segunda-feira, 9 de maio de 2016

O fracasso da ortodoxia

por Victor Leonardo de Araújo* para o Jornal dos Economistas, órgão oficial do CORECON-RJ


 Até março deste ano, momento em que este artigo foi escrito, a economia brasileira está submetida ao mais longo ciclo de aperto em sua política monetária desde a adoção do regime de metas de inflação, em junho de 1999: a taxa básica de juros vem subindo há vinte meses, desde abril de 2013, tendo saído de uma meta de 7,25% ao ano para os atuais 14,25%. Em dois anos, a taxa quase dobrou e atualmente está no mesmo patamar em que se encontrava em agosto de 2006. Simultaneamente, a economia brasileira também está submetida a um ajuste fiscal bastante severo: a despeito dos economistas mais conservadores acusarem a incapacidade do governo federal em implementar uma política de austeridade, as despesas do governo central encolheram 13% nos doze meses acumulados de dezembro de 2014 a novembro de 2015, quando descontada a inflação [1].

 A combinação de aperto monetário com austeridade fiscal, contudo, não foi capaz de assegurar uma trajetória declinante da inflação: medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geogra fia e Estatística (IBGE), a inflação de 2015 foi de 10,6%, muito superior aos 6,4% de 2014. Pela primeira vez desde 2005, a inflação escapou à meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

 O fracasso da ortodoxia em combater a inflação é evidente e sustenta-se exclusivamente numa pro fissão de fé, não existindo uma única evidência para a hipótese de excesso de demanda a ser combatida pela elevação da taxa básica de juros ou pelo ajuste fiscal: o consumo das famílias tem caído sistematicamente desde 2014; a utilização da capacidade instalada da indústria está em queda livre desde 2014, tendo alcançado em janeiro de 2016 patamares inferiores aos observados durante a crise financeira de 2008; e o PIB caiu 3,8% em 2015, contra um crescimento pífio de 0,1% em 2014, configurando aquela que será a maior recessão desde a eclosão da crise da dívida externa dos anos 1980.

 Claro está que a aceleração inflacionária ocorrida ao longo do ano de 2015 tem suas causas nos dois tipos de choques aos quais a economia brasileira esteve submetida no último ano: o reajuste de diversos preços administrados, como o petróleo e a energia elétrica; e a forte desvalorização cambial, superior a 46%. Em situações como esta, os efeitos desses choques poderiam ser ao menos parcialmente absorvidos por políticas de desonerações fiscais que pudessem mitigar esses efeitos; contudo, deterioradas pelas despesas financeiras, que alcançaram o equivalente a 9% do PIB em 2015, e acossadas pelo austericídio que tomou conta da equipe econômica e da oposição, as finanças públicas não puderam absorver os efeitos desses choques e o governo foi forçado a acomodá-los na forma de mais inflação. 

 Diante do óbvio, como explicar a insistência do Banco Central em elevar a taxa básica de juros? Até meados de 2011, a taxa de câmbio cumpriu um papel decisivo na estratégia de estabilização dos preços. Em trajetória de apreciação desde 2003, o câmbio contribuiu para contra-arrestar os efeitos altistas de outros custos, como os salários e os preços das commodities. Reconhecendo, contudo, os efeitos deletérios da combinação juros altos / câmbio valorizado sobre a economia – aumento da despesa financeira e da dívida interna, perda de competitividade da indústria com risco de desindustrialização – o governo Dilma Rousse buscou realinhar essas duas variáveis em seu primeiro mandato, reduzindo a taxa Selic e buscando uma taxa de câmbio mais competitiva e favorável ao setor industrial. A ameaça do banco central norte-americano de elevar suas taxas de juros forneceu os elementos decisivos para reverter a trajetória de valorização do Real. Desde então, a inflação no Brasil tem se aproximado sistematicamente do teto da meta de nida pelo CMN. Ocorre, contudo, que a estratégia de desvalorização cambial teria efeitos já previstos sobre a inflação, e o contrapeso seria oferecido por meio do controle de outros componentes de custos: o subsídio à energia elétrica, com impactos no orçamento primário, e o represamento dos reajustes dos preços dos combustíveis, com impactos sobre a saúde financeira da Petrobras, especialmente sob o contexto de forte elevação dos preços internacionais desta commodity, que não foram repassados ao consumidor. Finalmente, os dois anos de seca que abateram as regiões Sudeste e Sul também contribuíram para o aumento dos preços de diversos gêneros alimentícios e também exerceram pressões adicionais sobre as tarifas de energia elétrica, porque obrigaram o uso de energia termoelétrica, cujo custo maior de geração também foi repassado ao consumidor.

 Sem condições de manter represados os preços dos combustíveis e da energia, o governo anunciou fortes reajustes nestes preços no início de 2015. Em situações normais, esta política poderia ser compensada por tentativas de, ao menos, estabilizar a taxa de câmbio, mitigando seus efeitos in acionários. Contudo, as enormes instabilidades de natureza interna e externa ocorridas ao longo de 2015 – déficit em transações correntes superior a 4% do PIB, ameaça de aumento da taxa de juros nos Estados Unidos, ameaça de perda do grau de investimento – geraram um cenário no qual a taxa de juros Selic, mesmo majorada, não foi capaz de compensar o súbito aumento do prêmio de risco, perdendo sua capacidade de influenciar a taxa de câmbio – que se desvalorizou em 46% entre janeiro e dezembro de 2015 – e, por conseguinte, a inflação. Permaneceram, contudo, os efeitos deletérios dos juros elevados sobre a atividade econômica e sobre as finanças públicas, deterioradas por um déficit nominal recorde equivalente a 10,3% do PIB, dos quais insólitos 8,5% do PIB corresponderam à despesa com juros. Os rentistas só têm a agradecer, e cumprem o papel que deles se espera: pressionar por mais “austeridade”. 

 Apesar do cenário de crise econômica ainda não ter oferecido sinais de arrefecimento, o horizonte aponta para um cenário mais benigno do ponto de vista da trajetória da inflação. Os próximos reajustes de preço da energia elétrica nem de perto alcançarão aqueles realizados em 2015, já que o m dos subsídios à conta de luz já foi totalmente incorporado aos reajustes realizados no último ano; a queda do preço do petróleo nos mercados internacionais tem permitido à Petrobras recuperar com maior velocidade os prejuízos acumulados com a antiga política de represamento de preços, sinalizando reajustes mais suaves nos preços dos combustíveis para os próximos meses; o fenômeno do El Niño substituiu a seca por chuvas acima da média no Sudeste e no Sul, de modo que os reservatórios de água das usinas hidroelétricas estão abastecidos, provocando o desligamento de algumas usinas térmicas; a taxa de câmbio parece ter finalizado seu processo de realinhamento, com o banco central norte-americano tendo sinalizado claramente de que a in exão em sua política monetária ocorrerá de forma mais branda; e, finalmente, os operadores dos mercados cambiais já precificaram a perda do grau de investimento. Possivelmente alguns gêneros alimentícios ainda serão majorados, em razão de safras agrícolas menores em regiões que registraram maiores chuvas, e resta ainda uma enorme volatilidade no mercado cambial, muito mais associada ao cenário de crise política e institucional do “golpe paraguaio” que se avizinha. Para qualquer dessas causas que ainda persistem, os remédios ortodoxos de juros altos e ajuste fiscal não terão qualquer efeito.

 Em outras palavras, a combinação insólita de choques de custos que se abateu sobre a economia brasileira em 2015 não mais se repetirá em 2016. É importante que se diga, portanto, que o arrefecimento esperado para a inflação neste ano em curso não guarda qualquer relação com o aperto monetário que há dois anos vem sendo praticado pelo Banco Central, não existindo qualquer razão para a sua continuidade.

[1] Excluímos o mês de dezembro, em razão das distorções provocadas pelo pagamento das assim chamadas "pedaladas" ficais, ocorrido naquele mês. Por óbvio, o objetivo do cálculo não é a contabilidade pública em si, mas sim os efeitos do gasto sobre o ciclo econômico: o pagamento das "pedaladas", integralmente realizado em dezembro de 2015, não reflete o aumento do gasto corrente, tampouco do investimento, no mês em que foi realizado.



*É professor da Faculdade de Economia da UFF. E-mail: victor_araujo@terra.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário