sábado, 22 de novembro de 2014

''Terá o marxismo tornado-se inútil na pós-modernidade?''

O texto a seguir é o capítulo 1 do livro ''Marx estava certo'', do filósofo britânico Terry Eagleton. Boa leitura.



''O marxismo acabou. Supostamente ele deve ter tido alguma relevância em um mundo de fábricas e de escassez de comida, de mineiros de carvão e limpadores de chaminés, de miséria disseminada e da massa das classes operárias. No entanto, decerto não exerceria nenhuma influência sobre as sociedades ocidentais cada vez menos classistas, mais socialmente móveis e pós-industriais do presente. É o credo daqueles que são teimosos, medrosos ou iludidos demais para aceitar que o mundo mudou para melhor, em ambos os sentidos do termo.''

 O suposto fim do marxismo deveria soar como música aos ouvidos dos marxistas em todo canto. Eles poderiam recolher suas marchas e piquetes, voltar para suas famílias enlutadas e aproveitar a noite em casa em vez de ir a mais uma tediosa reunião de comitê. O que os marxistas mais desejam é deixar de ser marxistas. Nesse sentido, ser um marxista nada tem a ver com ser budista ou milionário, assemelhando-se mais a ser médico. Os médicos são perversos, criaturas autossabotadoras que promovem o próprio desemprego curando pacientes, que, depois, não mais precisam deles. A tarefa dos radicais políticos, igualmente, é chegar ao ponto em que não mais sejam necessários porque suas metas foram alcançadas. Estão, então, livres para se retirar, queimar seus pôsteres de Che Guevara, voltar ao violoncelo há muito esquecido e falar sobre algo mais intrigante do que o modo de produção asiático. Se ainda existirem marxistas ou feministas daqui a vinte anos, será lamentável. O marxismo se destina a ser uma atividade temporária, razão pela qual quem molda toda a sua identidade nele não terá entendido o espírito da coisa. A existência de uma vida após o marxismo é precisamente a ideia do marxismo.

 Existe apenas um problema com essa visão sedutora. O marxismo é uma crítica do capitalismo — a crítica mais investigativa, rigorosa e abrangente já feita. É também a única crítica que transformou grandes setores do mundo. Assim é que, enquanto o capitalismo ainda continuar em atividade, o marxismo precisará fazer o mesmo. Somente depois de aposentar seu oponente ele será capaz de se aposentar. E em sua última aparição o capitalismo parecia tão combativo como sempre.

 A maioria dos críticos do marxismo atualmente não refuta isso. Seu argumento é, sim, o de que o sistema se modificou quase a ponto de se tornar irreconhecível desde os dias de Marx e que por isso suas ideias já não são relevantes. Antes de esmiuçarmos tal argumento, vale a pena notar que o próprio Marx tinha total consciência da natureza mutante do sistema que desafiou. É ao próprio marxismo que devemos o conceito de diferentes formas históricas de capital: mercantil, agrário, industrial, monopolista, financeiro, imperial e daí por diante. Por que, então, o fato de o capitalismo ter mudado sua forma nas últimas décadas deveria desqualificar uma teoria que encara a mudança como a própria essência desse sistema? Ademais, o próprio Marx previu um declínio da classe trabalhadora e um aumento acentuado no trabalho dos colarinhos-brancos. [1] Abordaremos esse assunto um pouco à frente. Marx também previu a chamada globalização — o que é estranho para um homem com um raciocínio supostamente arcaico, embora talvez a característica “arcaica” de Marx seja o que o torne ainda relevante nos dias de hoje. Ele é acusado de ultrapassado pelos defensores de um capitalismo que rapidamente vem regredindo aos níveis vitorianos de desigualdade.

 Em 1976, um bocado de gente no Ocidente achava que o marxismo defendia um argumento razoável. Já em 1986, muitas delas não pensavam mais assim. O que ocorreu nesse ínterim? Será que essas pessoas estavam enterradas debaixo de uma pilha de crianças saídas das fraldas? Teria a teoria marxista sido desmascarada como falsa por alguma nova pesquisa retumbante? Será que esbarramos em algum manuscrito há muito sumido em que Marx confessava que tudo não passava de uma piada? Não é que tenhamos descoberto, para nossa decepção, que Marx era sustentado pelo capitalismo. Disso sempre soubemos. Sem a fábrica Ermen & Engels em Salford, de propriedade do pai de Engels, fabricante de tecidos, o Marx cronicamente empobrecido poderia muito bem não ter sobrevivido a polêmicas literárias contra fabricantes de tecido.

 Alguma coisa realmente aconteceu no período em questão. A partir de meados da década de 1970, o sistema ocidental sofreu mudanças radicais. [2] Houve uma guinada da produção industrial tradicional para uma cultura “pós-industrial” de consumismo, comunicações, tecnologia da informação e da indústria de serviços. Empreendimentos de pequena escala, descentralizados, versáteis e não hierárquicos entraram na ordem do dia. Os mercados foram desregularizados, e o movimento da classe operária, submetido a um selvagem ataque jurídico e político. As alianças de classe tradicionais foram enfraquecidas, enquanto as identidades locais, de gênero e etnia ficaram mais insistentes. A política tornou-se mais e mais administrada e manipulada.

 As novas tecnologias da informação tiveram um papel-chave na crescente globalização do sistema, quando um punhado de corporações transnacionais distribuiu a produção e o investimento por todo o planeta em busca dos lucros mais imediatos. Boa parte da produção industrial foi terceirizada, com emprego de mão de obra de regiões com baixos salários no mundo “subdesenvolvido”, levando alguns ocidentais de mente provinciana a concluir que a indústria havia sumido por completo do planeta. Migrações internacionais maciças de mão de obra surgiram na esteira dessa mobilidade global, e com elas houve um ressurgimento do racismo e do fascismo, à medida que imigrantes empobrecidos inundavam as economias mais avançadas. Enquanto os países “periféricos” eram submetidos ao trabalho nas sweatshops [locais de trabalho insalubres], em fábricas privatizadas, a uma previdência social inoperante e a condições comerciais surrealmente desiguais, os executivos das nações metropolitanas arrancavam suas gravatas, abriam os colarinhos e se preocupavam com o bem-estar espiritual de seus empregados.

 Nada disso ocorreu porque o sistema capitalista gozava de um humor esfuziante. Ao contrário, sua nova postura belicosa, como a maioria das formas de agressão, brotou de uma ansiedade profunda. Se o sistema enlouqueceu foi porque se viu acometido por uma depressão latente. O que provocou tal reorganização foi, acima de tudo, o súbito esmaecimento do boom do pós-guerra. A competição internacional intensificada forçava para baixo os índices de lucro, secando as fontes de investimento e reduzindo a taxa de crescimento. Mesmo a social-democracia era uma opção política radical e onerosa demais. O cenário, assim, estava pronto para Reagan e Thatcher, que ajudariam a desmontar a indústria tradicional, reprimir o movimento operário, deixar o mercado à solta, fortalecer o braço repressivo do Estado e defender uma nova filosofia social conhecida como ganância descarada. O deslocamento do investimento da manufatura para as indústrias de serviços, de finanças e de comunicações foi uma reação a uma crise econômica prolongada, não ao abandono repentino de um velho mundo mau em troca de um corajoso mundo novo.

 Ainda assim, é duvidoso que a maioria dos radicais que mudaram de ideia quanto ao sistema entre as décadas de 1970 e 1980 o tenha feito apenas porque havia menos fábricas de algodão. Não foi isso que os levou a descartar o marxismo juntamente com suas costeletas e bandanas, mas, sim, a crescente convicção de que o regime que confrontavam era simplesmente duro demais para ser rompido. Não foram as ilusões sobre o novo capitalismo, mas a desilusão quanto à possibilidade de mudá-lo que mostrou ser o fato decisivo. Houve, decerto, um grande número de ex-socialistas que racionalizaram seu pesar sustentando que, se o sistema não podia ser mudado, não precisava sê-lo. Mas isso era falta de fé numa alternativa que se revelou conclusiva. Como o movimento da classe operária havia sido tão massacrado e a esquerda política tão consistentemente rechaçada, o futuro parecia ter desaparecido sem deixar vestígios. Para alguns membros da esquerda, a queda do bloco soviético no fim da década de 1980 serviu para aprofundar o desencantamento. O fato de a corrente radical mais bem-sucedida da Idade Moderna — o nacionalismo revolucionário — estar a essa altura bastante exaurida não ajudou. O que alimentou a cultura do pós-modernismo, com seu descarte das chamadas grandes narrativas e seu anúncio triunfal do Fim da História, foi, acima de tudo, a convicção de que o futuro seria apenas uma repetição do presente. Ou, como declarou um exuberante pós-modernista, “o presente acrescido de mais opções”.

 Assim, o que ajudou a desacreditar o marxismo foi, sobretudo, uma sensação arrepiante de impotência política. É difícil manter a fé na mudança quando a mudança parece não constar da agenda, ainda que nesse momento seja mais do que nunca crucial mantê-la. Afinal, se não resistirmos ao que é aparentemente inevitável, jamais saberemos quão era o inevitável. Se tivessem conseguido se apegar a suas antigas noções por mais duas décadas, em 2008 os “desistentes” teriam visto um capitalismo tão exultante e imbatível que praticamente era capaz apenas de administrar os caixas automáticos instalados nas grandes avenidas. Também teriam visto todo um continente ao sul do Canal do Panamá dar uma guinada decisiva para a esquerda política. O Fim da História chegava, então, ao fim. De todo modo, os marxistas deveriam estar mais do que acostumados à derrota. Conheceram catástrofes maiores do que essa. A vantagem política sempre pertence ao sistema no poder, simplesmente porque ele possui mais tanques do que nós. Mas as visões estonteantes e as esperanças efervescentes do fim da década de 1960 transformaram esse revés numa pílula especialmente amarga para os sobreviventes daquela era.

 O que fez o marxismo parecer implausível, então, não foi o fato de o capitalismo ter alterado sua posição, e sim o oposto — o fato de que, no que tangia ao sistema, tudo funcionava como de hábito, e até melhor. Ironicamente, o que ajudou a derrubar o marxismo também acabou dando certo crédito a seus argumentos. Ele foi relegado à margem porque a ordem social que confrontava, longe de se tornar mais moderada e benigna, ficou mais cruel e extrema do que antes. E isso tornou a crítica que lhe fazia o marxismo ainda mais pertinente. Numa escala global, o capital se encontrava mais concentrado e predatório do que nunca, e a classe operária havia, com efeito, crescido. Começava a parecer possível imaginar um futuro em que os mega-ricos se abrigariam em suas comunidades armadas e gradeadas, enquanto cerca de um bilhão de moradores de favelas ficariam sitiados em seus fétidos barracos, cercados por torres de vigilância e arame farpado. Nessas circunstâncias, afirmar que o marxismo havia acabado era mais ou menos como dizer que o Corpo de Bombeiros estava ultrapassado porque os incendiários estavam cada vez mais hábeis e criativos.

 No nosso tempo, conforme previu Marx, a desigualdade de riqueza cresceu de forma dramática. A renda de um único bilionário mexicano equivale hoje aos rendimentos dos 17 milhões de seus compatriotas mais pobres. O capitalismo criou mais prosperidade do que a história jamais testemunhou, mas o preço — em especial a quase penúria de bilhões de indivíduos — foi astronômico. Segundo o Banco Mundial, 2,74 bilhões de pessoas em 2001 viviam com menos de dois dólares por dia. Enfrentamos um futuro provável de Estados munidos de armas nucleares guerreando devido à escassez de recursos, e a escassez é, em grande medida, uma consequência do próprio capitalismo. Pela primeira vez na história, nossa forma prevalente de vida tem o poder não apenas de alimentar o racismo e disseminar o cretinismo cultural, nos levar à guerra ou nos tocar como rebanhos para os campos de trabalho, mas também de nos riscar do planeta. O capitalismo se comportará de maneira antissocial se considerar essa atitude lucrativa, e isso atualmente pode significar a devastação humana numa escala inimaginável. O que antes não passava de fantasia apocalíptica é agora realismo sóbrio. O tradicional slogan esquerdista “Socialismo ou barbárie” nunca foi mais sombriamente adequado e nunca equivaleu menos a um mero floreio retórico. Nessas sombrias condições, como escreve Fredric Jameson, “o marxismo precisa necessariamente voltar a ser verdade.” [3]

 E se ultrapassado não estiver o marxismo, mas, sim, o próprio capitalismo? Na Inglaterra vitoriana, Marx via o sistema em processo de perda de fôlego. Tendo promovido o desenvolvimento social em seu auge, ele funcionava então como um entrave a ele. Marx considerava a sociedade capitalista impregnada de fantasia e fetichismo, mito e idolatria, por mais que se orgulhasse de sua modernidade. Seu esclarecimento — a crença arrogante na própria racionalidade superior — não passava de uma espécie de superstição. Se, por um lado, foi capaz de certo progresso retumbante, por outro precisava correr muito apenas para continuar no lugar. O derradeiro limite para o capitalismo, comentou Marx certa vez, é o próprio capital, cuja reprodução constante é uma fronteira além da qual ele não pode se aventurar. Existe, assim, algo curiosamente estático e repetitivo a respeito desse regime histórico mais dinâmico de todos. O fato de que sua lógica subjacente permanece bastante constante é uma das razões por que a crítica que lhe fazia Marx continua válida em grande medida. Apenas se o sistema fosse genuinamente capaz de romper suas próprias fronteiras, inaugurando algo novo, nunca antes sequer imaginado, deixaria esse de ser o caso. Mas o capitalismo é incapaz de inventar um futuro que não reproduza seu presente ritualmente. Desnecessário dizer que com mais opções...

 O capitalismo trouxe grandes avanços materiais. Entretanto, embora essa maneira de organizar nossos negócios tenha tido muito tempo para demonstrar que é capaz de satisfazer as exigências humanas por todo lado, ela aparentemente não está mais perto disso do que antes. Quanto tempo estamos preparados para aguardar que o capitalismo produza os bens? Por que continuamos a nutrir o mito de que a riqueza fabulosa gerada por esse modo de produção se tornará disponível para todos no devido tempo? Será que o mundo trataria reivindicações similares vindas da extrema esquerda com a mesma tolerância cordial, esperando para ver o que vai acontecer? Os direitistas que admitem que sempre haverá injustiças colossais no sistema, mas que, apesar disso, as opções são ainda piores, são ao menos mais honestos em seu jeito inflexível do que aqueles que pregam que tudo dará certo afinal. Se existe tanto gente rica quanto gente pobre, como existe tanto gente negra quanto branca, as vantagens dos abonados podem muito bem, com o tempo, chegar aos desprovidos. Mas observar que alguns são miseráveis enquanto outros são prósperos é mais ou menos como afirmar que o mundo contém ao mesmo tempo detetives e criminosos. E é verdade, mas isso encobre o fato de que existem detetives porque existem criminosos...

Notas:
[1] White-collars, trabalhadores de escritório, em oposição aos blue-collars, colarinhos-azuis
dos macacões.
[2] Embora alguns marxistas duvidem de quão vitais tenham sido. Por exemplo, CALLINICOS, Alex. Against Postmodernism: a Marxist critique. Cambridge: Polity Press, 1989, cap. 5.
[3]  JAMESON, Fredric. The Ideologies of Theory. Londres: Verso Books, 2008, p. 514.















Nenhum comentário:

Postar um comentário