segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Revendo privilégios teóricos: problematização à teoria da opressões nos movimentos de minorias




 Os chamados movimentos sociais de ‘’minorias’’ têm tomado rumos instigantes (ou deveria eu dizer ‘’preocupantes’’?); aparentemente em consonância com a chamada ‘’terceira onda’’ do feminismo, ,defendem a teoria de que as minorias sociológicas (os grupos identitários correspondentes às mulheres, LGBTs, negros, índios, trabalhadoresecct.) são oprimidas pelo complexo identitário hegemônico em nossa sociedade (homem, heterossexual, cisgênero, branco, não-indígena(?), burguês), o qual possui privilégios sobre (ou em relação?) elas. Ah, as opressões se diferem do mero preconceito intersubjetivo (que estaria exemplificado em um grupo de negros zombando de um branco por sua cor) por serem ‘’estruturais’’. E não podem ser ‘’hierarquizadas’’, mas se mesclam, uma vez que um indivíduo pode pertencer ao sexo feminino, ser transgênero, negro, proletário etc., p. ex.

 Em minha opinião, essa teoria é no mínimo imprecisa e incoerente. Um exemplo: as condições das mulheres, dos negros e dos LGBTs são simplesmente consideradas como fenômenos qualitativamente semelhantes. Certamente que há convergências entre as 3: a falta de representatividade política (qual a porcentagem de mulheres, negros e LGBTs no Congresso? E na sociedade civil?), os estereótipos ou conjuntos de supostas características ‘’naturais’’ desses grupos, etc., mas há diferenças essenciais: ser negro e ser mulher não é considerado pecado, doença ou anormalidade, como é ser LGBT*; para os LGBT e os negros não há um análogo de restrições normativas da sexualidade feminina como as de ‘’não ser fácil’’ e ‘’não se relacionar com muitos homens’’ (não absolutamente distinta da anterior), feitas para que a mulher possa ser reconhecida pelos homens heterossexuais como ‘’honrada’’, ‘’para casar’’; ser LGBT e ser mulher não faz com que outras pessoas pensem ter suas seguranças postas em perigo quando eles se aproximam. 

  Ah, ser ‘’opressor’’, na teoria desses movimentos, confunde-se com ter privilégios (ter mais direitos, poder fazer certas coisas sem sofrer desaprovação da comunidade etc.); é inclusive comum o jargão ‘’rever os privilégios’’ entre os militantes (e para com os membros dos ditos grupos opressores). Mas a realidade é mais complexa que o aparente reducionismo teórico; um exemplo: homens certamente podem fazer certas coisas que as mulheres fazem sem serem moralmente condenados, enquanto aquelas o são (vide a diferença de tratamento para com o ‘’garanhão’’ e a ‘’puta’’, a ‘’mulher fácil’’); mas também elas podem fazer certas coisas que os homens não podem fazer sem receber repreensões – demonstrar afeto entre si de maneira mais íntima (o que pode tornar a homossexualidade feminina mais invisível que a masculina) ou ‘’brochar’’, p. ex. Homens negros são considerados mais viris e másculos que os brancos, graças ao órgão genital maior (em relação aos dos homens brancos) que todos teriam. E um indígena não pode ser penalizado por cometer algo que é considerado ato ilegal para o resto dos brasileiros.

  E somente pessoas que se beneficiam das ‘’opressões’’ podem ser agentes de opressão; não há mulheres machistas, negros anticamitas ou gays homofóbicos, p. ex.; eles apenas ‘’reproduzem’’ opressões. Se uma adolescente chegar em casa grávida, contar à mãe e esta a ofender e bater, vindo o pai, irmão, primo ou amigo da primeira em sua defesa, será ele o machista e opressor em categoria de gênero, não a mãe; se num grupo de amigos, somente distintos nas categorias identitárias em relação à orientação sexual, a maioria for hétero e só houver 2 gays, com um deles praticando violência simbólica ou física contra outros homossexuais enquanto os héteros não o fazem, eles serão opressores e não ele.  Isso porque o homem da primeira situação e os héteros da 2ª têm privilégios que as mulheres e os homo/bissexuais não têm [como adepto do marxismo, da ‘’filosofia da práxis’’ – de cujo método epistemológico faz parte a observação do que os seres humanos fazem (e das consequências dessas ações), não posso deixar de ficar tonto com uma coisa assim].  

 O princípio de ''não-hierarquização'' também funciona de forma curiosa. É comum militantes desses movimentos sociais dizerem que não se deve fazer só um recorte identitário, e então que uma mulher burguesa oprime mais um homem proletário que o contrário; ou que o que acontece com um homem que sofre de impotência sexual é só preconceito, não opressão. Talvez eles queiram dizer que não se pode hierarquizar o sofrimento, uma vez que este é subjetivo; mas, sendo a virilidade institucionalizada como norma de gênero, como dizer que o que acomete tais homens não é opressão e é de ‘’seriedade’’ menor que o que sucede a pessoas das minorias? É possível medir o sofrimento dele e compará-lo com o das minorias, para então concluir que o mesmo é menor? Mas o sofrimento não é subjetivo, portanto imensurável objetivamente?

 E o que significa dizer que a opressão, diferente do mero preconceito intersubjetivo, é ‘’estrutural’’? Pensei, primeiro, que pudesse significar ‘’institucionalizada’’, ou seja, estabelecida na lei, na moral, na religião e em outras ‘’superestruturas ideológicas’’ (no sentido marxista desse termo); depois, que significasse estar baseada na ‘’estrutura’’ – novamente no sentido marxista–, isto é, na base socioeconômica da sociedade: relações de produção e condições geográficas (a inferiorização do povo negro no padrão de beleza, por exemplo, teria origem na dominação histórica dos brancos sobre ele, por meio da escravidão – a mesma que, depois seguida de um descaso por parte do Estado republicano, fez com que o povo negro se tornasse a absoluta maioria entre nossos pobres, miseráveis, não-qualificados profissionalmente etc., o que por sua vez se relaciona com o envolvimento dos negros na criminalidade e daí com o medo de os negros do outro lado da calçada desejarem cometer um assalto...). Claro, para um marxista as superestruturas ideológicas são, em primeira instância, determinadas pela estrutura; mas da distinção ainda sim real entre superestruturas e estrutura segue que táticas diferentes deverão ser adotadas (podemos só combater os discursos discriminatórios ou devemos, além ou em vez disso, socializar os meios de produção, igualando as oportunidades entre homens e mulheres, cisgêneros e transgêneros, brancos e negros, hetero e homo/bissexuais?). 

 Um último ponto: os movimentos afirmam que racismo, machismo, homo/bi/transfobia etc sejam fenômenos objetivos; daí se poderia concluir que, tanto quanto a exploração da força de trabalho ou a gravidade, esses fenômenos poderiam ser discutidos por qualquer um, já que seriam racionalmente cognoscíveis. Entretanto é visto com muito maus olhos um opressor –  homens, héteros, cisgêneros, brancos – discordar de um oprimido – mulheres, homo/bissexuais, transgêneros, negros etc. – sobre se x é machismo, homo/bifobia, transfobia, racismo etc. Ordena-se calar e apenas ouvir, para aprender com a vivência dos últimos. A sugestão de táticas e ações, heterogeneamente, também é considerada negativa e condenável, apelidada de ‘’dar pitaco no movimento’’. Oras, se os fenômenos de que falamos acima são realmente objetivos, e não meras experiências subjetivas, isso não faz sentido. 

 Não quero, em hipótese alguma, sugerir que a luta das minorias por sua emancipação seja ridicularizada, que tenha sua importância retirada, que seja posta como ‘’secundária’’ em relação à luta de classes ou coisa do tipo. Nem mesmo que ela deve ser uma espécie de movimento liberal e pacifista, simplesmente pedindo aos grupos privilegiados que eliminam as desigualdades e discriminações (pessoalmente, acho que é mais fácil derrubar a homofobia e a transfobia que eliminar o senso de controle dos homens heterossexuais sobre as mulheres, o que exige uma atitude combativa por parte das mulheres e do movimento feminista). O que desejo é realizar uma crítica construtiva à teoria que vejo sendo reproduzida pelos militantes de tais movimentos (que talvez seja uma versão vulgarizada de algo coerente e consistente), que os proporcione uma forma mais precisa, mais cientificamente correta de ver o mundo e, então, de melhor poder consolidar/concretizar seus interesses, utilizando a compaixão e a empatia dos grupos privilegiados quando isso for útil e eficaz. 




 *É bom lembramos que os caracterizações de normalidade e patologia são instituições sociais e têm origem parcial em padrões quantitativos – se a orientação sexual é socialmente construída ou se ela resulta de um complexo genético específico, havendo um para os héteros e outros para homossexuais e bissexuais, o que tornaria a heterossexualidade mais ‘’natural’’ que as outras orientações, exceto por haver mais pessoas heterossexuais que homo e bissexuais? – e no que nós pensamos ser o ‘’bom’’, o ‘’ideal’’ – a preservação de nossos organismos, por exemplo.


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