sexta-feira, 31 de outubro de 2014

''Estabilização sem arrocho'', por Guido Mantega



 ''É possível baixar a inflação e aumentar os salários ao mesmo tempo? Os economistas ortodoxos e neoliberais acham impossível. E tanto insistiram nessa tecla, que têm conseguido convencer não só os desavisados como também algumas mentes mais esclarecidas.

 Em artigo na página 2 desta Folha (''Infelizmente uma mentira'' de 31/07/94, o jornalista Gilberto Dimenstein reconhece que o Plano Real ''não passa de um remendo'', no que estamos plenamente de acordo. Porém sugere que ''ao atacar o Plano Real e culpar FHC, Lula vende uma ficção: promete a estabilidade dos preços e aumentos salariais''.

 Felizmente não se trata de uma ficção, mas de uma possibilidade que pode ser demonstrada pela própria experiência recente de um segmento importante da economia brasileira.

 Não há dúvida que é mais fácil controlar os preços reduzindo salários, conforme nos ensinaram os vários anos de ditadura militar. Ou jogando os preços para as nuvens, enquanto os salários são contidos no subsolo, o que dá na mesma, conforme acaba de fazer o Plano Real.

 Em ambos os casos o princípio é o mesmo. Diminui-se o custo salarial das empresas, que não precisam elevar os preços para garantir suas margens de lucro.

 Mas isso só funciona por uns tempos, enquanto os que pagaram a conta do ajuste não empreendem a luta pela reposição do prejuízo. Joga-se água fria na fervura e a temperatura abaixa. Só que temporariamente, porque o fogo continua aceso embaixo da panela.

 É fácil perceber por que essa estratégia neoliberal do controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa.

 É burra porque incentiva o conflito distributivo por meio da recessão e dos juros altos, que diminuem o bolo de renda nacional a ser repartido entre empresários, trabalhadores e governo. Não dá para cada segmento manter sua fatia se o bolo diminui.

 Acaba sendo ineficiente porque os trabalhadores disputarão a devida recomposição salarial, retirando o sistema do equilíbrio precário no qual ele repousou às custas deles.

 Entretanto, existem sim soluções mais eficientes de combate à inflação, que além de que além de não serem recessivas, ainda permitem o aumento da renda dos trabalhadores.

 Basta observar a câmara setorial da indústria automobilística, que celebrou um acordo onde empresários, governo e trabalhadores lucraram com a redução dos preços e aumento da produção.

 O princípio é mais ou menos o seguinte: ao invés de cobrar muito de poucos, empresas e governo devem cobrar pouco de muitos. As empresas concordarem em reduzir a margem de lucro em 10% e o governo baixou os impostos em 12%.

 O resultado foi que os preços caíram em 22% e as vendas quase duplicaram, elevando a massa de lucros das empresas e o volume de impostos. E os metalúrgicos não só evitaram prováveis demissões devidas à queda das vendas, como aumentaram o emprego e passaram a receber aumentos periódicos de salários.

 Portanto, o governo poderia articular um conjunto de acordos, semelhante ao da câmara setorial da indústria automobilística, nos setores estratégicos da economia brasileira, baixando alíquota de impostos  e reduzindo a taxa de juros (ou seja, baixando o custo do imposto e do dinheiro), garantindo linha de crédito e tarifas estáveis, em troca da redução de margens unitárias de lucros, e da postergação de aumentos de preços. Articularia também aumento de preços intersetoriais entre empresas e, finalmente, uma pactuação nacional de preços e salários.

 Teríamos a queda da inflação desde o dia em que esse grande acordo nacional fosse articulado. Uma queda concomitante de preços em vários setores chave da economia provocaria uma grande deflação, mesmo com o consumo em alta, uma vez que o aumento da produção é perfeitamente possível dadas as taxas de ociosidade hoje existentes na economia brasileira, entre 20% a 50%, dependendo do setor. E a redução dos juros estimularia o aumento dos investimentos, aumentando a capacidade produtiva.

 Trata-se de uma modalidade de combate à inflação que aumenta a renda a ser disputada pelos diversos segmentos da sociedade, reduzindo o conflito distributivo e submetendo-o à administração e controle da sociedade.''

Guido Mantega (Gênova, 7 de abril de 1949) é um economista ítalo-brasileiro nascido na Itália. Foi ministro da Fazenda e ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão do Governo Lula e é o atual ministro da Fazenda do Governo Dilma.

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