quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Noções básicas de materialismo histórico

 Karl Marx, influenciado pelos filósofos alemães Feuerbach e Hegel, criou um método de análise da realidade, o materialismo histórico, que parte da seguinte constatação:

''Para viver, é necessário, antes de mais nada, beber, comer, ter  moradia, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria material; trata-se de um fato histórico, de uma condição fundamental de toda a história que é necessário hoje, tanto quanto há milhares de anos, executar, dia a dia, hora a hora, a fim de manter os humanos vivos.'' (A Ideologia Alemã)

 Para realizar essa produção da vida material, são necessários alguns fatores:

- Os recursos naturais e equipamentos que são usados na produção, aos quais chamamos meios de produção;
- Energia humana ou animal que é aplicada sobre esses meios de produção, a chamada força de trabalho;

 Meios de produção e força de trabalho, juntamente com as técnicas de produção, compõem as forças produtivas.

 Ao empregarmos força de trabalho sobre os meios de produção, realizamos trabalho e geramos produto. As formas nas quais essa produção é realizada, as chamadas relações de produção, variam muito no decorrer da História, e dependem do grau de desenvolvimento das forças produtivas. Na antiguidade, por exemplo, a propriedade dos meios de produção era comunal e estatal, fruto da união de vários tribos em única cidade, e a força-de-trabalho vinha da mão-de-obra escrava. No feudalismo, surgiu a propriedade feudal ou estamental, e a força de trabalho vinha do campesinato servil. No moderno capitalismo, que surgiu do comércio urbano da Idade Média e cuja produção principal não é mais agrícola e sim mercantil, a propriedade dos meios de produção é privada, e seus donos formam a chamada burguesia. A força-de-trabalho vem, aqui, dos trabalhadores assalariados, os proletários.

 Cada um desses períodos, portanto, apresenta relações de produção específicas -- embora a divisão da sociedade em classes, isto é, grupos com papel determinado na produção, exista em todos eles, assim como a luta entre esses grupos, uma vez que seus interesses divergem --, que compõem a estrutura de uma sociedade. Dessa estrutura formam-se as superestruturas, como o direito, a religião, a moral etc, naturalmente conservadoras e nas quais se expressa a luta de classes citada acima. Quando a estrutura gera necessidades sociais que já não são mais satisfeitas pelas velhas instituições (ou seja, pelas superstruturas), ocorre uma transformação violenta que põe estas abaixo; é a revolução. Lênin, líder da revolução russa, identificou 4 condições mínimas necessárias para a eclosão da revolução:

1 - A ocorrência de dificuldades econômicas para a sobrevivência da ampla maioria social;
2 - A disposição da massa para reagir contra as dificuldades presentes;
3 - A existência de uma vanguarda política organizada;
4 - A divisão política da classe dominante configurando uma crise no vértice da estrutura social.

 À primeira vista, o materialismo histórico pode parecer uma espécie de determinismo, mas não o é; o próprio Marx critica o materialismo determinista nas Teses Ad Feuerbach. Marx defende o conceito de práxis, uma união entre teoria e prática que analisa a realidade para transformá-la.  A obra do próprio Marx - como O Capital - investigava o capitalismo para descobrir os caminhos que levariam este ao seu fim e para politizar os trabalhadores por meio da explicação da explicação de como se dá a exploração dos trabalhadores nesse sistema.

domingo, 23 de novembro de 2014

O socialismo traído


 A História, ao contrário do que desavisados podem pensar, não é uma ciência neutra, meramente descritiva, rigorosamente objetiva. A historiografia - o escrever da história, isto é, a produção de conhecimento histórico - é um campo de guerra de interpretações e sentidos, provindos das mais diversas correntes ideológicas e metodológicas. O artigo abaixo, publicado pela dupla estadunidense Roger Keeran e Thomas Kenny, faz oposição a uma interpretação histórica da queda da URSS que já foi exposta aqui anteriormente.


                                       

O Colapso da URSS revisitado

Roger Keeran e Thomas Kenny [1]

 Em 2004, Thomas Kenny e eu escrevemos o livro O Socialismo Traído – Por Trás do Colapso da União Soviética. [2] Desde esse ano, o livro foi publicado e recenseado na Bulgária, Rússia, Irã, Turquia, Grécia, Portugal, França, Cuba e Espanha. Juntos ou separadamente, os autores participaram em debates sobre olivro na Grécia, Portugal, França e Cuba, e foram publicadas várias críticas em jornais de esquerda. Nesta exposição, Kenny e eu queremos responder a dois tipos de críticas e a uma questão suscitadas pelo livro. Nele desenvolvemos uma explicação do colapso da União Soviética. Usamos as palavras «colapso» e «traído» no título, apesar das possíveis conotações equívocas de ambas as palavras.

 No entanto não se levantaram dúvidas sobre o que tentamos explicar, nomeadamente, a transformação radical que arredou do poder político o Partido Comunista da União Soviética, aboliu a maioria da propriedade estatal, a planificação centralizada e o sistema de serviços sociais, e fragmentou o Estado multinacional. Argumentamos que a União Soviética não colapsou porque o socialismo fracassou. Ao invés, o sistema socialista baseado na propriedade coletiva ou estatal e na planificação central teve um assinalável êxito, em particular do ponto de vista do povo trabalhador. O sistema provou ser capaz de assegurar um crescimento econômico sustentado durante seis décadas, produziu notáveis inovações técnicas e científicas e proporcionou benefícios econômicos e sociais sem precedentes a todos os cidadãos. Ao mesmo tempo defendeu-se permanentemente da invasão externa, da sabotagem e ameaças, e prestou ajuda econômica, auxílio técnico e proteção militar a outras nações em luta pela independência e o socialismo.

 A União Soviética tinha todavia problemas. Alguns relacionados com a ossificação política e ideológica, outros ligados à quantidade e qualidade da produção da economia, outros ainda derivados da confrontação com o imperialismo. No entanto, não foram estes problemas que causaram o colapso do sistema. O que derrubou o socialismo soviético foram as políticas prosseguidas por Mikhail Gorbatchov. Essas políticas baseadas na crença de que os problemas do socialismo poderiam ser resolvidos através de concessões unilaterais ao imperialismo e da incorporação no socialismo de certas ideias e políticas do capitalismo. Estas ideias tinham raízes no discurso político soviético, mas nunca haviam triunfado de forma tão completa como com Gorbatchov.

 O que permitiu que essas ideias ganhassem ascendência foi o fato de nas três décadas anteriores se ter desenvolvido dentro da União Soviética um setor pequeno-burguês, que se enraizou sobretudo na economia privada ilegal. Esta chamada «segunda economia», causou danos à primeira economia, desmoralizou uma parte da população, corrompeu segmentos do partido comunista e do governo,e forneceu uma base social para as políticas prosseguidas por Gorbatchov. Em vez de sarar os problemas do socialismo, as políticas de Gorbatchov provocaram num curto prazo o caos completo na economia e acabaram por derrubar o socialismo.

 O primeiro tipo de críticas

 Algumas críticas alegam que a nossa explicação ignora a causa profunda do colapso, isto é, que a tentativa de construir o socialismo na União Soviética estava condenada desde o início, devido ao insuficiente desenvolvimento das forças produtivas. Não é uma tese nova. Em 1918, Karl Kautski afirmou que a Rússia não estava preparada para o socialismo. A ideia provém de Karl Marx e Friedrich Engels, que acreditavam que só o desenvolvimento completo das forças produtivas no capitalismo criaria as pré-condições para a abolição das classes, e baseia-se numa descrição do atraso da Rússia feita por Engels em 1875.

 De acordo com este ponto de vista, a União Soviética só poderia avançar para o socialismo permitindo primeiro o florescimento da iniciativa privada e o desenvolvimento das forças produtivas através de empresas mistas com capitais estrangeiros. Ambas as coisas teriam acontecido se a União Soviética tivesse continuado a chamada Nova Política Econômica (NEP), introduzida por Lênin em 1921. O corolário desta tese é a alegação de que a União Soviética só poderia ter evitado o colapso se enveredasse pelo caminho atual da China ou do Vietname, o caminho da «economia de mercado com orientação socialista».

 Esta explicação levanta problemas maiores. Não é nada claro que o pensamento de Marx e Engels fosse, neste caso, a linha adequada a seguir pelos comunistas soviéticos nos anos 20. Mesmo que as condições soviéticas pudessem não ser as ideais para construir o socialismo, Marx tinha bem a consciência de que, como disse em 1853, «os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias da sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado». [3]

 Além disso, em 1917, a Rússia não era um país tão atrasado como o descreveu Engels em 1875. Possuía algumas das maiores fábricas do mundo, e dez por cento da sua população trabalhava na indústria. Reconhecidamente, a nova União Soviética continuava a ser essencialmente um país rural. Os líderes soviéticos, como Viatcheslav Mólotov, reconheceram mais tarde que o atraso «afectou negativamente o socialismo».

Fonte: Koenker, D. e Rosenberg, W., "Strikes and Revolution in Russia, 1917", Princeton University Press, 1989.

 Não obstante, aqueles que pensam que o atraso não só afetou negativamente o socialismo como o condenou, defrontam-se com três objecções. A primeira é a de que, por muito atrasada que estivesse no início dos anos 20, a União Soviética não se manteve nessa situação. Tendo como vantagens recursos naturais ricos, uma liderança talentosa e uma população motivada, a União Soviética tornou-se na segunda potência econômica, apenas superada pelos EUA. Em 1984, o economista Harry Shaffer escreveu: «Os Estados Unidos continuam à frente da União Soviética em termos de produção bruta e per capita, de consumo e nível de vida. Mas a União Soviética tem vindo a aproximar-se gradualmente dos Estados Unidos.»

 Assim, mesmo que no início as forças produtivas estivessem num estado de atraso, tal não era certamente a situação em 1985. Apesar de o desenvolvimento industrial da União Soviética ser indiscutível, alguns acreditam, todavia, que o atraso original enfraqueceu fatalmente o sistema. Erwin Marquit afirma que o atraso original levou os soviéticos a recorrerem ao «modelo utópico da economia planificada», e que essa economia planificada «provou ser incapaz de acertar o passo com desenvolvimento tecnológico orientado pelo mercado no Ocidente». Isto não é convincente. Com efeito é precisamente o oposto que é verdadeiro. Foi através da propriedade estatal e da planificação que a economia soviética fez progressos notáveis, não só economicamente mas também tecnologicamente.

 Nos anos 80, o desenvolvimento tecnológico soviético não igualava o dos EUA, mas não estava longe, e aproximava-se gradualmente. Num livro sobre ciência e tecnologia socialista, publicado em 1989, John W. Kiser III afirmou que a ideia do «fosso tecnológico» era um exagero criado pela «crença norte-americana na inferioridade inerente ao sistema soviético». Devido ao facto de a União Soviética não incentivar a comercialização das suas realizações tecnológicas, o Ocidente manteve «uma tendência persistente para as subestimar». Kiser assinala, entre outros, os avanços tecnológicos nos sectores da metalurgia, química, indústria alimentar, biomedicina, alcançados pelos soviéticos e países socialistas do Leste europeu.

 No que respeita à tecnologia computacional, em 1986, a CIA concluiu que existia um fosso entre a União Soviética e o Ocidente em matéria de software e hardware,mas ressalvava que «os soviéticos continuarão a fazer rápidos progressos em termos absolutos», e em dez ou 15 anos «as instituições científicas de topo terão provavelmente equipamentos comparáveis aos melhores que hoje dispõem os laboratórios nacionais dos EUA». Por outras palavras, o fosso tecnológico era pequeno e diminuía. Assim, o atraso tecnológico dificilmente pode explicar deforma convincente o colapso.

 Um segundo problema da explicação baseada no atraso tecnológico é a presunção de que a Nova Política Econômica (NEP), isto é, a promoção do desenvolvimento através da iniciativa privada e do investimento estrangeiro, seria uma opção real. É como afirmar que a Guerra Civil norte-americana poderia ter sido evitada se o Norte permitisse que a escravatura desaparecesse de modo natural. Apesar de esta ideia poder ser apelativa para aqueles que culpam os abolicionistas pela carnificina da Guerra Civil, poucos historiadores (caso haja algum) pensarão que tal era uma opção real em 1860.

 De igual modo, continuar com a NEP não era uma opção real para os soviéticos nos anos 20. Em 1921, os soviéticos viraram-se para a NEP para resolver problemas criados pelas políticas do «comunismo de guerra», em particular o desinteresse dos camponeses, provocado pelo confisco dos cereais. No entanto, em pouco tempo,a NEP gerou os seus próprios problemas.

 Explicando porque é que os soviéticos abandonaram a NEP, o historiador E.H.Carr apontou três graves problemas. O primeiro é a ocorrência da chamada «crise das tesouras» [4] em 1922-23, na qual a forte queda dos preços do trigo provocou penúria de alimentos, desemprego e sofrimento para os camponeses pobres e médios. O segundo foi a constatação por parte da maioria dos líderes soviéticos de que a NEP condenava a União Soviética a um longo período de atraso industrial, perspectiva aterradora e intolerável face à ameaça crescente de inimigos externos. O terceiro foi o açambarcamento da produção pelos camponeses, devido à queda dos preços agrícolas, provocando fome nas cidades. Por estas razões, a dependência do mercado e da iniciativa privada tornou-se insustentável. Assim, foram problemas econômicos reais, bem como opções ideológicas, que levaram os líderes soviéticos a adotar novas políticas e aderir à propriedade estatal e à planificação centralizada. Nestas circunstâncias, chamar «utópica» à passagem para a propriedade estatal e planificação central é absurdo. Esta transição permitiu que a União Soviética se industrializasse num curto espaço de tempo, derrotasse a invasão nazi e reconstruísse rapidamente o país depois da guerra.

 Além disso conseguiu ao mesmo tempo aumentar progressivamente o nível de vida dos trabalhadores soviéticos. Imaginar que a URSS poderia alcançar tais resultados, prosseguindo as problemáticas políticas da NEP, é simplesmente tomar os desejos por realidade.

 A explicação do colapso da URSS pelo atraso comporta um terceiro ponto fraco, que se revela quando examinamos as lições que se podem tirar desta explicação. É inteiramente apropriado avaliar a explicação através das lições que dela decorrem. Por exemplo, se um pastor morre ao cair de um penhasco na montanha, só um louco concluiria que se deve evitar o pastoreio e as montanhas. No entanto, se no momento do acidente, o pastor estivesse bêbado, uma pessoa razoável diria que se deve evitar beber quando se guardam ovelhas em encostas montanhosas.

 No entanto, se no momento do acidente, o pastor estivesse bêbado, uma pessoa razoável diria que se deve evitar beber quando se guardam ovelhas em encostas montanhosas. Alguns dos que subscrevem a tese do colapso da URSS devido ao atraso concluem que a URSS deveria ter evitado a planificação central e seguido o caminho da China atual. Mas esta conclusão é tão sensata como evitar o pastoreio e as encostas montanhosas. No mínimo é irrefletida. Nem mesmo os próprios chineses tiram esta conclusão do colapso da União Soviética. Segundo afirma Arthur Waldron, «hoje, oficialmente, a China considera que nada de profundo ou fundamental estava errado na União Soviética, mesmo na segunda metade dos anos 80. De acordo com o discurso oficial, a falência da União Soviética continua a não ser atribuível a um amplo fenômeno sistêmico mas, pelo contrário, à falência muito específica do Partido Comunista da União Soviética.»

 Além disso, saber para onde conduziria em última instância a via chinesa e o que tal significaria para a classe operária, são questões que permanecem em aberto. A curto prazo, a via chinesa produziu crescimento econômico e aumentou os rendimentos da população urbana. No entanto, desde 2008, o declínio das taxas decrescimento econômico e as dificuldades causadas à economia chinesa pela estagnação do mercado mundial levantam dúvidas sobre a viabilidade futura deste modelo. Segundo o New York Times, em Março deste ano, o crescimento da China «desacelerou para o nível mais baixo em mais de uma década».

 Em simultâneo, a classe operária chinesa está a pagar um preço elevado por uma via que se afasta progressivamente dos objetivos do socialismo. Durante a última década o desemprego não oficial nas cidades esteve sempre acima dos oito porcento. A parte do capital e investimento estrangeiros no total das vendas da China passou de 2,3 por cento em 1990 para 31,3 por cento em 2000. Como o investimento direto na China (124 mil milhões de dólares em 2011) tem vindo acrescer anualmente, e apenas é superado pelo investimento estrangeiro nos Estados Unidos, a percentagem do capital estrangeiro é hoje inquestionavelmente maior do que em 2000. De resto, como constata um estudo recente, entre «os resultados inevitáveis do desenvolvimento capitalista da China», assinala-se o «aumento do desemprego, da desigualdade e da insegurança; cortes nos cuidados de saúde e educação pública; agravamento da opressão das mulheres; marginalização da agricultura; multiplicação das crises ambientais». Na medida em que a economia de mercado com orientação socialista é questionável enquanto via para o socialismo, também é questionável a conclusão que se retirou do colapso da URSS.

 Em suma, a tese do atraso deve ser rejeitada por três razões. Primeiro, porque as forças produtivas da União Soviética não estavam subdesenvolvidas em 1985, por maior que fosse o seu atraso em 1917. Segundo, porque esta tese implica que que a União Soviética deveria e poderia ter continuado a NEP. Esta ideia era insustentável à época e completamente fantasiosa em retrospectiva. Terceiro, a hipótese de a via chinesa para o socialismo ser mais fiável do que a soviética continua por demonstrar.

O segundo tipo de críticas

 Um segundo tipo de críticas ao nosso livro surge a propósito da abordagem a Iossif Stálin. Para alguns críticos, o facto de não se ter denunciado Stálin como um paranoico, um criminoso, um anti-semita, um demônio, um ditador e um assassino de massas, constitui uma falha fatal. Alguns críticos só ficaram satisfeitos se subscrevêssemos o que Domenico Losurdo chama de «uma lenda negra». Para eles, o facto de não termos condenado a crueldade de Stálin constitui uma omissão imperdoável. A estes gostaríamos de responder como Lênin respondeu a Máxime Górki, quando este manifestou preocupação sobre «a crueldade das táticas revolucionárias». Lênin ripostou: «Que quer você? (…) Será possível agir humanamente num combate com tal ferocidade sem precedentes? Haverá aqui lugar à brandura e à generosidade? Estamos sob bloqueio da Europa, privados da esperada ajuda do proletariado europeu, vemos por todos os lados a contra-revolução trepar contra nós como um urso. Que devemos fazer? Não devemos, não temos o direito de lutar e resistir? Desculpe, mas não somos tolos. (…) Com que critério avalia a quantidade de golpes necessários e excessivos no combate?». [5]

 A verdade é que não fazemos uma avaliação global de Stálin, porque consideramos que era um assunto demasiado importante para ser tratado de forma superficial num estudo dedicado a um tema diferente. Como qualquer historiador, levantamos uma questão específica – neste caso, as causas do colapso da União Soviética – e limitamo-nos a tentar responder a esta questão. Tratamos as ideias de Stálin e as suas políticas apenas na medida em que se relacionavam com a nossa exposição.

 Mas porquanto a crítica à nossa abordagem de Stálin está ligada à nossa explicação do colapso, merece uma resposta. Aqui temos de fazer uma distinção. Como é sabido, existe uma corrente de pensamento, que remonta aos anos 20 e se estende até ao presente, segundo a qual a União Soviética entrou em declínio inexorável desde que rejeitou as ideias de Trótski, sobre a necessidade de prosseguir a revolução permanente ao nível mundial e a inutilidade de construir o socialismo num só país. Deste ponto de vista, a União Soviética não construiu o socialismo, e o seu colapso representou apenas uma nota de rodapé ao exílio de Trótski. Só aqueles que aceitam estas premissas sobre a importância de Trótski e a ausência de socialismo na União Soviética podem ficar satisfeitos com a explicação trotskista da história soviética.

 Todavia há outras visões sobre Stálin e o seu papel no colapso da União Soviética. Uma dessas visões sustenta que o colapso da URSS resultou das «deformações stalinistas», uma espécie de efeito retardado das políticas de Stálin. Esta tese reconhece que a União Soviética construiu o socialismo, baseado na propriedade pública e na planificação, que funcionou bem proporcionando crescimento econômico, defesa militar, emprego, segurança econômica, cuidados de saúde, educação e um nível cultural elevado para os trabalhadores. Não obstante, a luta contra o seu próprio atraso e contra as ameaças internas e externas, bem como outros desafios, conduziram a deformações antidemocráticas. Estas deformações manifestaram-se no «culto da personalidade, na sujeição autoritária de toda a atividade social à disciplina e controlo do PCUS, e na subordinação de todo o pensamento e práticas científicas e culturais à ideologia política». [6] 

 De acordo com esta visão, a economia planificada não constituiu um problema.O problema residia antes no legado do autoritarismo stalinista. O autoritarismo de Stálin teria minado as tentativas de descentralizar o controlo e a responsabilidade, coarctado a iniciativa e impedido a realização do potencial da economia socialista. 

 Qualquer pessoa minimamente familiarizada com a historiografia ocidental dificilmente estranhará que alguns autores culpem Stálin pelo colapso da União Soviética, uma vez que toda uma série de outros lhe atribuem a responsabilidade por praticamente todas as calamidades do século XX. 

 Uma figura tão complexa como Stálin, líder de um vasto país que atravessou numerosas crises durante um prolongado espaço de tempo, estava destinada a deixar um legado complicado. Assim, pode-se facilmente admitir a existência dos problemas referidos por aqueles que sustentam a teoria das deformações de Stálin. Por exemplo, na economia planificada, onde a natureza e a dimensão da produção são definidas a partir de cima, existe o problema endêmico da asfixia da iniciativa e da responsabilidade em baixo. [7]

 A União Soviética debateu-se com este problema durante anos, e Cuba debate-se hoje com ele. Este problema não resulta apenas de Stálin. Por seu turno, sem lhe chamarmos «deformações stalinistas»,reconhecemos que a dimensão e os métodos da repressão «deixaram inquestionavelmente uma herança de ressentimento, timidez, servilismo, remorso,e sabe-se lá que mais».

 No entanto a história não acaba aqui. Ao avaliar-se o legado de Stálin deve-se distinguir as apreciações morais e políticas – ou seja, se determinadas atitudes e políticas foram boas ou más, justificadas ou injustificadas, positivas ou negativas –das apreciações históricas sobre os seus efeitos e consequências. Ambas são legítimas, mas a questão que temos perante nós é matéria de apreciação histórica. Ou seja: podem efetivamente as políticas de Stálin ser relacionadas com o colapso da URSS? Honestamente, aqueles que defendem a tese das deformações de Stálin pouco fizeram para levar a discussão do campo moral para o da explicação histórica. Stálin deixou uma herança contraditória no que respeita ao autoritarismo e democracia. Aqueles que subscrevem a tese das deformações de Stálin apenas vêem um lado, afirmando que Stálin minou a democracia socialista, desmoralizou e desmobilizou o povo soviético, e que isso, em última instância, socavou a eficiência e a produtividade do sistema socialista, conduzindo-o, a partir daí, ao colapso. Mas onde está a prova desta desmoralização e desmobilização?

 As grandiosas realizações do povo soviético, entre os anos 30 e os anos 50, a coletivização da agricultura, a rápida industrialização, o aumento do nível educacional e cultural do povo, a derrota da invasão de Hitler, a reconstrução do país em quatro anos, depois da devastação da guerra, dificilmente traduzem o trabalho de uma população desmoralizada e desmobilizada. Bem pelo contrário. Estas realizações exigem uma participação popular ativa. Aliás, um olhar sóbrio sobre o legado de Stálin tem de reconhecer que existem nele elementos de democracia e de participação popular, bem como de autocracia e repressão. A Constituição Soviética de 1936 simboliza esta herança ambígua. 

 Por um lado, apesar das promessas democráticas da Constituição, a União Soviética permaneceu um Estado em que o poder se concentrava no partido comunista e, de uma forma crescente, no seu líder, onde as nomeações para cargos oficiais e outras se faziam a partir de cima, e onde outras instituições, incluindo os sovietes e os sindicatos, tinham, no melhor dos casos, uma função consultiva.

 Por outro lado, a Constituição representou uma tentativa, pela primeira vez na história, sob condições favoráveis, de dar um significado à ideia da democracia socialista. A Constituição foi o resultado de dois anos discussão, em que largos segmentos dos trabalhadores, camponeses e outras camadas foram envolvidos num amplo debate nacional do projeto de documento, que foi seguido de um referendo nacional. A Constituição alargou os direitos democráticos dos cidadãos soviéticos, levantando as restrições eleitorais aos indivíduos associados ao regime tsarista e, ao mesmo tempo que consagrou o papel exclusivo do partido comunista, também introduziu as candidaturas múltiplas, o sufrágio secreto e as eleições diretas. Partindo das constituições burguesas com uma perspectiva revolucionária, a Constituição soviética instituiu direitos econômicos, onde se incluíram: o direito ao emprego, férias pagas anuais, assistência médica gratuita, ensino gratuito até ao sétimo ano inclusive, assistência estatal às mulheres com muitos filhos e mães solteiras, licença de maternidade totalmente paga e acesso às maternidades, enfermarias e jardins-de-infância. [8]

 A Constituição de 1936 refletiu ainda um outro legado democrático, designadamente a política soviética para as minorias nacionais. O historiador Terry Martin caracterizou a União Soviética como «o primeiro império do mundo com ação positiva». O que Martin quis dizer com isto foi que a União Soviética «criou não só dezena e meia de grandes repúblicas nacionais, mas também dezenas de milhares de territórios nacionais espalhados por toda a vastidão do país. Novas elites nacionais foram instruídas e promovidas para cargos de liderança no governo, escolas e empresas industriais desses novos territórios. Em cada território, a língua nacional adquiriu estatuto de língua oficial do governo. Em dezenas de casos isso implicou a criação de uma língua escrita, que não existia. O Estado soviético financiou a produção em massa de livros, revistas, jornais,filmes, óperas, museus, música tradicional e outras produções culturais em línguas não russas. Nada de comparável tinha sido tentado anteriormente (…) e nenhum Estado multiétnico igualou ulteriormente a escala da ação positiva soviética.» [9] Segundo um estudo de opinião, realizado em 1950-51 pelo Harvard Interview Project, que abrangeu centenas de cidadãos soviéticos, «a maioria esmagadora» dos inquiridos sobre a Constituição de 1936 concordou que as garantias estabelecidas sobre a igualdade das nacionalidades correspondiam de fato à realidade. [10] A ambiguidade do legado autocrático e democrático de Stálin até se manifesta nas repressões dos anos 30. A campanha contra os trotskistas e sabotadores em 1937, que conduziu milhões à prisão e milhares à morte, correspondeu a um movimento de massas lançado nos sindicatos e nos locais de trabalho pelo alargamento da democracia. O líder dos sindicatos, Nikolai M. Chvérnik, [11] lançou este movimento no sentido de aplicar nos sindicatos os direitos consagrados na Constituição de 1936, ou seja, eleições secretas com múltiplos candidatos, um maior envolvimento das bases e uma maior prestação de contas por parte das direções sindicais. Este movimento estava de mãos dadas com a campanha contra o culto dos líderes, pela erradicação dos dirigentes corruptos, dos oposicionistas dissimulados e outros «inimigos do povo», que desviavam fundos dos sindicatos, violavam as normas de segurança, sabotavam habitações, serviços sociais e a produção. Em resultado deste levantamento a partir de baixo, no final de 1937, «mais de um milhão e 230 mil pessoas foram eleitas em 146 sindicatos e em centenas de milhares de organizações sindicais e comités de empresa (…) O resultado final das eleições traduziu-se numa mudança radical de quadros. Mais de 70 por cento dos antigos comités de fábrica, 66 por cento dos 94 mil presidentes de comités de fábrica e 92 por cento dos 30 723 membros dos comités plenários regionais foram substituídos». [12] O que aconteceu nos sindicatos e locais de trabalho em 1937 foi literalmente um movimento democrático a partir de baixo para afastar e punir determinados líderes sindicais. A historiadora Wendy Goldman chamou-lhe uma «repressão democrática», e notou que esta «repressão não constituiu um ato contra o povo soviético realizado por uma “entidade” maléfica, mas foi ativamente apoiada e difundida pelo próprio povo em todas as instituições».

 Em resumo, se olharmos objetivamente para o legado de Stálin, não vemos ligações diretas entre Stálin, o autoritarismo, a desmobilização popular e o colapso da URSS. Tanto no enunciado da Constituição de 1936 como na política das nacionalidades e no movimento de democratização dos sindicatos de 1937, pelo menos, ao contrário de desmobilizar, Stálin mobilizou as massas. Aliás, se a políticas de Stálin tivessem tido o efeito de desmobilizar e desmoralizar o povo soviético, dificilmente a sua morte seria motivo de tão grande consternação, nem se esperaria que passados 50 anos a sua personalidade continuasse a ser venerada. No entanto, é precisamente isso que as sondagens mostram. [14] Em resumo, pode admitir-se com facilidade que o legado democrático de Stálin é ambíguo. No entanto, só uma visão muito unilateral e distorcida de Stálin poderá concluir que as «deformações» de Stálin desmobilizaram politicamente as massas trabalhadoras a tal ponto que foram a causa principal do colapso da URSS. 

Uma terceira reação

 A terceira reação ao nosso livro não é propriamente uma crítica, mas antes uma pergunta, colocada nos seguintes termos: por que razão o partido comunista e a classe operária soviética não se opuseram às políticas de Gorbatchov, sublevando-se em defesa do socialismo? No livro abordamos esta questão (pp. 267-273). É certo que o fato de a resistência das bases não ter sido grande, nem maior o seu êxito, constitui o aspecto mais perturbador em todo o processo da dissolução da União Soviética. Mas por muito perturbador que seja, este fato em si e por si não permite saltar para a conclusão de que havia alguma coisa errada no socialismo soviético ou que o socialismo soviético frustrou as expectativas dos trabalhadores de uma forma fundamental. 

 Gorbatchov pretendia que se podia resolver os problemas do socialismo fazendo concessões aos imperialistas e incorporando ideias do capitalismo no socialismo. Parte disto passava pela introdução de aspectos da democracia burguesa, ao mesmo tempo que as instituições tradicionais da democracia socialista eram minadas e marginalizadas. Para se compreender a ineficácia da resistência da classe operária não  precisamos de ir muito além disto. Os comunistas e trabalhadores soviéticos viram-se privados das vias tradicionais de expressão, ao mesmo tempo que o seu líder formal introduzia gradualmente ideias capitalistas, embrulhadas na noção de aperfeiçoamento do socialismo. Na nossa opinião, as coisas não tinham de se passar desta forma. Reformas diferentes e um processo diferente de reformas, que mobilizassem o partido comunista e a classe operária, poderiam produzir resultados diferentes. Isto havia sido tentado por Iuri Andropov, mas o esforço foi de curta duração, devido à sua doença e morte.

 Duas recentes visitas a Cuba e um estudo sobre as presentes reformas em curso, chamadas «atualização», reforçaram a nossa conclusão sobre o destino do socialismo soviético. Obviamente que a União Soviética e Cuba são dois países completamente diferentes, com histórias e situações muito diferentes. Uma diferença significativa foi o embargo econômico e comercial imposto pelos EUA a Cuba. Apesar de a União Soviética também ter passado por um bloqueio econômico durante duas décadas, o embargo a Cuba dura há mais tempo e o seu custo é relativamente mais elevado. Hoje, passados 50 anos, segundo estimativas moderadas, o embargo custou aos cubanos mais de 104 mil milhões de dólares apreços correntes, e se considerarmos a desvalorização do dólar em relação ao ouro esse valor sobe para 975 mil milhões de dólares. [15] Sem o boicote, hoje, o nível de vida em Cuba poderia ser semelhante ao da Europa Ocidental. [16]

  Não obstante as diferenças óbvias, Cuba e a União Soviética têm algumas características comuns. Ambas as economias se baseiam na propriedade pública e na planificação centralizada, dirigidas pelo partido comunista, e tanto a sociedade soviética em 1985 como a cubana em 2011 enfrentavam problemas similares, embora em graus diferentes. Por exemplo, ambas tinham duas moedas, uma convertível em divisas internacionais e outra interna. A divisa soviética, interdita à maioria dos cidadãos, estava limitada aos turistas, diplomatas e alguns outros representantes, e era usada apenas nas lojas em divisas. Em Cuba, no entanto, a moeda convertível não é ilegal, e muitos cubanos auferem legalmente rendimentos em pesos convertíveis, por trabalharem na indústria do turismo, sob a forma de prêmios em certas outras entidades, ou ainda provenientes de remessas de familiares emigrantes.

 A existência de duas moedas gera mais problemas em Cuba do que no caso da União Soviética. A grande disparidade entre o valor do peso (CUP) e do peso convertível (CUC), na ordem de 25 para 1, criou uma série de problemas, incluindo uma crescente desigualdade entre aqueles que têm acesso à moeda convertível e os que não têm, e uma fuga de cérebros de profissões sem salários em divisas para aquelas que permitem esse acesso, como é o caso do turismo. Conduzir um táxi pode proporcionar gorjetas em divisas de valor superior aos rendimentos de um professor. Isto é claramente desmoralizador e ineficiente. Um outro exemplo de um fenômeno presente nas duas sociedades é a segunda economia, ou mercado negro. Na União Soviética a segunda economia constituía um problema maior do quem em Cuba. Na União Soviética a segunda economia existiu durante um período mais longo, estava mais espalhada e desenvolvida, e ligada com frequência a minorias nacionais e à «máfia» organizada. [17] 

 Em certos aspectos, os problemas de Cuba e da União Soviética (nos anos 80) são semelhantes: deficiências na produtividade e eficiência, qualidade insuficiente dos bens de consumo, falta de iniciativa e de sentido de propriedade e responsabilidade no local de trabalho, difusão insuficiente das tecnologias computacionais, etc. Além disso pode-se encontrar facilmente semelhanças entre as soluções propostas por Iuri Andropov, em 1983 (e mesmo entre as políticas iniciais de Gorbatchov), e o programa cubano de reformas de «atualização», proposto em 2011. Por exemplo, nos dois casos as reformas visavam aumentar a eficiência, a produtividade, a motivação e a qualidade através da recompensa do esforço, da descentralização do controlo e da responsabilidade, do desenvolvimento de empresas mistas com capitais estrangeiros, de incentivos às cooperativas e da concessão de maior latitude à iniciativa privada. 

 Mas os processos na União Soviética e em Cuba diferem de forma flagrante. Em Cuba o processo de reformas envolveu os comunistas de base e os trabalhadores de uma forma muito mais ampla do que na União Soviética. Em Cuba, entre o desenvolvimento das orientações da reforma em 2010 até à sua implementação em 2014, houve todo um processo que implicou o envolvimento das massas e a construção de um consenso de massas. O processo começou entre Dezembro de 2010 e Fevereiro de 2011, com debates com o povo em geral, seguiram-se debates no partido em todas as províncias, e por fim debates no VI Congresso do PCC em Abril. No total realizaram-se 163 079 reuniões, em que estiveram 8 913 828 participantes. Destes debates resultou um importante conjunto de alterações: «O documento original continha 291 linhas de orientação, das quais 16 foram incorporadas noutras, 94 mantiveram a sua redação, o conteúdo de 181 delas foi modificado e foram incorporadas 36 novas linhas de orientação, para um total de 311 no atual projeto. (…) Aproximadamente mais de dois terços das linhas de orientação, exatamente 68 por cento, foram reformulados.» [18] 

 O debate das linhas de orientação decorreu ainda através de cartas publicadas no jornal Granma, em programas de rádio, em blogs na Internet e nos sindicatos. [19] Um observador anotou: «O elemento-chave aqui é que o projeto da nova lei trabalhista implica um processo de consulta com a CTC (Central dos Trabalhadores de Cuba) tão detalhado e extensivo que os sindicatos têm de facto o poder de veto». [20]

 Na União Soviética, Iuri Andropov iniciou as reformas econômicas com debates nos locais de trabalho. Todavia, para Gorbatchov, os debates com as bases sobre as mudanças foram sobretudo uma oportunidade para promover a sua imagem pública. Os amplos debates, o estímulo à crítica e a construção de consensos estiveram praticamente ausentes no processo de reformas de Gorbatchov. Se tivesse sido de outro modo, será que hoje nos interrogaríamos sobre onde estavam os comunistas soviéticos e os trabalhadores?

  Mas se os dois tipos de críticas («o atraso soviético» e «as deformações de Stálin») não são convincentes, por que razão continuam a ser tão populares? Na nossa opinião a razão da popularidade destas explicações é que elas decorrem e dependem da onipresente ideologia do anti-stalinismo e do anticomunismo. O anticomunismo e o anti-stalinismo não são meras discordâncias com o sistema socialista ou com as políticas de Stálin, antes consistem na apresentação deste sistema e deste homem como o pior mal do mundo.

 Para a maioria dos intelectuais ocidentais o dogma de que «Stálin é um monstro» não é susceptível de discussão. É um axioma. Pior, é um tabu. É a chave-mestra que dá acesso à família de autores admitidos pela ideologia dominante. Os acadêmicos dos EUA, mesmo aqueles com pontos de vista não ortodoxos, inscrevem rotineiramente referências hostis a Stálin nos seus trabalhos, mesmo quando não incidem sobre a história da União Soviética, para assim garantirem a sua aceitação política. A razão de o anti-stalinismo continuar a ser a pedra-de-toque merece mais atenção do que tem tido. Recentemente, acadêmicos como Domenico Losurdo e Grover Furr [21] lançaram luz sobre esta questão. A circunstância de a demonização de Stálin ter o apoio de toda a esquerda, graças a Trótski e a Khruchov, é seguramente um dos fatores. Uma outra razão é o fato de Stálin ser o símbolo personificado da URSS entre 1924 e 1953, o período do êxito da construção do socialismo, e também o período em que o Estado soviético era o maior inimigo do imperialismo. Seja qual for a razão, para os marxistas, como são alguns dos nossos críticos, condescender com estereótipos anti-Stálin e polemizar na sua base, deve ser entendido como uma concessão oportunista à pressão da ideologia da classe dominante. Evidentemente que a rejeição do anti-stalinismo não equivale à beatificação de Stálin, a um amontoado de elogios à sua pessoa, ou ainda menos ao escamoteamento dos problemas associados à sua liderança. Significará antes, um trabalho acadêmico paciente, que use os mesmos critérios que são requeridos para avaliar qualquer líder do século XX.

Conclusão

 As principais críticas levantadas contra os argumentos do Socialismo Traído não resistem a um escrutínio rigoroso. A ideia de que a União Soviética estava condenada por um defeito congênito, nomeadamente o atraso das forças produtivas, agrada sobretudo àqueles que sonham com um avanço gradual para o socialismo, e àqueles que pensam que os chineses descobriram a estrada de ouro para o futuro. No entanto, tal ideia implica que se ignore os problemas gerados pela NEP nos anos 20 e na China hoje, e significa subestimar as difíceis opções que os soviéticos tiveram de fazer nos anos 20 e 30, bem como os tremendos progressos que fizeram para superar o atraso.


 A ideia de que o colapso da URSS em 1991 se deveu ao autoritarismo de Stálin e nos anos 30 assenta numa montanha de preconceitos contra Stálin e numa leitura unilateral do seu legado que ignora os seus marcados elementos democráticos. Finalmente, a ineficácia da resistência dos comunistas de base e dos operários à destruição do socialismo não prova a existência de problemas profundamente enraizados do socialismo soviético. Mostra no entanto que a destruição da propriedade socialista, da planificação, dos benefícios sociais e do internacionalismo exigiram a erosão simultânea da autoridade do partido comunista e das instituições da democracia socialista. Se alguma coisa boa adveio do colapso da URSS foi o fato de Cuba parecer ter aprendido a lição. 


Notas:

[1] Texto apresentado por Roger Keeran, sob o título original The Collapse of the Soviet Union Reconsidered, no II Congresso internacional «Marx em Maio», promovido pelo Grupo Estudos Marxistas, de 8 a 10 de Maio de 2014, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

[2] Esta obra foi publicada em Portugal, em 2008, sob a chancela das Edições Avante! Ver entrevista com os autores em http://www.hist-socialismo.com/docs/OSocialismofoitraido.pdf

[3] K. Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, (22 Julho 1853), Marx e Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. Avante-Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982, t.1, p. 417.


[4] A designação «crise das tesouras» tem origem num gráfico representando duas linhas rectas cruzadas em forma de tesoura aberta, uma relativa à queda dos preços agrícolas eoutra, ascendente, mostrando a subida dos preços dos produtos manufacturados.



[5] Máxime Górki, V.I Lénine, escrito em 1924 e editado separadamente em 1931. Obras Completas em 30 tomos (em russo), t. 17.

[6]  David Laibman, Deep History: A Study in Social Evolution and Human Potential, Universidade Estatal de Nova Iorque, 2007, p.184.

[7] Os problemas da economia socialista, nomeadamente os decorrentes da sua direção e planificação, foram reconhecidos desde muito cedo pela liderança soviética. Lênin insistiu incansavelmente na necessidade do «registro e controle». Stálin viu na generalização do movimento stakhanovista o caminho para o aumento exponencial da produtividade e eficiência econômica. Sempre segundo o princípio de «cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho», no final dos anos 30, começou a ser introduzido o Método de Aumento da Eficiência do Trabalho, que teve grande divulgação e extraordinários resultados nos anos do pós-guerra, sendo inexplicavelmente abolido por Khruchov, pouco depois da morte de Stálin. Sobre este método e muitos outros fatos pouco conhecidos, que nos mostram o vigor da economia soviética do pós-guerra,recomendamos a leitura do artigo Memórias da URSS – Os anos do pós-guerra, de V.A.Torgachev (http://www.hist-socialismo.com/docs/Torgachev Memorias URSS2.pdf). Otema específico da eficiência da economia centralizada é também tratado no interessante artigo de «A alternativa rejeitada à reforma de mercado de 1965», de V.D. Pikhorovitch,que nos fala do plano visionário de V.M. Gluchkov (1923-1982) de informatização de todo o aparelho produtivo da URSS, que acabou por ser preterido a favor das catastróficas reformas de «mercado» de Kossíguine/Liberman (http://www.hist-socialismo.com/docs/Gluchkov.pdf).


[8] Leonard Schapiro, The Communist Party of the Soviet Union, Vintage Books, Nova Iorque, 1971, p. 409; Kenneth Neill Cameron, Stalin: Man of Contradiction, Toronto, 1987,NC Press Limited, pp. 80-81.

[9] Terry Martin, The Affirmative Action Empire: Nations and Nationalism in the Soviet Union, 1923-1939, Cornell University Press, Ithaca e Londres, 2001, pp. 1-2.


[10] Idem, ibidem, pp. 387-389.

[11]  Chvérnik, Nikolai Mikháilovitch (1888-1970), membro do partido desde 1905, do CC desde 1925, do Presidium do CC (1952-53 e 1957-66), candidato do Politburo/Presidium (1939-1952 e 1953-1957). Metalúrgico, dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos (1910-11),presidente do Soviete de Samara (1917), comissário das frentes Leste e Sul (1918-20), comissário da Inspeção Operário-Camponesa da RSFSR (1924). A partir de 1929 ésecretário do Comité dos Urais do partido, presidente do Conselho Central dos Sindicatos de Toda a União (1930-44 e 1953-1956) e presidente do Conselho das Nacionalidades do Soviete Supremo (1938-1946). Presidente do Presidium do Soviete Supremo da RSFSR(1944-1946) foi presidente do Presidium do Soviete Supremo da URSS (1946-1953). Aposentou-se em 1966.


[12] Wendy Goldman, p. 14.

[13] Idem, ibidem, p. 19.

[14] Richard Pipes, «Flight from Freedom: What Russians Think and Want», Foreign Affairs, Maio-Junho de 2004, p. 14.

[15] Cuba vs Bloqueo, relatório de Cuba sobre a resolução 65/6 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, intitulado «A necessidade de pôr fim ao bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América a Cuba» (Julho de 2011), p. 54.


[16] Entrevista com Manuel Yepe, Havana, Cuba, 18 de Fevereiro de 2014.

[17] Entrevista com Marta Nunez, Havana, Cuba, 18 de Fevereiro de 2014.

[18] Relatório central ao VI Congresso do Partido Comunista de Cuba(http://www.cuba.cu/gobierno/ rauldiscursos /2011/por/r160411p.html)

[19] Steve Ludlam, «Cuba’s Socialist Development Strategy», Science & Society 76, n.º 1, Janeiro de 2012, p. 47.

[20]  Ludlam, p. 51.

[21] Domenico Losurdo, Stalin – História Crítica de uma Lenda Negra, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2010, e Grover Furr, Khrushchev Lied, Kettering, Erythros Press andMedia, Ohio, 2011.



sábado, 22 de novembro de 2014

''Terá o marxismo tornado-se inútil na pós-modernidade?''

O texto a seguir é o capítulo 1 do livro ''Marx estava certo'', do filósofo britânico Terry Eagleton. Boa leitura.



''O marxismo acabou. Supostamente ele deve ter tido alguma relevância em um mundo de fábricas e de escassez de comida, de mineiros de carvão e limpadores de chaminés, de miséria disseminada e da massa das classes operárias. No entanto, decerto não exerceria nenhuma influência sobre as sociedades ocidentais cada vez menos classistas, mais socialmente móveis e pós-industriais do presente. É o credo daqueles que são teimosos, medrosos ou iludidos demais para aceitar que o mundo mudou para melhor, em ambos os sentidos do termo.''

 O suposto fim do marxismo deveria soar como música aos ouvidos dos marxistas em todo canto. Eles poderiam recolher suas marchas e piquetes, voltar para suas famílias enlutadas e aproveitar a noite em casa em vez de ir a mais uma tediosa reunião de comitê. O que os marxistas mais desejam é deixar de ser marxistas. Nesse sentido, ser um marxista nada tem a ver com ser budista ou milionário, assemelhando-se mais a ser médico. Os médicos são perversos, criaturas autossabotadoras que promovem o próprio desemprego curando pacientes, que, depois, não mais precisam deles. A tarefa dos radicais políticos, igualmente, é chegar ao ponto em que não mais sejam necessários porque suas metas foram alcançadas. Estão, então, livres para se retirar, queimar seus pôsteres de Che Guevara, voltar ao violoncelo há muito esquecido e falar sobre algo mais intrigante do que o modo de produção asiático. Se ainda existirem marxistas ou feministas daqui a vinte anos, será lamentável. O marxismo se destina a ser uma atividade temporária, razão pela qual quem molda toda a sua identidade nele não terá entendido o espírito da coisa. A existência de uma vida após o marxismo é precisamente a ideia do marxismo.

 Existe apenas um problema com essa visão sedutora. O marxismo é uma crítica do capitalismo — a crítica mais investigativa, rigorosa e abrangente já feita. É também a única crítica que transformou grandes setores do mundo. Assim é que, enquanto o capitalismo ainda continuar em atividade, o marxismo precisará fazer o mesmo. Somente depois de aposentar seu oponente ele será capaz de se aposentar. E em sua última aparição o capitalismo parecia tão combativo como sempre.

 A maioria dos críticos do marxismo atualmente não refuta isso. Seu argumento é, sim, o de que o sistema se modificou quase a ponto de se tornar irreconhecível desde os dias de Marx e que por isso suas ideias já não são relevantes. Antes de esmiuçarmos tal argumento, vale a pena notar que o próprio Marx tinha total consciência da natureza mutante do sistema que desafiou. É ao próprio marxismo que devemos o conceito de diferentes formas históricas de capital: mercantil, agrário, industrial, monopolista, financeiro, imperial e daí por diante. Por que, então, o fato de o capitalismo ter mudado sua forma nas últimas décadas deveria desqualificar uma teoria que encara a mudança como a própria essência desse sistema? Ademais, o próprio Marx previu um declínio da classe trabalhadora e um aumento acentuado no trabalho dos colarinhos-brancos. [1] Abordaremos esse assunto um pouco à frente. Marx também previu a chamada globalização — o que é estranho para um homem com um raciocínio supostamente arcaico, embora talvez a característica “arcaica” de Marx seja o que o torne ainda relevante nos dias de hoje. Ele é acusado de ultrapassado pelos defensores de um capitalismo que rapidamente vem regredindo aos níveis vitorianos de desigualdade.

 Em 1976, um bocado de gente no Ocidente achava que o marxismo defendia um argumento razoável. Já em 1986, muitas delas não pensavam mais assim. O que ocorreu nesse ínterim? Será que essas pessoas estavam enterradas debaixo de uma pilha de crianças saídas das fraldas? Teria a teoria marxista sido desmascarada como falsa por alguma nova pesquisa retumbante? Será que esbarramos em algum manuscrito há muito sumido em que Marx confessava que tudo não passava de uma piada? Não é que tenhamos descoberto, para nossa decepção, que Marx era sustentado pelo capitalismo. Disso sempre soubemos. Sem a fábrica Ermen & Engels em Salford, de propriedade do pai de Engels, fabricante de tecidos, o Marx cronicamente empobrecido poderia muito bem não ter sobrevivido a polêmicas literárias contra fabricantes de tecido.

 Alguma coisa realmente aconteceu no período em questão. A partir de meados da década de 1970, o sistema ocidental sofreu mudanças radicais. [2] Houve uma guinada da produção industrial tradicional para uma cultura “pós-industrial” de consumismo, comunicações, tecnologia da informação e da indústria de serviços. Empreendimentos de pequena escala, descentralizados, versáteis e não hierárquicos entraram na ordem do dia. Os mercados foram desregularizados, e o movimento da classe operária, submetido a um selvagem ataque jurídico e político. As alianças de classe tradicionais foram enfraquecidas, enquanto as identidades locais, de gênero e etnia ficaram mais insistentes. A política tornou-se mais e mais administrada e manipulada.

 As novas tecnologias da informação tiveram um papel-chave na crescente globalização do sistema, quando um punhado de corporações transnacionais distribuiu a produção e o investimento por todo o planeta em busca dos lucros mais imediatos. Boa parte da produção industrial foi terceirizada, com emprego de mão de obra de regiões com baixos salários no mundo “subdesenvolvido”, levando alguns ocidentais de mente provinciana a concluir que a indústria havia sumido por completo do planeta. Migrações internacionais maciças de mão de obra surgiram na esteira dessa mobilidade global, e com elas houve um ressurgimento do racismo e do fascismo, à medida que imigrantes empobrecidos inundavam as economias mais avançadas. Enquanto os países “periféricos” eram submetidos ao trabalho nas sweatshops [locais de trabalho insalubres], em fábricas privatizadas, a uma previdência social inoperante e a condições comerciais surrealmente desiguais, os executivos das nações metropolitanas arrancavam suas gravatas, abriam os colarinhos e se preocupavam com o bem-estar espiritual de seus empregados.

 Nada disso ocorreu porque o sistema capitalista gozava de um humor esfuziante. Ao contrário, sua nova postura belicosa, como a maioria das formas de agressão, brotou de uma ansiedade profunda. Se o sistema enlouqueceu foi porque se viu acometido por uma depressão latente. O que provocou tal reorganização foi, acima de tudo, o súbito esmaecimento do boom do pós-guerra. A competição internacional intensificada forçava para baixo os índices de lucro, secando as fontes de investimento e reduzindo a taxa de crescimento. Mesmo a social-democracia era uma opção política radical e onerosa demais. O cenário, assim, estava pronto para Reagan e Thatcher, que ajudariam a desmontar a indústria tradicional, reprimir o movimento operário, deixar o mercado à solta, fortalecer o braço repressivo do Estado e defender uma nova filosofia social conhecida como ganância descarada. O deslocamento do investimento da manufatura para as indústrias de serviços, de finanças e de comunicações foi uma reação a uma crise econômica prolongada, não ao abandono repentino de um velho mundo mau em troca de um corajoso mundo novo.

 Ainda assim, é duvidoso que a maioria dos radicais que mudaram de ideia quanto ao sistema entre as décadas de 1970 e 1980 o tenha feito apenas porque havia menos fábricas de algodão. Não foi isso que os levou a descartar o marxismo juntamente com suas costeletas e bandanas, mas, sim, a crescente convicção de que o regime que confrontavam era simplesmente duro demais para ser rompido. Não foram as ilusões sobre o novo capitalismo, mas a desilusão quanto à possibilidade de mudá-lo que mostrou ser o fato decisivo. Houve, decerto, um grande número de ex-socialistas que racionalizaram seu pesar sustentando que, se o sistema não podia ser mudado, não precisava sê-lo. Mas isso era falta de fé numa alternativa que se revelou conclusiva. Como o movimento da classe operária havia sido tão massacrado e a esquerda política tão consistentemente rechaçada, o futuro parecia ter desaparecido sem deixar vestígios. Para alguns membros da esquerda, a queda do bloco soviético no fim da década de 1980 serviu para aprofundar o desencantamento. O fato de a corrente radical mais bem-sucedida da Idade Moderna — o nacionalismo revolucionário — estar a essa altura bastante exaurida não ajudou. O que alimentou a cultura do pós-modernismo, com seu descarte das chamadas grandes narrativas e seu anúncio triunfal do Fim da História, foi, acima de tudo, a convicção de que o futuro seria apenas uma repetição do presente. Ou, como declarou um exuberante pós-modernista, “o presente acrescido de mais opções”.

 Assim, o que ajudou a desacreditar o marxismo foi, sobretudo, uma sensação arrepiante de impotência política. É difícil manter a fé na mudança quando a mudança parece não constar da agenda, ainda que nesse momento seja mais do que nunca crucial mantê-la. Afinal, se não resistirmos ao que é aparentemente inevitável, jamais saberemos quão era o inevitável. Se tivessem conseguido se apegar a suas antigas noções por mais duas décadas, em 2008 os “desistentes” teriam visto um capitalismo tão exultante e imbatível que praticamente era capaz apenas de administrar os caixas automáticos instalados nas grandes avenidas. Também teriam visto todo um continente ao sul do Canal do Panamá dar uma guinada decisiva para a esquerda política. O Fim da História chegava, então, ao fim. De todo modo, os marxistas deveriam estar mais do que acostumados à derrota. Conheceram catástrofes maiores do que essa. A vantagem política sempre pertence ao sistema no poder, simplesmente porque ele possui mais tanques do que nós. Mas as visões estonteantes e as esperanças efervescentes do fim da década de 1960 transformaram esse revés numa pílula especialmente amarga para os sobreviventes daquela era.

 O que fez o marxismo parecer implausível, então, não foi o fato de o capitalismo ter alterado sua posição, e sim o oposto — o fato de que, no que tangia ao sistema, tudo funcionava como de hábito, e até melhor. Ironicamente, o que ajudou a derrubar o marxismo também acabou dando certo crédito a seus argumentos. Ele foi relegado à margem porque a ordem social que confrontava, longe de se tornar mais moderada e benigna, ficou mais cruel e extrema do que antes. E isso tornou a crítica que lhe fazia o marxismo ainda mais pertinente. Numa escala global, o capital se encontrava mais concentrado e predatório do que nunca, e a classe operária havia, com efeito, crescido. Começava a parecer possível imaginar um futuro em que os mega-ricos se abrigariam em suas comunidades armadas e gradeadas, enquanto cerca de um bilhão de moradores de favelas ficariam sitiados em seus fétidos barracos, cercados por torres de vigilância e arame farpado. Nessas circunstâncias, afirmar que o marxismo havia acabado era mais ou menos como dizer que o Corpo de Bombeiros estava ultrapassado porque os incendiários estavam cada vez mais hábeis e criativos.

 No nosso tempo, conforme previu Marx, a desigualdade de riqueza cresceu de forma dramática. A renda de um único bilionário mexicano equivale hoje aos rendimentos dos 17 milhões de seus compatriotas mais pobres. O capitalismo criou mais prosperidade do que a história jamais testemunhou, mas o preço — em especial a quase penúria de bilhões de indivíduos — foi astronômico. Segundo o Banco Mundial, 2,74 bilhões de pessoas em 2001 viviam com menos de dois dólares por dia. Enfrentamos um futuro provável de Estados munidos de armas nucleares guerreando devido à escassez de recursos, e a escassez é, em grande medida, uma consequência do próprio capitalismo. Pela primeira vez na história, nossa forma prevalente de vida tem o poder não apenas de alimentar o racismo e disseminar o cretinismo cultural, nos levar à guerra ou nos tocar como rebanhos para os campos de trabalho, mas também de nos riscar do planeta. O capitalismo se comportará de maneira antissocial se considerar essa atitude lucrativa, e isso atualmente pode significar a devastação humana numa escala inimaginável. O que antes não passava de fantasia apocalíptica é agora realismo sóbrio. O tradicional slogan esquerdista “Socialismo ou barbárie” nunca foi mais sombriamente adequado e nunca equivaleu menos a um mero floreio retórico. Nessas sombrias condições, como escreve Fredric Jameson, “o marxismo precisa necessariamente voltar a ser verdade.” [3]

 E se ultrapassado não estiver o marxismo, mas, sim, o próprio capitalismo? Na Inglaterra vitoriana, Marx via o sistema em processo de perda de fôlego. Tendo promovido o desenvolvimento social em seu auge, ele funcionava então como um entrave a ele. Marx considerava a sociedade capitalista impregnada de fantasia e fetichismo, mito e idolatria, por mais que se orgulhasse de sua modernidade. Seu esclarecimento — a crença arrogante na própria racionalidade superior — não passava de uma espécie de superstição. Se, por um lado, foi capaz de certo progresso retumbante, por outro precisava correr muito apenas para continuar no lugar. O derradeiro limite para o capitalismo, comentou Marx certa vez, é o próprio capital, cuja reprodução constante é uma fronteira além da qual ele não pode se aventurar. Existe, assim, algo curiosamente estático e repetitivo a respeito desse regime histórico mais dinâmico de todos. O fato de que sua lógica subjacente permanece bastante constante é uma das razões por que a crítica que lhe fazia Marx continua válida em grande medida. Apenas se o sistema fosse genuinamente capaz de romper suas próprias fronteiras, inaugurando algo novo, nunca antes sequer imaginado, deixaria esse de ser o caso. Mas o capitalismo é incapaz de inventar um futuro que não reproduza seu presente ritualmente. Desnecessário dizer que com mais opções...

 O capitalismo trouxe grandes avanços materiais. Entretanto, embora essa maneira de organizar nossos negócios tenha tido muito tempo para demonstrar que é capaz de satisfazer as exigências humanas por todo lado, ela aparentemente não está mais perto disso do que antes. Quanto tempo estamos preparados para aguardar que o capitalismo produza os bens? Por que continuamos a nutrir o mito de que a riqueza fabulosa gerada por esse modo de produção se tornará disponível para todos no devido tempo? Será que o mundo trataria reivindicações similares vindas da extrema esquerda com a mesma tolerância cordial, esperando para ver o que vai acontecer? Os direitistas que admitem que sempre haverá injustiças colossais no sistema, mas que, apesar disso, as opções são ainda piores, são ao menos mais honestos em seu jeito inflexível do que aqueles que pregam que tudo dará certo afinal. Se existe tanto gente rica quanto gente pobre, como existe tanto gente negra quanto branca, as vantagens dos abonados podem muito bem, com o tempo, chegar aos desprovidos. Mas observar que alguns são miseráveis enquanto outros são prósperos é mais ou menos como afirmar que o mundo contém ao mesmo tempo detetives e criminosos. E é verdade, mas isso encobre o fato de que existem detetives porque existem criminosos...

Notas:
[1] White-collars, trabalhadores de escritório, em oposição aos blue-collars, colarinhos-azuis
dos macacões.
[2] Embora alguns marxistas duvidem de quão vitais tenham sido. Por exemplo, CALLINICOS, Alex. Against Postmodernism: a Marxist critique. Cambridge: Polity Press, 1989, cap. 5.
[3]  JAMESON, Fredric. The Ideologies of Theory. Londres: Verso Books, 2008, p. 514.















segunda-feira, 10 de novembro de 2014

''Onde o socialismo deu certo?''

Artigo originalmente publicado no blog O Marxista-Leninista.



Onde o socialismo deu certo? Somos confrontados assim frequentemente ao falar sobre o socialismo. No primeiro turno das eleições presidenciais de 2010, por exemplo, tais perguntas se repetiram ad nauseam nas entrevistas do candidato Plínio de Arruda Sampaio (PSOL), que é declaradamente socialista.

Mas além de, na minha opinião, Plínio não ter respondido adequadamente, faltou-lhe questionar o pressuposto que essa pergunta apresenta como estabelecido. Este pressuposto é o de que o socialismo "não deu certo".

Em primeiro lugar, o que significa "dar certo"?

Em segundo lugar, o sistema tem que "dar certo" para quem?

Vamos dar uma olhada em que medida o socialismo e também o capitalismo "dão certo". Comecemos pelo socialismo cubano, um dos mais atacados.

Cuba sofre um bloqueio econômico por parte dos EUA há mais de 50 anos, o que lhe impede de ter relações comerciais não só com as empresas estadunidenses, mas também com empresas de diversos outros países devido à extensão do bloqueio. Além disso, Cuba é um país pobre e, como todos os outros países da América Latina, uma ex-colônia.

Portanto, o problema de Cuba não é o socialismo. Seu problema é a "pobreza" anterior ao socialismo, comum a todos os países do continente, com o enorme agravante de um bloqueio econômico criminoso que nenhum outro país da América sofre, e que nenhum outro país suportaria nem por 5 meses, quanto menos por 50 anos. Mas a despeito de todas as dificuldades, Cuba não se entrega e resiste bravamente, mantendo sua dignidade e sua soberania.

Quando dizem que o "modelo cubano" não funciona, os capitalistas pretendem comparar a riqueza dos países capitalistas com a pobreza dos cubanos.

Mas por que não comparar a pobreza dos países capitalistas com a pobreza dos países socialistas?

E então, o que encontramos ao comparar a "pobreza" dos cubanos com a literal miséria do restante da América? Cuba possui o melhor sistema de saúde público e gratuito de todo o continente. Seu sistema educacional gratuito abrange toda a população. Seu índice de analfabetismo é o menor da AL, assim como da desnutrição infantil. Seu índice de desenvolvimento humano (IDH) também é o maior.

Isso seria "dar certo" ou não? Vemos que isso depende dos parâmetros de avaliação, e também do para quem dá certo.

Vejamos o caso da União Soviética, URSS.

A Rússia virou o século XX como um país semi-feudal, que ainda possuía um tsar. A revolução ocorreu em 1917. O país passou por difíceis períodos de guerra civil, perdeu mais de 25 milhões de pessoas na II Guerra Mundial, foi devastado com a invasão alemã, mas mesmo assim se tornou uma potência mundial, contando apenas com suas próprias forças para isso, ao contrário dos países imperialistas que receberam uma boa fatia do Plano Marshall para se reerguer.

Seu avanço tecnológico chegou a tal ponto que foi o primeiro país a enviar o homem para o espaço (o astronauta Yuri Gagárin), em 1961.

Vejam bem: de semi-feudal em 1917, ano da revolução, a URSS estava enviando o homem para o espaço em 1961.

Num espaço de apenas 4 décadas o país, sob o socialismo, saiu do arado de madeira para o espaço sideral.

Neste parâmetro de avaliação, isso seria "dar certo" ou não?

Além de tudo aquilo que conhecemos através dos livros sobre os sistemas de saúde, de educação, de transportes, etc, já tive a oportunidade de conversar diretamente com um soviético (com quem trabalhei por um tempo) sobre como era a vida em seu país.

Ele, um cidadão comum da URSS, me disse que não conhecia pessoalmente nenhum indivíduo que não pudesse fazer faculdade, por exemplo. Me disse que não conhecia ninguém desempregado, e que o grande problema lá é que até faltava mão-de-obra. Lá ninguém era rico, mas também ninguém era "pobre".

É verdade que tanto na URSS como em todo o leste europeu houve um retrocesso ao capitalismo. Mas isso de forma alguma é um sinal de que o socialismo "não deu certo". O próprio capitalismo sofreu inúmeros retrocessos históricos antes de se estabelecer.

No caso do leste europeu há importantes fatores que determinaram este retrocesso e que quase nunca são colocados.

Em primeiro lugar, o leste europeu não se tornou socialista através de revoluções populares bem preparadas com um amplo trabalho de massas, apesar do enorme apoio dos partidos comunistas entre o povo. O socialismo foi implantado nesses países principalmente em virtude das circunstâncias existentes na Europa ao final da II Guerra Mundial.

Antes do término da guerra, esses países estavam sob governos fascistas, implantados por Hitler. Na famosa Conferência de Yalta chegou-se à conclusão de que eles não poderiam ser deixados "sozinhos" após a guerra, sob o risco da ameaça fascista ressurgir naquela região. Fixou-se então que a URSS ficaria encarregada por ela.

No entanto, os partidos comunistas desses países se encontravam desbaratados. Vários dos seus principais quadros e lideranças haviam sido assassinados pelos fascistas. Este foi um dos importantes fatores que não permitiram que o socialismo seguisse um rumo diferente do que poderia em condições normais.

Mas mesmo assim, quando comparamos o nível de desenvolvimento industrial desses países antes e depois da guerra (períodos capitalista e socialista), vemos como o socialismo avançou a indústria dessa "periferia" da Europa.

(A propósito, veja alguns dados comparando a situação do leste europeu nos períodos do socialismo e da volta ao capitalismo: Capitalismo, golpe fatal no Leste Europeu)

Além disso, ao contrário do que alguns costumam afirmar, não se pode considerar todo o leste europeu como "várias experiências" socialistas. Apesar das particularidades de cada país, todos constituem uma única experiência socialista, a experiência de praticamente um único modelo.

Enfim, o que essas e todas as experiências socialistas mostraram e continuam mostrando é que, ao contrário do que dizem, o socialismo é um sistema exequível.

A história não segue linearmente, como se fosse uma linha reta. O curso histórico talvez seja mais parecido com uma espiral, com seus recuos momentâneos. O próprio capitalismo sofreu diversos golpes e contra-revoluções em seu início, e demorou séculos para se estabelecer completamente. Por que esperar então que o socialismo fosse estabelecido de uma vez por todas com um só golpe?

Para finalizar, apresento agora alguns dados sobre o capitalismo e inverto a pergunta: o capitalismo "dá certo"? O capitalismo "funciona"? O que seria "dar certo" no capitalismo? Ele "funciona" para quem?


População mundial: 6,8 bilhões, dos quais:

1,02 bilhão têm desnutrição crônica (FAO, 2009)

2 bilhões não têm acesso a medicamentos (www.fic.nih.gov)

884 milhões não têm acesso a água potável (OMS/UNICEF 2008)

924 milhões de "sem teto" ou que vivem em moradias precárias (UN Habitat 2003)

1, 6 bilhão não tem eletricidade (UN Habitat, “Urban Energy”)

2,5 bilhões não tem acesso a saneamento básico e esgotos (OMS/UNICEF 2008)

774 milhões de adultos são analfabetos (www.uis.unesco.org)

18 milhões de mortes por ano devido à pobreza, a maioria delas de crianças com menos de 5 anos (OMS)

218 milhões de crianças, entre 5 e 17 anos, trabalham em condições de escravidão ou em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados, prostitutas, serventes na agricultura, na construção civil ou na indústria têxtil (OIT: A Eliminação do Trabalho Infantil: Um Objetivo a Nosso Alcance, 2006)

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação na riqueza global de 1,16% para 0,92%, enquanto que os 10% mais ricos acrescentaram mais riquezas, passando de 64,7 para 71,1% da riqueza produzida mundialmente. O enriquecimento de poucos tem como reverso o empobrecimento de muitos.

Só esse 6,4 % de aumento da riqueza dos mais ricos seria suficiente para duplicar a renda de 70% da população da Terra, salvando inumeráveis vidas e reduzindo as penúrias e sofrimentos dos mais pobres. Entenda-se bem: tal coisa seria obtida se tão só fosse redistribuído o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002, dos 10% dos mais ricos do planeta, deixando intactas suas exorbitantes fortunas. Mas nem sequer algo tão elementar como isso é aceitável para as classes dominantes do capitalismo mundial.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

''Marx e a liberdade'', por Terry Eagleton

Tradução por Marcos E. de Oliveira e edição por Velha Toupeira, da  equipe do blog comunism0.

Terry Eagleton (22 de fevereiro de 1943) é um filósofo e crítico literário britânico identificado com o marxismo.


FILOSOFIA

Hegel e Aristóteles com certeza eram filósofos, mas em que sentido Karl Marx também era? Marx escreveu muita coisa que tem um ar de filosofia, mas era também rispidamente desdenhoso do espírito filosófico, tendo declarado em sua famosa 11ª tese sobre Feuerbach que “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, trata-se, entretanto, de transformá-lo” [TF]. Alguém poderia retrucar que seria difícil transformar um mundo que não entendemos, a não ser pelo fato de que o próprio Marx seguramente estaria de acordo. Ele não está empenhado em substituir idéias por ações irrefletidas, mas em moldar uma espécie de filosofia prática que ajuda a transformar aquilo que procura compreender. A mudança social e a intelectual andam juntas: “A filosofia não pode se realizar sem a superação do proletariado“, diz ele, “e o proletariado não pode se superar sem a realização da filosofia” [CFD]. A segunda tese sobre Feuerbach afirma:

A questão se uma verdade objetiva pode ser atribuída ao pensamento humano não é teórica, mas prática. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou irrealidade do pensamento, quando isolada da prática, é uma questão puramente escolástica. [TF]

Este tipo especial de teoria orientada para a ação é às vezes chamado de “conhecimento emancipador”, e tem alguns atributos distintivos. É o tipo de entendimento da própria situação que um grupo ou indivíduo precisa para mudar tal situação; e é assim entre outras coisas um novo auto-entendimento. Mas conhecer-se de uma nova maneira significa alterar-se neste próprio ato; portanto temos aqui uma forma peculiar de cognição em que o ato de conhecer altera aquilo a que se refere. Ao tentar compreender a mim e à minha condição, nunca posso permanecer perfeitamente idêntico a mim, pois o eu [self] que está realizando o entendimento, bem como o eu que é entendido, são agora diferentes do que eram antes. E se eu quisesse entender tudo isto, exatamente o mesmo processo se estabeleceria. É um pouco como tentar pular a própria sombra, ou erguer-se pelos próprios cabelos. E uma vez que tal conhecimento também leva as pessoas a mudar sua condição na prática, ele mesmo se transforma num tipo de força social ou política, parte da situação material que examina, em vez de mera “reflexão” dela ou sobre ela. É conhecimento como um evento histórico em vez de especulação abstrata, no qual saber que não mais se separa claramente de saber como. Além disso, a procura da emancipação envolve questões de valor, enquanto o conhecimento da situação é matéria de compreensão factual; desta forma, aqui a distinção usual que a filosofia reconhece entre fatos e valores perde curiosamente a nitidez. Não se trata apenas de que tal tipo de conhecimento pode ser utilizado com proveito, mas de que a motivação para o entendimento está em primeiro lugar ligada a um sentido de valor. A 11ª tese sobre Feuerbach não é portanto apenas algum tipo de apelo filistino para que se passe da especulação abstrata para o “mundo real”, embora houvesse um laivo deste enérgico anti-intelectualismo no jovem Marx. Tal apelo esquece que, para começar, sem conceitos abstratos não haveria mundo real para nós. A ironia do gesto de Marx é que ele faz esta exigência como filósofo, não apenas como militante. Pode-se assim juntá-lo a uma respeitável linhagem de “antifilósofos” que inclui Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Benjamin, Wittgenstein, e, nos dias de hoje, pensadores como Jacques Derrida e Richard Rorty, para quem há algo de fundamentalmente equivocado em todo o empreendimento filosófico de nossa época. Para estes autores, a própria filosofia, não apenas este ou aquele tópico no interior dela, tornou-se uma busca profundamente problemática. Eles desejam, portanto ou transcender o projeto inteiro por motivos que permanecem filosoficamente interessantes, ou encontrar alguma forma de remoldá-lo num registro inteiramente novo, um objetivo que para muitos destes pensadores significa forjar um novo estilo de escrita teórica. A maioria se propõe a esvaziar as pretensões meta físicas da filosofia, atacando-a pelos flancos com algo aparentemente mais fundamental: o ser, o poder, a diferença, formas práticas de vida, ou, no caso de Marx, “condições históricas”. Um antifilósofo deste tipo difere de um mero opositor da filosofia da mesma maneira que um “anti-romance” como Ulisses difere de um não-romance como uma lista telefônica.

Por que Marx era tão cético em relação à filosofia? Um motivo era que ele a via começando do lugar errado. A filosofia não começava longe o suficiente. A filosofia alemã em moda na sua época – o Idealismo – começava com as idéias, vendo a consciência como o fundamento da realidade; porém Marx estava ciente de que apenas para que tenhamos uma idéia muita coisa já deve ter acontecido. O que já deve ter acontecido para que comecemos a refletir?

Devemos já estar ligados praticamente com o mundo que ponderamos e, desta forma, já inseridos num conjunto inteiro de relações, condições materiais, instituições sociais:

A produção de idéias, de concepções, da consciência, é de início diretamente entrelaçada com a atividade material e com a interação material dos homens, a linguagem da vida real. O conceber, o pensar, a interação intelectual dos homens aparecem neste estágio como uma emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual expressa na linguagem da política, das leis, da moralidade, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas concepções, idéias etc. – homens reais, ativos, tal como são condicionados por um desenvolvimento determinado das forças produtivas e da interação correspondente a estas, até suas formas mais avançadas. A consciência nunca pode ser outra coisa senão existência consciente, e a existência do homem é seu processo de vida real. [IA]


 Devemos observar que embora Marx queira, falando epistemologicamente, ligar estreitamente a consciência e o mundo material, há um sentido político em que ele quer afrouxar tal relação. Para ele, como veremos, somos mais humanos e menos como os outros animais quando produzimos livre, gratuita e independentemente de qualquer necessidade material imediata. A liberdade para Marx é uma espécie de superabundância criativa acima do que é materialmente essencial, aquilo que ultrapassa a medida e se torna seu próprio padrão. Acontece que, para tudo isto acontecer na sociedade, certas condições materiais são necessárias; de tal forma que o próprio “excesso” de consciência acima da natureza que Marx considera a marca distintiva de nossa humanidade é ele próprio um estado de coisas materialmente condicionado. O lugar onde a consciência e a prática social convergem mais obviamente para Marx é a própria linguagem:

A linguagem é tão antiga quanto a consciência; a linguagem é a consciência prática, real, que existe igualmente para outros homens, e apenas assim existe para mim também; a linguagem, como a consciência, somente emerge a partir da carência, da necessidade de interação com outros homens. [IA]

 Mas se a linguagem surge a partir da necessidade, como uma dimensão necessária do trabalho coletivo, ela não permanece atrelada a esta necessidade, como testemunha o fenômeno conhecido como literatura.

Quando se trata não apenas de “consciência”, mas do tipo sistemático de reflexão conhecido como filosofia, então há claramente necessidade de especialistas, academias e um grande número de instituições afins, todas elas podendo, em última análise, ser sustentadas apenas por trabalho alheio. Este é um aspecto do que Marx quer dizer com a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual. Somente quando uma sociedade atingiu certo excedente econômico acima da necessidade material, liberando uma minoria de seus membros das exigências do trabalho produtivo, e concedendo-lhe o privilégio de se tornar políticos em tempo integral, acadêmicos, produtores culturais, e assim por diante, somente então a filosofia pode surgir e florescer no sentido mais completo. Agora o pensamento pode começar a ter fantasias de que é independente da realidade material, simplesmente porque há um sentido material em que de fato o é:

A divisão do trabalho apenas se dá verdadeiramente a partir do momento em que aparece a divisão entre o trabalho intelectual e o manual. (A primeira forma de ideólogo, a dos sacerdotes, é contemporânea.) Deste momento em diante, a consciência pode realmente alimentar a ilusão de ser algo diverso da consciência da prática existente, de realmente representar algo sem representar algo real; de agora em diante, a consciência é capaz de se emancipar do mundo e dar início à formação da “pura” teoria, teologia, filosofia, ética etc. [IA]
 Para Marx, a cultura na realidade tem apenas um progenitor, o trabalho – o que para ele equivale a dizer, a exploração. A cultura da sociedade de classes tende a reprimir esta verdade indesejável; prefere criar em sonhos para si própria um progenitor mais nobre, negando sua filiação inferior e imaginando que surgiu simplesmente da cultura anterior, ou da imaginação individual sem peias. Porém Marx se propõe a nos lembrar que nosso pensamento, como os nossos sentidos tão físicos, é ele próprio o produto da história com a qual se confronta. A história – o mundo real – de alguma maneira sempre escapa ao pensamento que busca abrangê-lo, e Marx, que como bom dialético enfatiza a natureza dinâmica, aberta e interativa das coisas, detestava aqueles pretensiosos sistemas de pensamento que (como o idealismo hegeliano) acreditavam poder de alguma forma costurar o mundo todo no interior de seus conceitos. É tenebrosamente irônico que seu próprio trabalho tenha, entre outras coisas, dado à luz mais tarde exatamente esta estéril construção de sistema.

A questão para Marx é assim a das causas e condições materiais do pensamento. Podemos investigar as causas disso ou daquilo, mas será possível a este pensamento voltar-se para si próprio, por assim dizer, para apreender algo da própria história que o produziu? Talvez para nós modernos haja boas razões pelas quais isto não possa nunca ser totalmente conseguido, pois há sempre algum tipo de ponto cego, alguma amnésia ou auto-opacidade necessária que garante que a mente no fim sempre falhará neste empreendimento. O próprio Marx, como filho do Iluminismo, era talvez bem mais confiante que nós no poder translúcido da razão; mas como pensador historicista – e estas correntes gêmeas, a racionalista e a historicista, estão freqüentemente em tensão no seu trabalho – reconheceu que se todo pensamento fosse histórico, então isto deveria naturalmente valer para seu próprio pensamento. Não poderia ter havido marxismo algum no tempo de Carlos Magno ou Chaucer, uma vez que o marxismo é mais do que um simples conjunto de idéias brilhantes que qualquer pessoa, em qualquer época, pudesse ter tido. É em vez disso um fenômeno situado no tempo e no espaço, que reconhece que as próprias categorias em que pensa – o trabalho abstrato, a mercadoria, o indivíduo com liberdade de movimento e assim por diante – só poderiam ter emergido da herança do capitalismo e do liberalismo político. O marxismo como um discurso emerge quando é tanto possível quanto necessário que o faça, na qualidade de “crítica imanente” do capitalismo, e assim como um produto da própria época que ele deseja ultrapassar. O Manifesto comunista é pródigo em seu louvor à grandiosa burguesia revolucionária e à magnífica liberação de potencial humano conhecida como capitalismo:

A burguesia, onde quer que tenha chegado ao poder, liquidou todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que prendiam o homem a seus “superiores naturais”, e não deixou subsistir entre homem e homem qualquer outra ligação além do interesse próprio nu e cru, do impiedoso “pagamento à vista”. Afogou nas águas geladas do cálculo egoísta os mais celestiais êxtases do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo filistino…Numa palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, colocou a exploração aberta, despudorada, direta e brutal… Arrancou da família seu véu de sentimentalismo, e reduziu a relação familiar a mera relação monetária…A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e conseqüentemente as relações de produção, e com estas todas as relações sociais…O revolucionamento constante da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a permanente incerteza e agitação distingue a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de antigos e veneráveis preconceitos e opiniões, são dissolvidas, todas as relações novas tornam-se antiquadas antes de se consolidar. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são por fim forçados a confrontar com sobriedade suas reais condições de vida e suas relações uns com os outros. [MC]


São estas energias revolucionárias, ao mesmo tempo admiráveis e devastadoras que, por um lado, estabelecem as bases materiais para o socialismo e, por outro, frustram sempre tal projeto. O capitalismo varre todas as formas tradicionais de opressão, e ao fazer isto coloca a humanidade face a face com a realidade brutal que o socialismo deve então reconhecer e transformar.

Apreender o próprio pensamento como enraizado nas próprias condições materiais que ele procura examinar é ser um filósofo materialista, uma expressão que evoca mais que uma sugestão de paradoxo. A tarefa do pensamento materialista é incluir em seus cálculos esta realidade – o mundo material – que é externa ao próprio pensamento e que é, em certo sentido, mais fundamental que ele. Isto é o que Marx quer dizer ao alegar que, na história da espécie humana, o “ser social” determina a consciência, e não vice-versa, como querem os Idealistas:

A moralidade, a religião, a metafísica, todo o resto da ideologia e suas correspondentes formas de consciência perdem assim sua aparência de autonomia. Elas não têm história, nem desenvolvimento; porém os homens, desenvolvendo sua produção e interação materiais, alteram junto com isso sua existência real, seu pensamento e os produtos dele. A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida. [IA]

 Eis aqui então a bem-conhecida inversão marxista de Hegel, cuja dialética de ponta-cabeça, em que as idéias determinam a existência social, precisa ser assentada firmemente em seus pés materialistas. Para Marx, o que dizemos ou pensamos é em última análise determinado por aquilo que fazemos. São práticas históricas que se encontram no fundo de nossos jogos de linguagem. Mas um pouco de cautela é necessário aqui. Pois o que fazemos enquanto seres históricos é sem dúvida profundamente ligado com o pensamento e a linguagem; não há prática humana fora do domínio do significado, da intenção e da imaginação, como o próprio Marx insiste:

O animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. Ele é sua atividade vital. O homem torna sua própria atividade vital objeto de sua vontade e sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinação com a qual ele se amalgama diretamente. [MEF]… Uma aranha realiza operações semelhantes às de um tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos na construção de sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o arquiteto constrói sua estrutura na imaginação antes de erigi-la na realidade.[Cv1]

 O ser social dá origem ao pensamento, mas ele mesmo é envolvido pelo pensamento. Mesmo assim, Marx sustenta ser aquele mais fundamental – assim como sustenta que a “base” da sociedade dá origem à sua “superestrutura” cultural, jurídica, política e ideológica:

Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, indispensáveis e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um estágio determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se ergue uma superestrutura legal e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geral. Não é a consciência do homem que determina seu ser, porém, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência. [CCEP, prólogo]

 Temos aqui então a celebrada “teoria econômica da história” de Marx. Suas alegações sobre as prioridades do ser social e da consciência são ontológicas, referentes ao que ele julga serem os homens. É bem possível que a doutrina da base/ superestrutura seja isto: ela sustenta que todas as formas sociais e políticas, e todas as principais mudanças históricas, são em última análise determinadas por conflitos no interior da produção material. Mas pode também ser vista mais historicamente, como descrevendo a maneira em que a política, o direito, a ideologia e assim por diante operam nas sociedades de classe. Marx quer dizer que, em tais ordens sociais, precisamente porque a “base” das relações sociais é injusta e contraditória, tais formas têm a função de ratificar, promover ou esconder esta injustiça, e assim podem ser consideradas, neste sentido, secundárias ou superestruturais em relação a elas. Pode então haver uma implicação de que se as relações sociais fossem justas, tal superestrutura seria desnecessária. Trata-se aqui, em outras palavras, da função política das idéias na sociedade, não apenas de sua origem material. E isto nos leva ao conceito marxista de ideologia.

As idéias da classe dominante são em cada época as idéias dominantes, isto é, a classe que constitui a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força intelectual dominante. A classe que dispõe dos meios da produção material detém ao mesmo tempo o controle sobre os meios de produção espiritual, de tal modo que, em geral, as idéias daqueles que carecem dos meios da produção espiritual ficam sujeitas a esta classe. As idéias dominantes são nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes concebidas como idéias… [IA]

 Quando a filosofia se torna ideologia, tende a desviar a atenção dos homens e mulheres dos conflitos históricos insistindo no primado do espiritual, ou oferecendo uma resolução destes conflitos num plano mais alto, imaginário. É por isso que Marx censura os hegelianos. Sua visão da história, em contraste,

(...) consiste em expor o processo real de produção, começando pela produção material da própria vida, e de compreender a forma de interação ligada a, e criada por, este modo de produção (isto é, a sociedade civil em seus vários estágios) como base de toda a história; e de mostrá-la em sua ação como Estado, de explicar todas as diversas formas teóricas e produtos da consciência, religião, filosofia, ética etc. etc. e traçar sua origem e desenvolvimento a partir desta base; e por meio disto, evidentemente, a coisa em sua totalidade pode ser representada (e, portanto, também a ação recíproca destes vários elementos uns sobre os outros). [IA]

 Diferente do pensamento idealista, tal concepção materialista “permanece sempre no fundamento real da história”:


[Ela] não explica a prática a partir da idéia, mas a formação das idéias a partir da prática material; e, em conseqüência, chega à conclusão de que todas as formas e produtos da consciência não podem ser dissolvidos pela crítica espiritual, pela dissolução em “autoconsciência” ou transformação em “aparições”, “espectros”, “fantasias” etc., mas apenas pela derrubada prática das relações sociais reais que deram origem a esta mistificação idealista… [IA]

 A afirmação de Marx é que se os problemas teóricos cruciais estão ancorados em contradições sociais, então só podem ser resolvidos politicamente, em vez de filosoficamente.

Um certo estilo de filosofar dá origem assim a certo “descentramento” da própria filosofia. Como muitos antifilósofos, Marx tenta deslocar todo o terreno em que o discurso está assentado, apreendendo os enigmas filosóficos tanto como sintomáticos de um subtexto histórico real, quanto como uma maneira de lançar este subtexto fora do campo de visão. Por mais que a filosofia goste de sonhar que se produz a si mesma, ela deve confrontar-se com sua dependência daquilo que a transcende. A abordagem materialista:

… mostra que a história não termina ao ser dissolvida em “auto consciência” como o “espírito do espírito”, mas que em cada estágio encontra-se um resultado material: uma soma de forças produtivas, uma relação historicamente criada de indivíduos com a natureza e entre si, a qual é transmitida para cada geração pela precedente; uma massa de forças produtivas, de capitais e condições que, por um lado, é na verdade modificada pela nova geração, mas também, por outro lado, prescreve a ela suas condições de vida e lhe dá um desenvolvimento determinado, um caráter especial. Ela demonstra que as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias. [IA]

 A humanidade, portanto, não é apenas o produto determinado de suas condições materiais; se fosse, como poderia Marx ter esperança de que ela pudesse algum dia transforma-las?

Ele não é um materialista “mecânico” , como, digamos, Thomas Hobbes, que vê a consciência como mero reflexo das circunstâncias, mas um materialista histórico no sentido de que deseja explicar a origem, o caráter e a função das idéias em termos das condições históricas nas quais estão inseridas.

Ele parece ter esquecido, entretanto, que nem toda filosofia é necessariamente Idealista. Seu próprio pensamento não o é, nem o dos grandes materialistas burgueses do Iluminismo francês com os quais tanto aprendeu. Também a ideologia, na verdade, nem sempre é “Idealista”. Mesmo assim, a concepção de Marx da filosofia Idealista é original: ele a vê como uma forma de fantasia, que se esforça para atingir na mente aquilo que não pode ainda ser conseguido na realidade histórica. E, neste sentido, a resolução das contradições históricas significaria a morte da especulação filosófica. Mas isto também é verdade em relação ao próprio pensamento de Marx. Não haveria lugar para a filosofia marxista numa sociedade verdadeiramente comunista, uma vez que tal teoria existe unicamente para ajudar a pôr em existência tal sociedade. Na verdade, em seu registro antiutópico, o trabalho de Marx tem surpreendentemente pouco a dizer sobre como efetivamente seria o futuro estado de coisas. Seu pensamento, como toda teoria política radical, é, portanto no fim auto-eliminante. E este é talvez o sentido mais profundo em que é histórico.


ANTROPOLOGIA

O pensamento (pós) moderno tende a ser antifundacionista, suspeitando que qualquer fundamento objetivo para nossa existência seja alguma ficção arbitrária de nossa própria autoria. Marx, em contraste, é um pensador mais clássico ou tradicional, para quem o fundamento de nosso ser é aquela forma compartilhada de natureza material que ele denomina “ser genérico”. Como a expressão “natureza humana”, este conceito paira ambiguamente entre a descrição e a prescrição, entre fato e valor, entre uma explicação de como somos e como devemos ser. Somos animais naturalmente sociais, dependentes uns dos outros para nossa própria sobrevivência, contudo isto deve se tornar um valor político além de um fato antropológico. Como um pensador historicista, Marx propõe-se a resgatar as instituições humanas da falsa eternidade que o pensamento metafísico lhe atribuiu; o que foi historicamente criado pode sempre ser historicamente mudado. Mas ele é também, um tanto paradoxalmente, um tipo de essencialista aristotélico, sustentando que existe uma natureza ou essência humana e que a sociedade justa seria aquela em que tal natureza pode se realizar. Como então ele resolve esta aparente discrepância em seu pensamento?

Ele o faz, como Hegel já o fizera, vendo a mudança, o desenvolvimento, como a essência da humanidade. Faz parte de nossa natureza realizarmos nossos poderes; porém de que espécie de poderes se trata e em que condições os realizamos, é uma questão historicamente específica. Para o jovem Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos, somos humanos na medida em que compartilhamos um tipo específico de “ser genérico” com nossos semelhantes:

A essência humana da natureza existe apenas para o homem social; pois, apenas neste caso, a natureza existe para ele como um vinculo com outros homens, como sua existência para os outros, e a existência dos outros para ele, como o elemento vital da realidade humana; apenas assim esta essência existe como a base de sua própria existência humana. Só então sua existência natural torna-se sua existência humana, e a natureza torna-se para ele o homem. A sociedade é, portanto a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da natureza…Acima de tudo é necessário evitar uma vez mais estabelecer a “sociedade” como uma abstração acima e contra o indivíduo. O indivíduo é o ser social.. Sua expressão vital – mesmo quando não aparece na forma direta de uma expressão coletiva, concebida em associação com outros homens – é, portanto uma expressão e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são duas coisas distintas… [MEF]

 Este ser genérico tem alguma finalidade ou meta? É Marx um pensador teleológico? Num sentido sim, em outro não. Pois a finalidade de nosso ser genérico, numa espécie de tautologia criativa, consiste simplesmente em realizar-se. Para Marx, assim como para outros românticos radicais, não existe nem deveria existir uma razão última para a existência humana além de seu desenvolvimento por si só prazeroso:

Quando trabalhadores comunistas se reúnem, seu objetivo imediato é a instrução, a propaganda etc. Mas ao mesmo tempo eles passam a ter uma nova necessidade – a necessidade de associação -, e o que aparecia como um meio torna-se um fim. Este desenvolvimento prático pode ser observado da maneira mais surpreendente nas reuniões dos trabalhadores socialistas franceses. Fumar, comer, beber etc. deixam de ser meios de criar ligações entre as pessoas. A companhia, a associação, a conversa, que por sua vez têm a sociedade como objetivo, são o que basta para eles. A fraternidade do homem não é uma frase vazia, é uma realidade, e a nobreza do homem brilha em seus semblantes desgastados pelo trabalho. [MEF]

 Esta noção romântica de uma natureza cujo autodesenvolvimento é um fim em si mesmo está em oposição a duas outras poderosas formas de pensamento da época de Marx.

A primeira é o tipo de raciocínio metafísico que convocaria a atividade humana para se explicar diante de algum tribunal superior: do dever, da moral, das sanções religiosas ou da idéia Absoluta. Marx é profundamente hostil a tal metafísica, embora seja um moralista profundo por sua própria conta. Acontece apenas que para ele a moralidade consiste em verdade neste processo de desdobramento de nossos poderes e capacidades criativos, não em alguma lei posta acima dela, ou algum majestoso conjunto de fins plantados além dela. Não há necessidade de justificar esta dinâmica, não mais do que se precisa justificar um sorriso ou uma canção; ela pertence simplesmente à natureza que temos em comum.

Mas esta ética também se encontra em conflito com a forma de razão instrumental para a qual os indivíduos existem em virtude de alguma finalidade maior: o estado político, por exemplo, ou – como no pensamento utilitário dominante na época de Marx – a promoção da felicidade universal. Este raciocínio de meios e fins é a forma de racionalidade que Marx acredita predominar nas sociedades de classe, nas quais as energias da maioria são instrumentos para o lucro de poucos. Na sociedade capitalista,

o trabalho, a atividade vital, a própria vida produtiva aparece ao homem apenas como um meio para a satisfação de uma necessidade, a necessidade de preservar a existência física. Mas a vida produtiva é vida do gênero. É vida produtora de vida. Todo o caráter de uma espécie, seu caráter genérico, reside na natureza de sua atividade vital, e a atividade livre consciente constitui o caráter genérico do homem. [No capitalismo], a própria vida aparece apenas como um meio de vida. [MEF]

 Na sociedade de classe, o indivíduo é forçado a converter o que é menos funcional em si – seu ser genérico auto-realizador – em mera ferramenta da sobrevivência material.

Não que Marx, é claro, repudie completamente esta razão instrumental. Sem ela, não poderia haver ação racional alguma; e sua própria política revolucionária envolve o ajuste de meios a fins. Mas uma das muitas ironias de seu pensamento é que isto está a serviço da construção de uma sociedade em que os homens e mulheres seriam livres para florescer como fins radicais em si mesmos. É apenas porque valoriza o indivíduo tão profundamente que Marx rejeita uma ordem social que, enquanto apregoa o valor do individualismo em teoria, na prática reduz homens e mulheres a unidades anonimamente intercambiáveis.

Diante de um pedido para caracterizar a ética de Marx, poderíamos fazer pior do que chamá-la de “estética”. Pois esta é tradicionalmente a forma de prática humana que não requer justificação utilitária alguma, mas que provê suas próprias metas, fundamentos e razões. É um exercício de energia auto-realizadora como um fim em si mesmo; e o socialismo para Marx é simplesmente o movimento prático para estabelecer um estado de coisas em que algo semelhante a isto estaria disponível para tantos indivíduos quanto possível. Onde estiver a arte, lá estará a humanidade. Por isso ele almeja uma sociedade em que o trabalho seria tanto quanto possível automatizado, de tal forma que homens e mulheres (capitalistas bem como trabalhadores) [Os atuais, bem entendido. Marx almeja uma sociedade sem capitalistas e sem proletários.] não mais seriam reduzidos a meras ferramentas de produção, sendo em vez disso livres para desenvolver suas personalidades de maneira mais harmoniosa. O socialismo para ele depende crucialmente do encurtamento da jornada de trabalho, para permitir que este florescimento geral se torne disponível:

A liberdade neste campo [do trabalho] só pode consistir em o homem socializado, os produtores associados regularem racionalmente seu intercâmbio com a natureza... e conseguindo isto com o mínimo dispêndio de energia e sob as condições mais favoráveis a, e dignas de sua natureza humana. Mas trata-se ainda do domínio da necessidade. Além dele começa aquele desenvolvimento da energia humana que é um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, a qual, entretanto, só pode florescer com base neste reino da necessidade. A diminuição da jornada de trabalho é seu pré-requisito básico. [C vol 3]

 Outra maneira de expressar tal idéia consiste em dizer que almeja libertar o “valor de uso” dos seres humanos de seu aprisionamento ao “valor de troca”. Um objeto é para ele algo sensível que deveríamos usar e usufruir por suas qualidades específicas; isto é o que ele quer dizer com o “valor de uso”. Sob condições capitalistas, entretanto, os objetos são reduzidos a mercadorias: eles existem meramente em função de seu valor de troca, de serem comprados e vendidos. E quanto a isto, quaisquer duas mercadorias do mesmo valor são reduzidas a uma igualdade abstrata entre elas. Suas qualidades sensíveis específicas são assim deleteriamente ignoradas, à medida que a diferença é dominada pela identidade.

Mas isto vale igualmente para os seres humanos sob o mesmo sistema social. Sob condições de mercado, os indivíduos se confrontam enquanto entidades abstratas, intercambiáveis; os trabalhadores tornam-se mercadorias, vendendo sua força de trabalho para quem paga mais; e ao capitalista não importa o que produz desde que seja lucrativo. O que vale para o domínio econômico é também verdadeiro para a arena política: o Estado burguês considera seus cidadãos abstratamente iguais quando se trata, digamos, da cabine de votação, mas apenas de maneira tal que suprime e esconde suas desigualdades sociais específicas. O objetivo da democracia socialista é sanar esta fissura entre a forma política e o conteúdo social, de tal forma que nossa presença dentro do Estado político [Este Estado político de Eagleton não se encontra de modo nenhum, nas palavras de Marx que vêm a seguir. Pode até ver-se nelas a visão da superação de todos os tipos de Estado. Nota de velha toupeira], como cidadãos participantes, seria nossa presença como indivíduos reais:


Somente quando o homem real, individual resume em si o cidadão abstrato, e enquanto homem individual tiver se tornado um ser genérico em sua vida empírica, em seu trabalho individual e em suas relações individuais, somente quando o homem tiver reconhecido e organizado suas forças próprias como forças sociais, de tal modo que a forças social não mais se separe dele na forma de força política, somente então a emancipação humana estará completa. [QJ]

 [O parágrafo seguinte foi traduzido por nós pois faltava na tradução que estamos a apresentar. Nota de velha toupeira.]

Assim como Marx quer abolir o intercâmbio de mercadorias na esfera econômica, para que a produção esteja mais ao serviço do uso que do lucro, também deseja “desmercantilizar” a personalidade humana, emancipando a riqueza do desenvolvimento individual sensível da lógica abstrata, utilitária, na qual comumente se acha prisioneiro. Sob o capitalismo, inclusive nossos sentidos se transformam em mercadoria, de tal maneira, que só com a abolição da propriedade privada o corpo humano se liberaria e a sensibilidade humana chegaria a ser o que é:

A superação da propriedade privada é, portanto, a emancipação completa de todos os sentidos e atributos humanos; mas o é precisamente por que tais sentidos e atributos tornaram-se humanos, tanto subjetiva quanto objetivamente. O olho tornou-se um olho humano, assim como seu objeto tornou-se objeto social, humano, feito pelo homem, para o homem. Os sentidos, portanto, tornaram-se teóricos em sua práxis imediata. Eles se relacionam com a coisa em função dela, mas a própria coisa é uma relação humana objetiva consigo mesma e com o homem, e vice-versa. A necessidade e a fruição perderam assim sua natureza egoísta, e a natureza perdeu sua mera utilidade tendo em vista que seu uso tornou-se uso humano. [MEF]

 A antropologia política de Marx está enraizada numa concepção muito ampla de trabalho, a saber, na noção do corpo humano como fonte de vida social. À medida que a vida social fica mais complexa, o trabalho se torna inevitavelmente mais especializado, com formas diferentes divididas entre produtores diferentes. Esta é uma maneira necessária de desenvolver e aperfeiçoar as forças produtivas; mas também envolve para Marx um tipo de alienação em que os poderes humanos são realizados de um modo deformadoramente unilateral, em contraste com seu ideal do indivíduo versátil que mobiliza uma grande riqueza de talentos. A divisão do trabalho constitui assim outro exemplo do divórcio, na sociedade de classes, entre o individual e o universal, à medida que o potencial completo de nosso ser genérico definha reduzindo-se a alguma função única como o trabalho mecânico do trabalhador de fábrica:

A divisão do trabalho constitui o primeiro exemplo de como, enquanto o homem permanece na sociedade natural, ou seja, enquanto existe uma clivagem entre o interesse particular e o interesse comum, enquanto, por conseguinte, a atividade é dividida não voluntariamente, mas naturalmente, a própria ação humana torna-se um poder estranho oposto a ele, que o escraviza em vez de ser por ele controlado. Pois tão logo a distribuição de trabalho se instaura, cada homem tem uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual ele não pode escapar. Ele é caçador, pescador, pastor ou crítico [a critical critic], e deve continuar a sê-lo se não quiser perder seus meios de vida; ao passo que na sociedade comunista, onde ninguém possui uma esfera de atividade exclusiva, mas todos podem se aperfeiçoar em qualquer uma, a sociedade regula a produção geral e assim me torna possível fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar pela manhã, pescar à tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica depois do jantar, de acordo com minhas inclinações, sem nunca me tornar pescador, pastor ou crítico. [IA]

 Famosa ou famigerada, esta é uma das poucas especulações francamente utópicas de Marx.

Há inevitavelmente muitos problemas com a ética política de Marx, como acontece com qualquer outro tipo de ética. Seria esta noção de sujeito humano que se forma a si próprio livremente apenas uma versão de espírito mais generoso do modelo patriarcal burguês de homem como esforçado auto-produtor? Seria o ser humano ideal de Marx algum tipo de Prometeu proletário? Em que medida seria esta uma versão de esquerda do ideal burguês de uma ilimitada, fáustica realização de riqueza, que trata o eu como algo que se possui? É possível ver nesta doutrina um ativismo um tanto implacável demais, que subestima o que Wordsworth chamou de “passividade sábia”, e Keats de “capacidade negativa”.  Devemos realizar todos os nossos poderes e capacidades? Que dizer daqueles que parecem mórbidos ou destrutivos? Talvez Marx julgasse que nossos poderes se tornam destrutivos apenas em virtude de serem constrangidos – neste caso, estaria seguramente errado. E como poderíamos discriminar, entre nossas capacidades, as positivas das negativas, se não temos critério algum além deste próprio processo historicamente relativo? A “versatilidade” do desenvolvimento pode parecer a algumas pessoas inferior ao cultivo de um único talento criativo, ou a abnegação mais louvável que a auto-expressão de si.

Algumas destas críticas podem ser rebatidas. Marx, como bom materialista, claramente não acreditava que o autodesenvolvimento humano pudesse ser ilimitado; estava atento às limitações de nossa condição, não menos que a seus potenciais:

O homem é imediatamente um ser natural. Enquanto ser natural e enquanto ser natural vivo, ele é dotado, por um lado, de poderes naturais, poderes vitais, ele é um ser natural ativo… Por outro, enquanto ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que sofre, condicionado e limitado, como os animais e as plantas, ou seja: os objetos de seus impulsos existem fora dele enquanto objetos independentes dele; porém tais objetos são objetos de sua necessidade, objetos essenciais, indispensáveis ao exercício e confirmação de seus poderes essenciais. [MEF]

 Marx pode ter superestimado a produção, porém seguramente não limitou o termo a seu sentido econômico. Ao contrário, considerou o fato de que o capitalismo faz precisamente isto como uma característica espiritualmente empobrecedora. “Produção” para ele é um conceito de grande riqueza, equivalente a “auto-realização”; e nesta medida saborear um pêssego ou deleitar-se com um quarteto de cordas sejam aspectos de nossa auto-realização, tanto quanto construir represas ou fabricar cabides mecanicamente.


Quando a forma burguesa limitada é eliminada, o que é a riqueza a não ser a universalidade, criada por meio da troca universal, das carências, capacidades, prazeres, forças produtivas etc., individuais? O desenvolvimento completo do domínio humano sobre as forças da natureza, tanto as da natureza propriamente dita quanto as da natureza da humanidade? O desenvolvimento absoluto das potencialidades criativas [do ser humano] sem pressuposição alguma a não ser o desenvolvimento histórico prévio, que torna esta totalidade de desenvolvimento, isto é, o desenvolvimento de todos os poderes humanos como tais o fim em si mesmo, não medido segundo um padrão predeterminado? Onde ele não se reproduz numa especificidade, mas produz sua totalidade? Se esforça não para permanecer algo que se tornou, porém é no movimento absoluto do devir? [G]

 Nosso ser genérico é então naturalmente produtivo, preocupado em desenvolver seus poderes transformando o mundo:

A criação prática de um mundo objetivo, a moldagem da natureza inorgânica, é prova de que o homem é um ser genérico consciente, isto é, um ser que trata o gênero como seu próprio ser essencial ou a si próprio como um ser genérico. É verdade que os animais também produzem… Porém eles produzem somente suas próprias necessidades imediatas ou as de sua prole; eles produzem unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; eles produzem apenas quando a necessidade física imediata os compele, enquanto o homem produz mesmo estando livre da necessidade física e produz verdadeiramente apenas assim. [MEF]

 Somos livres então, quando, como artistas, produzimos sem o aguilhão da necessidade física; e esta natureza é para Marx a essência de todos os indivíduos. Ao desenvolver minha própria personalidade individual dando forma a um mundo, estou também realizando o que tenho de mais profundo em comum com os outros, de tal maneira que o ser individual e o ser genérico são em última análise o mesmo. Meu produto é minha existência para o outro, e pressupõe a existência do outro para mim. Esta é para Marx uma verdade ontológica, decorrente do tipo de criaturas que somos; porém é possível para certas formas de vida social introduzir uma cunha entre estas duas dimensões do eu, individual ou coletivo, e isto, na verdade, é o que o jovem Marx chama de alienação. Num sentido, tal fissura já existe, uma vez que faz parte da essência do ser humano o fato de que ele pode objetificar sua própria natureza, tomar distância em relação a ela, e isto está nas raízes de nossa liberdade. Mas numa sociedade de classes, os objetos produzidos pela maioria dos homens e mulheres são apropriados pela minoria que possui e controla os meios de produção; e isto significa que eles não são mais capazes de se reconhecer no mundo que criaram. Sua auto-realização é não mais um fim em si mesma, mas se torna puramente instrumental para o autodesenvolvimento dos outros:

Tal fato significa simplesmente que o objeto produzido pelo trabalho, seu produto, fica oposto a ele como algo estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é trabalho incorporado e tornado material num objeto, é a objetificação do trabalho… Na esfera da economia política, esta realização do trabalho aparece como uma perda de realidade para o trabalhador, a objetificação como uma perda do, e submissão ao, objeto, e a apropriação como estranhamento, como alienação… O trabalho alienado não apenas (1) aliena a natureza do homem e (2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; por causa disso, ele também aliena o homem de seu gênero. Ele transforma sua vida genérica em um meio para manter sua vida individual. [MEF]

 O trabalhador, Marx comenta, sente-se em casa apenas quando não está trabalhando. Assim, a alienação é um processo múltiplo, que divorcia o trabalhador da natureza de seu produto e do próprio processo de trabalho, de seu próprio corpo, mas também da atividade vital coletiva que faz dele um verdadeiro ser humano. “Em geral”, escreve Marx, “a proposição de que o homem é alienado de seu ser genérico significa que ele é alheado dos outros, e que todos estão alienados da essência do homem“.  [MEF]

 Ao sofrer uma “perda de realidade”, os produtores ironicamente fortalecem com seu trabalho o próprio regime responsável por isso:

Quanto mais o trabalhador se empenha em seu trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo estranho, objetivo, que ele cria contra si próprio, tanto mais pobre se tornam ele e seu mundo interior, e menos estes lhe pertencem. Acontece o mesmo com a religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador coloca sua vida no objeto; mas agora ela não mais lhe pertence, mas sim ao objeto. Quanto maior sua atividade, portanto, menos objetos o trabalhador possui. O que o produto de seu trabalho é, ele não é. Portanto, quanto maior este produto, tanto menos ele é. A alienação do trabalhador significa não apenas que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa, mas que existe fora dele, independente dele e estranho a ele, e começa a confrontá-lo como um poder autônomo; que a vida que ele conferiu ao objeto o confronta como algo hostil e estranho. [MEF]

 Os produtos do trabalhador escapam de seu controle, assumem uma autonomia própria, e vêm a exercer o poder quase mágico sobre ele, que Marx mais tarde denominou “o fetichismo das mercadorias”. Uma mercadoria para Marx é um produto que pode ser trocado igualmente por outro porque incorpora a mesma quantidade de trabalho. Como ele explica n’O capital,

Consideremos duas mercadorias, por exemplo, ferro e trigo. As proporções, quaisquer que sejam, em que elas são trocáveis, podem sempre ser representadas por uma equação em que uma dada quantidade de trigo é igualada a certa quantidade de ferro…O que nos diz tal equação? Nos diz que, em duas coisas diferentes – em um quarter de trigo [aprox. 290 litros] e x quintais de ferro [1 quintal (hundredweight, cwt) = aprox. 50 kg] -, existe em quantidades iguais algo comum a ambos. As duas coisas devem, portanto ser iguais a uma terceira, que em si mesma não é uma nem outra. Cada uma delas, no que se refere ao valor de troca, deve ser redutível a esta terceira coisa… Este “algo” em comum não pode ser uma propriedade natural das mercadorias. Tais propriedades são consideradas apenas à medida que afetam a utilidade de tais mercadorias, em que as tornam valores de uso. Mas a troca de mercadorias é evidentemente um ato caracterizado por uma abstração total do valor de uso…Enquanto valores de uso, as mercadorias são, acima de tudo, de diferentes qualidades, mas enquanto valores de troca, elas são apenas quantidades diferentes, não contendo assim átomo algum de valor de uso. Portanto, se não consideramos o valor de uso das mercadorias, a elas resta apenas uma propriedade, a de serem produtos do trabalho. [C.vol1]

 As mercadorias para Marx são, portanto, entidades dúplices vivendo uma dupla vida, uma vez que aquilo que as faz mercadorias é curiosamente independente de suas propriedades materiais. Elas existem unicamente para serem trocadas; e uma mercadoria, a despeito de todas as aparências sensíveis, é exatamente igual a qualquer outra mercadoria que incorpore a mesma quantidade de força de trabalho. Mas uma mercadoria é assim um fenômeno abstrato, que estabelece relações com outras mercadorias de maneira completamente independente da vida concreta de seus produtores:


Uma mercadoria, portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o caráter social do trabalho dos homens aparece a eles como uma característica objetiva estampada no produto deste trabalho; porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio trabalho é apresentada a eles como uma relação social que existe não entre eles, mas entre os produtos de seu trabalho…[A] existência das coisas enquanto mercadorias, e a relação de valor entre os produtos de trabalho que os marca como mercadorias, não têm absolutamente conexão alguma com suas propriedades físicas e com as relações materiais que daí se originam… É uma relação social definida entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. A fim de encontrar uma analogia, devemos recorrer às regiões enevoadas do mundo religioso.

Neste mundo, as produções do cérebro humano aparecem como seres independentes dotados de vida, e entrando em relações tanto entre si quanto com a espécie humana. O mesmo acontece no mundo das mercadorias com os produtos das mãos dos homens. A isto dou o nome de fetichismo que adere aos produtos do trabalho, tão logo eles são produzidos como mercadorias, e que é, portanto inseparável da produção de mercadorias. [Cvol1]

O capitalismo, em resumo, é um mundo em que sujeito e objeto estão invertidos – um domínio em que se é sujeitado e determinado pelas próprias produções, as quais retomam em forma opaca, imperativa, mantendo o poder sobre a existência de cada um. O sujeito humano cria um objeto, o qual se torna então um pseudo-sujeito capaz de reduzir seu próprio criador a algo manipulado. Quando o capital emprega trabalho, em vez de o trabalho empregar o capital, os mortos assumem um poder vampiresco sobre os vivos, uma vez que o próprio capital é trabalho “morto” ou armazenado:

Quanto menos você come, bebe, compra livros, vai ao teatro, sai para beber, pensa, ama, teoriza, canta, pinta, luta esgrima etc., mais você economiza e maior se tornará o tesouro que nem traças nem larvas podem consumir – seu capital. Quanto menos você é, quanto menos você expressa sua vida, mais você tem, maior é sua vida alienada e mais você acumula de sua essência alienada… tudo o que você é incapaz de fazer, seu dinheiro pode fazer por você… [MEF]

 O processo de reificação, em que o animado e o inanimado trocam de lugar e os mortos tiranizam os vivos, é particularmente evidente na “mercadoria universal”, o dinheiro:

Quanto maior o poder de meu dinheiro, mais forte sou. As qualidades do dinheiro são qualidades e poderes essenciais meus, do possuidor. Portanto o que sou e o que posso fazer não são de forma alguma determinados por minha individualidade. Sou feio,  porém posso comprar a mulher mais bela. O que significa que não sou feio, uma vez que o efeito da feiúra, seu poder repulsivo, é destruído pelo dinheiro. Como um indivíduo, sou manco, porém o dinheiro me proporciona vinte e quatro pernas. Logo, não sou manco. Sou um individuo perverso, desonesto, inescrupuloso e estúpido, mas o dinheiro é respeitado, e assim também seu dono. O dinheiro é o bem supremo, e conseqüentemente seu dono também é bom. [MEF]

 O dinheiro, comenta Marx, é “a prostituta universal, o proxeneta universal de homens e povos”, uma espécie de linguagem deturpada em que todas as qualidades humanas e naturais são misturadas e invertidas, e qualquer coisa pode ser magicamente transformada em qualquer outra.

Que a homens e mulheres sejam restituídos seu mundo, seus corpos sensíveis, sua atividade vital e seu ser coletivo, é isso que para Marx significa o comunismo. O comunismo é simplesmente o tipo de estrutura política [Lá vem ele! Nota da velha toupeira] que nos permitiria reapropriar nosso ser confiscado, aqueles poderes alienados de nós pela sociedade de classes. Se os meios de produção fossem coletivamente possuídos e democraticamente controlados, então o mundo que criamos juntos nos pertenceria em comum, e a autoprodução de cada um poderia se tornar parte da autorrealização de todos.


HISTÓRIA

Se Marx é filósofo, é filósofo de quê? Com certeza de nada tão grandioso quanto a “existência humana”, mas também nada tão restrito quanto a economia política. Seu pensamento não pretende ser uma espécie de teoria cósmica que, assim como a religião, destina-se a explicar todas as características da vida humana. É verdade que seu colaborador Friedrich Engels desenvolveu uma teoria extremamente ambiciosa conhecida como materialismo dialético, a qual procura entrelaçar tudo, da física e da biologia à história e à sociedade. Mas os escritos do próprio Marx representam um empreendimento bem mais modesto e restrito, que tem o objetivo de identificar, e trabalhar no sentido de desmontar, as principais contradições sociais que no presente nos impedem de viver o que veríamos como uma vida verdadeiramente humana, em toda a riqueza de nossos poderes corporais e espirituais. Ele tem muito pouco a dizer a respeito do que aconteceria depois, dado que para ele tal processo constituiria o princípio da história humana propriamente dita, que se encontra além de nossa linguagem atual. Tudo o que aconteceu até agora é para ele mera “pré-história” – a sucessão de várias formas de sociedade de classes. E como a obra do próprio Marx pertence a esta época, sendo inevitavelmente dependente de suas formas de pensamento e modelos de vida, não pode, em virtude de sua lógica historicista, tentar pular por cima dela para imaginar alguma forma de utopia. Marx é decididamente hostil a tal utopismo, vendo sua tarefa não como a de traçar modelos para o futuro, mas de analisar e desvendar as contradições reais do presente. Não está em busca de um estado perfeito, uma expressão que seria para ele uma contradição nos termos.

Mas isto não significa que Marx seja apenas um teórico político do presente. As contradições que ele julga nos impedirem de dar início à verdadeira história, em toda sua riqueza, fruição e variedade individual, são para ele parte de uma narrativa muito mais longa. Ele não é, portanto primordialmente um economista político ou sociólogo, ou – como vimos – em primeiro lugar um filósofo. Em vez disso, ele nos oferece uma teoria da própria história, ou, mais precisamente, uma teoria da dinâmica das principais mudanças históricas. Esta filosofia ficou conhecida como  materialismo histórico.

Como então Marx via a história em desenvolvimento? Às vezes se pensa que neste aspecto a noção de classe social é central em sua perspectiva. Porém, Marx não descobriu esta ideia, e ela não constitui seu conceito mais vital. Seria mais precisa a alegação de que a ideia de luta de classes está mais próxima do cerne de seu trabalho: a doutrina segundo a qual as diversas classes sociais existem num estado de antagonismo mútuo em razão de seus interesses materiais conflitantes. Como ele diz no Manifesto comunista: “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe”  [MC]. Porém mesmo este pronunciamento tão abrangente não chega a nos levar ao núcleo de seu pensamento. Pois podemos perguntar por que as classes sociais deveriam viver neste estado de guerra permanente; e a resposta, para Marx, diz respeito à história da produção material.

Seu conceito-chave é o de “modo de produção”, significando uma combinação historicamente específica de certas forças de produção com certas relações de produção.

“Forças” referem-se aos vários meios de produção disponíveis numa sociedade, ao lado da força de trabalho humana. Um tear mecânico ou um computador são forças produtivas, capazes de produzir valor; porém tais forças materiais são sempre inventadas, desenvolvidas e mobilizadas no interior de determinadas relações sociais de produção – para Marx, principalmente as relações entre os que possuem e controlam os meios de produção e os não-proprietários cuja força de trabalho é colocada à disposição daqueles. Numa leitura de Marx, a história progride em virtude de as forças e relações de produção entrarem em contradição entre si:

Em certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou – o que é apenas a expressão jurídica da mesma coisa – com as relações de propriedade no interior das quais elas funcionaram até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, tais relações convertem-se em entraves. Começa então uma época de revolução social. [CCEP, prólogo]

 É por este mecanismo que um modo de produção dá lugar a outro. Para Marx, o primeiro de tais modos é o “tribal”:

Ele corresponde ao estágio não-desenvolvido, no qual um povo vive da caça e da pesca, da criação de animais ou, no estágio mais alto, da agricultura. Neste último caso, ele pressupõe grandes extensões de terra virgem. A divisão de trabalho neste estágio ainda é muito elementar e se resume a mais uma extensão da divisão natural do trabalho existente na família. A estrutura social não passa, portanto, de uma extensão da família: chefes de família patriarcal, abaixo deles os membros da tribo e por fim escravos. [IA]

 A partir daí emerge gradualmente o modo de produção “antigo”,

(...) que resulta principalmente da união de diversas tribos numa cidade por acordo ou conquista, e na qual subsiste a escravidão. Além da propriedade comunal, já se encontra em desenvolvimento a propriedade privada de bens móveis, e mais tarde de imóveis, porém como uma forma anômala subordinada à propriedade comunal. Os cidadãos mantêm o poder somente sobre os escravos que trabalham em sua comunidade, e simplesmente em virtude disso são ligados à forma de propriedade comunal… toda a estrutura da sociedade baseada nesta propriedade comunal, e com ela o poder do povo, decai no mesmo grau em que se desenvolve a propriedade privada particularmente de imóveis. [IA]

Segue-se então o modo de produção feudal:

Como a propriedade tribal e comunal, [a propriedade feudal] é baseada numa comunidade; porém a classe diretamente produtora não é, como no caso da comunidade antiga, formada pelos escravos, mas sim pelos pequenos camponeses servilizados. Tão logo o feudalismo se desenvolve plenamente, nasce também o antagonismo às cidades. A estrutura hierárquica da propriedade da terra e a vassalagem armada associada a ela deram à nobreza poder sobre os servos. Tal organização feudal era, tanto quanto a propriedade comunal antiga, uma associação contra uma classe produtora subjugada, porém a forma de associação e a relação com os produtores diretos eram diferentes graças à diferença nas condições de produção. [IA]

 Ao lado das propriedades feudais rurais surgiram as guildas mercantis nas cidades, com produção em pequena escala e escassa divisão de trabalho. Mas as reformas sociais do feudalismo, com seu sistema de guildas restrito, acaba tolhendo o desenvolvimento da burguesia emergente nas cidades, a qual finalmente rompe estas restrições numa revolução política e libera as forças de produção numa escala épica. Mais tarde, contudo, como classe industrial capitalista plenamente formada, esta mesma burguesia se revela incapaz de continuar a desenvolver tais forças sem gerar desigualdades extremas, depressões econômicas, desemprego, escassez artificial e a destruição do capital. Ela então prepara o terreno para sua própria superação pela classe operária, cuja tarefa é conquistar o controle dos meios de produção e operá-los no interesse de todos:

Tão logo este processo [a ascensão do capitalismo] decompõe suficientemente a velha sociedade de alto a baixo, tão logo os trabalhadores são convertidos em proletários, e seus meios de trabalho em capital; tão logo o modo de produção capitalista se sustenta sobre seus próprios pés, toma nova forma a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados, e, portanto, coletivos, bem como a expropriação ulterior da propriedade privada. O que deve agora ser expropriado já não é o trabalhador autônomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores. Tal expropriação se dá por efeito das leis imanentes da própria produção capitalista, pela centralização do capital. Cada capitalista mata muitos outros. [C vol1]

 O capitalismo, em outras palavras, prepara o caminho de sua própria negação, socializando o trabalho e centralizando o capital:

Paralelamente a esta centralização, ou esta expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolve-se, em escala sempre crescente, a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação técnica consciente da ciência, o cultivo metódico do solo, a transformação dos instrumentos de trabalho em instrumentos de trabalho utilizáveis apenas coletivamente, o processo de tornar mais econômicos todos os meios de produção através de seu uso como meios de produção do trabalho social combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial, e, com isto, o caráter internacional do regime capitalista. [C vol 1]

 É o capitalismo, portanto, que faz existir seu próprio antagonista coletivo – os trabalhadores – dando à luz, numa ironia sardônica, os seus próprios coveiros:

Ao lado da diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, cresce a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degradação, da exploração; mas com isto cresce também a revolta da classe trabalhadora, cada vez mais numerosa e disciplinada, unida, organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave sobre o modo de produção, que surgiu e floresceu junto com e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem finalmente um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O invólucro se rompe. Soa o dobre de finados da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados. [C vol1]

Descrito desta forma, todo o processo da revolução proletária soa inverossímilmente automático. Nesta versão do pensamento de Marx, as classes dominantes ascendem e decaem de acordo com sua capacidade de desenvolver as forças produtivas, e cada modo de produção – o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo – passa por uma mutação transformando-se em outro em virtude de sua própria lógica imanente. Temos aqui uma espécie de versão historicizada da antropologia de Marx: o positivo é o desenvolvimento humano, e o negativo é qualquer coisa que atrapalhe este processo. Mas não é claro como se possa compatibilizar este modelo com as partes da obra de Marx que sugerem que o que é central não são as forças, mas as relações de produção, pois as classes dominantes desenvolvem as forças de produção em seu próprio interesse e suas próprias finalidades de exploração. Uma vez que isto causa privações nas classes subordinadas, a revolução política neste modelo se dá diretamente por meio da luta de classes, não por causa de algum impulso geral trans-histórico de libertar as forças produtivas de seus constrangimentos sociais.  É o conflito de classe que constitui a dinâmica da história, mas um conflito enraizado no processo de produção material.

Marx naturalmente concentra sua atenção, e não apenas em sua obra mais importante, O capital, no modo de produção de sua época. Neste sistema, o trabalhador, que não possui nada além de sua capacidade de trabalho (ou força de trabalho), é forçado a vender tal capacidade ao proprietário de capital, que então o emprega para seu próprio lucro. Os seres humanos em si mesmos são convertidos em mercadorias substituíveis no mercado. O capitalista paga pelo aluguel da força de trabalho do operário nesta troca de mercadorias que conhecemos como salário -sendo este o custo do que o operário necessita para “reproduzir” sua força de trabalho, isto é, os bens necessários para ele se manter vivo e trabalhando. Mas a força de trabalho, uma vez que não é um objeto fixo, mas uma forma de energia e potencial humanos, é um tipo de mercadoria particularmente sem limites e determinações; e ao pô-la em ação, o capitalista é capaz de extrair dele mais valor, sob a forma de bens produzidos e vendidos, que o necessário para pagar o trabalhador. Este processo, que Marx denomina a extração de “mais-valia” da classe operária, é a chave da natureza exploradora das relações sociais capitalistas; porém dado que a troca de salário por trabalho aparenta ser equitativa, esta exploração é necessariamente ocultada pelo próprio funcionamento rotineiro do sistema.

O sistema capitalista, entretanto, é um sistema competitivo, em que cada empresário precisa se esforçar para expandir seu capital, ou então perecer. Um resultado disto, na concepção de Marx, é uma tendência da taxa de lucro cair, levando às famigeradas recessões que têm caracterizado o sistema até agora. As contradições do sistema desta forma se aguçam, e ao lado delas a própria luta de classes, uma vez que interessa ao capital apropriar-se tanto quanto possível dos frutos do trabalho dos operários sob a forma de lucros, e aos operários recuperar tanto quanto possível os proventos de seu trabalho. Para Marx, a única resolução final deste impasse é a revolução socialista, na qual a classe operária expropria o próprio capital, assume o controle coletivo sobre ele, e o coloca a serviço das necessidades de todos em vez do benefício de poucos.

O marxismo não é uma forma de moralismo, que denuncia os capitalistas como vilões e idealiza os operários. Sua meta é em vez disso uma teoria “científica” da mudança histórica, na qual nenhuma classe dominante pode ser considerada inequivocamente positiva ou negativa. Numa interpretação, uma classe é “progressista” se ainda é capaz de desenvolver as forças de produção – o que pode significar que a escravidão era em sua época um modo progressista. Isto ofende claramente nosso sentido de justiça; porém o próprio Marx parece algumas vezes ter considerado conceitos como o de justiça como mera ideologia burguesa mascarando a exploração, ainda que sua obra fosse ironicamente alimentada por um desejo apaixonado de uma sociedade justa. A burguesia pode ser hoje um obstáculo à liberdade, à justiça e ao bem-estar universal; mas em seu apogeu era uma força revolucionária que derrotou seus adversários feudais, legou a seus sucessores socialistas as idéias de justiça e liberdade e desenvolveu as forças de produção até o ponto em que o próprio socialismo pôde se tornar um projeto viável. Pois, sem a riqueza material e espiritual que o capitalismo desenvolveu, o socialismo não seria possível. Um socialismo que precisa desenvolver as forças de produção a partir do zero, sem o benefício de uma classe capitalista que tenha realizado esta tarefa em seu lugar, tende a acabar como a forma autoritária de poder estatal conhecida como stalinismo. E um socialismo que não herda da burguesia o rico legado dos direitos liberais e das instituições cívicas simplesmente reforçará esta autocracia. A burguesia pode ter feito o que fez pelo menos louvável dos motivos, o do lucro individual; porém em conjunto este demonstrou ser um meio notavelmente eficaz de levar as forças de produção até o ponto em que, com sua reorganização socialista, elas poderiam fornecer os recursos para eliminar a pobreza e a privação em todo o mundo.

Mas as conquistas da burguesia revolucionária não foram apenas materiais. Ao conduzir o indivíduo a novos píncaros de desenvolvimento complexo, também produziu uma riqueza humana da qual o socialismo seria permanentemente devedor. O marxismo não trata de excogitar novos e admiráveis ideais para a sociedade, mas sim de perguntar por que os ideais admiráveis que já temos se revelaram estruturalmente incapazes de se realizar para todos. Ele se propõe a criar as condições materiais nas quais isto possa se tornar possível; e uma de tais condições é o fato de que a burguesia é a primeira classe social genuinamente universal, que rompe todas as barreiras paroquiais e gera o tipo de comunicação genuinamente global que pode formar a base de uma comunidade socialista internacional.

Uma teoria verdadeiramente dialética da história das classes se esforça então para apreender seus aspectos emancipadores e opressivos conjuntamente, como elementos de uma única lógica. Marx resume este ponto de vista numa passagem tipicamente eloquente:

Nos dias de hoje, tudo parece grávido de seu contrário. As máquinas, dotadas do maravilhoso poder de abreviar e tornar mais fecundo o trabalho humano, em vez disso o levam à inanição e ao excesso. As fontes de riqueza que aparecem como novidades, por algum estranho e fatídico encantamento, são transformadas em fontes de privação.

Os triunfos da arte parecem ser comprados com a perda de caráter. No mesmo ritmo em que a humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de outros homens ou de sua própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência parece incapaz de brilhar a não ser contra o pano de fundo escuro da ignorância. Todas as nossas invenções e nosso progresso parecem dotar as forças materiais de vida intelectual e embrutecer a vida humana, tornando-a uma força material. Este antagonismo entre, de um lado, a indústria e a ciência modernas, de outro, a miséria e a dissolução; este antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais de nossa época é um fato, palpável, avassalador e incontestável. (The People’s Paper, 1856)



Ironia, inversão, quiasma e contradição se encontram no cerne das concepções de Marx. Ao acumular a maior riqueza que a história jamais presenciou, a classe capitalista o fez no contexto de relações sociais que deixaram a maioria de seus subordinados faminta, desventurada e oprimida. Também fez surgir uma ordem social em que, nos antagonismos do mercado, cada indivíduo é contraposto a outro -em que a agressão, a dominação, a rivalidade e a exploração imperialista são a ordem do dia, em vez da cooperação e da camaradagem. A história do capitalismo é a história do individualismo possessivo, em que cada ser humano pertencente a si próprio é isolado dos outros em seu espaço solipsista, vendo seus semelhantes apenas como instrumentos a serem usados para promover seus apetites. Não que Marx se oponha ao individualismo, querendo afogá-lo em alguma coletividade sem face. Ao contrário, sua meta é restabelecer as ligações coletivas entre homens e mulheres no nível de seus poderes individuais plenamente desenvolvidos. Como ele diz no Manifesto comunista, o livre desenvolvimento de cada um deve se tornar a condição para o livre desenvolvimento de todos. E isto pode ser alcançado com a abolição da propriedade privada.

Há inevitavelmente alguns problemas com esta teoria audaciosa e imaginativa. Para começar, não fica bem claro o que Marx quer dizer com classe social. É um gracejo irônico entre seus comentadores que exatamente quando ele está prestes a examinar o conceito detalhadamente, o trabalho se interrompe. Porém, é claro que ele concebe classe primordialmente como uma categoria econômica: ela denota, aproximadamente, aqueles que se encontram na mesma relação com o modo de produção, de tal forma que, por exemplo, pequenos produtores independentes tais como camponeses e artesãos podem ser classificados juntos como “pequenos burgueses”, enquanto aqueles que precisam vender sua força de trabalho são proletários. Será que isto então situa tanto uma estrela de cinema milionária quanto um lixeiro na classe trabalhadora? Ou deveriam fatores políticos, culturais e sociais entrar na definição da categoria? Quais são as relações ou não-relações entre classe social e outros agrupamentos humanos nacionais, étnicos ou sexuais aos quais Marx dedicou muito menos atenção? Deve uma classe ter consciência de si própria enquanto tal para ser, propriamente falando, uma classe? Esta é uma questão que Marx considera em sua discussão do campesinato francês no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte:

Os pequenos camponeses formam uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes, mas sem estabelecer relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros em vez de colocá-los em interação… Na medida em que milhões de famílias vivem em condições econômicas de existência que opõem seu modo de vida, seus interesses e sua cultura aos das outras classes, elas formam uma classe. Na medida em que há entre estes pequenos camponeses apenas uma interconexão local, e a identidade de seus interesses não dá origem a uma comunidade, nem a uma ligação nacional, nem a uma organização política, eles não formam uma classe. [Brumário]

 Quanto à teoria da mudança histórica: se Marx realmente sustenta que o objetivo é sempre e em todo lugar desenvolver as forças produtivas, então ele é vulnerável a uma crítica ecológica. Pode-se perguntar também se ele considera sua dialética histórica como inevitável. No Manifesto comunista ele declara que a queda da burguesia e a vitória do proletariado “são igualmente inevitáveis“, e n’O capital fala das leis do capitalismo como “atuando com necessidade de ferro em direção a resultados inevitáveis”  [C vol1, prólogo]. Em outras passagens, contudo, Marx é sarcástico em relação à e de que existe uma entidade chamada História que opera em registro determinista por meio dos seres humanos:

A história não faz nada, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo… [SF]

 Ele também rejeita a idéia de que os diversos modos de produção históricos devam seguir-se uns a outros de maneira rigidamente determinada. Também não parece pensar que as forças produtivas estejam, sempre e inexoravelmente se expandindo. De qualquer forma, se a derrubada do capitalismo é inevitável, não deveria a classe trabalhadora simplesmente esperar sentada por este evento, em vez de se organizar para fazê-lo acontecer de forma política? Pode-se alegar, como Marx parece ter feito, ser inevitável que a classe trabalhadora tome consciência de sua condição e com o intuito de alterá-la, de tal modo que sua ação “livre” é de alguma forma inserida na narrativa determinista mais ampla. Alguns cristãos tentaram de maneira análoga resolver a aparente discrepância entre o livre-arbítrio e a providência divina. Mas, na prática, quando está analisando situações políticas determinadas, Marx parece acreditar que a revolução política depende da luta de forças sociais em disputa, cujo resultado não é em sentido algum historicamente garantido. Existem, é certo, leis históricas; porém elas são o resultado da ação humana combinada, não de algum destino grandiosamente independente dela. Como Marx expressou numa passagem famosa do Dezoito Brumário:

 
Os homens fazem sua própria história, porém não a fazem da maneira como bem entendem; não a fazem em circunstâncias de sua escolha, mas sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos… A revolução social do século XIX não pode extrair sua poesia do passado, só do futuro. Não pode iniciar sua tarefa sem antes ter se livrado de todas as superstições relativas ao passado. As revoluções anteriores tiveram de lançar mão de rememorações da história antiga para se iludir com relação a seu próprio conteúdo. A fim de atingir seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. [Brumário]

 POLÍTICA

Se Marx é de fato algum tipo de filósofo, ele se distingue da maioria de tais pensadores por considerar suas reflexões, por mais abstrusas que sejam, em última análise, práticas, estando inteiramente a serviço de forças políticas reais, e na verdade como um tipo de força política em si mesma. Esta é a celebrada tese marxista da unidade entre teoria e prática – embora seja possível acrescentar que um objetivo da teoria de Marx é chegar a uma situação social em que o pensamento não precisaria ser simplesmente instrumental, articulado com algum fim particular, podendo em vez disso ser usufruído como um prazer em si mesmo.

A doutrina política de Marx é revolucionária – “revolução” sendo para ele definida menos pela velocidade, pelo caráter repentino ou pela violência do processo (embora ele pareça pensar que a construção do socialismo envolve uma força insurrecional), que pelo fato de que ela passa pela expulsão de uma classe possuidora e sua substituição por outra. E este é um processo que pode claramente requerer um grande espaço de tempo para ser levado a efeito. Podemos observar aqui a característica peculiar do socialismo: o fato de que ele envolve a chegada ao poder pela classe trabalhadora, que ao fazer isto cria as condições para a abolição de todas as classes. Uma vez sendo os meios de produção coletivamente possuídos e controlados, as próprias classes finalmente desaparecerão.

Todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram consolidar o status adquirido sujeitando toda a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem se apoderar das forças produtivas sociais a não ser abolindo o modo de apropriação a elas correspondente, e com isto, também todos os modos anteriores de apropriação. Eles nada têm de seu para salvaguardar e consolidar; sua missão é destruir todas as seguranças e garantias da propriedade privada até agora existentes. [MC]

 Ou como Marx se expressa na linguagem de seus escritos de juventude:

Deve ser formada uma classe com cadeias radicais, uma classe na sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil, uma classe que é a dissolução de todas as classes, uma esfera da sociedade que, possui um caráter universal porque seus sofrimentos são universais, e que não reivindica uma compensação particular porque a injustiça que lhe foi feita não é uma injustiça particular, mas a injustiça em geral. Deve ser formada uma esfera da sociedade que não reivindica um status tradicional, mas apenas um status humano… Esta dissolução da sociedade, como uma classe particular, é o proletariado. [CFDH]

Se o proletariado é a última classe histórica, é porque sua chegada ao poder no que Marx chama de “ditadura do proletariado” é o prelúdio da construção de uma sociedade na qual todos estarão na mesma relação com os meios de produção, como seus donos coletivos. “Trabalhador” não mais significa ser membro de uma classe particular, mas simplesmente todos os homens e mulheres que contribuem para produzir e manter a vida social. A primeira fase da revolução anticapitalista é conhecida por Marx como o socialismo, e não é uma fase que envolva completa igualdade. Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais” herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais. Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um. Ele atua assim entre outras coisas como uma forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal. No fim, ao próprio Marx interessa mais a diferença que a igualdade. No socialismo, continua sendo um fato que

...um homem é superior a outros física ou mentalmente, e assim fornece mais trabalho no mesmo tempo, ou pode trabalhar por mais tempo; e, para servir como medida, o trabalho deve ser definido por sua duração ou intensidade, caso contrário deixa de constituir um padrão de medida. Tal direito igual é um direito desigual para o trabalho desigual. Não reconhece diferenças de classe, uma vez que cada homem é um trabalhador tanto quanto qualquer outro, mas reconhece tacitamente privilégios desiguais. É, por conseguinte um direito de desigualdade em seu conteúdo, como todo direito. Por sua própria natureza, o direito só pode consistir na aplicação de um padrão igual; porém indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos se não fossem desiguais) são mensuráveis apenas por um padrão igual na medida em que são considerados de um ponto de vista igual, apreendidos por um só aspecto determinado, por exemplo, no caso presente, enquanto forem considerados apenas como trabalhadores e nada mais, sendo tudo o mais ignorado. Além disso, um trabalhador é casado, outro é solteiro; um tem mais filhos que outro, e assim por diante. Desta maneira, com um desempenho igual no trabalho, e, portanto com uma participação igual no fundo social de consumo, uns receberão efetivamente mais que outros, uns serão mais ricos que outros etc. Para evitar todos estes defeitos, o direito, em vez de ser igual, teria de ser desigual. [CPG]

O socialismo, portanto, não propõe nenhum nivelamento absoluto dos indivíduos, mas envolve um respeito por suas diferenças específicas, e permite pela primeira vez que tais diferenças se realizem. É desta maneira que Marx resolve o paradoxo do individual e do universal: para ele, o último termo significa não algum estado do ser supra-individual, mas simplesmente o imperativo de que cada um deva estar incluído no processo de desenvolver livremente suas identidades pessoais. Porém, enquanto homens e mulheres ainda precisarem ser recompensados de acordo com seu trabalho, as desigualdades inevitavelmente persistirão. O estágio mais desenvolvido da sociedade, contudo, chamado por Marx de comunismo, desenvolverá as forças produtivas até um ponto de abundância tal que nem a igualdade nem a desigualdade estarão em questão. Em lugar disto, homens e mulheres simplesmente retirarão do fundo comum de recursos o que quer que satisfaça suas necessidades:

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, e com ela também a antítese entre o trabalho mental e o físico; quando o trabalho houver se tornado não um meio de vida, mas a necessidade fundamental da vida; quando as forças produtivas tiverem crescido com o desenvolvimento geral do indivíduo; quando todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente – só então o horizonte estreito do direito burguês será completamente ultrapassado, podendo a sociedade inscrever em suas bandeiras: “De cada um de acordo com suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades!” [CPG]

 Na sociedade comunista, estaríamos livres da importunidade de classe social e, em vez disto, disporíamos de lazer e energia para cultivar nossas personalidades de qualquer maneira que pudéssemos escolher, desde que respeitado o preceito de que a todos os outros seria permitido fazer o mesmo. O que distingue este objetivo político mais nitidamente do liberalismo é o fato de que, uma vez que para Marx uma expressão de nosso ser individual é também uma realização de nosso ser genérico, este processo de explorar e desenvolver a vida individual seria levado a cabo reciprocamente, por meio de laços mútuos, em vez de em isolamento esplêndido. O outro é visto por Marx como o meio para minha própria realização, em lugar de, como no melhor dos casos, um mero co-empresário no projeto, ou no pior como um obstáculo ativo para minha realização. A sociedade comunista também direcionaria as forças produtivas legadas a ela pelo capitalismo para a meta de abolir tanto quanto possível todo trabalho degradante, libertando desta forma homens e mulheres da tirania da labuta e permitindo a eles engajarem-se no controle democrático da vida social como “indivíduos unidos” agora responsáveis por seus próprios destinos. No comunismo, homens e mulheres podem recuperar seus poderes alienados e reconhecer o mundo que criam como seu depurado de sua imobilidade espúria.

Mas a revolução socialista requer um agente, e este Marx descobre no proletariado. Por que o proletariado? Não porque seja espiritualmente superior às outras classes, e não necessariamente porque seja o mais oprimido dos grupos sociais. Se fosse assim, os vagabundos, excluídos e indigentes – o que Marx um tanto devastadoramente chamava de “lumpen-proletariat” – seriam melhores. Pode-se alegar que é o próprio capitalismo, não o socialismo, que “seleciona” a classe operária como o agente da mudança revolucionária. É a classe que mais pode se beneficiar da abolição do capitalismo, e que é suficientemente habilidosa, organizada e bem situada para desempenhar tal tarefa. Mas a tarefa da classe operária é levar a cabo uma revolução específica – a revolução contra o capitalismo; e não está assim em sentido algum necessariamente em competição com outros grupos radicais – digamos, feministas, nacionalistas ou militantes étnicos – que precisam completar suas próprias transformações particulares, idealmente em aliança com aqueles mais explorados pelo capitalismo.

Que forma tal sociedade assumiria? Seguramente não a de uma ordem social dirigida pelo Estado. O Estado político para Marx pertence à “superestrutura” reguladora da sociedade: é ele próprio um produto da luta de classes em vez de estar sublimemente além deste conflito, ou consistir em alguma resolução ideal dele. O Estado é em última análise um instrumento da classe dirigente, uma maneira de assegurar sua hegemonia sobre as outras classes; e o Estado burguês em particular cresce a partir da alienação entre o indivíduo e a vida universal:

A partir da própria contradição entre o interesse do indivíduo e o da comunidade, este assume uma configuração autônoma enquanto Estado, separada dos interesses reais do indivíduo e da comunidade, e ao mesmo tempo como uma vida coletiva ilusória, porém sempre tendo por base concreta os laços reais existentes em qualquer agregado familial ou tribal – tais como a consanguinidade, a língua, a divisão de trabalho em grande escala, e outros interesses – e especialmente, como veremos em detalhe mais tarde, nas classes, já determinadas pela divisão do trabalho, que se destacam em cada agrupamento humano desse tipo e das quais uma domina todas as outras. Segue-se disto que todas as lutas dentro do Estado, a luta entre democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., são apenas as formas ilusórias nas quais se trava a verdadeira luta entre as diferentes classes. [IA]

 Marx nem sempre adotou um ponto de vista tão vigorosamente instrumentalista do Estado em suas análises detalhadas de conflitos de classe; mas estava convencido de que sua verdade, por assim dizer, está fora de si mesmo, e além do mais o vê por si só uma forma de alienação. Cada cidadão individual alienou ao Estado parte de seus poderes individuais, que assumem então uma força determinante sobre a existência social e econômica cotidiana que Marx chama “sociedade civil”. A genuína democracia socialista, em contraste, reuniria estas partes gerais e individuais de nós mesmos, permitindo-nos participar de processos políticos gerais como indivíduos concretamente particulares – no local de trabalho assim como na comunidade local, por exemplo, em vez de cidadãos abstratos da democracia representativa liberal. A visão final de Marx parece assim algo anarquista: a de uma comunidade cooperativa formada pelo que denomina “associações livres” de trabalhadores, que estenderiam a democracia à esfera econômica enquanto fazem dela uma realidade na esfera política. Foi a este fim – que não é, afinal de contas, tão sinistro ou alarmante – que ele dedicou não apenas seus escritos, mas uma boa parte de sua vida ativa.


SIGLAS DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TF - Teses sobre Feuerbach

CFDH - Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

IA - Ideologia Alemã

MC - Manifesto Comunista

MEF - Manuscritos Econômico–Filosóficos de 1844

C - O Capital, 1, 2

CCEP - Contribuição à Crítica da Economia Política

QJ - A Questão Judaica

SF - A Sagrada Família

G - Grundrisse

Brumário - O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte

CPG - Crítica ao Programa de Gotha