, por conseguinte,
a inflação. Permaneceram, contudo,
os efeitos deletérios dos juros
elevados sobre a atividade econômica
e sobre as finanças públicas, deterioradas por um déficit nominal recorde equivalente a
10,3% do PIB, dos quais insólitos
8,5% do PIB corresponderam
à despesa com juros. Os rentistas
só têm a agradecer, e cumprem o
papel que deles se espera: pressionar
por mais “austeridade”.
Apesar do cenário de crise econômica ainda não ter oferecido sinais de arrefecimento, o horizonte aponta para um cenário mais benigno do ponto de vista da trajetória da inflação. Os próximos reajustes de preço da energia elétrica nem de perto alcançarão aqueles realizados em 2015, já que o m dos subsídios à conta de luz já foi totalmente incorporado aos reajustes realizados no último ano; a queda do preço do petróleo nos mercados internacionais tem permitido à Petrobras recuperar com maior velocidade os prejuízos acumulados com a antiga política de represamento de preços, sinalizando reajustes mais suaves nos preços dos combustíveis para os próximos meses; o fenômeno do El Niño substituiu a seca por chuvas acima da média no Sudeste e no Sul, de modo que os reservatórios de água das usinas hidroelétricas estão abastecidos, provocando o desligamento de algumas usinas térmicas; a taxa de câmbio parece ter finalizado seu processo de realinhamento, com o banco central norte-americano tendo sinalizado claramente de que a in exão em sua política monetária ocorrerá de forma mais branda; e, finalmente, os operadores dos mercados cambiais já precificaram a perda do grau de investimento. Possivelmente alguns gêneros alimentícios ainda serão majorados, em razão de safras agrícolas menores em regiões que registraram maiores chuvas, e resta ainda uma enorme volatilidade no mercado cambial, muito mais associada ao cenário de crise política e institucional do “golpe paraguaio” que se avizinha. Para qualquer dessas causas que ainda persistem, os remédios ortodoxos de juros altos e ajuste fiscal não terão qualquer efeito.
Em outras palavras, a combinação
insólita de choques de custos
que se abateu sobre a economia
brasileira em 2015 não mais
se repetirá em 2016. É importante
que se diga, portanto, que o arrefecimento
esperado para a inflação
neste ano em curso não guarda
qualquer relação com o aperto
monetário que há dois anos vem
sendo praticado pelo Banco Central,
não existindo qualquer razão
para a sua continuidade.
[1] Excluímos o mês de dezembro, em razão
das distorções provocadas pelo pagamento
das assim chamadas "pedaladas"
ficais, ocorrido naquele mês. Por óbvio, o
objetivo do cálculo não é a contabilidade
pública em si, mas sim os efeitos do gasto
sobre o ciclo econômico: o pagamento das
"pedaladas", integralmente realizado em
dezembro de 2015, não reflete o aumento
do gasto corrente, tampouco do investimento,
no mês em que foi realizado.
*É professor da Faculdade de Economia da UFF. E-mail: victor_araujo@terra.com.br
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