quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Outro olhar para homens e mulheres


por Carla Bernava* para a revista Sociologia (ed. Escala), n. 59

Contrariando a perspectiva que considera a heterossexualidade como coisa natural, apresentamos outro ponto de vista para reflexão.



 
Publicado pela primeira vez em 1975, o artigo de Gayle Rubin ''O tráfico de mulheres: notas para uma 'economia política' do sexo'' teve por mérito esboçar muitas das questões que despertam o interesse de estudiosos voltados aos problemas das relações entre os gêneros e das sexualidades nas últimas décadas. Além de realizar uma primeira distinção entre ''sexo'' e gênero, Rubin propunha que estes se organizam em um complexo social a partir do qual se reproduzem as estruturas de parentesco e de personalidade que dão origem à dominação masculina das mulheres. É justamente essa ideia de uma organização social das sexualidades que faz com que o trabalho de Rubin continue sendo relevante. De 1975 até hoje, várias foram as suas formulações que trataram de delimitar com maior propriedade no que consiste tal organização, quais seus contornos e seus modos de funcionamento. O que hoje se entende por gênero e por heteronormatividade é resultado -- parcial, dado que inacabado -- desses múltiplos esforços críticos. Assim, neste artigo, buscar-se-á refazer, ainda que de maneira breve, a trajetória de alguns desses esforços tendo em vista uma melhor delimitação do conceito de gênero em relação a problemática das diferenças sexuais.

Sobre a questão de gênero

 Nas últimas décadas o problema das diferenças sexuais vem constantemente sendo reelaborado. Em grande medida isso se deve às considerações a respeito do gênero, entendido aqui não como um atributo individual -- como parece ser quando se fala em feminino ou masculino, gay, lésbica, transgênero ou não-binário --, mas como um efeito de relações que produzem algumas identificações em detrimentos de outras. Nesse sentido, o que o gênero produz -- o indivíduo sexuado -- não é algo que se tem ou que se é, mas o resultado de um conjunto de normas e de práticas sociais por intermédio das quais os indivíduos relacionam-se entre si e passam a compreender a si mesmos e aos outros. Sabe-se hoje que a maneira como esse conjunto de normas e práticas organiza-se não é imutável no decorrer do tempo e nem mesmo que seus efeitos são sempre os mesmos em todos os lugares. Isso se dá porque as diferenças sociais não se estabelecem de maneira única. Classe, raça, etnia, nacionalidade e geração também organizam e diferenciam e, assim, as relações de gênero estão sempre imbricadas com outras. Contudo, isso não diminui sua importância, pois compreender como se organizam as sexualidades e como valores diferentes são atribuídos a cada uma delas no meio social pode favorecer que se compreendam outros processos de hierarquização e reprodução. Assim, no cerne das considerações a respeito das relações de gênero está a problemática das diferenças. Foi ao tentar esclarecer a causa da diferença sexual entre homens e mulheres que se chegou a uma primeira consideração sobre o gênero enquanto o modo de organização social das sexualidades.

 Há quarenta anos, as diferenças sexuais não eram pensadas em relação ao que se hoje entende por gênero. Quando se pensava nas relações entre os sexos, o posicionamento desigual das mulheres em relação aos homens era atribuído ao patriarcado, compreendido enquanto um regime de dominação capaz de estruturar todas as suas relações. Este foi um momento em que correntes marxistas e feministas do pensamento social se encontraram, sendo que a influência do marxismo sobre o desenvolvimento dos estudos feministas, especialmente nos Estados Unidos durante a década de 1970, é bastante conhecida. No momento da escrita do artigo, Gayle Rubin estava completamente identificada com correntes do feminismo marxista estadunidense, com quem buscava dialogar. E ainda que termine seu trabalho clamando por uma análise marxista dos sistemas de sexo e gênero, a autora mostra-se bastante crítica em relação aos limites da aplicação da teoria marxista ao feminismo, tal como esta havia dada até então, por não ter sido capaz de explicar as origens da opressão sexual. Aliás, a primeira aparição de uma consideração a respeito do gênero veio exatamente nessa lacuna: se, por um lado, a subordinação econômica das mulheres aos homens se explicava pela existência do patriarcado, por outro, para Rubin, a existência do patriarcado, por outro, para Rubin, a existência do patriarcado não se explicava por si mesma. Em outras palavras, faltava explicava a origem cultural da hierarquização dos sexos, o que fazia com que o masculino e o feminino assumissem valores diferentes nas sociedades.

 Em seu artigo, Rubin defendeu a tese de que a opressão não apenas das mulheres, mas também de outras ''minorias'' sexuais e de certos aspectos da personalidade individual reside em uma parte da vida social que ela chamou de sistema de sexo e gênero: ''o conjunto de arranjos por meio dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana'' (Rubin, 1975, p. 175). É no interior desse sistema que as necessidades sexuais, culturalmente construídas, satisfazem-se por meio de convenções específicas a cada sociedade. Nesse sentido, o sistema de sexo e gênero se referiria a um domínio específico da cultura, domínio em que a opressão não é inevitável, mas que se apresenta como um resultado de relações sociais específicas que a organizam. Nesse trabalho, Rubin tratou de definir melhor os contornos desse sistema, descrevendo como se dá a organização social das sexualidades e a reprodução das convenções do sexo e do gênero ao dialogar tanto com a obra de Lévi-Strauss, no que se refere aos sistemas de parentesco, quanto com a de Freud, no que concerne à instituição da diferença sexual no indivíduo. Foi da leitura que Rubin fez de Lévi-Strauss que emergiram suas contribuições mais relevantes. Duas delas destacam-se ainda hoje. A primeira constitui-se na primeira diferenciação entre sexo e gênero, o que levou à formulação de que as identidades de gênero resultam de uma elaboração cultural sobre o dado biológico. Já a segunda foi o estabelecimento da correlação entre a dominação masculina e a heterossexualidade obrigatória como a base do sistema de organização das sexualidades, com suas implicações tanto para homossexuais quanto para as mulheres.

Diferença sexual

 
Nos anos 1980, Joan W. Scott chamou atenção para como a interpretação cultural do gênero buscava contestar o determinismo da biologia no estabelecimento do lugar social subalterno das mulheres (1986, p. 1054). Desse modo, o que estava em jogo era a percepção -- ainda de todo não ultrapassada -- de que mulheres ocupariam um lugar subalterno nas sociedades porque são fêmeas -- ou seja, porque menstruam, geram as crias e não são fisicamente tão fortes como os machos. O que se pretendia não era contestar as especificidades biológicas dos tipos de corpos humanos, mas compreender por que a tais especificidades haviam sido atrelados valores que se tornaram tanto causa quanto justificativa para a desigualdade entre homens e mulheres. Foi em virtude disso que houve um redirecionamento dos esforços em se compreender a organização das sexualidades a partir da cultura, do gênero. Ao mesmo tempo é necessário reiterar o sentido específico dado à diferença sexual nos textos das décadas de 1970 e 1980 como sendo o da diferença biológica entre homens e mulheres, aquela que está baseada nos corpos e parece ser anterior à cultura, mas que só ganha sentido em seu interior.

 Já no início dos anos 1990, Judith Butler retoma essa discussão afirmando que a percepção do gênero enquanto elaboração cultural tornaria possível considerar que um corpo de mulher fosse masculino e vice-versa, pois não haveria razão para assumir a existência de apenas duas possibilidades de identificação (Butler, 2007, p. 9). Contudo, é exatamente isso o que aconteceu, pois persiste uma aproximação entre os significados atribuídos tanto ao gênero quanto ao sexo biológico. Em outras palavras, não só continuou-se a pensar que existem apenas dois gêneros, o feminino e o masculino, como a esperar que o indivíduo nascido macho seja masculino, e aquele nascido fêmea seja feminino, com aptidões, comportamentos e desejos ''pertinentes'' ao seu sexo.

 Outra aproximação entre os significados culturais do gênero e do sexo apareceu também nas formulações de Anne Fausto-Sterling, mas o que essa autora questiona não é o dualismo que se apoderou do gênero, mas aquele que permanece sobre o sexo. De acordo com ela, a natureza biológica é mais complexa, pois se considerados os indivíduos intersexuais (os hermafroditas verdadeiros e os pseudo-hermafroditas masculinos e femininos), ter-se-ia, pelo menos, cinco sexos e não dois (Fausto-Sterling, 2000, p. 78). O argumento de Fausto-Sterling baseia-se em grande medida no fato de que a intersexualidade é mais regular do que se imagina, não se configurando como uma anomalia genética e/ou física, como é frequentemente interpretada. Segundo a estimativa da autora, a taxa de nascimento de intersexuais é da ordem de 17:1000 (Fausto-Sterling, 2000, p. 20). O que fica evidente tanto em Butler quanto em Fausto-Sterling é que o conceito de sexo também é construído socialmente; Isso significa dizer que o sexo biológico não é acessível por si mesmo, uma vez que não existe sexo a não ser que lhe tenha sido atribuído um significado. A própria ideia de que os sexos são dois é, nesses termos, uma construção. Assim, para Butler, não seria o sexo que determina o gênero, mas o gênero que faz com que o sexo seja compreendido enquanto um atributo biológico, a partir do qual se tem um tipo ou outro de ser. O gênero não é, então, algo que alguém possua ou que lhe é inerente, mas a resultante de um processo histórico, cultural e contextual de naturalização dos corpos sexuados como feminino ou masculino.

 Dessa maneira, há tanto uma dimensão relacional quanto há uma dimensão normativa fundamental no sexo, de modo que não apenas funciona como regra, mas é parte de uma prática cuja força apresenta-se claramente como um tipo produtivo de poder, que fabrica, demarca, circula e diferencia os corpos que controla. Concordando com Michel Foucault, para quem ''o sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie'' (2001, p. 137), Butler defende que o sexo ''não é simplesmente aquilo que uma pessoa tem, ou uma descrição estática do que alguém é: será uma das normas pelas quais esse alguém torna-se viável, o que qualifica o corpo para a vida no interior de um domínio de inteligibilidade cultural'' (Butler, 2009, p. 2).


A emergência social daqueles que não se conforma às normas de coerência e continuidade de gênero coloca em questão a própria noção de pessoa tal qual é definida no interior da matriz heterossexual.

 Sexualidade

É no interior desse domínio de inteligibilidade cultural -- chamado por ela como matriz heterossexual -- que os corpos, gêneros e desejos são naturalizados de modo a ''caracterizar um modelo epistemológico e discursivo de inteligibilidade de gêneros que definem opostos hierarquizantes por meio da prática compulsória da heterossexualidade'' (Butler, 1993, p. 208, nota 6). Dessa maneira, os gêneros masculino e feminino são inteligíveis apenas na medida em que ''instituem e mantêm as relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo'' (Butler, 1993, p. 23), relações estas que asseguram suas identidades no interior dessa mesma matriz. Entretanto, a emergência social daqueles que não se conformam às normas de coerência e continuidade de gênero coloca em questão a própria noção de pessoa tal qual é definida no interior dessa matriz.


 Para Butler, portanto, na raiz do processo de materialização da sexualidade está o processo de formação de um eu, de uma identidade, que perpassa a discussão sobre como o imperativo heterossexual permite certas identificações e impede ou nega outras, pois a identificação com a não conformidade à norma ameaçaria expor as bases que fundamentam o sujeito sexuado. Para ela, tais bases são expressas pela norma fundamental da identidade de gênero que é a heteronormatividade, que estabelece a heterossexualidade como princípio regulatório das sexualidades. Nela, o desejo sexual do homem pela mulher constitui-se como fundamento primordial das identidades masculina e feminina. Isso significa dizer que o vínculo entre sexo e desejo é a matriz das identidades de gênero, pois é na expressão do desejo heterossexual que reside a causa primeira das regras da feminilidade e da masculinidade. Para Butler, então, se é a performance da regra da heteronormatividade que cria a ilusão de femininos e masculinos ''naturais'', o lugar da desconstrução da identidade ''natural'' será também a performance do sujeito. Mas, nesse caso, seu comportamento deverá confundir a correspondência entre desejo, sexo e gênero ao invés de confirmá-la (Butler, 1993, p. 3).

  Dessa forma, a prescrição da heterossexualidade fundamenta-se em uma dupla diferenciação, sendo a primeira entre heterossexualidade e homossexualidade (geralmente negada), e a segunda entre masculino e feminino (constantemente reiterada pelo discurso). De acordo com Miskolci, a história de tal prescrição pode ser dividida em dois períodos, em que se diferenciam o da heterossexualidade obrigatória e o da heteronormatividade em si mesma: ''Entre o terço final do século XIX e meados do século seguinte, a homossexualidade foi inventada como patologia e crime, e os saberes e práticas sociais normalizadores apelavam para medidas de internação, prisão e tratamento psiquiátrico dos homo-orientados. A partir da segunda metade do século XX, com a despatologização e descriminalização da homossexualidade, é visível o predomínio da heteronormatividade como marco de controle e normalização da vida de gays e lésbicas, não mais para que se 'tornem heterossexuais', mas com o objetivo de que vivam como eles'' (Miskolci, 2009, p. 157, nota 13).

 Nos termos de Richard Miskolci, a heteronormatividade é, então, tanto um aparato de poder quanto uma força normalizadora que atua por meio de um ''conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle'', de modo a ''formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e 'natural' da heterossexualidade'' (Miskolci, 2009, p. 157). De acordo com esse autor, é por intermédio do desenvolvimento de uma analítica da normalização que se pode compreender como as fronteiras das diferenças sexuais podem ser constituídas, mantidas ou dissipadas (Miskolci, 2009, p. 178). Nesse sentido, tendo a concordar com o autor quando diz que é justamente aí a problemática da sexualidade se encontrar com a sociologia.



*Carla Bernava é doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde investiga a construção de diferenças sexuais em filmes produzidos desde meados da década de 1990 a partir de uma interlocução entre a sociologia do cinema e a teoria queer.

Referências

Butler, J. Bodies that matter: on the discursive limits of ''sex''. Nova York, Londres: Routledge, 1993.
_______. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. Nova York, Londres: Routledge, 2007.
Fausto-Sterling, A. Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality. Nova York: Basic Books, 2000.
_______. The five sexes, revisited. The Sciences, v. 40, n. 4, 2000.
Foucault, M. História da sexualidade I: a vontade de saber.
Miskolci, R. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, ano 11, n. 21, p. 150-182, 2009.
Rubin, G. The traffic in women: notes on the ''political economy'' of sex. In: Reiter, R. R. Toward an Anthropology of women. Nova York: Monthly Review Press, 1975.
Scott, J. W. Gender: a useful category os historical analysis. The American History Review, v. 91, n. 5, p. 1053-1075, dez. 1986.

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