quarta-feira, 5 de novembro de 2014

''Marx e a liberdade'', por Terry Eagleton

Tradução por Marcos E. de Oliveira e edição por Velha Toupeira, da  equipe do blog comunism0.

Terry Eagleton (22 de fevereiro de 1943) é um filósofo e crítico literário britânico identificado com o marxismo.


FILOSOFIA

Hegel e Aristóteles com certeza eram filósofos, mas em que sentido Karl Marx também era? Marx escreveu muita coisa que tem um ar de filosofia, mas era também rispidamente desdenhoso do espírito filosófico, tendo declarado em sua famosa 11ª tese sobre Feuerbach que “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, trata-se, entretanto, de transformá-lo” [TF]. Alguém poderia retrucar que seria difícil transformar um mundo que não entendemos, a não ser pelo fato de que o próprio Marx seguramente estaria de acordo. Ele não está empenhado em substituir idéias por ações irrefletidas, mas em moldar uma espécie de filosofia prática que ajuda a transformar aquilo que procura compreender. A mudança social e a intelectual andam juntas: “A filosofia não pode se realizar sem a superação do proletariado“, diz ele, “e o proletariado não pode se superar sem a realização da filosofia” [CFD]. A segunda tese sobre Feuerbach afirma:

A questão se uma verdade objetiva pode ser atribuída ao pensamento humano não é teórica, mas prática. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou irrealidade do pensamento, quando isolada da prática, é uma questão puramente escolástica. [TF]

Este tipo especial de teoria orientada para a ação é às vezes chamado de “conhecimento emancipador”, e tem alguns atributos distintivos. É o tipo de entendimento da própria situação que um grupo ou indivíduo precisa para mudar tal situação; e é assim entre outras coisas um novo auto-entendimento. Mas conhecer-se de uma nova maneira significa alterar-se neste próprio ato; portanto temos aqui uma forma peculiar de cognição em que o ato de conhecer altera aquilo a que se refere. Ao tentar compreender a mim e à minha condição, nunca posso permanecer perfeitamente idêntico a mim, pois o eu [self] que está realizando o entendimento, bem como o eu que é entendido, são agora diferentes do que eram antes. E se eu quisesse entender tudo isto, exatamente o mesmo processo se estabeleceria. É um pouco como tentar pular a própria sombra, ou erguer-se pelos próprios cabelos. E uma vez que tal conhecimento também leva as pessoas a mudar sua condição na prática, ele mesmo se transforma num tipo de força social ou política, parte da situação material que examina, em vez de mera “reflexão” dela ou sobre ela. É conhecimento como um evento histórico em vez de especulação abstrata, no qual saber que não mais se separa claramente de saber como. Além disso, a procura da emancipação envolve questões de valor, enquanto o conhecimento da situação é matéria de compreensão factual; desta forma, aqui a distinção usual que a filosofia reconhece entre fatos e valores perde curiosamente a nitidez. Não se trata apenas de que tal tipo de conhecimento pode ser utilizado com proveito, mas de que a motivação para o entendimento está em primeiro lugar ligada a um sentido de valor. A 11ª tese sobre Feuerbach não é portanto apenas algum tipo de apelo filistino para que se passe da especulação abstrata para o “mundo real”, embora houvesse um laivo deste enérgico anti-intelectualismo no jovem Marx. Tal apelo esquece que, para começar, sem conceitos abstratos não haveria mundo real para nós. A ironia do gesto de Marx é que ele faz esta exigência como filósofo, não apenas como militante. Pode-se assim juntá-lo a uma respeitável linhagem de “antifilósofos” que inclui Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Benjamin, Wittgenstein, e, nos dias de hoje, pensadores como Jacques Derrida e Richard Rorty, para quem há algo de fundamentalmente equivocado em todo o empreendimento filosófico de nossa época. Para estes autores, a própria filosofia, não apenas este ou aquele tópico no interior dela, tornou-se uma busca profundamente problemática. Eles desejam, portanto ou transcender o projeto inteiro por motivos que permanecem filosoficamente interessantes, ou encontrar alguma forma de remoldá-lo num registro inteiramente novo, um objetivo que para muitos destes pensadores significa forjar um novo estilo de escrita teórica. A maioria se propõe a esvaziar as pretensões meta físicas da filosofia, atacando-a pelos flancos com algo aparentemente mais fundamental: o ser, o poder, a diferença, formas práticas de vida, ou, no caso de Marx, “condições históricas”. Um antifilósofo deste tipo difere de um mero opositor da filosofia da mesma maneira que um “anti-romance” como Ulisses difere de um não-romance como uma lista telefônica.

Por que Marx era tão cético em relação à filosofia? Um motivo era que ele a via começando do lugar errado. A filosofia não começava longe o suficiente. A filosofia alemã em moda na sua época – o Idealismo – começava com as idéias, vendo a consciência como o fundamento da realidade; porém Marx estava ciente de que apenas para que tenhamos uma idéia muita coisa já deve ter acontecido. O que já deve ter acontecido para que comecemos a refletir?

Devemos já estar ligados praticamente com o mundo que ponderamos e, desta forma, já inseridos num conjunto inteiro de relações, condições materiais, instituições sociais:

A produção de idéias, de concepções, da consciência, é de início diretamente entrelaçada com a atividade material e com a interação material dos homens, a linguagem da vida real. O conceber, o pensar, a interação intelectual dos homens aparecem neste estágio como uma emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual expressa na linguagem da política, das leis, da moralidade, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas concepções, idéias etc. – homens reais, ativos, tal como são condicionados por um desenvolvimento determinado das forças produtivas e da interação correspondente a estas, até suas formas mais avançadas. A consciência nunca pode ser outra coisa senão existência consciente, e a existência do homem é seu processo de vida real. [IA]


 Devemos observar que embora Marx queira, falando epistemologicamente, ligar estreitamente a consciência e o mundo material, há um sentido político em que ele quer afrouxar tal relação. Para ele, como veremos, somos mais humanos e menos como os outros animais quando produzimos livre, gratuita e independentemente de qualquer necessidade material imediata. A liberdade para Marx é uma espécie de superabundância criativa acima do que é materialmente essencial, aquilo que ultrapassa a medida e se torna seu próprio padrão. Acontece que, para tudo isto acontecer na sociedade, certas condições materiais são necessárias; de tal forma que o próprio “excesso” de consciência acima da natureza que Marx considera a marca distintiva de nossa humanidade é ele próprio um estado de coisas materialmente condicionado. O lugar onde a consciência e a prática social convergem mais obviamente para Marx é a própria linguagem:

A linguagem é tão antiga quanto a consciência; a linguagem é a consciência prática, real, que existe igualmente para outros homens, e apenas assim existe para mim também; a linguagem, como a consciência, somente emerge a partir da carência, da necessidade de interação com outros homens. [IA]

 Mas se a linguagem surge a partir da necessidade, como uma dimensão necessária do trabalho coletivo, ela não permanece atrelada a esta necessidade, como testemunha o fenômeno conhecido como literatura.

Quando se trata não apenas de “consciência”, mas do tipo sistemático de reflexão conhecido como filosofia, então há claramente necessidade de especialistas, academias e um grande número de instituições afins, todas elas podendo, em última análise, ser sustentadas apenas por trabalho alheio. Este é um aspecto do que Marx quer dizer com a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual. Somente quando uma sociedade atingiu certo excedente econômico acima da necessidade material, liberando uma minoria de seus membros das exigências do trabalho produtivo, e concedendo-lhe o privilégio de se tornar políticos em tempo integral, acadêmicos, produtores culturais, e assim por diante, somente então a filosofia pode surgir e florescer no sentido mais completo. Agora o pensamento pode começar a ter fantasias de que é independente da realidade material, simplesmente porque há um sentido material em que de fato o é:

A divisão do trabalho apenas se dá verdadeiramente a partir do momento em que aparece a divisão entre o trabalho intelectual e o manual. (A primeira forma de ideólogo, a dos sacerdotes, é contemporânea.) Deste momento em diante, a consciência pode realmente alimentar a ilusão de ser algo diverso da consciência da prática existente, de realmente representar algo sem representar algo real; de agora em diante, a consciência é capaz de se emancipar do mundo e dar início à formação da “pura” teoria, teologia, filosofia, ética etc. [IA]
 Para Marx, a cultura na realidade tem apenas um progenitor, o trabalho – o que para ele equivale a dizer, a exploração. A cultura da sociedade de classes tende a reprimir esta verdade indesejável; prefere criar em sonhos para si própria um progenitor mais nobre, negando sua filiação inferior e imaginando que surgiu simplesmente da cultura anterior, ou da imaginação individual sem peias. Porém Marx se propõe a nos lembrar que nosso pensamento, como os nossos sentidos tão físicos, é ele próprio o produto da história com a qual se confronta. A história – o mundo real – de alguma maneira sempre escapa ao pensamento que busca abrangê-lo, e Marx, que como bom dialético enfatiza a natureza dinâmica, aberta e interativa das coisas, detestava aqueles pretensiosos sistemas de pensamento que (como o idealismo hegeliano) acreditavam poder de alguma forma costurar o mundo todo no interior de seus conceitos. É tenebrosamente irônico que seu próprio trabalho tenha, entre outras coisas, dado à luz mais tarde exatamente esta estéril construção de sistema.

A questão para Marx é assim a das causas e condições materiais do pensamento. Podemos investigar as causas disso ou daquilo, mas será possível a este pensamento voltar-se para si próprio, por assim dizer, para apreender algo da própria história que o produziu? Talvez para nós modernos haja boas razões pelas quais isto não possa nunca ser totalmente conseguido, pois há sempre algum tipo de ponto cego, alguma amnésia ou auto-opacidade necessária que garante que a mente no fim sempre falhará neste empreendimento. O próprio Marx, como filho do Iluminismo, era talvez bem mais confiante que nós no poder translúcido da razão; mas como pensador historicista – e estas correntes gêmeas, a racionalista e a historicista, estão freqüentemente em tensão no seu trabalho – reconheceu que se todo pensamento fosse histórico, então isto deveria naturalmente valer para seu próprio pensamento. Não poderia ter havido marxismo algum no tempo de Carlos Magno ou Chaucer, uma vez que o marxismo é mais do que um simples conjunto de idéias brilhantes que qualquer pessoa, em qualquer época, pudesse ter tido. É em vez disso um fenômeno situado no tempo e no espaço, que reconhece que as próprias categorias em que pensa – o trabalho abstrato, a mercadoria, o indivíduo com liberdade de movimento e assim por diante – só poderiam ter emergido da herança do capitalismo e do liberalismo político. O marxismo como um discurso emerge quando é tanto possível quanto necessário que o faça, na qualidade de “crítica imanente” do capitalismo, e assim como um produto da própria época que ele deseja ultrapassar. O Manifesto comunista é pródigo em seu louvor à grandiosa burguesia revolucionária e à magnífica liberação de potencial humano conhecida como capitalismo:

A burguesia, onde quer que tenha chegado ao poder, liquidou todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que prendiam o homem a seus “superiores naturais”, e não deixou subsistir entre homem e homem qualquer outra ligação além do interesse próprio nu e cru, do impiedoso “pagamento à vista”. Afogou nas águas geladas do cálculo egoísta os mais celestiais êxtases do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo filistino…Numa palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, colocou a exploração aberta, despudorada, direta e brutal… Arrancou da família seu véu de sentimentalismo, e reduziu a relação familiar a mera relação monetária…A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e conseqüentemente as relações de produção, e com estas todas as relações sociais…O revolucionamento constante da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a permanente incerteza e agitação distingue a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de antigos e veneráveis preconceitos e opiniões, são dissolvidas, todas as relações novas tornam-se antiquadas antes de se consolidar. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são por fim forçados a confrontar com sobriedade suas reais condições de vida e suas relações uns com os outros. [MC]


São estas energias revolucionárias, ao mesmo tempo admiráveis e devastadoras que, por um lado, estabelecem as bases materiais para o socialismo e, por outro, frustram sempre tal projeto. O capitalismo varre todas as formas tradicionais de opressão, e ao fazer isto coloca a humanidade face a face com a realidade brutal que o socialismo deve então reconhecer e transformar.

Apreender o próprio pensamento como enraizado nas próprias condições materiais que ele procura examinar é ser um filósofo materialista, uma expressão que evoca mais que uma sugestão de paradoxo. A tarefa do pensamento materialista é incluir em seus cálculos esta realidade – o mundo material – que é externa ao próprio pensamento e que é, em certo sentido, mais fundamental que ele. Isto é o que Marx quer dizer ao alegar que, na história da espécie humana, o “ser social” determina a consciência, e não vice-versa, como querem os Idealistas:

A moralidade, a religião, a metafísica, todo o resto da ideologia e suas correspondentes formas de consciência perdem assim sua aparência de autonomia. Elas não têm história, nem desenvolvimento; porém os homens, desenvolvendo sua produção e interação materiais, alteram junto com isso sua existência real, seu pensamento e os produtos dele. A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida. [IA]

 Eis aqui então a bem-conhecida inversão marxista de Hegel, cuja dialética de ponta-cabeça, em que as idéias determinam a existência social, precisa ser assentada firmemente em seus pés materialistas. Para Marx, o que dizemos ou pensamos é em última análise determinado por aquilo que fazemos. São práticas históricas que se encontram no fundo de nossos jogos de linguagem. Mas um pouco de cautela é necessário aqui. Pois o que fazemos enquanto seres históricos é sem dúvida profundamente ligado com o pensamento e a linguagem; não há prática humana fora do domínio do significado, da intenção e da imaginação, como o próprio Marx insiste:

O animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. Ele é sua atividade vital. O homem torna sua própria atividade vital objeto de sua vontade e sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinação com a qual ele se amalgama diretamente. [MEF]… Uma aranha realiza operações semelhantes às de um tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos na construção de sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o arquiteto constrói sua estrutura na imaginação antes de erigi-la na realidade.[Cv1]

 O ser social dá origem ao pensamento, mas ele mesmo é envolvido pelo pensamento. Mesmo assim, Marx sustenta ser aquele mais fundamental – assim como sustenta que a “base” da sociedade dá origem à sua “superestrutura” cultural, jurídica, política e ideológica:

Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, indispensáveis e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um estágio determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se ergue uma superestrutura legal e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geral. Não é a consciência do homem que determina seu ser, porém, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência. [CCEP, prólogo]

 Temos aqui então a celebrada “teoria econômica da história” de Marx. Suas alegações sobre as prioridades do ser social e da consciência são ontológicas, referentes ao que ele julga serem os homens. É bem possível que a doutrina da base/ superestrutura seja isto: ela sustenta que todas as formas sociais e políticas, e todas as principais mudanças históricas, são em última análise determinadas por conflitos no interior da produção material. Mas pode também ser vista mais historicamente, como descrevendo a maneira em que a política, o direito, a ideologia e assim por diante operam nas sociedades de classe. Marx quer dizer que, em tais ordens sociais, precisamente porque a “base” das relações sociais é injusta e contraditória, tais formas têm a função de ratificar, promover ou esconder esta injustiça, e assim podem ser consideradas, neste sentido, secundárias ou superestruturais em relação a elas. Pode então haver uma implicação de que se as relações sociais fossem justas, tal superestrutura seria desnecessária. Trata-se aqui, em outras palavras, da função política das idéias na sociedade, não apenas de sua origem material. E isto nos leva ao conceito marxista de ideologia.

As idéias da classe dominante são em cada época as idéias dominantes, isto é, a classe que constitui a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força intelectual dominante. A classe que dispõe dos meios da produção material detém ao mesmo tempo o controle sobre os meios de produção espiritual, de tal modo que, em geral, as idéias daqueles que carecem dos meios da produção espiritual ficam sujeitas a esta classe. As idéias dominantes são nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes concebidas como idéias… [IA]

 Quando a filosofia se torna ideologia, tende a desviar a atenção dos homens e mulheres dos conflitos históricos insistindo no primado do espiritual, ou oferecendo uma resolução destes conflitos num plano mais alto, imaginário. É por isso que Marx censura os hegelianos. Sua visão da história, em contraste,

(...) consiste em expor o processo real de produção, começando pela produção material da própria vida, e de compreender a forma de interação ligada a, e criada por, este modo de produção (isto é, a sociedade civil em seus vários estágios) como base de toda a história; e de mostrá-la em sua ação como Estado, de explicar todas as diversas formas teóricas e produtos da consciência, religião, filosofia, ética etc. etc. e traçar sua origem e desenvolvimento a partir desta base; e por meio disto, evidentemente, a coisa em sua totalidade pode ser representada (e, portanto, também a ação recíproca destes vários elementos uns sobre os outros). [IA]

 Diferente do pensamento idealista, tal concepção materialista “permanece sempre no fundamento real da história”:


[Ela] não explica a prática a partir da idéia, mas a formação das idéias a partir da prática material; e, em conseqüência, chega à conclusão de que todas as formas e produtos da consciência não podem ser dissolvidos pela crítica espiritual, pela dissolução em “autoconsciência” ou transformação em “aparições”, “espectros”, “fantasias” etc., mas apenas pela derrubada prática das relações sociais reais que deram origem a esta mistificação idealista… [IA]

 A afirmação de Marx é que se os problemas teóricos cruciais estão ancorados em contradições sociais, então só podem ser resolvidos politicamente, em vez de filosoficamente.

Um certo estilo de filosofar dá origem assim a certo “descentramento” da própria filosofia. Como muitos antifilósofos, Marx tenta deslocar todo o terreno em que o discurso está assentado, apreendendo os enigmas filosóficos tanto como sintomáticos de um subtexto histórico real, quanto como uma maneira de lançar este subtexto fora do campo de visão. Por mais que a filosofia goste de sonhar que se produz a si mesma, ela deve confrontar-se com sua dependência daquilo que a transcende. A abordagem materialista:

… mostra que a história não termina ao ser dissolvida em “auto consciência” como o “espírito do espírito”, mas que em cada estágio encontra-se um resultado material: uma soma de forças produtivas, uma relação historicamente criada de indivíduos com a natureza e entre si, a qual é transmitida para cada geração pela precedente; uma massa de forças produtivas, de capitais e condições que, por um lado, é na verdade modificada pela nova geração, mas também, por outro lado, prescreve a ela suas condições de vida e lhe dá um desenvolvimento determinado, um caráter especial. Ela demonstra que as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias. [IA]

 A humanidade, portanto, não é apenas o produto determinado de suas condições materiais; se fosse, como poderia Marx ter esperança de que ela pudesse algum dia transforma-las?

Ele não é um materialista “mecânico” , como, digamos, Thomas Hobbes, que vê a consciência como mero reflexo das circunstâncias, mas um materialista histórico no sentido de que deseja explicar a origem, o caráter e a função das idéias em termos das condições históricas nas quais estão inseridas.

Ele parece ter esquecido, entretanto, que nem toda filosofia é necessariamente Idealista. Seu próprio pensamento não o é, nem o dos grandes materialistas burgueses do Iluminismo francês com os quais tanto aprendeu. Também a ideologia, na verdade, nem sempre é “Idealista”. Mesmo assim, a concepção de Marx da filosofia Idealista é original: ele a vê como uma forma de fantasia, que se esforça para atingir na mente aquilo que não pode ainda ser conseguido na realidade histórica. E, neste sentido, a resolução das contradições históricas significaria a morte da especulação filosófica. Mas isto também é verdade em relação ao próprio pensamento de Marx. Não haveria lugar para a filosofia marxista numa sociedade verdadeiramente comunista, uma vez que tal teoria existe unicamente para ajudar a pôr em existência tal sociedade. Na verdade, em seu registro antiutópico, o trabalho de Marx tem surpreendentemente pouco a dizer sobre como efetivamente seria o futuro estado de coisas. Seu pensamento, como toda teoria política radical, é, portanto no fim auto-eliminante. E este é talvez o sentido mais profundo em que é histórico.


ANTROPOLOGIA

O pensamento (pós) moderno tende a ser antifundacionista, suspeitando que qualquer fundamento objetivo para nossa existência seja alguma ficção arbitrária de nossa própria autoria. Marx, em contraste, é um pensador mais clássico ou tradicional, para quem o fundamento de nosso ser é aquela forma compartilhada de natureza material que ele denomina “ser genérico”. Como a expressão “natureza humana”, este conceito paira ambiguamente entre a descrição e a prescrição, entre fato e valor, entre uma explicação de como somos e como devemos ser. Somos animais naturalmente sociais, dependentes uns dos outros para nossa própria sobrevivência, contudo isto deve se tornar um valor político além de um fato antropológico. Como um pensador historicista, Marx propõe-se a resgatar as instituições humanas da falsa eternidade que o pensamento metafísico lhe atribuiu; o que foi historicamente criado pode sempre ser historicamente mudado. Mas ele é também, um tanto paradoxalmente, um tipo de essencialista aristotélico, sustentando que existe uma natureza ou essência humana e que a sociedade justa seria aquela em que tal natureza pode se realizar. Como então ele resolve esta aparente discrepância em seu pensamento?

Ele o faz, como Hegel já o fizera, vendo a mudança, o desenvolvimento, como a essência da humanidade. Faz parte de nossa natureza realizarmos nossos poderes; porém de que espécie de poderes se trata e em que condições os realizamos, é uma questão historicamente específica. Para o jovem Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos, somos humanos na medida em que compartilhamos um tipo específico de “ser genérico” com nossos semelhantes:

A essência humana da natureza existe apenas para o homem social; pois, apenas neste caso, a natureza existe para ele como um vinculo com outros homens, como sua existência para os outros, e a existência dos outros para ele, como o elemento vital da realidade humana; apenas assim esta essência existe como a base de sua própria existência humana. Só então sua existência natural torna-se sua existência humana, e a natureza torna-se para ele o homem. A sociedade é, portanto a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da natureza…Acima de tudo é necessário evitar uma vez mais estabelecer a “sociedade” como uma abstração acima e contra o indivíduo. O indivíduo é o ser social.. Sua expressão vital – mesmo quando não aparece na forma direta de uma expressão coletiva, concebida em associação com outros homens – é, portanto uma expressão e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são duas coisas distintas… [MEF]

 Este ser genérico tem alguma finalidade ou meta? É Marx um pensador teleológico? Num sentido sim, em outro não. Pois a finalidade de nosso ser genérico, numa espécie de tautologia criativa, consiste simplesmente em realizar-se. Para Marx, assim como para outros românticos radicais, não existe nem deveria existir uma razão última para a existência humana além de seu desenvolvimento por si só prazeroso:

Quando trabalhadores comunistas se reúnem, seu objetivo imediato é a instrução, a propaganda etc. Mas ao mesmo tempo eles passam a ter uma nova necessidade – a necessidade de associação -, e o que aparecia como um meio torna-se um fim. Este desenvolvimento prático pode ser observado da maneira mais surpreendente nas reuniões dos trabalhadores socialistas franceses. Fumar, comer, beber etc. deixam de ser meios de criar ligações entre as pessoas. A companhia, a associação, a conversa, que por sua vez têm a sociedade como objetivo, são o que basta para eles. A fraternidade do homem não é uma frase vazia, é uma realidade, e a nobreza do homem brilha em seus semblantes desgastados pelo trabalho. [MEF]

 Esta noção romântica de uma natureza cujo autodesenvolvimento é um fim em si mesmo está em oposição a duas outras poderosas formas de pensamento da época de Marx.

A primeira é o tipo de raciocínio metafísico que convocaria a atividade humana para se explicar diante de algum tribunal superior: do dever, da moral, das sanções religiosas ou da idéia Absoluta. Marx é profundamente hostil a tal metafísica, embora seja um moralista profundo por sua própria conta. Acontece apenas que para ele a moralidade consiste em verdade neste processo de desdobramento de nossos poderes e capacidades criativos, não em alguma lei posta acima dela, ou algum majestoso conjunto de fins plantados além dela. Não há necessidade de justificar esta dinâmica, não mais do que se precisa justificar um sorriso ou uma canção; ela pertence simplesmente à natureza que temos em comum.

Mas esta ética também se encontra em conflito com a forma de razão instrumental para a qual os indivíduos existem em virtude de alguma finalidade maior: o estado político, por exemplo, ou – como no pensamento utilitário dominante na época de Marx – a promoção da felicidade universal. Este raciocínio de meios e fins é a forma de racionalidade que Marx acredita predominar nas sociedades de classe, nas quais as energias da maioria são instrumentos para o lucro de poucos. Na sociedade capitalista,

o trabalho, a atividade vital, a própria vida produtiva aparece ao homem apenas como um meio para a satisfação de uma necessidade, a necessidade de preservar a existência física. Mas a vida produtiva é vida do gênero. É vida produtora de vida. Todo o caráter de uma espécie, seu caráter genérico, reside na natureza de sua atividade vital, e a atividade livre consciente constitui o caráter genérico do homem. [No capitalismo], a própria vida aparece apenas como um meio de vida. [MEF]

 Na sociedade de classe, o indivíduo é forçado a converter o que é menos funcional em si – seu ser genérico auto-realizador – em mera ferramenta da sobrevivência material.

Não que Marx, é claro, repudie completamente esta razão instrumental. Sem ela, não poderia haver ação racional alguma; e sua própria política revolucionária envolve o ajuste de meios a fins. Mas uma das muitas ironias de seu pensamento é que isto está a serviço da construção de uma sociedade em que os homens e mulheres seriam livres para florescer como fins radicais em si mesmos. É apenas porque valoriza o indivíduo tão profundamente que Marx rejeita uma ordem social que, enquanto apregoa o valor do individualismo em teoria, na prática reduz homens e mulheres a unidades anonimamente intercambiáveis.

Diante de um pedido para caracterizar a ética de Marx, poderíamos fazer pior do que chamá-la de “estética”. Pois esta é tradicionalmente a forma de prática humana que não requer justificação utilitária alguma, mas que provê suas próprias metas, fundamentos e razões. É um exercício de energia auto-realizadora como um fim em si mesmo; e o socialismo para Marx é simplesmente o movimento prático para estabelecer um estado de coisas em que algo semelhante a isto estaria disponível para tantos indivíduos quanto possível. Onde estiver a arte, lá estará a humanidade. Por isso ele almeja uma sociedade em que o trabalho seria tanto quanto possível automatizado, de tal forma que homens e mulheres (capitalistas bem como trabalhadores) [Os atuais, bem entendido. Marx almeja uma sociedade sem capitalistas e sem proletários.] não mais seriam reduzidos a meras ferramentas de produção, sendo em vez disso livres para desenvolver suas personalidades de maneira mais harmoniosa. O socialismo para ele depende crucialmente do encurtamento da jornada de trabalho, para permitir que este florescimento geral se torne disponível:

A liberdade neste campo [do trabalho] só pode consistir em o homem socializado, os produtores associados regularem racionalmente seu intercâmbio com a natureza... e conseguindo isto com o mínimo dispêndio de energia e sob as condições mais favoráveis a, e dignas de sua natureza humana. Mas trata-se ainda do domínio da necessidade. Além dele começa aquele desenvolvimento da energia humana que é um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, a qual, entretanto, só pode florescer com base neste reino da necessidade. A diminuição da jornada de trabalho é seu pré-requisito básico. [C vol 3]

 Outra maneira de expressar tal idéia consiste em dizer que almeja libertar o “valor de uso” dos seres humanos de seu aprisionamento ao “valor de troca”. Um objeto é para ele algo sensível que deveríamos usar e usufruir por suas qualidades específicas; isto é o que ele quer dizer com o “valor de uso”. Sob condições capitalistas, entretanto, os objetos são reduzidos a mercadorias: eles existem meramente em função de seu valor de troca, de serem comprados e vendidos. E quanto a isto, quaisquer duas mercadorias do mesmo valor são reduzidas a uma igualdade abstrata entre elas. Suas qualidades sensíveis específicas são assim deleteriamente ignoradas, à medida que a diferença é dominada pela identidade.

Mas isto vale igualmente para os seres humanos sob o mesmo sistema social. Sob condições de mercado, os indivíduos se confrontam enquanto entidades abstratas, intercambiáveis; os trabalhadores tornam-se mercadorias, vendendo sua força de trabalho para quem paga mais; e ao capitalista não importa o que produz desde que seja lucrativo. O que vale para o domínio econômico é também verdadeiro para a arena política: o Estado burguês considera seus cidadãos abstratamente iguais quando se trata, digamos, da cabine de votação, mas apenas de maneira tal que suprime e esconde suas desigualdades sociais específicas. O objetivo da democracia socialista é sanar esta fissura entre a forma política e o conteúdo social, de tal forma que nossa presença dentro do Estado político [Este Estado político de Eagleton não se encontra de modo nenhum, nas palavras de Marx que vêm a seguir. Pode até ver-se nelas a visão da superação de todos os tipos de Estado. Nota de velha toupeira], como cidadãos participantes, seria nossa presença como indivíduos reais:


Somente quando o homem real, individual resume em si o cidadão abstrato, e enquanto homem individual tiver se tornado um ser genérico em sua vida empírica, em seu trabalho individual e em suas relações individuais, somente quando o homem tiver reconhecido e organizado suas forças próprias como forças sociais, de tal modo que a forças social não mais se separe dele na forma de força política, somente então a emancipação humana estará completa. [QJ]

 [O parágrafo seguinte foi traduzido por nós pois faltava na tradução que estamos a apresentar. Nota de velha toupeira.]

Assim como Marx quer abolir o intercâmbio de mercadorias na esfera econômica, para que a produção esteja mais ao serviço do uso que do lucro, também deseja “desmercantilizar” a personalidade humana, emancipando a riqueza do desenvolvimento individual sensível da lógica abstrata, utilitária, na qual comumente se acha prisioneiro. Sob o capitalismo, inclusive nossos sentidos se transformam em mercadoria, de tal maneira, que só com a abolição da propriedade privada o corpo humano se liberaria e a sensibilidade humana chegaria a ser o que é:

A superação da propriedade privada é, portanto, a emancipação completa de todos os sentidos e atributos humanos; mas o é precisamente por que tais sentidos e atributos tornaram-se humanos, tanto subjetiva quanto objetivamente. O olho tornou-se um olho humano, assim como seu objeto tornou-se objeto social, humano, feito pelo homem, para o homem. Os sentidos, portanto, tornaram-se teóricos em sua práxis imediata. Eles se relacionam com a coisa em função dela, mas a própria coisa é uma relação humana objetiva consigo mesma e com o homem, e vice-versa. A necessidade e a fruição perderam assim sua natureza egoísta, e a natureza perdeu sua mera utilidade tendo em vista que seu uso tornou-se uso humano. [MEF]

 A antropologia política de Marx está enraizada numa concepção muito ampla de trabalho, a saber, na noção do corpo humano como fonte de vida social. À medida que a vida social fica mais complexa, o trabalho se torna inevitavelmente mais especializado, com formas diferentes divididas entre produtores diferentes. Esta é uma maneira necessária de desenvolver e aperfeiçoar as forças produtivas; mas também envolve para Marx um tipo de alienação em que os poderes humanos são realizados de um modo deformadoramente unilateral, em contraste com seu ideal do indivíduo versátil que mobiliza uma grande riqueza de talentos. A divisão do trabalho constitui assim outro exemplo do divórcio, na sociedade de classes, entre o individual e o universal, à medida que o potencial completo de nosso ser genérico definha reduzindo-se a alguma função única como o trabalho mecânico do trabalhador de fábrica:

A divisão do trabalho constitui o primeiro exemplo de como, enquanto o homem permanece na sociedade natural, ou seja, enquanto existe uma clivagem entre o interesse particular e o interesse comum, enquanto, por conseguinte, a atividade é dividida não voluntariamente, mas naturalmente, a própria ação humana torna-se um poder estranho oposto a ele, que o escraviza em vez de ser por ele controlado. Pois tão logo a distribuição de trabalho se instaura, cada homem tem uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual ele não pode escapar. Ele é caçador, pescador, pastor ou crítico [a critical critic], e deve continuar a sê-lo se não quiser perder seus meios de vida; ao passo que na sociedade comunista, onde ninguém possui uma esfera de atividade exclusiva, mas todos podem se aperfeiçoar em qualquer uma, a sociedade regula a produção geral e assim me torna possível fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar pela manhã, pescar à tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica depois do jantar, de acordo com minhas inclinações, sem nunca me tornar pescador, pastor ou crítico. [IA]

 Famosa ou famigerada, esta é uma das poucas especulações francamente utópicas de Marx.

Há inevitavelmente muitos problemas com a ética política de Marx, como acontece com qualquer outro tipo de ética. Seria esta noção de sujeito humano que se forma a si próprio livremente apenas uma versão de espírito mais generoso do modelo patriarcal burguês de homem como esforçado auto-produtor? Seria o ser humano ideal de Marx algum tipo de Prometeu proletário? Em que medida seria esta uma versão de esquerda do ideal burguês de uma ilimitada, fáustica realização de riqueza, que trata o eu como algo que se possui? É possível ver nesta doutrina um ativismo um tanto implacável demais, que subestima o que Wordsworth chamou de “passividade sábia”, e Keats de “capacidade negativa”.  Devemos realizar todos os nossos poderes e capacidades? Que dizer daqueles que parecem mórbidos ou destrutivos? Talvez Marx julgasse que nossos poderes se tornam destrutivos apenas em virtude de serem constrangidos – neste caso, estaria seguramente errado. E como poderíamos discriminar, entre nossas capacidades, as positivas das negativas, se não temos critério algum além deste próprio processo historicamente relativo? A “versatilidade” do desenvolvimento pode parecer a algumas pessoas inferior ao cultivo de um único talento criativo, ou a abnegação mais louvável que a auto-expressão de si.

Algumas destas críticas podem ser rebatidas. Marx, como bom materialista, claramente não acreditava que o autodesenvolvimento humano pudesse ser ilimitado; estava atento às limitações de nossa condição, não menos que a seus potenciais:

O homem é imediatamente um ser natural. Enquanto ser natural e enquanto ser natural vivo, ele é dotado, por um lado, de poderes naturais, poderes vitais, ele é um ser natural ativo… Por outro, enquanto ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que sofre, condicionado e limitado, como os animais e as plantas, ou seja: os objetos de seus impulsos existem fora dele enquanto objetos independentes dele; porém tais objetos são objetos de sua necessidade, objetos essenciais, indispensáveis ao exercício e confirmação de seus poderes essenciais. [MEF]

 Marx pode ter superestimado a produção, porém seguramente não limitou o termo a seu sentido econômico. Ao contrário, considerou o fato de que o capitalismo faz precisamente isto como uma característica espiritualmente empobrecedora. “Produção” para ele é um conceito de grande riqueza, equivalente a “auto-realização”; e nesta medida saborear um pêssego ou deleitar-se com um quarteto de cordas sejam aspectos de nossa auto-realização, tanto quanto construir represas ou fabricar cabides mecanicamente.


Quando a forma burguesa limitada é eliminada, o que é a riqueza a não ser a universalidade, criada por meio da troca universal, das carências, capacidades, prazeres, forças produtivas etc., individuais? O desenvolvimento completo do domínio humano sobre as forças da natureza, tanto as da natureza propriamente dita quanto as da natureza da humanidade? O desenvolvimento absoluto das potencialidades criativas [do ser humano] sem pressuposição alguma a não ser o desenvolvimento histórico prévio, que torna esta totalidade de desenvolvimento, isto é, o desenvolvimento de todos os poderes humanos como tais o fim em si mesmo, não medido segundo um padrão predeterminado? Onde ele não se reproduz numa especificidade, mas produz sua totalidade? Se esforça não para permanecer algo que se tornou, porém é no movimento absoluto do devir? [G]

 Nosso ser genérico é então naturalmente produtivo, preocupado em desenvolver seus poderes transformando o mundo:

A criação prática de um mundo objetivo, a moldagem da natureza inorgânica, é prova de que o homem é um ser genérico consciente, isto é, um ser que trata o gênero como seu próprio ser essencial ou a si próprio como um ser genérico. É verdade que os animais também produzem… Porém eles produzem somente suas próprias necessidades imediatas ou as de sua prole; eles produzem unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; eles produzem apenas quando a necessidade física imediata os compele, enquanto o homem produz mesmo estando livre da necessidade física e produz verdadeiramente apenas assim. [MEF]

 Somos livres então, quando, como artistas, produzimos sem o aguilhão da necessidade física; e esta natureza é para Marx a essência de todos os indivíduos. Ao desenvolver minha própria personalidade individual dando forma a um mundo, estou também realizando o que tenho de mais profundo em comum com os outros, de tal maneira que o ser individual e o ser genérico são em última análise o mesmo. Meu produto é minha existência para o outro, e pressupõe a existência do outro para mim. Esta é para Marx uma verdade ontológica, decorrente do tipo de criaturas que somos; porém é possível para certas formas de vida social introduzir uma cunha entre estas duas dimensões do eu, individual ou coletivo, e isto, na verdade, é o que o jovem Marx chama de alienação. Num sentido, tal fissura já existe, uma vez que faz parte da essência do ser humano o fato de que ele pode objetificar sua própria natureza, tomar distância em relação a ela, e isto está nas raízes de nossa liberdade. Mas numa sociedade de classes, os objetos produzidos pela maioria dos homens e mulheres são apropriados pela minoria que possui e controla os meios de produção; e isto significa que eles não são mais capazes de se reconhecer no mundo que criaram. Sua auto-realização é não mais um fim em si mesma, mas se torna puramente instrumental para o autodesenvolvimento dos outros:

Tal fato significa simplesmente que o objeto produzido pelo trabalho, seu produto, fica oposto a ele como algo estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é trabalho incorporado e tornado material num objeto, é a objetificação do trabalho… Na esfera da economia política, esta realização do trabalho aparece como uma perda de realidade para o trabalhador, a objetificação como uma perda do, e submissão ao, objeto, e a apropriação como estranhamento, como alienação… O trabalho alienado não apenas (1) aliena a natureza do homem e (2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; por causa disso, ele também aliena o homem de seu gênero. Ele transforma sua vida genérica em um meio para manter sua vida individual. [MEF]

 O trabalhador, Marx comenta, sente-se em casa apenas quando não está trabalhando. Assim, a alienação é um processo múltiplo, que divorcia o trabalhador da natureza de seu produto e do próprio processo de trabalho, de seu próprio corpo, mas também da atividade vital coletiva que faz dele um verdadeiro ser humano. “Em geral”, escreve Marx, “a proposição de que o homem é alienado de seu ser genérico significa que ele é alheado dos outros, e que todos estão alienados da essência do homem“.  [MEF]

 Ao sofrer uma “perda de realidade”, os produtores ironicamente fortalecem com seu trabalho o próprio regime responsável por isso:

Quanto mais o trabalhador se empenha em seu trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo estranho, objetivo, que ele cria contra si próprio, tanto mais pobre se tornam ele e seu mundo interior, e menos estes lhe pertencem. Acontece o mesmo com a religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador coloca sua vida no objeto; mas agora ela não mais lhe pertence, mas sim ao objeto. Quanto maior sua atividade, portanto, menos objetos o trabalhador possui. O que o produto de seu trabalho é, ele não é. Portanto, quanto maior este produto, tanto menos ele é. A alienação do trabalhador significa não apenas que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa, mas que existe fora dele, independente dele e estranho a ele, e começa a confrontá-lo como um poder autônomo; que a vida que ele conferiu ao objeto o confronta como algo hostil e estranho. [MEF]

 Os produtos do trabalhador escapam de seu controle, assumem uma autonomia própria, e vêm a exercer o poder quase mágico sobre ele, que Marx mais tarde denominou “o fetichismo das mercadorias”. Uma mercadoria para Marx é um produto que pode ser trocado igualmente por outro porque incorpora a mesma quantidade de trabalho. Como ele explica n’O capital,

Consideremos duas mercadorias, por exemplo, ferro e trigo. As proporções, quaisquer que sejam, em que elas são trocáveis, podem sempre ser representadas por uma equação em que uma dada quantidade de trigo é igualada a certa quantidade de ferro…O que nos diz tal equação? Nos diz que, em duas coisas diferentes – em um quarter de trigo [aprox. 290 litros] e x quintais de ferro [1 quintal (hundredweight, cwt) = aprox. 50 kg] -, existe em quantidades iguais algo comum a ambos. As duas coisas devem, portanto ser iguais a uma terceira, que em si mesma não é uma nem outra. Cada uma delas, no que se refere ao valor de troca, deve ser redutível a esta terceira coisa… Este “algo” em comum não pode ser uma propriedade natural das mercadorias. Tais propriedades são consideradas apenas à medida que afetam a utilidade de tais mercadorias, em que as tornam valores de uso. Mas a troca de mercadorias é evidentemente um ato caracterizado por uma abstração total do valor de uso…Enquanto valores de uso, as mercadorias são, acima de tudo, de diferentes qualidades, mas enquanto valores de troca, elas são apenas quantidades diferentes, não contendo assim átomo algum de valor de uso. Portanto, se não consideramos o valor de uso das mercadorias, a elas resta apenas uma propriedade, a de serem produtos do trabalho. [C.vol1]

 As mercadorias para Marx são, portanto, entidades dúplices vivendo uma dupla vida, uma vez que aquilo que as faz mercadorias é curiosamente independente de suas propriedades materiais. Elas existem unicamente para serem trocadas; e uma mercadoria, a despeito de todas as aparências sensíveis, é exatamente igual a qualquer outra mercadoria que incorpore a mesma quantidade de força de trabalho. Mas uma mercadoria é assim um fenômeno abstrato, que estabelece relações com outras mercadorias de maneira completamente independente da vida concreta de seus produtores:


Uma mercadoria, portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o caráter social do trabalho dos homens aparece a eles como uma característica objetiva estampada no produto deste trabalho; porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio trabalho é apresentada a eles como uma relação social que existe não entre eles, mas entre os produtos de seu trabalho…[A] existência das coisas enquanto mercadorias, e a relação de valor entre os produtos de trabalho que os marca como mercadorias, não têm absolutamente conexão alguma com suas propriedades físicas e com as relações materiais que daí se originam… É uma relação social definida entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. A fim de encontrar uma analogia, devemos recorrer às regiões enevoadas do mundo religioso.

Neste mundo, as produções do cérebro humano aparecem como seres independentes dotados de vida, e entrando em relações tanto entre si quanto com a espécie humana. O mesmo acontece no mundo das mercadorias com os produtos das mãos dos homens. A isto dou o nome de fetichismo que adere aos produtos do trabalho, tão logo eles são produzidos como mercadorias, e que é, portanto inseparável da produção de mercadorias. [Cvol1]

O capitalismo, em resumo, é um mundo em que sujeito e objeto estão invertidos – um domínio em que se é sujeitado e determinado pelas próprias produções, as quais retomam em forma opaca, imperativa, mantendo o poder sobre a existência de cada um. O sujeito humano cria um objeto, o qual se torna então um pseudo-sujeito capaz de reduzir seu próprio criador a algo manipulado. Quando o capital emprega trabalho, em vez de o trabalho empregar o capital, os mortos assumem um poder vampiresco sobre os vivos, uma vez que o próprio capital é trabalho “morto” ou armazenado:

Quanto menos você come, bebe, compra livros, vai ao teatro, sai para beber, pensa, ama, teoriza, canta, pinta, luta esgrima etc., mais você economiza e maior se tornará o tesouro que nem traças nem larvas podem consumir – seu capital. Quanto menos você é, quanto menos você expressa sua vida, mais você tem, maior é sua vida alienada e mais você acumula de sua essência alienada… tudo o que você é incapaz de fazer, seu dinheiro pode fazer por você… [MEF]

 O processo de reificação, em que o animado e o inanimado trocam de lugar e os mortos tiranizam os vivos, é particularmente evidente na “mercadoria universal”, o dinheiro:

Quanto maior o poder de meu dinheiro, mais forte sou. As qualidades do dinheiro são qualidades e poderes essenciais meus, do possuidor. Portanto o que sou e o que posso fazer não são de forma alguma determinados por minha individualidade. Sou feio,  porém posso comprar a mulher mais bela. O que significa que não sou feio, uma vez que o efeito da feiúra, seu poder repulsivo, é destruído pelo dinheiro. Como um indivíduo, sou manco, porém o dinheiro me proporciona vinte e quatro pernas. Logo, não sou manco. Sou um individuo perverso, desonesto, inescrupuloso e estúpido, mas o dinheiro é respeitado, e assim também seu dono. O dinheiro é o bem supremo, e conseqüentemente seu dono também é bom. [MEF]

 O dinheiro, comenta Marx, é “a prostituta universal, o proxeneta universal de homens e povos”, uma espécie de linguagem deturpada em que todas as qualidades humanas e naturais são misturadas e invertidas, e qualquer coisa pode ser magicamente transformada em qualquer outra.

Que a homens e mulheres sejam restituídos seu mundo, seus corpos sensíveis, sua atividade vital e seu ser coletivo, é isso que para Marx significa o comunismo. O comunismo é simplesmente o tipo de estrutura política [Lá vem ele! Nota da velha toupeira] que nos permitiria reapropriar nosso ser confiscado, aqueles poderes alienados de nós pela sociedade de classes. Se os meios de produção fossem coletivamente possuídos e democraticamente controlados, então o mundo que criamos juntos nos pertenceria em comum, e a autoprodução de cada um poderia se tornar parte da autorrealização de todos.


HISTÓRIA

Se Marx é filósofo, é filósofo de quê? Com certeza de nada tão grandioso quanto a “existência humana”, mas também nada tão restrito quanto a economia política. Seu pensamento não pretende ser uma espécie de teoria cósmica que, assim como a religião, destina-se a explicar todas as características da vida humana. É verdade que seu colaborador Friedrich Engels desenvolveu uma teoria extremamente ambiciosa conhecida como materialismo dialético, a qual procura entrelaçar tudo, da física e da biologia à história e à sociedade. Mas os escritos do próprio Marx representam um empreendimento bem mais modesto e restrito, que tem o objetivo de identificar, e trabalhar no sentido de desmontar, as principais contradições sociais que no presente nos impedem de viver o que veríamos como uma vida verdadeiramente humana, em toda a riqueza de nossos poderes corporais e espirituais. Ele tem muito pouco a dizer a respeito do que aconteceria depois, dado que para ele tal processo constituiria o princípio da história humana propriamente dita, que se encontra além de nossa linguagem atual. Tudo o que aconteceu até agora é para ele mera “pré-história” – a sucessão de várias formas de sociedade de classes. E como a obra do próprio Marx pertence a esta época, sendo inevitavelmente dependente de suas formas de pensamento e modelos de vida, não pode, em virtude de sua lógica historicista, tentar pular por cima dela para imaginar alguma forma de utopia. Marx é decididamente hostil a tal utopismo, vendo sua tarefa não como a de traçar modelos para o futuro, mas de analisar e desvendar as contradições reais do presente. Não está em busca de um estado perfeito, uma expressão que seria para ele uma contradição nos termos.

Mas isto não significa que Marx seja apenas um teórico político do presente. As contradições que ele julga nos impedirem de dar início à verdadeira história, em toda sua riqueza, fruição e variedade individual, são para ele parte de uma narrativa muito mais longa. Ele não é, portanto primordialmente um economista político ou sociólogo, ou – como vimos – em primeiro lugar um filósofo. Em vez disso, ele nos oferece uma teoria da própria história, ou, mais precisamente, uma teoria da dinâmica das principais mudanças históricas. Esta filosofia ficou conhecida como  materialismo histórico.

Como então Marx via a história em desenvolvimento? Às vezes se pensa que neste aspecto a noção de classe social é central em sua perspectiva. Porém, Marx não descobriu esta ideia, e ela não constitui seu conceito mais vital. Seria mais precisa a alegação de que a ideia de luta de classes está mais próxima do cerne de seu trabalho: a doutrina segundo a qual as diversas classes sociais existem num estado de antagonismo mútuo em razão de seus interesses materiais conflitantes. Como ele diz no Manifesto comunista: “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe”  [MC]. Porém mesmo este pronunciamento tão abrangente não chega a nos levar ao núcleo de seu pensamento. Pois podemos perguntar por que as classes sociais deveriam viver neste estado de guerra permanente; e a resposta, para Marx, diz respeito à história da produção material.

Seu conceito-chave é o de “modo de produção”, significando uma combinação historicamente específica de certas forças de produção com certas relações de produção.

“Forças” referem-se aos vários meios de produção disponíveis numa sociedade, ao lado da força de trabalho humana. Um tear mecânico ou um computador são forças produtivas, capazes de produzir valor; porém tais forças materiais são sempre inventadas, desenvolvidas e mobilizadas no interior de determinadas relações sociais de produção – para Marx, principalmente as relações entre os que possuem e controlam os meios de produção e os não-proprietários cuja força de trabalho é colocada à disposição daqueles. Numa leitura de Marx, a história progride em virtude de as forças e relações de produção entrarem em contradição entre si:

Em certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou – o que é apenas a expressão jurídica da mesma coisa – com as relações de propriedade no interior das quais elas funcionaram até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, tais relações convertem-se em entraves. Começa então uma época de revolução social. [CCEP, prólogo]

 É por este mecanismo que um modo de produção dá lugar a outro. Para Marx, o primeiro de tais modos é o “tribal”:

Ele corresponde ao estágio não-desenvolvido, no qual um povo vive da caça e da pesca, da criação de animais ou, no estágio mais alto, da agricultura. Neste último caso, ele pressupõe grandes extensões de terra virgem. A divisão de trabalho neste estágio ainda é muito elementar e se resume a mais uma extensão da divisão natural do trabalho existente na família. A estrutura social não passa, portanto, de uma extensão da família: chefes de família patriarcal, abaixo deles os membros da tribo e por fim escravos. [IA]

 A partir daí emerge gradualmente o modo de produção “antigo”,

(...) que resulta principalmente da união de diversas tribos numa cidade por acordo ou conquista, e na qual subsiste a escravidão. Além da propriedade comunal, já se encontra em desenvolvimento a propriedade privada de bens móveis, e mais tarde de imóveis, porém como uma forma anômala subordinada à propriedade comunal. Os cidadãos mantêm o poder somente sobre os escravos que trabalham em sua comunidade, e simplesmente em virtude disso são ligados à forma de propriedade comunal… toda a estrutura da sociedade baseada nesta propriedade comunal, e com ela o poder do povo, decai no mesmo grau em que se desenvolve a propriedade privada particularmente de imóveis. [IA]

Segue-se então o modo de produção feudal:

Como a propriedade tribal e comunal, [a propriedade feudal] é baseada numa comunidade; porém a classe diretamente produtora não é, como no caso da comunidade antiga, formada pelos escravos, mas sim pelos pequenos camponeses servilizados. Tão logo o feudalismo se desenvolve plenamente, nasce também o antagonismo às cidades. A estrutura hierárquica da propriedade da terra e a vassalagem armada associada a ela deram à nobreza poder sobre os servos. Tal organização feudal era, tanto quanto a propriedade comunal antiga, uma associação contra uma classe produtora subjugada, porém a forma de associação e a relação com os produtores diretos eram diferentes graças à diferença nas condições de produção. [IA]

 Ao lado das propriedades feudais rurais surgiram as guildas mercantis nas cidades, com produção em pequena escala e escassa divisão de trabalho. Mas as reformas sociais do feudalismo, com seu sistema de guildas restrito, acaba tolhendo o desenvolvimento da burguesia emergente nas cidades, a qual finalmente rompe estas restrições numa revolução política e libera as forças de produção numa escala épica. Mais tarde, contudo, como classe industrial capitalista plenamente formada, esta mesma burguesia se revela incapaz de continuar a desenvolver tais forças sem gerar desigualdades extremas, depressões econômicas, desemprego, escassez artificial e a destruição do capital. Ela então prepara o terreno para sua própria superação pela classe operária, cuja tarefa é conquistar o controle dos meios de produção e operá-los no interesse de todos:

Tão logo este processo [a ascensão do capitalismo] decompõe suficientemente a velha sociedade de alto a baixo, tão logo os trabalhadores são convertidos em proletários, e seus meios de trabalho em capital; tão logo o modo de produção capitalista se sustenta sobre seus próprios pés, toma nova forma a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados, e, portanto, coletivos, bem como a expropriação ulterior da propriedade privada. O que deve agora ser expropriado já não é o trabalhador autônomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores. Tal expropriação se dá por efeito das leis imanentes da própria produção capitalista, pela centralização do capital. Cada capitalista mata muitos outros. [C vol1]

 O capitalismo, em outras palavras, prepara o caminho de sua própria negação, socializando o trabalho e centralizando o capital:

Paralelamente a esta centralização, ou esta expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolve-se, em escala sempre crescente, a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação técnica consciente da ciência, o cultivo metódico do solo, a transformação dos instrumentos de trabalho em instrumentos de trabalho utilizáveis apenas coletivamente, o processo de tornar mais econômicos todos os meios de produção através de seu uso como meios de produção do trabalho social combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial, e, com isto, o caráter internacional do regime capitalista. [C vol 1]

 É o capitalismo, portanto, que faz existir seu próprio antagonista coletivo – os trabalhadores – dando à luz, numa ironia sardônica, os seus próprios coveiros:

Ao lado da diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, cresce a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degradação, da exploração; mas com isto cresce também a revolta da classe trabalhadora, cada vez mais numerosa e disciplinada, unida, organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave sobre o modo de produção, que surgiu e floresceu junto com e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem finalmente um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O invólucro se rompe. Soa o dobre de finados da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados. [C vol1]

Descrito desta forma, todo o processo da revolução proletária soa inverossímilmente automático. Nesta versão do pensamento de Marx, as classes dominantes ascendem e decaem de acordo com sua capacidade de desenvolver as forças produtivas, e cada modo de produção – o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo – passa por uma mutação transformando-se em outro em virtude de sua própria lógica imanente. Temos aqui uma espécie de versão historicizada da antropologia de Marx: o positivo é o desenvolvimento humano, e o negativo é qualquer coisa que atrapalhe este processo. Mas não é claro como se possa compatibilizar este modelo com as partes da obra de Marx que sugerem que o que é central não são as forças, mas as relações de produção, pois as classes dominantes desenvolvem as forças de produção em seu próprio interesse e suas próprias finalidades de exploração. Uma vez que isto causa privações nas classes subordinadas, a revolução política neste modelo se dá diretamente por meio da luta de classes, não por causa de algum impulso geral trans-histórico de libertar as forças produtivas de seus constrangimentos sociais.  É o conflito de classe que constitui a dinâmica da história, mas um conflito enraizado no processo de produção material.

Marx naturalmente concentra sua atenção, e não apenas em sua obra mais importante, O capital, no modo de produção de sua época. Neste sistema, o trabalhador, que não possui nada além de sua capacidade de trabalho (ou força de trabalho), é forçado a vender tal capacidade ao proprietário de capital, que então o emprega para seu próprio lucro. Os seres humanos em si mesmos são convertidos em mercadorias substituíveis no mercado. O capitalista paga pelo aluguel da força de trabalho do operário nesta troca de mercadorias que conhecemos como salário -sendo este o custo do que o operário necessita para “reproduzir” sua força de trabalho, isto é, os bens necessários para ele se manter vivo e trabalhando. Mas a força de trabalho, uma vez que não é um objeto fixo, mas uma forma de energia e potencial humanos, é um tipo de mercadoria particularmente sem limites e determinações; e ao pô-la em ação, o capitalista é capaz de extrair dele mais valor, sob a forma de bens produzidos e vendidos, que o necessário para pagar o trabalhador. Este processo, que Marx denomina a extração de “mais-valia” da classe operária, é a chave da natureza exploradora das relações sociais capitalistas; porém dado que a troca de salário por trabalho aparenta ser equitativa, esta exploração é necessariamente ocultada pelo próprio funcionamento rotineiro do sistema.

O sistema capitalista, entretanto, é um sistema competitivo, em que cada empresário precisa se esforçar para expandir seu capital, ou então perecer. Um resultado disto, na concepção de Marx, é uma tendência da taxa de lucro cair, levando às famigeradas recessões que têm caracterizado o sistema até agora. As contradições do sistema desta forma se aguçam, e ao lado delas a própria luta de classes, uma vez que interessa ao capital apropriar-se tanto quanto possível dos frutos do trabalho dos operários sob a forma de lucros, e aos operários recuperar tanto quanto possível os proventos de seu trabalho. Para Marx, a única resolução final deste impasse é a revolução socialista, na qual a classe operária expropria o próprio capital, assume o controle coletivo sobre ele, e o coloca a serviço das necessidades de todos em vez do benefício de poucos.

O marxismo não é uma forma de moralismo, que denuncia os capitalistas como vilões e idealiza os operários. Sua meta é em vez disso uma teoria “científica” da mudança histórica, na qual nenhuma classe dominante pode ser considerada inequivocamente positiva ou negativa. Numa interpretação, uma classe é “progressista” se ainda é capaz de desenvolver as forças de produção – o que pode significar que a escravidão era em sua época um modo progressista. Isto ofende claramente nosso sentido de justiça; porém o próprio Marx parece algumas vezes ter considerado conceitos como o de justiça como mera ideologia burguesa mascarando a exploração, ainda que sua obra fosse ironicamente alimentada por um desejo apaixonado de uma sociedade justa. A burguesia pode ser hoje um obstáculo à liberdade, à justiça e ao bem-estar universal; mas em seu apogeu era uma força revolucionária que derrotou seus adversários feudais, legou a seus sucessores socialistas as idéias de justiça e liberdade e desenvolveu as forças de produção até o ponto em que o próprio socialismo pôde se tornar um projeto viável. Pois, sem a riqueza material e espiritual que o capitalismo desenvolveu, o socialismo não seria possível. Um socialismo que precisa desenvolver as forças de produção a partir do zero, sem o benefício de uma classe capitalista que tenha realizado esta tarefa em seu lugar, tende a acabar como a forma autoritária de poder estatal conhecida como stalinismo. E um socialismo que não herda da burguesia o rico legado dos direitos liberais e das instituições cívicas simplesmente reforçará esta autocracia. A burguesia pode ter feito o que fez pelo menos louvável dos motivos, o do lucro individual; porém em conjunto este demonstrou ser um meio notavelmente eficaz de levar as forças de produção até o ponto em que, com sua reorganização socialista, elas poderiam fornecer os recursos para eliminar a pobreza e a privação em todo o mundo.

Mas as conquistas da burguesia revolucionária não foram apenas materiais. Ao conduzir o indivíduo a novos píncaros de desenvolvimento complexo, também produziu uma riqueza humana da qual o socialismo seria permanentemente devedor. O marxismo não trata de excogitar novos e admiráveis ideais para a sociedade, mas sim de perguntar por que os ideais admiráveis que já temos se revelaram estruturalmente incapazes de se realizar para todos. Ele se propõe a criar as condições materiais nas quais isto possa se tornar possível; e uma de tais condições é o fato de que a burguesia é a primeira classe social genuinamente universal, que rompe todas as barreiras paroquiais e gera o tipo de comunicação genuinamente global que pode formar a base de uma comunidade socialista internacional.

Uma teoria verdadeiramente dialética da história das classes se esforça então para apreender seus aspectos emancipadores e opressivos conjuntamente, como elementos de uma única lógica. Marx resume este ponto de vista numa passagem tipicamente eloquente:

Nos dias de hoje, tudo parece grávido de seu contrário. As máquinas, dotadas do maravilhoso poder de abreviar e tornar mais fecundo o trabalho humano, em vez disso o levam à inanição e ao excesso. As fontes de riqueza que aparecem como novidades, por algum estranho e fatídico encantamento, são transformadas em fontes de privação.

Os triunfos da arte parecem ser comprados com a perda de caráter. No mesmo ritmo em que a humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de outros homens ou de sua própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência parece incapaz de brilhar a não ser contra o pano de fundo escuro da ignorância. Todas as nossas invenções e nosso progresso parecem dotar as forças materiais de vida intelectual e embrutecer a vida humana, tornando-a uma força material. Este antagonismo entre, de um lado, a indústria e a ciência modernas, de outro, a miséria e a dissolução; este antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais de nossa época é um fato, palpável, avassalador e incontestável. (The People’s Paper, 1856)



Ironia, inversão, quiasma e contradição se encontram no cerne das concepções de Marx. Ao acumular a maior riqueza que a história jamais presenciou, a classe capitalista o fez no contexto de relações sociais que deixaram a maioria de seus subordinados faminta, desventurada e oprimida. Também fez surgir uma ordem social em que, nos antagonismos do mercado, cada indivíduo é contraposto a outro -em que a agressão, a dominação, a rivalidade e a exploração imperialista são a ordem do dia, em vez da cooperação e da camaradagem. A história do capitalismo é a história do individualismo possessivo, em que cada ser humano pertencente a si próprio é isolado dos outros em seu espaço solipsista, vendo seus semelhantes apenas como instrumentos a serem usados para promover seus apetites. Não que Marx se oponha ao individualismo, querendo afogá-lo em alguma coletividade sem face. Ao contrário, sua meta é restabelecer as ligações coletivas entre homens e mulheres no nível de seus poderes individuais plenamente desenvolvidos. Como ele diz no Manifesto comunista, o livre desenvolvimento de cada um deve se tornar a condição para o livre desenvolvimento de todos. E isto pode ser alcançado com a abolição da propriedade privada.

Há inevitavelmente alguns problemas com esta teoria audaciosa e imaginativa. Para começar, não fica bem claro o que Marx quer dizer com classe social. É um gracejo irônico entre seus comentadores que exatamente quando ele está prestes a examinar o conceito detalhadamente, o trabalho se interrompe. Porém, é claro que ele concebe classe primordialmente como uma categoria econômica: ela denota, aproximadamente, aqueles que se encontram na mesma relação com o modo de produção, de tal forma que, por exemplo, pequenos produtores independentes tais como camponeses e artesãos podem ser classificados juntos como “pequenos burgueses”, enquanto aqueles que precisam vender sua força de trabalho são proletários. Será que isto então situa tanto uma estrela de cinema milionária quanto um lixeiro na classe trabalhadora? Ou deveriam fatores políticos, culturais e sociais entrar na definição da categoria? Quais são as relações ou não-relações entre classe social e outros agrupamentos humanos nacionais, étnicos ou sexuais aos quais Marx dedicou muito menos atenção? Deve uma classe ter consciência de si própria enquanto tal para ser, propriamente falando, uma classe? Esta é uma questão que Marx considera em sua discussão do campesinato francês no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte:

Os pequenos camponeses formam uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes, mas sem estabelecer relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros em vez de colocá-los em interação… Na medida em que milhões de famílias vivem em condições econômicas de existência que opõem seu modo de vida, seus interesses e sua cultura aos das outras classes, elas formam uma classe. Na medida em que há entre estes pequenos camponeses apenas uma interconexão local, e a identidade de seus interesses não dá origem a uma comunidade, nem a uma ligação nacional, nem a uma organização política, eles não formam uma classe. [Brumário]

 Quanto à teoria da mudança histórica: se Marx realmente sustenta que o objetivo é sempre e em todo lugar desenvolver as forças produtivas, então ele é vulnerável a uma crítica ecológica. Pode-se perguntar também se ele considera sua dialética histórica como inevitável. No Manifesto comunista ele declara que a queda da burguesia e a vitória do proletariado “são igualmente inevitáveis“, e n’O capital fala das leis do capitalismo como “atuando com necessidade de ferro em direção a resultados inevitáveis”  [C vol1, prólogo]. Em outras passagens, contudo, Marx é sarcástico em relação à e de que existe uma entidade chamada História que opera em registro determinista por meio dos seres humanos:

A história não faz nada, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo… [SF]

 Ele também rejeita a idéia de que os diversos modos de produção históricos devam seguir-se uns a outros de maneira rigidamente determinada. Também não parece pensar que as forças produtivas estejam, sempre e inexoravelmente se expandindo. De qualquer forma, se a derrubada do capitalismo é inevitável, não deveria a classe trabalhadora simplesmente esperar sentada por este evento, em vez de se organizar para fazê-lo acontecer de forma política? Pode-se alegar, como Marx parece ter feito, ser inevitável que a classe trabalhadora tome consciência de sua condição e com o intuito de alterá-la, de tal modo que sua ação “livre” é de alguma forma inserida na narrativa determinista mais ampla. Alguns cristãos tentaram de maneira análoga resolver a aparente discrepância entre o livre-arbítrio e a providência divina. Mas, na prática, quando está analisando situações políticas determinadas, Marx parece acreditar que a revolução política depende da luta de forças sociais em disputa, cujo resultado não é em sentido algum historicamente garantido. Existem, é certo, leis históricas; porém elas são o resultado da ação humana combinada, não de algum destino grandiosamente independente dela. Como Marx expressou numa passagem famosa do Dezoito Brumário:

 
Os homens fazem sua própria história, porém não a fazem da maneira como bem entendem; não a fazem em circunstâncias de sua escolha, mas sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos… A revolução social do século XIX não pode extrair sua poesia do passado, só do futuro. Não pode iniciar sua tarefa sem antes ter se livrado de todas as superstições relativas ao passado. As revoluções anteriores tiveram de lançar mão de rememorações da história antiga para se iludir com relação a seu próprio conteúdo. A fim de atingir seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. [Brumário]

 POLÍTICA

Se Marx é de fato algum tipo de filósofo, ele se distingue da maioria de tais pensadores por considerar suas reflexões, por mais abstrusas que sejam, em última análise, práticas, estando inteiramente a serviço de forças políticas reais, e na verdade como um tipo de força política em si mesma. Esta é a celebrada tese marxista da unidade entre teoria e prática – embora seja possível acrescentar que um objetivo da teoria de Marx é chegar a uma situação social em que o pensamento não precisaria ser simplesmente instrumental, articulado com algum fim particular, podendo em vez disso ser usufruído como um prazer em si mesmo.

A doutrina política de Marx é revolucionária – “revolução” sendo para ele definida menos pela velocidade, pelo caráter repentino ou pela violência do processo (embora ele pareça pensar que a construção do socialismo envolve uma força insurrecional), que pelo fato de que ela passa pela expulsão de uma classe possuidora e sua substituição por outra. E este é um processo que pode claramente requerer um grande espaço de tempo para ser levado a efeito. Podemos observar aqui a característica peculiar do socialismo: o fato de que ele envolve a chegada ao poder pela classe trabalhadora, que ao fazer isto cria as condições para a abolição de todas as classes. Uma vez sendo os meios de produção coletivamente possuídos e controlados, as próprias classes finalmente desaparecerão.

Todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram consolidar o status adquirido sujeitando toda a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem se apoderar das forças produtivas sociais a não ser abolindo o modo de apropriação a elas correspondente, e com isto, também todos os modos anteriores de apropriação. Eles nada têm de seu para salvaguardar e consolidar; sua missão é destruir todas as seguranças e garantias da propriedade privada até agora existentes. [MC]

 Ou como Marx se expressa na linguagem de seus escritos de juventude:

Deve ser formada uma classe com cadeias radicais, uma classe na sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil, uma classe que é a dissolução de todas as classes, uma esfera da sociedade que, possui um caráter universal porque seus sofrimentos são universais, e que não reivindica uma compensação particular porque a injustiça que lhe foi feita não é uma injustiça particular, mas a injustiça em geral. Deve ser formada uma esfera da sociedade que não reivindica um status tradicional, mas apenas um status humano… Esta dissolução da sociedade, como uma classe particular, é o proletariado. [CFDH]

Se o proletariado é a última classe histórica, é porque sua chegada ao poder no que Marx chama de “ditadura do proletariado” é o prelúdio da construção de uma sociedade na qual todos estarão na mesma relação com os meios de produção, como seus donos coletivos. “Trabalhador” não mais significa ser membro de uma classe particular, mas simplesmente todos os homens e mulheres que contribuem para produzir e manter a vida social. A primeira fase da revolução anticapitalista é conhecida por Marx como o socialismo, e não é uma fase que envolva completa igualdade. Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais” herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais. Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um. Ele atua assim entre outras coisas como uma forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal. No fim, ao próprio Marx interessa mais a diferença que a igualdade. No socialismo, continua sendo um fato que

...um homem é superior a outros física ou mentalmente, e assim fornece mais trabalho no mesmo tempo, ou pode trabalhar por mais tempo; e, para servir como medida, o trabalho deve ser definido por sua duração ou intensidade, caso contrário deixa de constituir um padrão de medida. Tal direito igual é um direito desigual para o trabalho desigual. Não reconhece diferenças de classe, uma vez que cada homem é um trabalhador tanto quanto qualquer outro, mas reconhece tacitamente privilégios desiguais. É, por conseguinte um direito de desigualdade em seu conteúdo, como todo direito. Por sua própria natureza, o direito só pode consistir na aplicação de um padrão igual; porém indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos se não fossem desiguais) são mensuráveis apenas por um padrão igual na medida em que são considerados de um ponto de vista igual, apreendidos por um só aspecto determinado, por exemplo, no caso presente, enquanto forem considerados apenas como trabalhadores e nada mais, sendo tudo o mais ignorado. Além disso, um trabalhador é casado, outro é solteiro; um tem mais filhos que outro, e assim por diante. Desta maneira, com um desempenho igual no trabalho, e, portanto com uma participação igual no fundo social de consumo, uns receberão efetivamente mais que outros, uns serão mais ricos que outros etc. Para evitar todos estes defeitos, o direito, em vez de ser igual, teria de ser desigual. [CPG]

O socialismo, portanto, não propõe nenhum nivelamento absoluto dos indivíduos, mas envolve um respeito por suas diferenças específicas, e permite pela primeira vez que tais diferenças se realizem. É desta maneira que Marx resolve o paradoxo do individual e do universal: para ele, o último termo significa não algum estado do ser supra-individual, mas simplesmente o imperativo de que cada um deva estar incluído no processo de desenvolver livremente suas identidades pessoais. Porém, enquanto homens e mulheres ainda precisarem ser recompensados de acordo com seu trabalho, as desigualdades inevitavelmente persistirão. O estágio mais desenvolvido da sociedade, contudo, chamado por Marx de comunismo, desenvolverá as forças produtivas até um ponto de abundância tal que nem a igualdade nem a desigualdade estarão em questão. Em lugar disto, homens e mulheres simplesmente retirarão do fundo comum de recursos o que quer que satisfaça suas necessidades:

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, e com ela também a antítese entre o trabalho mental e o físico; quando o trabalho houver se tornado não um meio de vida, mas a necessidade fundamental da vida; quando as forças produtivas tiverem crescido com o desenvolvimento geral do indivíduo; quando todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente – só então o horizonte estreito do direito burguês será completamente ultrapassado, podendo a sociedade inscrever em suas bandeiras: “De cada um de acordo com suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades!” [CPG]

 Na sociedade comunista, estaríamos livres da importunidade de classe social e, em vez disto, disporíamos de lazer e energia para cultivar nossas personalidades de qualquer maneira que pudéssemos escolher, desde que respeitado o preceito de que a todos os outros seria permitido fazer o mesmo. O que distingue este objetivo político mais nitidamente do liberalismo é o fato de que, uma vez que para Marx uma expressão de nosso ser individual é também uma realização de nosso ser genérico, este processo de explorar e desenvolver a vida individual seria levado a cabo reciprocamente, por meio de laços mútuos, em vez de em isolamento esplêndido. O outro é visto por Marx como o meio para minha própria realização, em lugar de, como no melhor dos casos, um mero co-empresário no projeto, ou no pior como um obstáculo ativo para minha realização. A sociedade comunista também direcionaria as forças produtivas legadas a ela pelo capitalismo para a meta de abolir tanto quanto possível todo trabalho degradante, libertando desta forma homens e mulheres da tirania da labuta e permitindo a eles engajarem-se no controle democrático da vida social como “indivíduos unidos” agora responsáveis por seus próprios destinos. No comunismo, homens e mulheres podem recuperar seus poderes alienados e reconhecer o mundo que criam como seu depurado de sua imobilidade espúria.

Mas a revolução socialista requer um agente, e este Marx descobre no proletariado. Por que o proletariado? Não porque seja espiritualmente superior às outras classes, e não necessariamente porque seja o mais oprimido dos grupos sociais. Se fosse assim, os vagabundos, excluídos e indigentes – o que Marx um tanto devastadoramente chamava de “lumpen-proletariat” – seriam melhores. Pode-se alegar que é o próprio capitalismo, não o socialismo, que “seleciona” a classe operária como o agente da mudança revolucionária. É a classe que mais pode se beneficiar da abolição do capitalismo, e que é suficientemente habilidosa, organizada e bem situada para desempenhar tal tarefa. Mas a tarefa da classe operária é levar a cabo uma revolução específica – a revolução contra o capitalismo; e não está assim em sentido algum necessariamente em competição com outros grupos radicais – digamos, feministas, nacionalistas ou militantes étnicos – que precisam completar suas próprias transformações particulares, idealmente em aliança com aqueles mais explorados pelo capitalismo.

Que forma tal sociedade assumiria? Seguramente não a de uma ordem social dirigida pelo Estado. O Estado político para Marx pertence à “superestrutura” reguladora da sociedade: é ele próprio um produto da luta de classes em vez de estar sublimemente além deste conflito, ou consistir em alguma resolução ideal dele. O Estado é em última análise um instrumento da classe dirigente, uma maneira de assegurar sua hegemonia sobre as outras classes; e o Estado burguês em particular cresce a partir da alienação entre o indivíduo e a vida universal:

A partir da própria contradição entre o interesse do indivíduo e o da comunidade, este assume uma configuração autônoma enquanto Estado, separada dos interesses reais do indivíduo e da comunidade, e ao mesmo tempo como uma vida coletiva ilusória, porém sempre tendo por base concreta os laços reais existentes em qualquer agregado familial ou tribal – tais como a consanguinidade, a língua, a divisão de trabalho em grande escala, e outros interesses – e especialmente, como veremos em detalhe mais tarde, nas classes, já determinadas pela divisão do trabalho, que se destacam em cada agrupamento humano desse tipo e das quais uma domina todas as outras. Segue-se disto que todas as lutas dentro do Estado, a luta entre democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., são apenas as formas ilusórias nas quais se trava a verdadeira luta entre as diferentes classes. [IA]

 Marx nem sempre adotou um ponto de vista tão vigorosamente instrumentalista do Estado em suas análises detalhadas de conflitos de classe; mas estava convencido de que sua verdade, por assim dizer, está fora de si mesmo, e além do mais o vê por si só uma forma de alienação. Cada cidadão individual alienou ao Estado parte de seus poderes individuais, que assumem então uma força determinante sobre a existência social e econômica cotidiana que Marx chama “sociedade civil”. A genuína democracia socialista, em contraste, reuniria estas partes gerais e individuais de nós mesmos, permitindo-nos participar de processos políticos gerais como indivíduos concretamente particulares – no local de trabalho assim como na comunidade local, por exemplo, em vez de cidadãos abstratos da democracia representativa liberal. A visão final de Marx parece assim algo anarquista: a de uma comunidade cooperativa formada pelo que denomina “associações livres” de trabalhadores, que estenderiam a democracia à esfera econômica enquanto fazem dela uma realidade na esfera política. Foi a este fim – que não é, afinal de contas, tão sinistro ou alarmante – que ele dedicou não apenas seus escritos, mas uma boa parte de sua vida ativa.


SIGLAS DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TF - Teses sobre Feuerbach

CFDH - Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

IA - Ideologia Alemã

MC - Manifesto Comunista

MEF - Manuscritos Econômico–Filosóficos de 1844

C - O Capital, 1, 2

CCEP - Contribuição à Crítica da Economia Política

QJ - A Questão Judaica

SF - A Sagrada Família

G - Grundrisse

Brumário - O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte

CPG - Crítica ao Programa de Gotha






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