sexta-feira, 5 de março de 2021

Crescimento econômico e geração de empregos formais no Piauí no século XXI: uma vista nos dados

 



A tabela acima, montada a partir de dados extraídos do Sistema de Contas Regionais - SCR (do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), bem como do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - CAGED (do saudoso Ministério do Trabalho e Emprego - MTE), revela algo no mínimo curioso e relevante para a discussão de políticas públicas e sobre a "adequabilidade" de um "projeto de desenvolvimento" baseado no agronegócio, ao menos para o Piauí: em 2017, ano com a maior taxa de crescimento econômico da série histórica atual, o estado teve uma geração líquida de empregos irrisória. 

 Observando-se os dados de valor adicionado por setor, observa-se que o maior responsável pela "taxa chinesa" de crescimento de tal ano foi precisamente o setor de agropecuária -- puxado, é claro, pelo agronegócio. 

Oras: uma baixa geração de empregos formais em paralelo a uma expansão considerável do produto é um resultado previsível tendo em vista 1) a alardeada e propagandeada produtividade do trabalho no setor e 2) um predomínio da informalidade nas relações de trabalho. 

domingo, 3 de março de 2019

Dependência e crescimento econômico




I. Transferência de valor e superexploração da força de trabalho

 Tal como examinado por Ruy Mauro Marini, uma das características fundamentais da economia mundial -- isto é, do capitalismo mundial sob domínio imperialista -- é a transferência de valor, isto é: a transferência de riqueza social dos países da periferia latino-americanos para os países centrais, favorecendo a acumulação de capital nestes últimos. Tal transferência se dá por 3 mecanismos: a) a troca desigual no comércio internacional, que ocorre a partir dos termos de troca entre produtos tipicamente exportados pela periferia latino-americana ao centro e produtos importados do centro por ela, de acordo com a estrutura de preço do mercado mundial; b) a remessa de lucros para o exterior como resultado da ação direta dos investidores estrangeiros no campo da produção; c) o pagamento de passivos externos (como dívida externa ou royalties).

 Para viabilizar a acumulação local de capital, as classes dominantes locais buscam compensar  aquela perda submetendo os trabalhadores sob sua dominação a um processo de superexploração, isto é: põem-lhes a produzir riqueza sob condições tais de jornada, intensidade e remuneração do trabalho que esta última não consegue satisfazer as necessidades socialmente desenvolvidas ou compensar o  desgaste sofrido no processo de trabalho; em outras palavras, remuneram a força de trabalho a um preço abaixo de seu valor histórico-moral. E o nível de tal salário real implica que a grande maioria da população latino-americana tem um poder de compra reduzindo, o que torna estreitos o poder de consumo dos mesmos e portanto, confere estreiteza aos mercados internos das nações capitalistas latino-americanas. E essa estreiteza obrigaria os capitais operantes no subcontinente a se voltarem para o mercado mundial a fim de vender suas mercadorias e assim realizar a mais-valia nelas contida. 

 Desta forma, a superexploração da força de trabalho (resposta burguesa à transferência de valor) é o fundamento da condição de dependência das economias capitalistas latino-americanas, isto é: de sua subordinação frente às economias centrais, imperialistas, em cujo marco as relações de produção da periferia latino-americana são modificadas e recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. 

II. Crescimento econômico e suas restrições externas

 Conforme a contabilidade social, o produto interno bruto (PIB, ou Y) -- a medida tradicional da produção dos países capitalistas -- é dado pela soma C + I + G + (X-M), ou seja: consumo agregado mais investimento agregado mais gasto público mais o saldo da balança comercial. Crescimento econômico, assim, é a variação sucessivamente positiva do PIB (e sobretudo do PIB per capita) ano após ano.

 Todavia, as condicionalidades do crescimento econômico não são as mesmas em todos os países. Com a exceção (dentro de certos limites) do país central que emite a moeda dominante no comércio internacional, todos os países enfrentam condicionantes externos ao crescimento econômico que aparecem de forma objetiva no fato de que estes têm que enfrentar e resolver o seu problema de balanço de pagamentos, isto é: de ter ativos para pagar seus passivos externos, tipicamente  (embora nem sempre) denominados em moeda estrangeira.

 Uma forma simplificada da questão pode ser mostrada supondo-se que não existem movimentações internacionais de capital (empréstimos, por exemplo), somente de mercadorias, e assim as mercadorias importadas por um país precisariam necessariamente ser pagas com divisas obtidas a partir de exportações prévias. Sendo as importações M resultado de uma propensão m a importar a cada nível de produto Y (ou seja, M = mY; relacionado aos produtos que tendemos a demandar conforme nossa renda cresce e com a importação de bens de capital ligada ao investimento, que responde ao crescimento econômico), vê-se claramente que o crescimento econômico dos países que não emitem a moeda dominante no comércio internacional (grupo do qual certamente fazem parte os países da periferia latino-americana) têm seu crescimento econômico efetivo e potencial prejudicado por termos de troca desfavoráveis no comércio internacional, que lhes conferem um reduzido ''poder de importação'' em troca de um determinado custo em trabalho e outros recursos, materializado sob a forma das exportações. 

 Introduzindo-se aquelas movimentações internacionais de capital, há a possibilidade de os países sem moeda conversível incorrerem nos chamados déficits em conta-corrente, que podem ser financiados com o ingresso de capitais estrangeiros. Mas uma trajetória de crescimento econômico com déficits em conta-corrente não é sempre sustentável; sua sustentabilidade é determinada, no caso dos países latino-americanos, pela evolução da relação entre o passivo externo líquido, de um lado, e as exportações (que são a fonte última de divisas que permitem o pagamento desse passivo), de outro. 

III. Imperialismo e crise

 
Agustín Cueva critica a tese, tipicamente associada a interpretações da industrialização latino-americana, de que a crise nas economias centrais produz automaticamente o auge das economias periféricas (por exemplo, impulsionando sua industrialização); segundo o mesmo, ''a tendência geral do capitalismo é muito mais de transferir o custo das crises das áreas metropolitanas para as áreas dependentes''. Como um exemplo dessa transferência de custo, Cueva cita a elevação recorde da taxa de juros do banco central estadunidense (o Fed) em 1979 e a manutenção da política de juros elevados no governo de Ronald Reagan, além de uma queda profunda nos preços das matérias-primas exportadas pelos países latino-americanos: fenômenos que forçaram esses países a transferir enormes quantidades de excedente econômico para as ''metrópoles'', ao custo de recessão no início dos anos 80 -- ''auxiliada'' pela política econômica dos próprios países latino-americanos, como parte do ajuste necessário para obter superávits em conta-corrente que permitissem pagar o serviço da dívida externa -- e estagnação do PIB per capita por toda a década. Em 1983, por exemplo, a entrada líquida de dólares na América Latina foi de 2,9 bilhões de dólares, enquanto o pagamento líquido de lucros e juros foi de 34,4 bilhões, levando a uma transferência líquida de 31,5 bilhões de dólares para o exterior.                                               

IV. Crescimento econômico no capitalismo dependente latino-americano

 Se os países da periferia latino-americana, para alcançar os níveis de PIB per capita dos países centrais, deveriam crescer a taxas razoavelmente mais elevadas que aqueles por um bom período de tempo, e embora o tenham feito (pelo menos alguns desses países) em certos episódios históricos, as condições concretas com que se deparam, diretamente relacionadas com sua condição de dependência, são desfavoráveis àquele ''emparelhamento'' (catching-up). Os mecanismos de transferência de valor restringem a contribuição potencial das exportações tradicionais da América Latina para o crescimento econômico e o ''espaço'' para importação, ao mesmo tempo em que a superexploração da força de trabalho reduz o potencial de contribuição do consumo agregado, inclusive do ponto de vista da concentradíssima distribuição de renda que resulta daquela (uma vez que a esfera de consumo dos mais ricos está bem mais associado a importações). Ao mesmo tempo, o papel desempenhado pela América Latina na divisão internacional do trabalho (e as exportações associadas a ele) se revelam uma fonte adequada de lucros e riqueza para as classes dominantes locais, de forma que estas não demonstram interesse em mudar o rumo das suas economias nacionais em direção à sofisticação produtiva e tecnológica, com maiores ganhos de produtividade social do trabalho; e, por outro lado, a experiência histórica brasileira mostra que o desenvolvimento acelerado das forças produtivas levado a cabo sob uma dominação burguesa realizada sob uma ditadura militar feroz foi feito às custas de uma piora considerável das condições de vida da classe trabalhadora, cuja maior evidência é a redução do salário real médio dos trabalhadores da região metropolitana de São Paulo a menos de 50% durante o ''milagre econômico'' de 1968-1973.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Teorias sobre a distribuição pessoal da renda, por Carlos Aguiar de Medeiros

 O texto abaixo foi retirado do apêndice escrito para o artigo Distribuição de renda como política de desenvolvimento econômico. Carlos Aguiar de Medeiros tem doutorado pela UNICAMP e é professor do Instituto de Economia da UFRJ.



 Entre os diversos fatores apontados nas análises empíricas sobre os desníveis no grau de concentração da renda, a escolarização assume amplo predomínio. Na economia brasileira, desde o ensaio de Carlos Langoni (1973), esta abordagem predomina nos estudos aplicados. Sua referência teórica principal é a teoria do capital humano – desenvolvida por autores como Schultz, 1961; Becker, 1975 –, e baseia-se na suposição de que o rendimento do trabalhador individual é determinado por seu produto marginal. É importante recordar que, num plano teórico, a crítica às teorias da produtividade marginal foi realizada nos anos 50 e 60, por Joan Robinson, na assim chamada controvérsia do capital, e por Piero Sraffa, que estendeu e explorou suas implicações teóricas (Garegnani, 1998). 

 O núcleo central da teoria neoclássica da distribuição é baseado no princípio da substituição dos fatores de produção. É o seu funcionamento que garante a existência de uma relação inversa entre a quantidade de um fator, isto é, sua escassez relativa, e a sua remuneração – a produtividade marginal. O valor de um bem de capital qualquer é o fluxo de rendimentos futuros, descontada a taxa de juros. Desse modo, estabelece a teoria convencional, o bem de capital será adquirido até que sua eficiência marginal seja igual à taxa de juros. Joan Robinson e Sraffa demonstraram que a construção de uma medida agregada de capital envolve insuperáveis problemas analíticos. Agregar quantidades fisicamente distintas de bens de capital requer conhecer previamente a taxa de juros; por outro lado, como estes possuem distintos períodos de produção, a existência de processos como “reversibilidade das técnicas” (consideradas como uma dada relação física entre insumo e produto) impede a construção de forma não ambígua de uma relação monótona entre quantidade de fator e seu rendimento. Mas, se o valor do capital depende da taxa de juros, e tampouco é possível ordenar as técnicas de acordo com sua intensidade de capital, a noção de produtividade de fator, o edifício da teoria neoclássica de distribuição, cai por terra, pois que se torna fatalmente inconsistente.

 A despeito de alguns esforços, nenhuma defesa consistente da teoria neoclássica da distribuição foi apresentada e a controvérsia exauriu-se. Possivelmente mais por razões psicológicas e políticas do que por razões formais ou matemáticas (Galbraith, Berner 2001), a crítica do capital não alterou a forma de pensar neoclássica contemporânea, que segue do, em diferentes campos, os mesmos postulados da teoria marginalista da distribuição. A teoria do capital humano é um destes campos. De acordo com esta teoria, a unidade de distribuição são o indivíduo e sua remuneração; e a remuneração é determinada pelas qualificações e habilidades acumuladas ao longo de sua vida, adquiridas através da sua educação formal e do treinamento específico do seu trabalho. Formam-se, assim, um “mercado de capital humano” e uma taxa uniforme entre ocupações distintas. O valor presente deste capital é dado pelo fluxo esperado de rendimento ao longo do ciclo de vida do indivíduo descontado pela taxa de juros. Vale observar que as mesmas críticas feitas à teoria do capital podem ser aqui aplicadas: a agregação de trabalhos heterogêneos em diferentes tarefas numa unidade comum, e a independência da taxa de juros em relação a qualquer quantidade de capital humano. Tendo em vista a natureza elusiva do capital humano, os anos de escolaridade são, na prática, adotados como a própria medida deste capital, independente das diferenças qualitativas. Para uma resenha desta abordagem e sua aplicação no Brasil, ver Corseuil e Coelho, 2002. 

 A teoria supõe que, em condições competitivas, a taxa de retorno dos investimentos em educação se ajusta de forma que o valor presente dos ganhos dos indivíduos ao longo de sua vida seja equalizado. Imperfeições de mercado (como as que tipicamente são associadas aos países em desenvolvimento) impedem que a distribuição de educação desejada e real desenvolvase de forma equilibrada, elevando forçosamente a taxa de retorno dos investimentos em capital humano, e abrindo um indesejável hiato de renda. A distribuição desigual da educação é erigida, no caso brasileiro, como o principal determinante da desigualdade (Barros e Mendonça, 1994). A política estrutural voltada a reduzir as desigualdades de renda baseia-se, conseqüentemente, na expansão da oferta de educação, em particular de ensino superior. Para o caso brasileiro, ver Ferreira (2002) e Blom, A. et al (2001). 

 Fora do campo do mainstream, é possível identificar diversas abordagens sobre a distribuição pessoal da renda, que interpretam de forma bastante distinta as relações entre educação e salários, e os mecanismos de concentração da renda. A teoria clássica dos salários aplicada às distintas ocupações (Gleicher e Stevans, 2000), ao lado das visões keynesianas institucionalistas – desenvolvidas nos anos mais recentes por James Galbraith (2001) –, compõe uma perspectiva alternativa. A rejeição ao princípio da distribuição baseado na produtividade marginal e o deslocamento da unidade de análise do indivíduo para as ocupações (na primeira abordagem),e para a firma/setor (no segundo caso) caracterizam estas abordagens.

 Na teoria clássica dos salários ocupacionais, o elemento-chave é formado pelas reservas de emprego associadas às diferentes ocupações – que se distinguem pelos diferentes tipos de treinamento requeridos de entrada. Tal como nas visões da economia clássica e de Marx, estas reservas (o pool de trabalhadores empregados e não-empregados que possuem uma dada qualificação) condicionam o poder de barganha dos trabalhadores empregados como grupo ocupacional. O grau de concorrência entre trabalhadores, entre firmas e setores numa dada ocupação condiciona a taxa de salário paga a esta ocupação (Gleicher, Stevans). A reserva líquida, isto é, o número de trabalhadores não empregados, mas que podem desempenhar determinada ocupação, determina a intensidade desta concorrência. Nesta perspectiva, quanto maior o treinamento exigido de entrada, menor será, relativamente a outras ocupações, a reserva líquida e, conseqüentemente, menor será o risco de ser desempregado, aumentando o poder de barganha dos ocupados. Os diferenciais por qualificação – tão elevados numa economia como a brasileira – são explicados de forma muito distinta da teoria da produtividade marginal. O salário relativo do trabalho qualificado é maior porque o número de indivíduos que possui determinado conjunto de qualificações que habilita a desempenhar determinadas tarefas é relativamente baixo em relação à demanda por estas qualificações, em contraste com o excedente de mão-de-obra, ou seja, a magnitude da reserva líquida que predomina nas posições de menor qualificação. Dentro de uma dada ocupação, o treinamento formal ou específico, com custo ou sem custo, é importante na diferenciação de salários numa direção que se aproxima da teoria do capital humano (comparabilidade dos esforços educacionais), mas, ao contrário desta, a relação entre a aquisição de treinamento e rendimento é indireta, e está condicionada por mudanças externas à atividade produtiva. A educação considerada como um credencial que habilita os indivíduos portadores de um ativo escasso a obterem maior barganha no emprego é perfeitamente compatível com esta abordagem. 

 A despeito de grande convergência desta abordagem com as abordagens institucionalistas e keynesianas, estas exploram outros mecanismos para a determinação das diferenças salariais. A unidade de análise aqui é o setor produtivo ou a firma. O ponto central é que os setores produtivos enfrentam diferentes elasticidades-renda, diferentes estruturas de mercado e desigual capacidade inovativa. Esta assimetria cria rendas de monopólio apropriadas assimetricamente por empresas, e, aspecto não contemplado nas análises neoclássicas, compartilhadas de diversas formas por seus empregados. A distribuição da renda do trabalho é, assim, influenciada pelo tamanho das firmas, e pelas assimetrias nas trajetórias de crescimento entre firmas e setores. A distribuição dos salários relativos reflete, portanto, uma determinada configuração do emprego, uma determinada configuração entre homens e máquinas na economia. Naturalmente que os diferenciais salariais serão tão maiores quanto menor for o ritmo da demanda global, e quanto mais desregulado for o mercado de trabalho. Mecanismos de diferenciação entre atributos individuais dos trabalhadores (gênero, raça) integram e completam este marco interpretativo. 

 Tanto a teoria clássica dos salários ocupacionais quanto a teoria keynesiana/institucionalista buscam explicações para os salários relativos; e a taxa de salário paga ao trabalho não qualificado depende, em ambas, de aspectos institucionais, como o salário mínimo estabelecido como um salário socialmente aceitável. O nível de emprego afeta positivamente a distribuição, seja porque reduz as reservas líquidas dos trabalhadores menos qualificados aumentando o seu poder de barganha, seja porque eleva relativamente a renda das empresas/ setores com menor grau de monopólio. Em ambas as teorias, a desregulação do mercado de trabalho, facilitando os mecanismos de dispensa e rotatividade de mão-de-obra, amplifica a concentração dos salários, favorecendo os mais qualificados, quer através de um maior acúmulo de aprendizagem dos que permanecem empregados, quer através da apropriação de forma isolada das rendas de monopólio. 

 Os impactos da educação sobre a distribuição de renda são bastante distintos daqueles previstos na teoria do capital humano. Um aumento do grau de escolarização da força de trabalho permite que indivíduos antes excluídos de determinadas ocupações possam candidatar-se a elas, alterando a reserva líquida para as mesmas, e debilitando o poder de barganha daqueles antes ocupados. Este efeito distributivo depende, entretanto, de aspectos institucionais não generalizáveis. Uma redução da desigualdade pode, por seu turno, decorrer de mudanças estruturais independentes. Assim, por exemplo, se, por mudanças estruturais decorrentes da abertura econômica e da desaceleração do crescimento econômico, o desemprego ocorrer nos setores com qualificações superiores à média da força de trabalho, haverá um “nivelamento para baixo”, em que a redução das desigualdades no mercado de trabalho torna-se um resultado não desejado de um retrocesso econômico. Assim, do ponto de vista de uma política de distribuição de renda, o objetivo é reduzir as desigualdades numa configuração emprego-salário superior. Esta configuração depende da persistência do crescimento econômico e do aumento da produtividade dos setores tecnologicamente mais atrasados, de forma a reduzir os desníveis de produtividade entre setores e firmas.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

''Promessa razoável de pobreza'' ou ''mentira populista'': o dilema do reformismo social-democrata nos países subdesenvolvidos




''Os dois ingredientes inerentes a toda dominação burguesa -- isto é, a violência física e a manipulação ideológica -- não podem ser dosados à vontade em qualquer parte do sistema, pois o índice de predomínio de um ou outro elemento corresponde a uma lei estrita: a do desenvolvimento desigual das contradições do capitalismo.'' 
- Agustín Cueva 
''Desenvolvendo sua economia mercantil, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado e que determinavam seu caráter e sua expansão. Mas esse processo foi mercado por uma profunda contradição. Chamada a coadjuvar a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve que fazê-lo mediante uma exploração fundada na superexploração do trabalhador.'' 
- Ruy Mauro Marini
''A luta de classes não é um processo que age em um marco estrutural: a luta de classes é a síntese das condições em que os homens produzem sua existência e se acha, por isso, regida por leis que determinam seu desenvolvimento.'' 
- Idem 


I. Riqueza (ou Economia)

 O nível da capacidade produtiva de riqueza de uma sociedade, como fluxo de bens e serviços que ela é capaz de produzir, é determinada pela sua dotação de meios de produção (meios de trabalho, i. e., máquinas e ferramentas, e objetos de trabalho, i. e., matérias-primas) e força de trabalho, bem como a qualidade dos mesmos, além do conhecimento científico e tecnológico; juntos, tais elementos determinam a produtividade social do trabalho ou produtividade do trabalho social, i. e., o que o trabalho daquela sociedade pode produzir, e o ''produto potencial'', ou seja: o seu nível máximo de produção. A regra é: quanto mais desenvolvidas aquelas forças produtivas sociais, maior a riqueza que pode ser produzida.

 A distribuição dessa produção é determinada pelas instituições desta sociedade. Por exemplo: pelo regime e pela distribuição da propriedade dos meios de produção, legislação sobre remunerações, acordos, impostos e tributos, etc. Trata-se de um processo conflituoso, no qual indivíduos e grupos disputam por uma maior parcela do produto social para si. Para um dado nível de produto, estes indivíduos ou grupos usarão tanto menos a tentativa de convencimento e tanto mais a força quanto maior for a parcela do produto social que desejarem para si.

 Embora a humanidade tenha até hoje, passado por diversos modos de produção social, o que vigora na maior parte do mundo atual é o capitalismo. Neste, uma reduzida parte da população detém os meios de produção como propriedade privada e/ou ativos que lhes fornecem rendimentos permitindo-lhes viver consumindo a riqueza (bens e serviços) que foi produzida por aqueles que precisam vender sua força de trabalho por um salário para sobreviver e que são a maior parte da humanidade -- os trabalhadores. A este ''parasitismo'' social, Marx chamou ''exploração'', e notou que ele não é exclusivo do modo de produção capitalista: a escravidão antiga, a servidão, a escravidão de negros e indígenas na modernidade foram todas relações sociais através dos quais uma parte da população, detentora dos meios de produção, extraíam do trabalho dos produtores diretos (escravos ou servos) um trabalho excedente materializado em produto excedente que lhes servia de meio de consumo ou de investimento (isto é, para aumento do aparelho produtivo). O próprio processo produtivo é, portanto, conflituoso, na medida em que a classe social detentora dos meios de produção impõe o esforço produtivo sobre os produtores diretos, os trabalhadores.

 Na economia mundial, diversas sociedades nacionais distintas realizam intercâmbio material, sob a forma social de comércio. Mas tais sociedades não têm forças produtivas homogêneas: alguns países são muito mais dotados de recursos naturais úteis na produção, por exemplo; outros têm ciência e tecnologia muito mais avançados -- e, consequentemente, meios de produção mais eficientes e uma maior produtividade social do trabalho. Historicamente, países europeus e alguns não-europeus, como Canadá, EUA e Japão, concentraram em si forças produtivas altamente desenvolvidas quando comparadas ao resto do mundo; um processo sem dúvida relacionado com a prática do colonialismo e do imperialismo, através do qual a riqueza dos países periféricos era transferida a tais países centrais (pela estrutura de preços do mercado mundial, pela prática financeira dos países centrais, pela participação direta de investidores estrangeiros em nossas economias ou pela pilhagem pura e simples). O fato é: graças a essa sucção de riqueza e a um maior desenvolvimento das forças produtivas, os países centrais apresentam um maior ''bolo de riqueza'' (o produto social) a ser distribuído entre seus habitantes, divididos em classes, extratos de classes etc.

 Os países da periferia mundial, por seu lado, vivem situação bastante diferente. Sua produtividade social do trabalho é bem mais baixa e eles sofrem a transferência de riqueza mencionada anteriormente. Assim, com um produto social por habitante (grosso modo, o PIB per capita) muito menor, as classes proprietárias locais, caso desejem um grau de opulência material similar às suas contrapartes nos países desenvolvidos, precisam concentrar relativamente muito mais renda em suas mãos, e portanto a dominação que exercem sobre os trabalhadores de seus países se dá de forma a empregar a força mais intensa e extensamente que a dominação de classe exercida nos países centrais. Os sistemas políticos de tais países são, também, muito mais fechados à participação e à satisfação das demandas da vasta maioria da população (os trabalhadores), como forma de manter o montante ''adequado'' da riqueza social nas mãos das classes proprietárias. Esses trabalhadores, por outro lado e consequentemente, têm condições de vida profundamente inferior às de seus companheiros de classe nos países centrais: acumulação capitalista de riqueza, aqui, se dá sob a forma de jornadas de trabalho longas e intensas e de salários incapazes de satisfazer as necessidades sociais da classe trabalhadora.

 (Ressalte-se: sob a base de uma condição de vida muito pior para as massas de seus países, garantida pela violência de seus Estados e demais braços armados e por suas democracias restringidas, as classes proprietárias dos países periféricos conseguem uma vida que lhes satisfaz, sem precisar estressar-se com o desenvolvimento econômico nacional e/ou os problemas da concorrência nos mercados dos bens tecnologicamente superiores cuja maior parte do ''valor adicionado'' é pertence aos países centrais. Seu parasitismo social, pouco frutífero para as populações que exploram, é-lhes uma posição cômoda e satisfatória.)

 Se a dominação de classe em nossos países periféricos, subdesenvolvidos, com inferior produtividade social do trabalho e que sofrem transferência de riqueza para os países centrais se dá então de forma muito mais violenta que nos países centrais, os trabalhadores precisam de formas e níveis de organização de classe e ofensiva classista superiores às dos trabalhadores dos países centrais para obter, digamos, o mesmo padrão de bem-estar material (ou, o que é mais factível, um padrão de bem-estar relativamente menor) em termos de poder de consumo e condições de trabalho e de vida, no geral. E isto nos leva a outra discussão.


II. Poder (ou Política)

 Os trabalhadores, produtores diretos da riqueza, sempre reagiram à sua exploração; revoltas de escravos, por exemplo, são conhecidas há milênios. Na atualidade, os trabalhadores, dentre outras formas de organização para resistir à exploração, criaram sindicatos e partidos que, ao menos a priori, deveriam lutar pelo interesse de suas categorias e/ou classe. Uma grande contribuição para essa organização sem dúvida se deu com a obra de Karl Marx, o qual produziu uma obra que ainda é a maior referência intelectual para a compreensão do modo de produção capitalista. Essa obra, entretanto, também inclui a orientação política de que a classe trabalhadora -- os proletários, explorados em todo o mundo -- deveriam, para libertar-se (e à humanidade) da exploração e da pobreza, transformar revolucionariamente o mundo, tomando o poder do Estado e estabelecendo uma ditadura de classe -- a ditadura do proletariado -- contra as classes proprietárias, socializando os meios de produção que antes eram propriedade privada e desenvolvendo as forças produtivas para construir o futuro comunista.

 A partir da contribuição de Marx, trabalhadores em todo o mundo organizaram-se com a finalidade de realizar a revolução socialista em seus países e continentes. Mas nem todas as organizações supostamente proletárias ou de inspiração dita marxista afirmaram ou afirmam o objetivo de realizar a transição para o modo superior, comunista, de produção, e de fazê-lo através da revolução socialista. Uma parte considerável delas, na verdade, assumiu-se como reformista, isto é: negou a necessidade da revolução socialista e declarou sua submissão aos sistemas eleitorais nacionais. As eleições, e não o conflito violento contra a classe proprietária e seus braços armados, dizem, seriam o canal através dos quais tais organizações melhorariam as condições de vida dos trabalhadores. Não á violência, mas sim a busca pacífica pelo consentimento da população! Estas organizações, particularmente no século XX, ficaram conhecidas como social-democratas, defensoras de um Estado de Bem-Estar Social que foi praticado nos países centrais (mais intensamente na Europa que nos EUA) durante o que ficou conhecido como a Era de Ouro (1945-1970).

 Todavia, se nos países centrais, ricos, como dissemos, a organização e atuação dos trabalhadores sob um horizonte reformista pode render às suas classes trabalhadoras ganhos de bem-estar consideráveis, a depender de certas condições, nos países periféricos -- onde, como dissemos, o conflito distributivo é muito mais acirrado e a dominação de classe exige muito mais violência e restrições à democracia --  o reformismo social-democrata, ao condenar e rejeitar a organização revolucionária dos trabalhadores, só pode ser duas coisas: uma promessa razoável ('reasonable'), ''aceitável'', de pobreza, haja visto que nega aos trabalhadores a forma suprema de pressionar a classe dominante e retirar de suas mãos a riqueza que nelas se concentra, ou uma ''mentira populista'', i. e., uma promessa, feita aos trabalhadores, de que sua vida irá melhorar consideravelmente -- quiçá se equiparar ao nível daquela dos habitantes dos países centrais! -- através da atuação de governos eleitos periodicamente.

 Em ambos os casos, têm-se uma atitude que um marxista não pode julgar senão como indigna perante os trabalhadores dos países subdesenvolvidos: prometer e entregar a eles migalhas, quando podem conquistar um mundo, ou enganá-los pura e simplesmente e ainda mantê-los sob as terríveis condições de pobreza e exploração em que se encontram.

 Poder-se-ia argumentar, porém, que um governo reformista social-democrata poderia ser promover o desenvolvimento acelerado das forças produtivas e, assim, garantir que as condições de disputa pela riqueza socialmente produzida permitissem um grau cada vez mais alto de ''civilidade''. Caso os trabalhadores preferissem as virtudes da ''paz'' social a uma vinda mais rápida, porém ao custo de um conflito de classe mais violento, dos benefícios de uma maior parcela na riqueza socialmente produzida e tivessem paciência, a estratégia revolucionária socialista seria portanto dispensável.

 A resposta comunista revolucionária a esse discurso é que, dentre outras coisas, a suposta ''paz'' social já faz muitas vítimas entre nossa classe -- vítimas das balas dos braços armados do Estado, vítimas da atenção insuficiente do poder público em termos de provisão de bens e serviços públicos, vítimas da incapacidade de desenvolver seus potenciais devido à pobreza e/ou o excesso de trabalho; que a nossa classe dominante está muito satisfeita com sua condição de classe-piloto de uma economia nacional subdesenvolvida e precária, não desejando os estresses e cuidados necessariamente ligados com o processo de desenvolvimento econômico; que foi uma brutal ditadura capitalista, que empobreceu os trabalhadores, concentrou a renda e perseguiu e matou militantes trabalhistas e socialistas (dentre outros), quem promoveu o desenvolvimento das forças produtivas nacionais sob a forma social capitalista; e, finalmente, que o governo dos trabalhadores pelos trabalhadores e para os trabalhadores, sob o sistema de propriedade socialista dos meios de produção, já provou sua capacidade de desenvolver rapidamente as forças produtivas, como mostra o exemplo da industrialização ultra-rápida realizada pela União Soviética para se preparar para a Segunda Guerra Mundial e possíveis ofensivas das potências imperialistas -- além da possibilidade de realizar mudanças para superar e corrigir os erros presentes nesse modelo histórico.

 Enfim, contra a subordinação do destino da classe trabalhadora, dos explorados de todo o mundo e particularmente dos países subdesenvolvidos da periferia mundial, ao projeto e à liderança dos parasitas exploradores do trabalho alheio, nós, os comunistas, declaramos sem pestanejar: viva à revolução socialista mundial e ao autogoverno dos trabalhadores! 

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Conhecimento imperfeito, desenvolvimento econômico e teoria


 O texto abaixo é um trecho do livro A ascensão do ''resto'': os desafios ao Ocidente de economias com industrialização tardia (2009), de Alice Amsden - professora de Economia política no Departamento de estudos urbanos e planejamento do M.I.T. 





 As implicações para a teoria do desenvolvimento econômico da renúncia à premissa do conhecimento perfeito são radicais, mas mal começaram a ser exploradas.

 Se o conhecimento não é perfeito, então a produtividade e a qualidade podem variar entre empresas de uma mesma indústria em diferentes países. Por conseguinte, simplesmente permitir que o mecanismo de mercado determine o nível dos preços ('''acertar' os preços'') pode não bastar para permitir que os países concorram internacionalmente em indústrias em que precisem desfrutar de uma vantagem competitiva (indústrias que utilizem mão-de-obra, no caso de países com mão-de-obra abundante, indústrias que utilizem matéria-prima, no caso de países com matéria-prima abundante, e assim por diante). O preço da mão-de-obra, por exemplo, pode ter de ficar negativo antes que um país com mão-de-obra abundante se torne internacionalmente competitivo na indústria que mais utiliza mão-de-obra (mantendo-se constantes a produtividade e a qualidade), já que os ativos exclusivos baseados no conhecimento de um concorrente com salários maiores pode proporcionar a este último custos unitários mais baixos -- como vimos no caso da indústria têxtil japonesa em comparação com as indústrias têxteis indiana e chinesa no pré-guerra e com as indústrias têxteis taiwanesa e coreana no pós-guerra.

 Além disso, sob condições de conhecimento imperfeito, mesmo que '''acertar' os preços positivos'' gere competitividade internacional (mediante, digamos, a desvalorização da taxa de câmbio ou, o que dá no mesmo, a redução dos salários), esta não é uma solução ''ótima segundo Pareto'', definida como a melhor de todas as políticas, em que nenhum ator econômico pode melhorar a própria situação sem piorar a de um outro ator econômico. Nem a abordagem mercadológica nem a institucional ocupam uma posição moral ou teórica mais elevada. Como vimos no ''resto'' [1], pode ser mais proveitoso para o crescimento (e mais rápido -- e sobre isso a teria não nos pode dizer nada) elevar a produtividade por meio da engenharia institucional do que reduzir custos cortando salários.

 Portanto, na ausência do conhecimento perfeito, a resolução do problema dos altos custos de produção torna-se uma questão antes empírica do que teórica.

 Renunciar à premissa do conhecimento perfeito também significa abrir ainda mais as portas à possibilidade de elaborar teorias indutivas de desenvolvimento econômico. Modelos indutivos utilizam casos concretos de expansão industrial, em vez de hipóteses abstratas, para explicar o crescimento e orientar a formulação de políticas. Duas inferências da experiência do ''resto'' podem são relevantes nesse sentido.

 Primeiro, os modelos indutivos podem influenciar a formulação de políticas econômicas mais do que (ou tanto quanto) teorias abstratas dedutivas. A influência de um modelo foi notável no caso das políticas tão bem-sucedidas de promoção às exportações no Leste Asiático, que extraíram exportações das indústrias de substituição de importações, tendo como base o antigo regime comercial (políticas e instituições) do Japão. Com um número maior de industrializadores tardios bem-sucedidos (e mal-sucedidos), os modelos indutivos proporcionam um recurso de aprendizado tão rico para o ''resquício'' [2] como as teorias dedutivas.

 Segundo, as ''falhas de governo'' já não poderão ser tidas como certas se os governos utilizarem mecanismos institucionais para elevar a produtividade e ligar no tranco o crescimento industrial. A falhas do governo podem ser inevitáveis na ausência de um maquinário sistemático que as impeça, mas não necessariamente na presença de tal maquinário, como vimos no caso do ''resto''. O mecanismo de controle recíproco do ''resto'' dificilmente era perfeito. Mas ele ilustra as possibilidades de minimizar as ''falhas'' do governo mesmo em economias assoladas pelo ''risco moral'' [3] e a corrupção (mas com experiência manufatureira).

 Até o momento não houve grande reconhecimento do maquinário sistemático que os países do ''resto'' instalaram, implementaram e monitoraram para evitar as falhas de governo e seguir metas desenvolvimentistas. Todavia, '''acertar' o mecanismo de controle'' a despeito de os preços prevalecentes estarem ou não ''certos'', foi fundamental para o processo de retomada no pós-guerra. 

Observações
[1] Grupo de países composto por Brasil, Argentina, Chile, México, Turquia, China, Coreia do Sul, Índia, Taiwan, Malásia, Tailândia e Indonésia. 
[2] O ''resquício'' são países que estiveram menos expostos a vida fabril moderna no pré-guerra, não possuindo posteriormente nada que se aproximasse da diversificação industrial do ''resto''.
[3] Situação em que um ator econômico portador de informação privada pode fazer uso desta em benefício próprio após a celebração de um contrato, eventualmente impondo prejuízos ao principal (ator econômico cujo retorno depende da ação daquele agente ou da informação que é propriedade do mesmo). 

sábado, 20 de janeiro de 2018

Mais complexo do que pode parecer


 Nota sobre o 'rentismo', parasitismo social e as formas e condições de valorização capitalista no Brasil




  O fenômeno das taxas de juros acima da média internacional no Brasil, com consequente elevação acelerada da dívida pública, tem provocado uma acalourado debate dentro da esquerda nacional e de certos grupos de economistas e analistas econômicos acerca da temática do ''rentismo''. Neste debate, diversas formas de entendimento conflitam-se, cada uma trazendo certas consequências normativas. 

 Nesta nota, meu objetivo é apresentar meu próprio entendimento sobre a temática, relacionando às temáticas da valorização capitalista, da concorrência e da determinação dos preços de mercado e distribuição da renda em sociedades capitalistas. 

I. Produção e distribuição do mais-valor

 Embora considere que, na aurora do modo de produção capitalista, o capital comercial era a forma dominante de capital, para a Marx a forma dominante da acumulação nos tempos modernos seria o capital produtivo. A forma de valorização deste é o desembolso de uma certa quantidade de dinheiro na compra de força de trabalho e meios de produção, com a geração de uma riqueza adicional -- mais-valor ou mais-valia -- durante o processo de trabalho dessa força de trabalho sobre os meios de produção; riqueza adicional esta que é a fonte dos lucros dos capitalistas na venda dos produtos (vide livro 2 de O Capital). [1]

 Como consequência da natureza do dinheiro como forma de equivalente geral das mercadorias, os capitalistas buscam as aplicações mais lucrativas para seus capitais [2], transferindo-os de ramos com determinadas taxas de lucro para outros com taxas de lucro mais elevadas. Este movimento intersetorial dos capitais faz surgir, para Marx, uma tendência à formação de uma taxa geral do lucro, a qual nada mais é do que uma média das taxas de lucro setoriais, sendo definida portanto pela razão entre a massa de mais-valia socialmente produzida pelo total do capital desempenhado.

 Como expressão deste movimento, os preços de mercado -- ao menos das mercadorias com possibilidade de produção em massa -- gravitariam em torno dos chamados ''preços de produção'', isto é, pelo preço de custo (custo unitário de produção) k + o lucro médio l, este o produto da multiplicação da taxa geral de lucro l' por k.

 Neste preço de custo -- atenção aqui, pois isto é fundamental para o prosseguimento desta discussão teórica -- entram os juros nominais que o capitalista tem de pagar por possíveis empréstimos, que são definidos pelo produto da quantia emprestada pela taxa de juros posta no contrato e pelo prazo de maturação do contrato (quantidade de períodos entre a data de tomada do empréstimo e a de pagamento). Supondo que o empréstimo ocorre no valor de $1000, a uma taxa de juros de 5% ao ano, com um prazo de 3 anos, tem-se que o custo total do capital para o tomador será de $(1000 + 1000x0,05x3) [3], ou seja: $1150.

 Supondo que a taxa geral de lucro da economia em questão seja de 20%, e que o capital emprestado em questão tenha sido necessário e suficiente para a produção de 100 unidades da mercadoria em questão, temos que o preço de produção delas será de (($1150+0,2x$1150)/100), isto é: $13,80.

[Sobre o preço de produção e o lucro médio, Marx nos diz que

''O lucro médio constitui... uma condição do fornecimento [condition of supply] da própria criação da mercadoria. (...) [O] lucro médio se defronta com ele [o capitalista] na qualidade de condição da produção, dando-se a contração ou interrupção da produção por causa de uma queda do preço que o engole ou notadamente o contrai.''
E que
''A baixa da taxa de lucro num determinado ramo a nível interior à média ideal basta, se prolongada, para afastar o capital dessa esfera, ou para excluir dela o advento de novo capital numa escala média.'' 
 Através da transformação dos valores em preços de produção e da formação da taxa geral de lucro, cada capital passa a participar da repartição da mais-valia global (total) numa cota proporcional à sua própria magnitude. 

II. Sobre Estados e moedas, ou o poder do poder 

 Segundos os teóricos adeptos do cartalismo, a moeda dos Estados modernos é produto do poder destes, isto é, do poder dos mesmos em impor à população uma tributação, que deve ser paga utilizando-se a moeda emitida de maneira soberana por esses Estados, sob risco de sofrer penalidades em caso de inadimplência. Isto tem algumas implicações; uma delas é a de que esses Estados, como emissores soberanos de suas próprias moedas, são tecnicamente incapazes de ficarem insolventes em dívidas denominadas em suas próprias moedas.

 Como desdobramento daquilo que uma das diversas políticas que o Estado moderno com soberania monetária pode realizar, isto é, a emissão de títulos de dívida a uma dada taxa nominal de juros determinada pela autoridade monetária [no Brasil, taxa SELiC - Sistema Especial de Liquidação e Custódia, determinada pelo Comitê de Política Monetária - COPOM], acaba determinando o custo de oportunidade do capital na economia, na medida em que, sendo a compra de títulos uma aplicação de dinheiro com total segurança de retorno, outras aplicações de dinheiro (inclusive o investimento produtivo) só se tornam atrativas na medida em que ofereçam uma rentabilidade moderna.

  Agora elevemos o nível de análise: saiamos dos Estados nacionais para o mercado mundial, isto é, a economia capitalista mundial. Nesta, como se sabe, a libra inglesa desempenhou a função de dinheiro mundial, e após a 2ª guerra mundial foi devidamente sucedida pelo dólar. Antes mesmo da libra, algumas moedas que desempenharam a função de moedas hegemônicas do ''sistema'' (que então estava longe de ser propriamente uma economia capitalista mundial). Podemos creditar estas relações de hegemonia monetária ao poderio econômico e militar dos países que foram ou são responsáveis por sua emissão. Em outras palavras, esses Estados, pelo fato de serem os produtores (exclusivos ou principais) de certos produtos de alta relevância para outros Estados-nações, podiam fazer compras  quitar dívidas pagando com sua própria moeda -- e/ou impor o uso de sua moeda em outros países através de sua força bélica, ou ameaça de uso desta. No caso dos EUA e o do uso do dólar como dinheiro mundial, p. ex., observemos os 2 fenômenos.

III. O universal e o particular: concorrência no mercado mundial e condições nacionais de produção (e exploração)

  À medida em que são eliminadas tarifas protecionistas e outras barreiras não-tarifárias, e em que a natureza das mercadorias, dos insumos utilizados na produção destas e da organização empresarial permite, a concorrência capitalista ganha uma escala cada vez maior, e se estabelece a nível de mercado mundial. Assim, a produção chinesa tem de competir com a brasileira, a alemã, a sueca, a estadunidense etc.  Para produtos de um mesmo ramo (ou seja, que a atendam a um mesmo mercado potencial), em especial, emerge com importância central o preço de venda das mercadorias como instrumento de concorrência entre elas, e, conectado àquele, o preço de custo. Entretanto, se as condições de concorrência entre os capitais se impõem a nível de mercado mundial, os fatores que determinam o preço de custo das mercadorias são, em maioria, condições fortemente nacionais de produção.  

 Assim, por exemplo, o custo unitário do trabalho -- ou seja, o custo total com os trabalhadores (incluindo salários nominais, direitos trabalhistas etc.) dividido pela quantidade de mercadorias produzida -- é fortemente determinado pela legislação trabalhista nacional, o grau de sindicalização (e o perfil do ativismo sindical), o nível de desemprego etc. Também as taxas de juros nominais que representam o custo de captação de recursos para a produção de mercadorias -- todas no mínimo acima das taxas básicas de suas autoridades monetárias -- também são condições fortemente nacionais, havendo inclusive necessidade de permissão e política de Estado para que as empresas possam captar recursos em moeda estrangeira. A produtividade do trabalho de intensidade e destreza normais, determinada basicamente por fatores tecnológicos, também é fortemente ''nacional'', dependendo de todo um conjunto de instituições sociais (científicas etc.) e estruturas de organização social e produtiva.

 Saíamos de um grau mais abstrato de análise e observemos um caso concreto; precisamente o da situação enfrentada pela indústria brasileira no período contemporâneo. Como se sabe, o Brasil é o país que (ainda) apresenta uma das mais altas taxas básicas de juros reais do mundo, e até bem recentemente também era um campeão dos juros (básicos) nominais. Isto num momento da história da economia mundial em que as taxas básicas de juros (nominais e reais) dos países centrais, como forma de enfrentamento (fraco que seja) da estagnação econômica que tem se seguido à Grande Recessão. Acrescente-se as altíssimas taxas de juros dos bancos comerciais e o fato de que a produtividade social do trabalho aqui é muito mais baixa que a dos países centrais e outros concorrentes [4], as taxas de câmbio praticadas nos últimos 10 a 20 anos -- as quais, consideradas em média ''supervalorizadas'', tornavam os produtos nacionais transacionáveis [tradables] menos competitivos frente aos produtos estrangeiros, seja no mercado interno, seja no exterior [5] -- e outros fatores, e tem-se uma economia capitalista com preços de custo que tornam suas exportações cronicamente incapazes de concorrer competitivamente com as dos países centrais nos ramos que apresentam maior 'valor agregado' (como as manufaturas).

IV. O rentismo

a) brevíssima digressão histórica: a usura

 
Mas o que é o ''rentismo'', afinal? Em linguagem popular, é o ''viver de rendas''; no debate que se tem crescido nos últimos anos no Brasil, trata-se da prática de certas pessoas e grupos sociais (cujas rendas ultrapassam em muito o nível médio brasileiro) em multiplicar suas riquezas aproveitando-se das altíssimas taxas de juros pagas pelos títulos da dívida pública. Historicamente, ao menos no Ocidente o fenômeno do ''rentismo'' (no sentido popular) aparece de forma destacada em fins da idade média, sob a forma do que ficou conhecido como ''usura'', que nada mais era do que o empréstimo de dinheiro a taxas de juros consideradas abusivas, e que tinham como consequência a ruína de camponeses, cavaleiros, nobres etc. Este processo permitiu a centralização de dinheiro e meios de produção em mãos particulares, permitindo a ascensão do modo de produção capitalista (embora, para a origem deste, o capital industrial tenha de domar a usura.   

b) choque Volcker e a crise da dívida na América Latina

 
Os anos que vão mais ou menos desde o fim da 2ª guerra mundial foram atípicos na história do capitalismo mundial. Ao menos nos países centrais, constituíram-se vastos Estados de Bem-Estar Social (mais na Europa que nos EUA), uma alta taxa média de crescimento anual do PIB e políticas de emprego público permitiram baixíssimas taxas de desemprego etc., ao passo que alguns países (como o Brasil) apresentaram altas e contínuas taxas de crescimento e também uma relevante transformação estrutural da produção. Esta conjuntura internacional estava fortemente baseada numa estratégia de precaução frente à ''ameaça vermelha'' oriental, isto é, ao risco de os trabalhadores ocidentais, enxergando melhores condições de vida no socialismo, realizarem revoluções socialistas no Ocidente. Uma das peças centrais deste sistema era a regulação do sistema financeiro internacional, sob a forma do regime de Bretton Woods, e a política de baixas taxas básicas de juros (ademais ligada também a Bretton Woods).

 Como se sabe, em 1971 os EUA romperam unilateralmente a conversibilidade do dólar americano em ouro, acabando com o regime de Bretton Woods; em 1979, por sua vez, o então presidente do banco central ianque (o FED), Paul Volcker, elevou altamente sua taxa básica de juros, causando a elevação das mais diversas taxas de juros no  próprio país e em todo o mundo, e causando uma explosão de endividamento, inclusive (e talvez especialmente) o das 3 maiores economias latino-americanas: México, Argentina e Brasil. Quando a primeira declarou moratória unilateral, em 1982, os canais de liquidez mundial fecharam-se para a América Latina. Começa aí, no Brasil, um gigantesco esforço exportador, na tentativa de criar os fluxos de divisas necessários para não ser expulso do comércio mundial. Com a ocorrência de maxidesvalorizações cambiais, instrumentos de indexação de rendas e grande resistência salarial, estes fenômenos estão na raiz do gigantesco processo inflacionário que afetou a economia brasileira dos anos 80 até meados dos anos 90.

 Antes de nos aprofundarmos no processo brasileiro, entretanto, vale mencionar os efeitos de longo prazo do ''choque monetário'' nos EUA e na Europa. Após uma onda recessiva, em que as taxas de desemprego elevaram-se consideravelmente, não houve retomadas de crescimento que as fizesse retornar aos níveis característicos daquele período de mais ou menos 30 anos após a 2ª guerra mundial, que ficou conhecido como a ''Era de Ouro''; por outro lado, como consequência da dinâmica de aplicação de dinheiro e de formação dos preços nas economias capitalistas, a elevação da taxa básica de juros naqueles países -- ao contrário do previsto pelo pensamento econômico ortodoxo -- causou a elevação dos preços dos bens e serviços finais, o que, sem a ocorrência de resistência salarial significativa (compreensível, dada o nível de desemprego e a atuação militante de governos neoliberais), causou uma redução dos salários reais, aumentando a fração do produto social (e portanto da renda) apropriadas pelas classes proprietárias.

c) a emergência de um novo padrão de acumulação capitalista no Brasil

 
Com o Plano Real, que segundo analistas era um plano de estabilização monetária muito similar a planos heterodoxos aplicados antes sem sucesso (tendo o sucesso do Plano Real basicamente origem na mudança nas condições de liquidez mundial no começo dos anos 90), tem-se um novo momento na história brasileira. A maior bandeira do governo de F.H.C., e que o levou à vitória em 1994, era a vitória contra a inflação. Assim, sua política econômica esteve todo o tempo subordinada ao objetivo da estabilidade monetária, para a qual trabalhavam uma alta taxa média de desemprego (que garantia tímidos aumentos dos salários nominais, quando não sua redução em muitos casos) e, sobretudo, a âncora cambial (isto é, o Real sobrevalorizado) -- que acaba desabando em fins da década de 90. Esta, aliás, caracterizou-se por uma crescente redução da participação da indústria no PIB, e não como nos países centrais onde a indústria deu lugar aos serviços sofisticados, mas cedendo lugar ao setor primário e a serviços pouco sofisticados. Outros elementos fortemente presentes desta época foram o grande ingresso do capital estrangeiro, inclusive e talvez especialmente visando o mercado interno (caso em que não ajudavam na obtenção de divisas estrangeiras; pelo contrário) e a atuação da burguesia interna como ''burguesia compradora'', revendendo no mercado interno mercadorias importadas (o que de certa maneira é expressão e consequência da perda de competitividade da indústria brasileira frente à indústria das economias centrais, e manifestação e causa da perda relativa de participação da indústria no PIB tupiniquim para o setor terciário). Para não falar da elevação aceleradíssima da dívida pública como estoque nominal e como % do PIB, que aliás anda lado a lado com a destinação anual de boa parte do orçamento anual (e da renda nacional) para o pagamento de juros nominais, em certa medida impossibilitando o governo de realizar outros tipos de gastos certamente muito mais interessantes desde o ponto de vista da maioria da população, da classe trabalhadora (como uma ampliação das políticas de bem-estar social). 

V. Conclusões: o crepúsculo do progressismo burguês na terra das jabuticabas 

 O que podemos e/ou devemos concluir disso tudo, particularmente frente a acontecimentos recentíssimos no Brasil (como uma queda sensível da taxa básica de juros nominais, da qual economistas liberais e ortodoxos se valem para dizer que é uma piada dizer que o rentismo sobre a dívida pública é um problema em nossas terras)? Bem, eu tentarei falar na forma de ''pontos'':

 a) em primeiro lugar, e em especial haja visto os fatos pós-choque Volcker, é necessário concluir que embora as taxas de juros comerciais contratadas por capitais produtivos atuem de maneira mais ou menos similar àquela descrita no tomo 3 de O Capital (isto é, como determinantes de um desconto -- o pagamento de juros nominais -- da receita desses capitais), a política monetária, sob a forma de taxa básica de juros nominais, pode, através da dinâmica da formação de preços e da resistência salarial (ou melhor, da ausência ou fraqueza dessa resistência), causar a redistribuição do produto social -- das mãos dos trabalhadores para as classes proprietárias em geral. E, assim, não se percebe exatamente um conflito fundamental de interesses entre os rentistas da dívida pública e a burguesia industrial. Aliás, esta nestes dias realiza diversas aplicações de dinheiro que incluem, no portfólio de ativos das empresas -- os capitais produtivos --, títulos de dívida pública e outros ativos financeiros, de maneira que parte de seus lucros (talvez uma parte crescente) são lucros financeiros, sem relação direta com a atividade produtiva.

 b)  representando uma fonte mui interessante e relativamente fácil de acumulação de riqueza para as elites endinheiradas, a taxa básica de juros do Brasil, em sua dimensão de taxa-piso de juros da economia nacional (isto é, de piso dos custos de captação de recursos financeiros sob a forma de empréstimos), contribui para tornar os produtos transacionáveis nacionais menos competitivos em relação aos importados, como já se disse, e torna a massa de lucros da indústria nacional menor do que poderia ser caso o câmbio fosse mais alto (isto é, caso a taxa de câmbio se desvalorizasse, e consequentemente o dólar e as mercadorias importadas encarecessem), ao mesmo tempo em que torna o poder de compra dos salários nominais maior do que seria também caso o câmbio fosse mais alto.

 Além de certos burgueses industriais solicitarem a desvalorização cambial e a redução da taxa básica (nominal e real) de juros -- certos, porque para outros os lucros financeiros já compensam mais que a atividade produtiva e, portanto, a desvalorização cambial (com consequente inflação) e a redução da SELiC não lhes são de interesse --, praticamente todos reclamam pela 'flexibilização' das condições de trabalho (isto é, pela ampliação das possibilidades de extração de trabalho não-pago sobre a força de trabalho), e poucos ou nenhum deles fez qualquer campanha notável contra o congelamento dos gastos públicos federais reais com a Emenda Constitucional 95, nem tampouco tem agido contra o descuido e sucateamento da ciência, tecnologia e P&D nacionais, que acontece há tempos mas tomou dimensão nova com o governo de Michel Temer (que chegou a cortar praticamente metade da verba do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) e a EC 95. Ou seja: nossa burguesia industrial, muito longe de representar qualquer ''progressismo produtivo'' está razoavelmente bem acomodada com o rentismo predatório sobre a dívida pública e pouco ou nada interessada em aumentar sua competitividade via aumento da produtividade do trabalho, mas muito interessada em afundar salários reais e aumentar o grau de exploração da força de trabalho brasileira através da boa, velha e bruta mais-valia absoluta -- com a possibilidade, talvez, de vir a apoiar uma criatura grotesca como Jair Bolsonaro para garantir a não-resistência da classe trabalhadora a esse aumento da taxa de exploração.

 Penso que tudo mostra que podemos concluir que o capitalismo brasileiro é uma formação socioeconômica monstruosa, na qual rentismo financeiro e produção  (e acumulação produtiva) capitalista atuam de maneira combinada para a reprodução de uma situação em que grande parte da população vive numa inaceitável situação de pobreza, basicamente sobrevivendo, e uma parcela muito maior mal tem tempo livre, e também está longe de ter, em condições materiais, o que as forças produtivas modernas poderiam proporcionar (o que também vale para os antes mencionados). Contra este configuração de coisas, que é somente uma entre muitas realidades possíveis, nós devemos nos mobilizar enquanto classe trabalhadora para, num processo que pode tomar diversas formas (como a realização de certas políticas econômicas, que são ações reformistas, que combatam o rentismo e tenham outros efeitos até que de repente haja uma ruptura revolucionária; ou mesmo uma intentona revolucionária repentina, que ponha em causa de imediato a bandeira da socialização dos meios de produção), dar fim a este vale de lágrimas e substituí-lo por uma sociedade que atenda aos interesses e aspirações de liberdade e desenvolvimento social e humano da maioria de seus membros.

Observações 

[1] A geração dessa riqueza adicional, vale acrescentar, é possibilitada pelo fato de a produtividade social do trabalho ser maior do que aquela estritamente necessária para que a jornada de trabalho possa cobrir as necessidades de subsistência dos trabalhadores (vide livro 3 de O Capital, capítulo 37; e Teorias da Mais-Valia, capítulo 15, seção B, item 3). 

[2] Esta busca pelas melhoras formas de valorização de seus capitais é o eixo de trabalho que pretendo apresentar em breve sobre as possibilidades de uma interação entre as noções de concorrência capitalista em Marx e Schumpeter (o qual considerava, conforme as palavras do professor Mario Luiz Possas, que a concorrência capitalista ''caracteriza-se pela busca permanente de diferenciação por parte dos agentes, por meio de estratégias deliberadas, tendo em vista a obtenção de vantagens competitivas que proporcionem lucros de monopólios, ainda que temporários (...) [ assim,] a concorrência é um processo (ativo) de criação de espaços e oportunidades econômicas, e não apenas, ou principalmente, um processo (passivo) de ajustamento em direção a um suposto equilíbrio, nem supõe qualquer estado tendencial 'normal' ou de equilíbrio.''

[3] A fórmula geral é C + C(1.i.n), em que C = valor do empréstimo, i = taxa de juros por período e n = quantidade de períodos. 

[4] José Antônio Martins, principal membro do boletim Crítica Semanal da Economia e articulista no site www.criticadaeconomia.com.br, utiliza-se do termo ''economias dominadas'' para referir-se a Brasil, China, Índia, Rússia e outras economias capitalistas nas quais, segundo ele, o modo principal de produção de mais-valia é a mais-valia absoluta, ao passo que nas ''economias dominantes'' (como Japão, EUA e Alemanha) o aumento da produtividade do trabalho (que ele chama de mais-valia relativa) predomina como forma de aumentar os lucros.

[5] Embora certos economistas critiquem a ideia de que a taxa de câmbio é capaz de alterar a demanda por nossas exportações no nível em que, por exemplo, os economistas novo-desenvolvimentistas defendem. Vide o trabalho de Carlos Pinkusfeld Bastos, do Instituto de Economia da UFRJ, sobre o novo-desenvolvimentismo e seus representantes (como Luiz Carlos Bresser-Pereira).

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O que é o livre mercado?


Um bom e nobre defensor do livre mercado e da livre-concorrência: Miltinho



''A livre concorrência, como farejou corretamente o sr. Wakefield em seu comentário a Smith, jamais foi elaborada pelos economistas, por mais que tagarelem sobre ela e que seja a base de toda a produção burguesa, da produção fundada no capital. Ela só foi compreendida negativamente, i.e., como negação dos monopólios, das corporações, das regulações legais etc. Como negação da produção feudal. No entanto, ela também tem de ser algo por si mesma, porque um mero 0 é uma negação vazia, a abstração de um obstáculo que imediatamente emerge de novo sob a forma, por exemplo, de monopólio, monopólios naturais etc. Conceitualmente, a concorrência nada mais é do que a natureza interna do capital, sua determinação essencial, que se manifesta e se realiza como ação recíproca dos vários capitais uns sobre os outros, a tendência interna como necessidade externa.) (O capital existe e só pode existir como muitos capitais e, consequentemente, a sua autodeterminação aparece como ação recíproca desses capitais uns sobre os outros.)''

''A concorrência, porque aparece historicamente como dissolução de obrigação corporativa, regulamentação governamental, alfândegas internas e similares no interior de um país, e no mercado mundial como supressão de  barreiras, proibição ou proteção – em suma, porque aparece historicamente como negação dos limites e barreiras peculiares às fases de produção que precederam o capital; porque historicamente foi qualificada e saudada pelos fisiocratas, de modo totalmente correto, como laissez faire, laissez passer; por essas razões, ela passou a ser considerada por esse aspecto puramente negativo, por esse seu aspecto puramente histórico, o que levou, por outro lado, à bobagem ainda maior de considerá-la como o conflito dos indivíduos libertados de suas cadeias e determinados exclusivamente por seus próprios interesses – como repulsão e atração dos indivíduos livres em relação uns com os outros e, desse modo, como a forma absoluta de existência da individualidade livre na esfera da produção e da troca. Nada pode ser mais falso. 1) Se a livre concorrência dissolveu as barreiras de relações e modos de produção anteriores, é preciso considerar,  em primeiro lugar, que aquilo que para ela é barreira, para os modos de produção anteriores era limite imanente, dentro do qual eles se desenvolviam e movimentavam em conformidade com sua natureza. Tais limites só se convertem em barreiras depois que as forças produtivas e as relações comerciais evoluíram suficientemente para que o capital enquanto tal pudesse começar a atuar como o princípio regulador da produção. Os limites que ele derrubou eram barreiras para o seu movimento, desenvolvimento, realização. Com isso, de modo algum ele aboliu todos os limites nem todas as barreiras, mas só os limites que não lhe correspondiam, que para ele eram barreiras. No interior de seus próprios limites – por mais que, de uma perspectiva mais elevada, eles se apresentem como barreiras da produção e, enquanto tais, são postos por seu próprio desenvolvimento histórico –, ele se sente livre, sem barreiras, i.e., limitado unicamente por si mesmo, unicamente por suas próprias condições de vida. Exatamente como a indústria corporativa, em seu apogeu, encontrou na organização corporativa a liberdade plena de que precisava, i.e., encontrou nela as relações de produção que lhe correspondiam. Pois foi ela própria que as pôs a partir de si mesma e as desenvolveu como suas condições imanentes e, por isso, de forma alguma como barreiras exteriores e restritivas. O aspecto histórico da negação, por parte do capital, do sistema corporativo etc. por meio da livre concorrência, nada mais significa que o capital, suficientemente fortalecido pelos modos de comércio adequados a ele, derrubou as barreiras históricas que perturbavam e tolhiam o movimento adequado a ele. No entanto, a concorrência está muito distante de ter simplesmente esse significado histórico ou de ser simplesmente essa coisa negativa. A livre concorrência é a relação do capital consigo mesmo como outro capital, i.e., o comportamento real do capital como capital. As leis internas do capital – que só aparecem como tendências nos estágios históricos preliminares do seu desenvolvimento – são postas pela primeira vez como leis; a produção fundada no capital só se põe em suas formas adequadas na medida em que e à proporção que a livre concorrência se desenvolve, pois ela constitui o livre desenvolvimento do modo de produção fundado no capital; o livre desenvolvimento de suas condições e de si mesmo como processo que reproduz continuamente essas condições. Na livre concorrência, não são os indivíduos que são liberados, mas o capital. Enquanto a produção baseada no capital constituir a forma necessária e, em consequência, a mais apropriada para o desenvolvimento da força produtiva da sociedade, o movimento dos indivíduos dentro das puras condições do capital aparece como sua liberdade; liberdade que, então, também é dogmaticamente garantida enquanto tal pela contínua reflexão sobre as barreiras derrubadas pela livre concorrência. A livre concorrência é o desenvolvimento real do capital. Por ela é posto para o capital singular, como necessidade exterior, o que corresponde à natureza do capital [, ao] modo de produção fundado no capital, o que corresponde ao conceito do capital. A coerção recíproca que os capitais exercem dentro dela uns sobre os outros, sobre o trabalho etc. (a concorrência dos trabalhadores entre si é apenas outra forma da concorrência dos capitais), é o desenvolvimento livre e simultaneamente real da riqueza como capital. Tanto é assim que os mais profundos pensadores econômicos, como Ricardo, p.ex., pressupõem o domínio absoluto da livre concorrência para poderem estudar e formular as leis adequadas do capital – que aparecem ao mesmo tempo como as tendências vitais que o governam. Mas a livre concorrência é a forma adequada do processo produtivo do capital. Quanto mais desenvolvida ela for, tanto mais puras se manifestam as formas do movimento do capital. O que Ricardo, p. ex., admitiu com isso, apesar da sua própria opinião, é a natureza histórica do capital e o caráter estreito da livre concorrência, que não é senão o livre movimento dos capitais, i.e., seu movimento dentro das condições que não pertencem a nenhuma condição preliminar dissolvida, mas são suas próprias condições. O domínio do capital é o pressuposto da livre concorrência, exatamente como o despotismo romano dos césares era o pressuposto do livre “direito privado” romano. Enquanto o capital é fraco, ele próprio procura ainda apoiar-se nas muletas dos modos de produção do passado ou que estão desaparecendo com o seu surgimento. Tão logo ele se sente forte, joga as muletas fora e se movimenta de acordo com as suas próprias leis. Tão logo ele começa a sentir a si próprio como obstáculo do desenvolvimento e a tomar consciência disso, ele busca refúgio em formas que, parecendo aperfeiçoar o domínio do capital pela contenção da livre concorrência, são ao mesmo tempo os prenúncios da sua dissolução e da dissolução do modo de produção baseado nele. O que reside na natureza do capital só é realmente posto para fora dele, como necessidade exterior, pela concorrência, que nada mais significa que os muitos capitais impõem uns aos outros e a si próprios as determinações imanentes do capital. Por isso, nenhuma categoria da economia burguesa, [nem] mesmo a primeira, como, p. ex., a determinação do valor, devém efetiva, [a não ser] pela livre concorrência; i.e., pelo processo efetivo do capital, que aparece como interação recíproca dos capitais e de todas as outras relações de produção e comércio determinadas pelo capital. Daí, por outro lado, a sandice que significa considerar a livre concorrência como o desenvolvimento último da liberdade humana; e [de considerar] a negação da livre concorrência = a negação da liberdade individual e da produção social fundada na liberdade individual. Trata-se de fato somente do desenvolvimento livre sobre um fundamento estreito – o fundamento do domínio do capital. Em consequência, esse tipo de liberdade individual é ao mesmo tempo a mais completa supressão de toda liberdade individual e a total subjugação da individualidade sob condições sociais que assumem a forma de poderes coisais, na verdade, de coisas superpoderosas – de coisas independentes dos próprios indivíduos que se relacionam entre si. O desenvolvimento daquilo que constitui a livre concorrência é a única resposta racional à sua divinização pelos profetas de classe média ou à sua demonização pelos socialistas. Quando se diz que, no âmbito da livre concorrência, os indivíduos, ao perseguirem exclusivamente o seu interesse privado, realizam o interesse comum ou, melhor dizendo, o interesse geral, isso nada mais significa que, sob as condições da produção capitalista, eles se pressionam mutuamente e, em consequência, o seu próprio entrechoque é somente a reprodução das condições sob as quais acontece tal interação. Aliás, a ilusão acerca da concorrência como a pretensa forma absoluta da individualidade livre, assim que desaparece, é uma prova de que as condições da concorrência, i.e., da produção fundada sobre o capital, já são sentidas e pensadas como barreiras e, em consequência, já são e se tornam barreiras cada vez mais. A afirmação de que a livre concorrência = forma última do desenvolvimento das forças produtivas e, em consequência, da liberdade humana, nada mais significa que o domínio da classe média é o fim da história mundial – certamente uma ideia agradável para os parvenus fora de moda.''

- Karl Marx, Fundamentos da Crítica da Economia Política ('Grundrisse')