segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Um diálogo crítico com Alípio de Sousa Filho





 Alípio de Sousa Filho, doutor em sociologia e professor da UFRN, publicou um texto no site Carta Potiguar sobre a parada LGBT de 2015 que achei no mínimo interessante; nele, o autor faz uma crítica ao tema escolhido para o evento, chamando-o de capitulação ao conservadorismo religioso que tem tido ascensão em nosso país nos últimos anos. Contra julgamentos que pretendem apenas aceitar ou rejeitar en bloc as ideias de Alípio, pretendo fazer uma análise racional para concluir o que há de aproveitável ou não na obra.

  Alípio diz que

Depois de Freud, Foucault e Deleuze, falar de biologia do sexo ou do gênero (“nasci assim, cresci assim”) é voltar a cair em enganos obscurantistas. O ser humano não se orienta por instintos, direção biológica ou determinantes genéticas. O ser humano, por sua falta de especialização e direção biológicas, é um criador de instituições sociais. Ele é somente social e desejo, e boa parte desse desejo fundado no social que o governa. Quantas vezes mais vão ser necessárias repetir que sexo e gênero não são realidades biológicas mas construções culturais, sociais e históricas e, por isso mesmo, realidades inteiramente modificáveis, substituíveis, revogáveis? 

  Mas isso faz mesmo sentido? A começar, que se quer dizer por ''biologia do sexo'', p. ex.? Seria uma ciência das características morfológicas que diferenciam os corpos sexuados (ou melhor, uma ciência dos fatores determinantes -- genes, hormônios etc. -- das diferenças específicas entre os corpos sexuados)? Ou uma ciência do coito, um estudo da fisiologia da prática sexual? Por ''biologia do gênero'', que se entende também? Uma ciência dos fatores que levam à comportamentos específicos, esses culturalmente identificados como masculinos ou femininos (em nosso modelo binário de gêneros)? Não vejo sentido em dizer que falar de tais coisas seja ''voltar a cair em enganos obscurantistas'', e não é preciso mais que os exemplos tão simples do viagra e da testosterona para isso.

 O autor fala que o ser humano ''é somente social e desejo'', e que ''sexo e gênero não são realidades biológicas mas construções culturais, sociais e históricas''; ao fazer isso, parece querer ignorar estupidamente o aspecto mais material de nós, nossos próprios corpos, cheios de genes e hormônios. Seria racional supor que tais elementos, com profunda influência sobre uma série de características nossas (como a cor dos olhos ou o tamanho dos dedos) não tenha influência alguma sobre a agressividade ou o desejo erótico? Que a socialização de um indivíduo do sexo masculino como menina em nossa sociedade (como na verdade já aconteceu [1]) dar-lhe-á seios, vagina e um desejo erótico direcionado a outros indivíduos do sexo masculino?

 É quase inevitável aí esquecer do que Terry Eagleton falou em seu As Ilusões do Pós-Modernismo:

[Afirmar que x ou y é 'biológico' é o] tipo de declaração que os pós-modernistas tendem a achar assaz problemática, uma vez que acreditam com um dogmatismo de tirar o fôlego que toda referência à natureza, pelo menos nas questões humanas, representa uma ameaça de 'naturalizar'. O natural, segundo essa visão, constitui apenas uma palavra mistificadora para aquelas práticas culturais discutíveis com que acabamos por acostumar-nos. É fácil ver como isso se aplica à visão de que a civilização humana entraria em colapso se não houvesse a parada do dia de São Patrício, mas mais difícil de ver como se aplica a eventos como respirar e sangrar. Também não é verdade que 'naturalizar' se aplica a toda ideologia, como quase todo mundo, de Georg Lukács a Roland Barthes, parece ter presumido. O próprio pós-modernismo invectiva contra 'naturalizar' quando ele mesmo às vezes torna absoluto o sistema atual. Ele se arroga o título de 'materialista' e depois, compreensivelmente cauteloso em relação aos biologismos racistas ou sexistas, passa a suprimir a parte dos seres humanos mais obviamente materialista, sua constituição biológica [2].

 Penso não ser necessário dedicar mais tempo a defender a tese de que, por sermos seres materiais, da matéria sofremos influência (antes fôssemos conceitos rodopiando na história do pensamento humano...).

 Dedico-me, então, a analisar outra tese sua: a de que o tema da Parada LGBT paulista desse ano representou uma concessão ao pensamento conservador e patologizante, sendo ''uma total irresponsabilidade política e profundamente deseducativo quando se trata de pretender a emancipação cultural e política da sociedade brasileira''. Concordo com ele, e explico o porquê: o ''nasci assim'' tenta retirar os julgamentos de valor sobre as identidades LGBT por meio da retirada de uma possível culpa pessoal (por escolha) ou de ''má-criação''; restaria à sociedade, então, apenas aceitar os LGBTs, uma vez que estes seriam ''filhos da pródiga natureza'', ''parte do plano do Criador'' ou algo assim.

 Oras, isso não retira o momento algum o estigma de que sofrem as identidades LGBT! Dizer que a homossexualidade é genética, hormonal ou epigenética não retira das instituições e da opinião popular a noção de que ela é, de alguma forma, moralmente ilegítima ou inferior à heterossexualidade; não elimina o conceito de que a obediência às normas de gênero (i.e., às regras de comportamento para os corpos sexuados) é melhor que sua transgressão, representada pelas transgeneridades. A defesa dos inatismos e do determinismo biológico, por mais cientificamente correta que seja (e é provável que esteja bem melhor nesse quesito que o determinismo social, seu antagonista [3]), não retira dos LGBTs a pecha de anormalidades, gente inferior cuja orientação sexual (no caso de gays, lésbicas bissexuais) talvez deva ser eliminada no futuro da história da humana, por meio de tratamentos epigenéticos ou coisa do tipo, enquanto a própria heterossexualidade (e também a cisgeneridade) segue sem ter pesquisas questionando sobre sua(s) causa(s).

 Em vez (ou pelo menos além) disso, o que se deve fazer é questionar o que tornaria o desejo homossexual inferior, moralmente ilegítimo, ou por que deveriam os indivíduos sexuados comportarem-se de forma a obedecer as teleologias de gênero; e mostrar o direito que todo amor e toda relação consensual têm de serem respeitados e admirados. Como disse o próprio Alípio em outra ocasião,

(...) a aceitação da homossexualidade deve acontecer na sociedade por sua mudança de conceitos, paradigmas, valores e não por acomodação a uma pretendida 'verdade' que estaria na 'própria constituição genética' dos homossexuais... [Sua luta] pela cidadania plena (direito ao reconhecimento pelo Estado e pela lei de suas uniões conjugais, direitos de herança, direito à adoção por casais gays, entre outros direitos que se tem conquistado em diversos países) não é um ingênuo 'desejo de normalização', uma queda na ideologia (burguesa ou outra), mas um nível de luta política em que se questionam as ideias de normalidade e de democracia, quando esta se limita a direitos que excluem significativos segmentos da população em diversos países [4]. 

 E para mais uma vez citar o autor, ''que se danem todos os reacionários (e principalmente os cães de guarda da reação conservadora no Brasil, hoje: esses senhores e senhoras das igrejas e seitas evangélicas!), ao não admitirem a liberdade dos indivíduos!''


Notas 


[1] http://www1.folha.uol.com.br/bbc/2010/11/835267-documentario-conta-drama-de-gemeo-criado-como-menina-apos-perder-penis.shtml
[2] http://www.filoczar.com.br/filosoficos/Eagleton/EAGLETON,%20Terry.%20As%20Ilus%C3%B5es%20do%20P%C3%B3s-Modernismo.pdf
[3] http://climatologiageografica.com/atualizado-biologia-e-psicologia-a-verdadeira-origem-da-homossexualidade/
[4] http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/05/teorias-sobre-genese-da.html

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