sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A construção de uma estratégia de desenvolvimento


Por João Sicsú* no livro ''Sociedade e economia: estratégias de crescimento e desenvolvimento'' (organizadores: João Sicsú e Armando Castelar - Brasília: IPEA, 2009)



 Uma estratégia de desenvolvimento econômico e social para o Brasil deve ser composta de duas partes. A primeira é o ponto final, ou seja, para onde se quer levar a sociedade. E a segunda é a trajetória econômica que deve facilitar a chegada ao ponto final -- um país com a máxima qualidade de vida para todos. Uma estratégia de desenvolvimento para ser factível deve, acima de tudo, emular o imaginário da sociedade, ser transformada em sonho, utopia e orgulho. Políticas públicas, instrumentos, objetivos, metas, mecanismos de avaliação devem, de forma inescapável, compor uma estratégia de desenvolvimento, mas se ela não for transformada em sonho da maioria dos cidadãos permanecerá como mais um documento na gaveta.


 Indivíduos têm percepções diferenciadas da realidade presente, do passado e do futuro. Muitos aspectos podem explicar essas percepções diferenciadas: grau de formação, de informação, acesso à cultura, ao lazer, inserção social, infortúnios, histórico familiar, processos psicológicos etc. A forma mais conhecida de de aglomeração de indivíduos (que são e devem continuar sendo) heterogêneos, com diferentes interpretações em torno de uma estratégia de desenvolvimento, tem sido através de símbolos. Símbolos são imagens, slogans ou coisas assemelhadas. Símbolos são sínteses de ideias, de projetos -- símbolos são também necessários porque são formas de substituição de líderes únicos. Uma estratégia de desenvolvimento deve prescindir da ação de um líder (com suas idiossincrasias e desejos particulares), o que torna ideias e ideais em movimento sintetizados por símbolos algo imprescindível.

 O slogan ''O petróleo é nosso'', que movimentou grande parte da sociedade brasileira em defesa da criação da Petrobrás, é um exemplo de símbolo que representou uma utopia que envolvia soberania e nacionalismo. A Petrobrás foi criada para ser monopolista de alguma coisa que à época inexistia: era puro sonho que se tornou uma realidade. O movimento pelas ''Diretas já'' (em 1984) sumariou sonhos de milhões de brasileiros por um país democrático. Os estudantes ''caras pintadas'' que tomaram as ruas, em 1992, exigindo o impeachment do presidente Fernando Collor, representaram um movimento contra a corrupção e pelo aprofundamento da democracia. ''O petróleo é nosso'', as ''Diretas já'' e os ''caras pintadas'' foram símbolos construídos pelo movimento dos movimentos da sociedade. 

 Há, portanto, outro elemento importante de uma estratégia de desenvolvimento: símbolos não são criados em laboratórios ou gabinetes. Quem saberia dizer quem disseminou o slogan ''Diretas já''? Quem imaginou que ''caras pintadas'' poderiam representar a indignação de milhares de jovens? Símbolos resultam da mobilização em torno do debate amplo e organizado sobre a rejeição ao que seja antiquado e a construção do novo.

 Portanto, uma estratégia de desenvolvimento  não é um plano de governo detalhado, assim como não deve conter respostas para a lista infindável de questões que afligem a todos os cidadãos brasileiros. Uma estratégia de desenvolvimento deve ser construída no debate com a sociedade a partir de linhas gerais que descrevam: I) o objetivo final -- um país em que questões materiais não sejam barreiras intransponíveis à felicidade; II) a trajetória -- políticas públicas, procedimentos e regras para se formatar e reformatar continuamente um novo país.

 O objetivo final de uma estratégia de desenvolvimento deve ser a construção de uma sociedade democrática, tecnologicamente avançada, como emprego e moradia dignos para todos, ambientalmente planejada, com uma justa distribuição da renda e da riqueza, com igualdade plena de oportunidades e com um sistema de seguridade social de máxima qualidade e universal -- cujas partes imprescindíveis devam ser sistemas gratuitos de saúde e educação para todos os níveis e necessidades. O Estado de Bem-Estar Social é o conceito que resume esse conjunto de objetivos. O Estado de Bem-Estar Social é a maior conquista da civilização ocidental ao longo do século XX.  Foi a conjugação única de fatores sociais, políticos e econômicos que conformou um ambiente institucional que valoriza a liberdade, a individualidade, o trabalho, a atividade empresarial, a gestão republicana do Estado, a justiça e o bem-estar social. Sua construção teve início principalmente ao final da década de 1940 na Europa ocidental, o palco da sua realização Hoje há um Estado de Bem-Estar Social em diversos países europeus, com destaque para Suécia, Noruega, Finlândia, França, entre outros.

 O funcionário do governo inglês William Beveridge foi um dos mais importantes idealizadores da utopia europeia do Ocidente. Ele foi além, muito além, do chanceler Bismark, que havia construído na Alemanha, ao final do século XIX, um sistema de proteção social baseado na atividade do trabalho que relacionava benefícios pagos ao sistema às contribuições efetuadas. Beveridge desconstruiu o modelo de Bismark ao propor um sistema social que não estava baseado exclusivamente na atividade do trabalho, mas, sim, na existência do cidadão. Portanto, um sistema de segurança de vida de todos e para todos -- que ofertaria benefícios a todos. Entretanto, o Estado de Bem-Estar Social é muito mais que o sistema de seguridade social universal beveridgeano. As ideias de universalização do direito ao emprego, de harmonia e complementaridade entre capital e trabalho, de valorização da concorrência e  de uma justa distribuição de renda e da riqueza podem ser atribuídas ao economista inglês John Maynard Keynes. O republicanismo e a democracia foram conquistas de origens diversas, mas seu símbolo maior é sem dúvida a Revolução Francesa de 1789 (e diversos fatos que a sucederam), baseada no trinômio liberdade-igualdade-fraternidade.

 A implantação de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil está longe de ser apenas a tentativa de realização de uma cópia do modelo europeu. O Estado de Bem-Estar Social europeu deve ser visto como uma ''obra aberta'', sua construção no Brasil deve ser uma ''improvisação criadora'' para utilizar os termo de Umberto Eco em seu livro Opera Aperta. É o equilíbrio entre a observação, a interpretação e a criação que devem balizar os limites do que está definido e do que está aberto na obra de arte social europeia. Portanto, ''definitude'' e ''abertura'' de um modelo econômico e social são importantes conceitos de limite que devem ser considerados em um processo de desenvolvimento para o Brasil. Há de singular, de definido, no Estado de Bem-Estar Social implementado na Europa um conjunto específico de pilares que não podem ser reinterpretados ou recriados, tal como o sistema universalista bevedridgeano de seguridade social. A seguridade social universal é o que garante o exercício da individualidade do cidadão sem discriminação, Reinterpretar a seguridade social universal ou recriá-la, neste caso particular, significa transformá-la, e corre-se o risco assim, por exemplo, da criação de um modelo contábil e atuarial de seguridade social que se torna ''foquista'' (somente atendem aos que contribuíram, a la Bismark).

 Apesar de se ter clareza dos limites, ou seja, da ''definitude'' e também da ''abertura'' interpretativa e criadora do Estado de Bem-Estar Social europeu, não é possível fora de um movimento concreto de construção de uma estratégia de desenvolvimento do país estabelecer com maior exatidão o desenho de sociedade que se deseja. Ainda numa abordagem inicial, é melhor deixar essa pergunta (que incomoda) despercebida e reproduzir as palavras daquele que soube definir a felicidade em diversas passagens de sua obra. Enfim, o que deseja para o Brasil é um país, como disse Vinícius de Moraes, em que se tenha ''tempo para a peteca e tempo para o soneto. Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo. Tempo para envelhecer e ficar obsoleto...''

Por mais definida que seja uma estratégia de desenvolvimento, ela estará sempre em construção, seja para aqueles que ainda estão fazendo o vestibular para entrar na rota do desenvolvimento, tal como o Brasil, seja para aqueles que já são desenvolvidos. Uma estratégia de desenvolvimento está sempre em construção, inclusive, nos países mais desenvolvidos do planeta. Verdadeiros gestores de estratégias de desenvolvimento sentem de forma permanente aquilo que Camille Claudel sentia da distância imposta por Auguste Rodin: “há sempre algo de ausente que me atormenta”.

 O Estado de bem-estar social foi construído na Europa em um momento histórico muito particular e favorável. Havia uma pressão externa: a ameaça socialista que teve início com a Revolução Russa de 1917 e que se consolidava sobre parte da Europa pelas mãos do exército soviético. Havia pressão interna: as idéias socialistas avançavam na Europa ocidental, através de organizações e partidos com bases populares e operárias. E havia um estado geral de decepção com a qualidade de vida: lamentos e reclamações emanavam de todos os lares. Afinal, o sistema institucional baseado na ideia de que as forças de mercado, com Estado mínimo e/ou ausente, iriam reduzir o desemprego foi derrotado pela realidade: a Europa vivia uma crise de desemprego, desde os anos 1920. Este é um ponto muito importante: saber se existem condições históricas que favorecem a implementação de um novo modelo em um determinado país.

 As políticas macroeconômicas formam o pavimento necessário, mais básico, de uma estratégia de desenvolvimento. Políticas macroeconômicas adequadas podem promover o crescimento e a industrialização (tecnologicamente sofisticada), que são os itens mais essenciais da cesta do futuro de bem-estar social. O crescimento e a industrialização estão muito longe de ser tudo, mas sem eles nada haverá. Políticas são ações conscientes e planejadas. No caso de políticas macroeconômicas, são ações planejadas por governantes de Estado, que utilizam os três caminhos clássicos disponíveis: a política cambial, a política monetária e a administração fiscal. Pode-se argumentar que a intervenção estatal foi correta apenas no passado, porque os investimentos exigiam montantes que a iniciativa privada era incapaz de mobilizar, dada a atrofia dos mercados de capitais ou ainda porque faltava informação correta para que os empresários soubessem onde investir, com maior certeza de lucratividade. Está é uma visão incorreta da relação entre Estado e mercado, tanto do ponto vista teórico quanto histórico.

 A necessidade de o Estado participar ativamente da vida econômica de uma sociedade não está relacionada às especificidades de certo período histórico ou a alguma falha do sistema capitalista, que pode ser corrigida. Uma abordagem teórica simples é capaz de mostrar a necessidade do Estado ativo para que a economia possa prover um ambiente de bem-estar social e dinamismo nos mercados. O ponto central é que as ações (que são racionais) da iniciativa privada são pró-cíclicas – tendem a agravar situações.Turbulências econômicas são da natureza do sistema, surgem no seu interior e de forma repentina, mesmo em tempos de céu de brigadeiro. E tais turbulências tendem a se transformar em crises, quando não há a intervenção anticíclica do Estado. Situações de crise ou de semi-estagnação podem permanecer por tempos indefinidos, porque não existem mecanismos de correção automática. Não se trata de ter paciência para esperar. Ainda que este fosse o caso, o custo social do tempo de espera seria alto demais.

 Uma abordagem da realidade é capaz de provar esta inseparabilidade entre Estado e mercado, para que se possa promover uma vida em sociedade com felicidade. A chamada “época de ouro” do crescimento econômico e do desenvolvimento social, principalmente na Europa, foi no período de maior interação entre a sociedade organizada, os empresários e os governos – o que ocorreu no final dos anos 1940 até o final dos anos 1960. A alta inflação no Brasil permaneceu por décadas, até que houvesse um Plano de Governo anti-inflacionário, no ano de 1994. Embora sujeitas a controvérsias, as intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI) são feitas por um agente externo à economia quando o Estado, através de seus governantes, já esgotou as suas forças; as intervenções do FMI são a maior prova de que sem Estado, ou quando ele é impotente, é preciso se realizar uma super-intervenção que vem de fora para recolocar preços macroeconômicos de volta em determinada posição.

 É também parte constituinte de uma estratégia de desenvolvimento a ideia de que o governo deve implementar políticas macroeconômicas capazes de gerar a sensação de segurança para que empresários se sintam estimulados a empreender grandes investimentos, que sejam lucrativos e geradores de renda e empregos. O governo deve também fazer aquilo que a iniciativa privada não faz. Em essência, os preços estratégicos macroeconômicos de uma economia devem favorecer o investimento, a geração de renda e de empregos. Sob estas condições favoráveis, se as forças de mercados não realizarem os investimentos necessários, deve entrar em campo a mão visível do Estado realizando o investimento. Em princípio, o Estado não faz melhor ou pior que a iniciativa privada, ele é necessário para fazer o que ela não faz, e deve fazê-lo bem.

 É mera falácia que a iniciativa privada é mais capaz por definição que o setor público para gerenciar grandes atividades econômicas. Muitos concordam com esta afirmação, afinal são inúmeros os impérios econômicos empresarias e financeiros que já ruíram, assim como existem grandes e sólidos negócios gerenciados pelo setor público, mundo afora. Mas alguns têm argumentos mais sofisticados. Argumentam que a preferência pelos negócios privados se sustenta porque quando uma empresa privada é improdutiva ou quebra quem paga a conta é o empresário. E que impropriedades no setor público são pagas pelo contribuinte. Ledo engano: sempre é o cidadão quem paga a conta. No caso do setor público, pagam-se os “problemas” com mais impostos e, no caso do setor privado, os “problemas” são pagos com preços mais elevados.

 As políticas macroeconômicas devem favorecer o investimento visando à geração de empregos, renda e à industrialização. Deve-se buscar, através de diversos mecanismos, a industrialização em segmentos densos de tecnologia. A busca incessante por um modelo de industrialização sofisticada (eletrodomésticos, automóveis etc.) possui um aspecto essencial. A especialização na produção de commodities e a industrialização que gera baixo valor agregado (um modelo de economia primarizada) constituem um modelo bastante propício para a consolidação de um esquema concentrador de renda e de riqueza. O modelo primarizado gera altos lucros, empregos com baixa remuneração e ocupações não formalizadas, de acordo com a legislação trabalhista. O modelo de economia industrializada gera muitos empregos, de remuneração mais elevada e favorece o estabelecimento de relações formais de trabalho. Esta é uma opção crucial: primarização ou industrialização sofisticada?

 A política cambial que favorece o investimento e a industrialização mais sofisticada é aquela capaz de estabelecer um taxa de câmbio competitiva para a produção e a exportação de bens manufaturados. Uma taxa cambial neste patamar, por um lado, favorece a realização de mega-superávits comerciais e, portanto, o acúmulo de reservas não-voláteis e, por outro, é uma proteção contra crises cambiais de desvalorização abrupta, pelo simples fato de que uma taxa desvalorizada tem uma chance menor de se desvalorizar (ainda mais) do que uma taxa valorizada. Uma política de administração cambial – de uma taxa que deve ser flutuante – em que o Banco Central compra e vende reservas, realizando um verdadeiro processo de sintonia fi na, é capaz não só de manter a taxa de câmbio em patamar competitivo para as exportações de manufaturados, mas também é capaz de reduzir a sua volatilidade – reduzindo, em decorrência, a atividade especulativa no mercado de moeda estrangeira.

 A defesa do equilíbrio externo requer atenção não somente com a balança comercial, mas também com a conta de investimentos financeiros internacionais. Capitais financeiros que têm por finalidade financiar o investimento e a produção são bem-vindos, sejam eles domésticos ou estrangeiros. Capitais financeiros que tem o mero objetivo de sua capitalização, sem que este processo traga benefícios à produção ou ao investimento, não são bem-vindos. Estes capitais somente provocam pressão valorizativa sobre o câmbio, no momento da sua entrada, e pressão desvalorizativa, no momento da sua saída: nada mais. O movimento dos capitais financeiros que busca apenas a sua capitalização através de movimentos especulativos e de arbitragem deve ser desestimulado. A primeira e principal medida neste campo é o estabelecimento de uma taxa de juros básica da economia, em patamar semelhante aos juros americanos. Uma taxa de juros muito elevada em relação à taxa de juros americana é maléfica para a economia, em pelo menos três aspectos: i) atrai capitais financeiros especulativos para o país; ii) eleva demasiadamente o custo de carregamento de reservas por parte do Banco Central; e iii) desestimula o investimento produtivo. Se uma taxa de juros relativamente baixa não for capaz de evitar os males dos movimentos especulativos dos capitais, outras medidas devem ser adotadas. Por exemplo, a cobrança de impostos sobre a movimentação financeira internacional ou outras medidas administrativas a serem definidas.

 A política monetária que favorece o investimento e a industrialização mais sofisticada é aquela que é totalmente consistente com a política cambial descrita. Não se pode determinar uma política monetária independentemente da política cambial (e vice-versa), ainda que o regime de câmbio seja flutuante, porque um regime de altas taxas de juros está necessariamente associado a um regime de câmbio valorizado. Esta é uma conhecida gangorra da macroeconomia. Uma política monetária de taxas de juros baixos é consistente, portanto, com uma política cambial de taxa competitiva. Como dito, uma política de taxas de juros elevadas determina uma taxa de câmbio valorizada e impõe custos elevadíssimos de carregamento de reservas ao setor público, que recebe a taxa de juros americana e paga a taxa de juros doméstica por cada dólar retido no Banco Central.

 A taxa de juros é fundamental para manter o equilíbrio externo: transações com o exterior financiadas e blindagem contra movimentos de capitais financeiros que são maléficos. Mas é também fundamental para manter o equilíbrio interno: alto crescimento com infl ação baixa. Nesse sentido, uma nova concepção deveria governar a determinação da taxa de juros. Todo poupador cujos recursos não fi nanciam algum tipo de gasto doméstico (consumo ou investimento) é um gerador de desemprego. Quanto maior a taxa de juros maior é o estímulo para a poupança e, portanto, maior é o desemprego causado pelo poupador. Logo, a taxa de juros deveria ser pensada como um instrumento capaz de punir aqueles que não querem gastar, ou seja, como um instrumento que pune o gerador de desemprego. Portanto, a taxa de juros deveria ser sempre baixa, muito baixa.

 A taxa de juros, por ser um instrumento capaz de controlar a demanda agregada, já se mostrou plenamente eficaz para o controle da inflação. Contudo, é preciso entender que sua funcionalidade depende de sua perversidade, isto é, gerar desemprego – para que haja uma redução de demanda relativamente à oferta, o que inibe o reajuste de preços. Mas como a economia de bem-estar que se deseja construir é uma economia de emprego para todos, estabelece-se aqui um trade-off: de um lado, um instrumento anti-inflacionário funcional que gera desemprego; e, de outro, a obrigação estratégica permanente de gerar mais empregos. A alternativa não pode ser abandonar a taxa de juros, um instrumento anti-inflacionário funcional, mas sim reduzir ao máximo possível a utilização anti-infl acionária da taxa de juros, sem que o objetivo da estabilidade de preços seja relegado a um segundo plano.

 Para tanto, o objetivo da estabilidade de preços deveria ser um objetivo de todos os órgãos públicos. Logo, mais instrumentos estariam disponíveis para este fi m. Se a inflação estivesse sendo causada pelo aumento do feijão ou da soja, seria o Ministério da Agricultura que deveria apresentar um diagnóstico do problema e apontar soluções. Se a inflação estivesse sendo causada pelo aumento de margem de lucro de forma excessiva por parte da indústria automobilística, seria o Ministério da Indústria e Comércio que deveria apresentar um diagnóstico do problema e apresentar soluções. O Banco Central deveria ser o controlador de última instância da inflação, e não o primeiro e único órgão do Governo preocupado com um problema que é amplo, complexo e com muitas especificidades. Deixar somente o Banco Central responsável por tratar da estabilidade de preços é o mesmo que solicitar a um médico clínico geral para solucionar ora um problema do coração, ora um problema de pele, ora um problema do estômago. Manter a inflação sob controle é algo tão importante que deveria haver uma câmara formada por diversos organismos do Governo – inclusive o Banco Central – e dirigida pelo Presidente da República para deliberar sobre o assunto.

 A administração fiscal que favorece o investimento e a industrialização mais sofisticada é aquela que busca: i) manter a economia em estado de semiboom permanente, através de uma política de gastos rumo ao pleno emprego; ii) promover justiça social ao estabelecer um sistema tributário progressivo, onde a renda e o patrimônio sejam a base da arrecadação – e o consumo, a produção e o investimento sejam desonerados; iii) equilibrar o orçamento para que o governo tenha nas suas mãos uma política de gastos que possa ser utilizada na sua plenitude, sem restrições orçamentárias importantes; iv) desenvolver mecanismos democráticos de decisão de gastos, assim como desburocratizar os processos de gastos do governo para que o gasto público possa ser feito com melhor qualidade, sem desperdício e com preços menores; e v) desenvolver mecanismos mais simples de arrecadação e fiscalização da arrecadação – que são procedimentos necessários para que a carga tributária tenha o tamanho compatível com a sociedade de bem-estar que se pretende construir.

 Essas são linhas gerais de uma estratégia de desenvolvimento para o Brasil. São linhas que rompem com o Consenso de Washington, que já revelou o seu fracasso histórico. As evidências do fracasso são nítidas. Em primeiro lugar, os países que mais se desenvolveram nas últimas cinco décadas, entre eles Japão, Coréia do Sul e Israel, jamais adotaram políticas macroeconômicas ou reformas estruturais assemelhadas àquelas sugeridas pelos “de cima”, no Consenso de Washington. Em segundo lugar, os 10 países que mais cresceram nos últimos 20 anos sempre mantiveram a devida distância em relação às recomendações vindas dos “de cima”.

 Em ordem de média de taxa crescimento, são eles: China, Cingapura, Coréia do Sul, Taiwan, Vietnã, Malásia, Tailândia, Índia, Hong-Kong e Paquistão. São todos da Ásia, onde as idéias elaboradas em Washington nunca tiveram qualquer penetração. Em terceiro lugar, a Argentina, que foi a melhor “aluna” dos professores de Washington durante os anos 1990 – seguindo os mínimos detalhes das sugestões de políticas públicas, reformas, liberalizações e privatizações – obteve como resultado uma profunda recessão, elevadíssimas taxas de desemprego e jogou mais da metade da sua população na condição de miséria.

 Por fim, o Consenso de Washington, segundo seus defensores, expressa a ideia de que existem “fundamentos” econômicos básicos que devem ser perseguidos, sejam em países desenvolvidos, sejam em países em desenvolvimento. Entretanto, os próprios países desenvolvidos para manter o seu estado de desenvolvimento avançado não seguem as recomendações que nos fazem.


*João Sicsú é Doutor em Economia (Instituto de Economia, UFRJ). Diretor de Estudos Macroeconômicos do IPEA e professor licenciado do IE-UFRJ.

A súbita guinada neoliberal do Brasil

Por Franklin Serrano*



 A rápida desaceleração da economia brasileira apresenta um duro desafio para o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) liderado por Dilma Rousseff. Entre 2011 e 2014, o crescimento econômico médio foi de apenas 2,1% ao ano, comparado com 4,4% no período 2004-2010.

 A recente queda pode ser diretamente atribuída à política econômica implementada por Dilma no primeiro mandato (2011-14) . Esta mudança na orientação da política econômica procurou reduzir o papel direto do Estado na promoção da expansão da demanda agregada por meio de estímulos fiscais e a promoção da mudança estrutural pelo lado da oferta por intermédio do investimento público, uma estratégia que havia sido bastante exitosa até 2010. Por seu turno, as políticas sociais inclusivas preocupadas com a redução da desigualdade continuaram em curso.

 A presidenta Dilma e seu partido (incluindo o ex-presidente Lula) avaliaram – em uma tentativa de reduzir as críticas dos empresários, bancos, parte do Congresso e da mídia – que o governo estava intervindo “demais” na economia. Houve uma mudança na concepção do papel do Estado na economia na direção de prover incentivos (isenções fiscais generosas e incondicionais) para o investimento privado, de forma que este setor lideraria (ao invés de seguir) o crescimento econômico.

Esta política falhou completamente. Isto foi agravado quando uma rara estiagem em conjunto com a má condução da política energética pela Eletrobrás, a principal empresa estatal do setor elétrico, levaram o país à beira de uma séria crise de oferta energética e racionamento de energia em 2014, mesmo com a demanda em baixa devido à queda do crescimento econômico.

 Ao invés de retornar às políticas bem-sucedidas anteriores de 2005-2010, e melhorar o planejamento de longo prazo (por meio de melhores políticas tecnológicas e de infraestrutura), o segundo mandato de Dilma está completamente comprometido com políticas propostas pela oposição neoliberal. O propósito subjacente deste regime é gerar desemprego suficiente para enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores.

 Este poder, talvez de maneira não intencional, aumentou substancialmente devido a um mercado de trabalho mais aquecido entre 2006 e 2014 e às políticas sociais do governo PT. O desemprego caiu acentuadamente e os salários reais médios no setor formal cresceram a uma taxa média de 3% ao ano, a partir de 2006 [2]. Em 2015, o governo do PT passou a tomar ações decisivas contra isso. A geração de desemprego via políticas de austeridade e mudanças na distribuição em detrimento dos salários criaram um clima político em que é possível reverter o tamanho e a importância do Estado brasileiro na economia. 

Esta traição súbita e drástica contra a própria base do partido formada pela classe trabalhadora foi uma reação ao aumento das críticas à política econômica do primeiro mandato de Dilma feita pelo poderoso e conservador setor privado. Os conflitos distributivos e um novo Congresso hostil confrontaram uma presidenta e um partido que ao mesmo tempo parecem querer sinceramente mudanças sociais ao passo que abominam o conflito com as classes proprietárias conservadoras. Esta quadratura do círculo parecia possível até 2011 quando havia uma bonança de divisas, mas agora a moderação do PT e a pesada dependência do financiamento eleitoral de grandes empresas e bancos estão cobrando seu preço.

 Estas novas mudanças políticas têm sido muito mais significativas do que as mudanças nas condições externas, tais como a situação do comércio internacional e a disponibilidade de financiamento externo. Estes se deterioram desde 2011, mas não a ponto de desencadear uma crise na medida em que o Brasil é uma economia relativamente fechada. As exportações não são uma grande fonte de demanda e o país ainda tem níveis confortáveis de reservas cambiais e níveis relativamente baixos de dívida externa.

 O ministro da Fazenda Joaquim Levy disse ao jornal Correio Brasiliense na edição do dia 13 de Junho que ele estava a caminho de “sair da retórica e enfrentar algumas realidades”. Segundo Levy, existem pessoas que não queriam ingressar no mercado de trabalho, que agora terão que procurar emprego, e que é por esta razão que a oferta de trabalho deve crescer. Ainda de acordo com ele, “Não existe crescimento sem aumento da oferta de trabalho”. O ministro cometeu um erro óbvio: na teoria neoclássica do crescimento, a qual aludiu, é o pleno emprego que geraria o crescimento e não o desemprego, que, por definição, nada produz. 

 Ironicamente, a situação externa relativamente positiva, como recentemente assinalado por Matias Vernego [3], tem sido confirmada pelas agências que rebaixaram o Brasil no começo de setembro. A Standard & Poors justificou a classificação do Brasil abaixo do grau de investimento devido às dificuldades fiscais e a dívida interna do governo, não aos problemas de financiamento externo.

 É logicamente impossível para o mercado forçar um governo a dar calote na dívida interna denominada em sua própria moeda. Em qualquer país onde o Banco Central compra e vende qualquer quantidade de títulos governamentais de curto prazo no mercado secundário para estabelecer a taxa de juros básica da economia, quaisquer títulos não comprados pelo setor privado são comprados pelo Banco Central à taxa de juros estabelecida. Isto é ignorado pela S&P. Mas para ser justo, a S&P também rebaixou os títulos do governo japonês como também o fez com os títulos do governo dos Estados Unidos, então a insensatez da S&P não é restrita ao Brasil. Tal como as agências de classificação de risco disseram quando elas foram convocadas à Corte por seu papel na crise financeira de 2008, suas classificações são “apenas uma opinião” [4]. Infelizmente, a presidenta Dilma levou estas opiniões a sério.

 Os escândalos em andamento também estão tendo efeitos negativos sobre a economia. O governo teve uma reação desastrosa aos escândalos relacionados à companhia estatal Petrobras (com implicações sobre diversos quadros do PT no governo). Ao invés de tentar preservar a companhia enquanto a lei se encarrega dos acusados, a Petrobras foi tratada como um fio desencapado e o governo tentou distanciar-se dela. O governo aceitou quase todos os violentos ataques especulativos de curto prazo no valor das ações da empresa como refletindo verdadeiramente o valor real dos ativos da Petrobras. Isto agravou (e inclusive criou) sérios constrangimentos de crédito para a empresa.

 Assim, o governo paralisou os planos de investimento da Petrobras. Para piorar a situação, algumas grandes empresas que atendiam a Petrobras e estavam sob suspeita de corrupção foram impedidas de fazer qualquer negócio com o governo. A administração de Dilma não fez o suficiente para impedir isso. Como resultado, não apenas a Petrobras cortou investimentos como reduziu drasticamente suas encomendas de um grande número de grandes empresas privadas e de sua própria cadeia de fornecedores, e isto foi um desastre para vários setores, tais como o de construção naval.

 O impacto político dos próprios escândalos foi demasiadamente amplificado pela manipulação de magistrados com ambições políticas, atuando em concerto com os grandes meios de comunicação aliados à oposição. A resultante queda da popularidade colocou a administração de Dilma em uma posição política muito frágil. Isto tem ajudado o deslocamento da política na direção da austeridade na medida em que tem acentuado uma tendência, já dominante entre os líderes do PT imediatamente após as eleições de outubro de 2014, de fazer o que o “mercado” – isto é, grandes empresas privadas, a oposição e a mídia – quer. Estas políticas de austeridade, ao lado da reação desastrosa do governo ao escândalo na Petrobras – mais do que qualquer mudança nas condições econômicas internacionais – estão causando a profunda recessão atual. Se nós considerarmos a eficácia das medidas de austeridade buscadas pelo ministro da Fazenda Levy no controle do tamanho da dívida pública bruta para restaurar algum misterioso “nível de confiança”, esta terá sido um fracasso completo. Os gastos governamentais foram cortados da maneira mais arbitrária possível, e a recessão provocada pelas políticas fiscal, monetária, cambial e de rendas (aumento dos preços monitorados e de serviços de utilidade pública), ao lado da queda no valor das exportações, têm reduzido drasticamente as receitas fiscais, como era de se esperar. Desta forma, dentro de poucos meses, toda a meta de superávit primário teve de ser revisada para baixo.

 Além disso, a taxa de juros definida pelo Banco Central amplia os custos de gerenciamento e o estoque da dívida pública. Porém, se a eficácia for medida em termos dos objetivos reais da nova política, o sucesso é retumbante. A taxa de desemprego aumentou muito rapidamente. A inflação subiu e terminará o ano muito acima do limite superior da meta oficial de 6,5% [5]. O Banco Central simplesmente “suspendeu” a meta de inflação para este ano, depois de não exceder o limite superior por quase uma década e meia.

 Mas, na medida em que o propósito dessa inflação acelerada é reduzir os salários reais, algo que o governo eufemisticamente chama de “corrigir o desequilíbrio dos preços relativos”, o governo não evitou – e, na verdade, colaborou – para uma maior desvalorização cambial e aumento dos preços de serviços de utilidade pública. Por outro lado, o investimento público desabou.

 A eficiência dos serviços públicos tem sido comprometida por muitos cortes de gastos arbitrários e francamente ridículos. A UFRJ, universidade na qual leciono, recebeu menos do que 30% do seu orçamento aprovado para o calendário deste ano até Setembro. Histórias de horror como esta são abundantes no setor público brasileiro. Tais políticas ajudam a criar um consenso de que o Estado é ineficiente (e corrupto), provocando o coro em favor da redução, de forma mais permanente, dos gastos públicos e mesmo das transferências sociais.

 O governo já está planejando enviar ao Congresso amplas reformas do sistema público de seguridade social. No começo da década de 1990, Lula e o PT lideraram com parcial sucesso a oposição tanto à austeridade macroeconômica como às reformas neoliberais, e isto ajudou o Brasil a escapar de alguns dos piores impactos do neoliberalismo. Agora, eles estão liderando o movimento para as reformas neoliberais. Até o momento, estas novas políticas têm encontrado pouca resistência política na medida em que elas correspondem precisamente ao que as forças políticas conservadoras, que controlam o Congresso, querem, e porque agora não há nenhum grande partido de esquerda que se oponha a elas, uma vez que elas estão sendo implementadas (muito disciplinadamente) pelo próprio PT.

 Para os estudiosos da história brasileira, a eclosão da atual onda de escândalos e de pressões para a austeridade econômica não surpreende. Embora, historicamente, o presidente e o Executivo tenham sido muito poderosos relativamente ao Congresso e ao Judiciário, sempre que houve um presidente mais ou menos de esquerda, não importando o quanto moderado fosse, o Congresso e o Judiciário incitaram uma crise política para gerar um parlamentarismo informal. Isto aconteceu quando o ex-ditador Getúlio Vargas retornou como presidente eleito democraticamente na década de 1950 e com o presidente João Goulart antes do golpe militar na década de 1960. Houve uma tentativa fracassada de repetir esta estratégia durante o mandato de Lula, com a assim chamada crise do mensalão (referente às contribuições ilegais de campanha comprovadas e alegados subornos para membros do congresso). Isso está acontecendo novamente com a presidenta Dilma.

 O caso do presidente Fernando Collor foi completamente diferente. Sua candidatura foi um ato de desespero, uma vez que ninguém melhor foi encontrado que tivesse apelo popular e foi necessário para prevenir Lula e a esquerda de vencerem a eleição de 1989. Historicamente, existem duas formas fáceis para se livrar da esquerda na América Latina. A primeira é por meio de uma séria crise do balanço de pagamentos. A segunda, durante a Guerra Fria e especialmente depois da crise dos mísseis em Cuba, era um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos (o Chile teve os dois). Depois da década de 2000, a situação do balanço de pagamentos nos países em desenvolvimento em geral, e no Brasil em particular, melhorou significativamente. Com o fim da Guerra Fria, o Exército brasileiro não tem interesse em um golpe.

 A atual crise política é mais parecida com a situação de Vargas na década de 1950, na medida em que tanto naquela época como agora o Brasil não enfrenta nem uma crise no balanço de pagamentos nem a ameaça de um golpe militar. Mas é improvável que acabe tão tragicamente para a presidenta Dilma (o presidente Vargas cometeu suicídio) porque ela, o ex-presidente Lula e o resto do seu partido já se renderam sem muita luta.

Referências

[1] Ver SERRANO, F.; SUMMA, R. “Demanda agregada e a desaceleração econômica brasileira de 2011 a 2014”. In: Center for Economic and Policy Research, agosto de 2015. Disponível em: http://www.cepr.net/documents/publications/Brazil-2015-08-PORTUGUESE.pdf.
[2] Ver SUMMA, R.; SERRANO, F. “Distribution and cost-push inflation in Brazilian Economy under inflation targeting, 1999-2014”. In: Working Paper 13, Centro Sraffa, 2015.
[3] Ver http://nakedkeynesianism.blogspot.com.br/2015/09/from-bbb-razil-to-bbrazil-or-meaning-of.html. Acessado em 19/10/2015.
[4] Ver http://www.publicintegrity.org/2009/10/28/6995/under-attack-credit-raters-turn-first-amendment. Acessado em 19/10/2015.
[5] Ver http://www.bloomberg.com/news/articles/2015-06-25/brazil-changes-inflation-target-for-thefirsttime-since-2006. Acessado em 19/10/2015.

*Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisador Associado Sênior do Center for Economic and Policy Research (www.cepr.net).

O original encontra-se em www.excedente.org

domingo, 1 de novembro de 2015

Sobre o livre comércio (e vantagens comparativas)


Traduzo logo abaixo um texto de Matias Vernengo, professor titular da Bucknell University e coeditor da Review of Keynesian Economics, sobre o tema do comércio externo e sua liberalização ou regulamentação, retirado do blog Naked Keynesianism



Sobre comércio ''livre'' e comércio gerido (modelo ricardiano) 

 Em um de meus últimos posts eu prometi falar sobre ''livre comércio''. Como eu disse, o próprio nome está equivocado, assim como ''livre mercado''. Não apenas porque sugere que aqueles que se opõem a ele são de alguma forma adversários da liberdade, mas principalmente porque ele vagamente sugere que comércio e mercado são como fenômenos naturais, que floresciam somente se as restrições governamentais fossem eliminadas. 

 Na verdade, é bem sabido que, ao menos desde o clássico de Polanyi, que os mercados essenciais numa economia capitalista (os de terra, trabalho e dinheiro) foram lentamente criados por meio da interação de conflitos sociais articulados através de processos políticos e que sua própria existência resulta, em parte, do poder do  Estado. Logo, visões simplistas e maniqueístas acerca da relação entre o Estado e o ''livre'' mercado ignoram o fato de como Estados e mercados co-evoluíram historicamente.

 Por exemplo, o Banco da Inglaterra, criado em 1694, obteve o monopólio da criação de dinheiro apenas após Bank Charter Act de 1844, algo que resultou da vitória do City of London (interesses financeiros) sobre os bancos do país (mais próximos aos interesses comerciais). O monopólio da emissão de dinheiro seria impossível sem o suporte do governo (e seu monopólio da violência). O mesmo pode ser dito sobre transações comerciais internacionais. Por exemplo: é bem conhecido que o período chamado ''primeira globalização'' (1870-1914) viu um significante acréscimo no volume de comércio global. Entretanto, várias regiões na verdade se tornaram mais ''protecionistas'', i. e., aumentaram as tarifas sobre importações (veja Paul Bairoch para um boa discussão sobre o tópico). 

 Na América Latina as tarifas mais altas permitiram aos governos incrementar sua receita, o que, por sua vez, criou as condições para os exércitos nacionais reduzirem conflitos domésticos -- e centralizar a administração, fornecer garantias para os credores estrangeiros e financiar a construção de ferrovias e portos.

 Isso não significa que todo mundo na América Latina (ou em outras regiões para as quais o tema importa) se beneficiaram do acréscimo no comércio global durante o período [vale a pena lembrar que no México, no final do período, os camponeses fizeram revolta contra o Porfiriato na chamada Revolução Mexicana de 1910]. Não foi o ''livre'' comércio que produziu crescimento, mas a gestão do comércio para produzir mercadorias para os países centrais (um projeto particular apoiado por elites locais e grupos comerciais e financeiros internacionais) que levou ao crescimento (com altos níveis de desigualdade).

 Uma discussão mais lógica, por todos esses motivos, deveria ser não sobre ''livre'' comércio vs protecionismo, mas sobre que tipo de comércio gerido uma determinada sociedade deseja, e quem se beneficia dos diferentes arranjos comerciais. Por exemplo: em discussões correntes sobre acordos comerciais bi ou multilaterais os temas do investimento e cláusulas de propriedade são fundamentais. A disputa é principalmente sobre aqueles que querem proteger os interesses das corporações [e. g. (''a título de exemplificação'') direitos de propriedade, acesso às cortes estrangeiras, eliminação de regulações financeiras proibindo remessas de lucro ao exterior, etc.] e aqueles que podem ter interesses alternativos (e. g. a proteção dos empregos domésticos, criação de capacidade nacional para inovação industrial, o meio-ambiente, etc). De fato, para casos específicos, como defesa ou regras sanitárias e fitosanitárias, está bem estabelecido que o comércio deve ser regulado, ou seja, não ''livre'' mas sim gerido (para discussões sobre alguns problemas correntes envolvendo a agenda do ''livre'' comércio, olhe aqui e aqui).

 Mas os problemas para os defensores do ''livre'' comércio não estão limitados às inconsistências de suas posições políticas. Na verdade, apesar do consenso geral de economistas acadêmicos (convencionais) em favor do ''livre'' comércio, os fundamentais teóricos para a posição dos mesmos são bastante trêmulos. O argumento remonta aos Princípios de David Ricardo (veja também o trabalho paralelo de Robert Torrens). Ricardo argumentou que se Inglaterra e Portugal comercializassem sem a imposição de tarifas isso seria mutuamente benéfico, mesmo que Portugal fosse melhor em produzir ambos os produtos comercializados, vinho e algodão. A razão é simples: mesmo que os trabalhadores portugueses fossem mais produtivos do que suas contrapartes inglesas na produção de ambos os bens, eles poderiam ser melhores na produção de um deles (digamos, vinho) e ainda se beneficiariam de colocar todos os seus esforços na atividade em que se destacam.

 Em outras palavras, o argumento para o comércio sem tarifas e outras restrições estava baseado na ideia de que o comércio é equivalente a acesso a melhores tecnologias. Os portugueses poderiam se especializar no que eles são tecnologicamente melhores, e obter através do comércio as coisas que eles não produzissem. Os ingleses poderiam ter acesso a melhor vinho. Ambos teriam acesso a algodão mesmo que os ingleses fossem menos eficientes em produzi-lo. A mensagem é que especialização é a chave para a riqueza das nações.

 Entretanto, o que é frequentemente ignorado na discussão é que o argumento ricardiano da vantagem comparativa, como é o caso para todos os modelos econômicos, depende de certas premissas especiais, e que aquelas premissas correspondiam às próprias visões políticas de Ricardo. Primeiramente, Ricardo assumiu que todos os trabalhadores que estavam empregados na produção de vinho na Inglaterra encontrariam emprego na produção de algodão, e que todos os trabalhadores empregados na produção de algodão em Portugal poderiam achar trabalho na produção de vinho. A Lei dos Mercados de Say, que sugere que a crise geral de demanda não ocorre no mercado interno, foi estendida para os mercados externos também. Trabalhadores estão sempre empregados por definição (não necessariamente pleno emprego para Ricardo). Além disso, Ricardo assumiu que o capital era imóvel, isto é, mesmo que fosse mais barato de produzir em Portugal (dada a sua maior produtividade e menores custos) e exportar para a Inglaterra, capitalistas ingleses prefeririam manter o seu capital na Inglaterra e produzir em seu país natal.

 Note que se qualquer uma dessas premissas for violada, o argumento de Ricardo desaba. Em outras palavras, se os trabalhadores na Inglaterra e/ou em Portugal no setor ''deslocado'' não puderem achar empregos no outro setor, não é claro que todos se beneficiam do ''livre'' comércio. Além disso, se os capitalistas puderem e de fato se moverem de país para país (Interessantemente, Ricardo descendia de uma família de banqueiros que emigrou de Portugal para a Itália, desta para a Holanda e por fim para a Inglaterra), isso determinaria que ambos o algodão e o vinho seriam produzidos em Portugal. A Inglaterra estaria em uma difícil situação, importando ambos os bens e condenada a crescer num ritmo mais lento, o que é exatamente o oposto da situação histórica (para uma análise do comércio Anglo-Português depois do Tratado de Methuen de 1703 que permitiu ao vinho português ser exportado para a Inglaterra livre de tributações e o mesmo para os têxteis ingleses em Portugal, ver Trade and Power de Sandro Sideri).

 As razões das premissas especiais de Ricardo são bastante conhecidas. Ricardo representou os interesses financeiros e industriais, e era um severo crítico das Corn Laws, as tarifas sobre grãos importados impostas após as Guerras Napoleônicas, que beneficiava as classes dos aristocratas e latifundiários -- defendidas por seu amigo Robert Malthus. Ricardo assumiu que os salários estavam no nível da subsistência, e que as tarifas na importação de grãos levaria ao uso de mais (e menos produtivas) terras na Inglaterra para sua produção, incrementando a renda auferida pelos donos de terras. Para uma produção dada, e com salários constantes, a renda maior iria necessariamente reduzir lucros e a acumulação de capital. Em outras palavras, as premissas especiais (que Ricardo pensou relevantes para o caso particular da Inglaterra naquele contexto histórico particular) foram instrumentais em sua argumentação para a eliminação das tarifas sobre grãos importados. Isto era um argumento progressista pela industrialização e contra a aristocracia agrária (para uma discussão sobre as posições políticas de Ricardo, veja Ricardian Politics, de Milgate e Stimson).

 Generalizações do argumento ricardiano somente podem ser defendidas se seus pressupostos (incluindo que trabalhadores desalocados acham novos empregos e que não há mobilidade de capital) também são tido como geralmente válidos. Outros argumentos modernos em favor do ''livre'' comércio se apoiam no assim chamado modelo Heckscher-Ohlin-Samuleson (HOS), que está repleto de problemas lógicos, e é ainda menos defensável do que a generalização de pontos de vista ricardianos, mas eu vou lidar com aqueles em outro post.

Ps. Meu artigo ''O que os graduandos realmente precisam aprender sobre comércio e finanças'' pode prover uma discussão mais detalhadas sobre os assuntos abordados acima. Robert Vinneau postou aqui elementos da crítica sraffiana ao modelo HOS.

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Para outras críticas à teoria das vantagens comparativas, ver este artigo do site da World Economics Association e este texto do blog Critique of Crisis Theory. 

sábado, 24 de outubro de 2015

Natureza x moralidade e a naturalização como ferramenta ideológica de dominação




 ''O que é um fundamento? Não é nem um princípio, explica Marcel Conche, nem uma causa, nem uma origem. O princípio é o ponto de partida de uma dedução. Mas como, sem fundamento, escolher entre os diferentes fundamentos possíveis e às vezes contraditórios? O fundamento não é um princípio, mas a 'justificação radical' dos próprios princípios.

 A causa explica um fato. Mas como a causa, sem fundamento, passar do fato à norma? O fundamento não é o que explica fatos, mas o que 'estabelece o direito': ele não diz o que é, mas o que deve ser.

 A origem, enfim, dá uma razão a um devir: é como uma causa histórica ou diacrônica. Mas como, sem fundamento, passar da história ao valor, da explicação ao mandamento, da gênese ao valor? O fundamento não explica o que se passa; ele permite julgá-lo absolutamente, em nome de algo que não se passa.

 Se me concederem essas distinções ou, antes, se as concederem a Marcel Conche, compreenderão que não posso encontrar, na natureza em geral e na neurobiologia em particular, nenhum fundamento, qualquer que seja, para a moral que é a nossa. Primeiro porque a neurobiologia, supõe ela mesma princípios, sempre relativos, que portanto não poderiam comandar absolutamente. Em seguida, e sobretudo, porque ela não pode estabelecer ou explicar coisa alguma além de fatos, e por outros fatos: ela pode nos fornecer, para a moral, certos números de causas ou de origens, mas um fundamento certamente não. Permanece inteira, com efeito, a objeção de Hume, que mostra que não se pode passar nunca do que é (um fato) ao que deve ser (um valor absoluto, um imperativo). Querer fundar uma moral na natureza é, inevitavelmente, cair no que Moore chamava de ''sofisma naturalista'' (naturallistic fallacy). Querer fundar uma moral nas ciências é cair num sofisma cientificista. Por que a natureza seria boa? Por que a verdade seria boa? Equivaleria transformá-las em divindades, e é o que o materialismo rejeita. A natureza é submetida unicamente a causas (unicamente a ela mesma): ela não conhece valores nem deveres. Uma ciência conhece unicamente fatos: ela sempre fala no indicativo, como dizia o matemático Henri Poincaré, nunca no imperativo, e é o que a impede de fazer as vezes de moral.

 Imaginemos, por exemplo, que nossos biólogos nos demonstrem que nosso cérebro ou nossos genes (ou aquele por estes) são 'programados' para sermos egoístas, covardes, mentirosos, crueis... O que isso nos ensinaria sobre o valor moral do egoísmo, da covardia, da mentira ou da crueldade? O que isso retiraria, inversamente,do valor da generosidade, da coragem, da boa-fé, da doçura?

 Isso me faz pensar nesses debates ridículos que às vezes ouvimos nos cafés sobre a suposta moralidade ou imoralidade  da homossexualidade. Uma pessoa diz em essência: 'A homossexualidade não é natural', e enxerga nisso uma condenação moral. O outro objeta que há casos de homossexualidade entre animais, logo tem de ser natural: por que, então, condená-la? É não ver, em ambos os casos, que tudo o que existe é natural, por definição. Mas ainda que não me concedessem esse ponto, pergunto o que a dimensão natural ou não natural (no sentido estrito: no sentido de que a natureza se opõe à cultura) que a homossexualidade muda em seu valor moral. Minha ideia, claro, é que não muda nem um pouco. Tomo por prova que não necessitamos saber dessa naturalidade ou não -- a questão é discutida pelos especialistas -- para julgar que a homossexualidade é moralmente inocente, do mesmo modo que não necessitamos saber sobre a eventual naturalidade da pedofilia para julgá-la moralmente condenável. Quanto aos bichos como poderiam nos ensinar uma moral que ignoram? É possível que a guerra seja uma especificidade humana. Isso não a torna moralmente desejável, nem sempre condenável. Tomar os animais como modelos de uma boa natureza (contra as supostas perversões da humanidade ou da civilização) seria destinar-nos a uma vida bestial. É o que se quer? Tomá-los como modelo de uma má natureza, à qual seria sempre necessário arrancar-se, seria nos fadar a um angelismo absurdo e mortífero, que seria igualmente perigoso, talvez mais. O homem não é nem anjo nem bicho? Digamos que ele é bicho primeiro, ou melhor, animal: é um animal capaz de juízo, um animal socializado, educado, civilizado, é um animal que fala, que raciocina, que ama, é o que chamamos um ser humano. A moral não lhes permite escapar de seus genes. Mas como seus genes poderiam bastar à sua moral?''

COMTE-SPONVILLE, André. ''Neurobiologia e filosofia: Existem fundamentos naturais da ética?: Por que a natureza seria boa?''. In: COMTE-SPONVILLE, André; FERRY, Luc. A sabedoria dos modernos. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 90-92.



''A maneira como a cultura opera -- e o modo como os indivíduos se tornam membros de uma sociedade -- esconde um fenômeno pela sua natureza invisível, mas capaz de manter a todos os indivíduos sob o poder de instituições sociais existentes: os homens acabam por se ver prisioneiros da vida social (dos tabus, crenças, mitos e normas nela existentes), sem que se deem conta de que se trata de produtos por eles próprios criados. Todo o processo que dá origem à cultura, e origem ao próprio homem, desaparece para dar lugar à ideia de que a realidade vivida é natural, necessária, inevitável, independente do querer e do agir humanos. A realidade social aparece como consequência da natureza das coisas, como resultado de desígnios sagrados. O homem perde a noção do processo social que está na base de sua existência histórica e da história de suas instituições.

 O que torna possível que a cultura se constitua nessa lente que condiciona o olhar humano é a ação das representações sociais, que consegue fazer com que a realidade das sociedades apareça aos homens como dada, fixa, imutável, revestida da aura da sacralidade necessária para a autolegitimação. Uma vez que aparece como coisa dada a realidade social assume a aparência de autônoma, podendo existir por si ou como resultado de leis naturais, como extensão da 'natureza' dos homens, que também é representa como decorrente de condicionamentos biológicos fixos.

(...)

A legitimação das instituições sociais -- pelo ocultamento do processo histórico-social que lhes dá origem e pelo ocultamento da dominação a que submetem os indivíduos -- é o que o simbolismo mítico-religioso-ideológico produz por seu efeito e, não sem razão, podemos dizer que não há simbólico que não seja sempre-já ideologia. Ser a dissimulação da natureza particular das convenções sociais e ser a explicação da origem do real que dota a realidade social de sentido é o que caracteriza a ideologia, no fundamento, e o que torna sua existência algo eficaz, que cabe à análise teórica do social desvendar.

 O que em tudo isso se apresenta muito claro é que a ideologia serve, em primeiro lugar, à dominação nas sociedades. Pois é da sua natureza, como ideologia, ocultar a gênese histórico-social da realidade, fazendo com que a ordem das sociedades humanas apareça como natural, necessária, inevitável e independente da ação humana. A ideologia é sempre a justificação da ordem social existente e experimentada pelos indivíduos, pois fornece a estes os fundamentos da existência nessa ordem. Seja por meio dos mitos, seja por meio dos discursos que se querem racionais, a ideologia trata sempre de fazer crer que as instituições sociais existem por razões que não se pode duvidar, pois, ora se apresentam como produtos de leis naturais, ora se apresentem como produtos da vontade de poderes sagrados. Daí a ideologia se constituir no discurso que a sociedade faz sobre si mesma sempre de maneira a tornar invisível o processo que engendra e preserva sua estrutura de sociedade.

(...)

No nível do aparecer, no que consiste a ideologia de fato, a realidade construída pelos homens passa a 'existir' como coisa natural, necessária, universal e imutável. O que torna possível que a experiência de estar submetido a uma sociedade particular não seja percebida como a experiência do particular, mas como a experiência universal. Fundamento de toda a adesão dos indivíduos às suas sociedades e, por sua vez, fundamento de toda alienação. No que temos a relação direta e imediata entre ideologia e cultura, uma vez que toda experiência de estar submetido a uma cultura ocorre simultaneamente ao seu ocultamento enquanto uma experiência particular, pois aparece, para os indivíduos, sempre-já como uma experiência única e inevitável -- os padrões culturais (como dizemos em antropologia) aparecendo como universais. Na inversão em que o particular ganha a aparência de universal e se esconde o que talvez seja a operação mais poderosa da ideologia. Segredo de todo o poder de dominação sobre os indivíduos.

(...)

É, pois, por essa razão que se pode afirmar que para a ideologia a História é um perigo, que procura evitar. Negar a historicidade da realidade, a vida social pode ser petrificada no tempo e no espaço como eterna e imutável, pois independente da prática dos homens. E como a natureza da ideologia a torna necessária à dominação, pois consegue fazer com que a dominação também apareça como eterna, imutável e independente de todo o agir e querer humanos, o perigo da História é ainda maior se for posto o problema do desvendamento da origem de todo poder de dominação. O ocultamento da historicidade da realidade é imediatamente ocultamento da origem histórico-social do poder de dominação em todas as suas formas.''

SOUSA FILHO, Alípio de. ''Mito e castigo: A cultura do medo, a cultura da dominação: 1. A cultura do medo, a cultura da dominação, ou de uma relação entre cultura e ideologia''. In: _____. Medos, mitos e castigos: notas sobre a pena de morte. São Paulo: Cortez, 2001, pp. 11-90.



''Os economistas têm uma maneira singular de proceder. Não existe para eles senão duas espécies de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições da feudalidade são as instituições artificiais, as da burguesia são as instituições naturais. Eles se parecem nisto com os teólogos que, eles também, estabelecem duas espécies de religião. Toda religião que não é a sua é uma invenção dos homens, enquanto que a sua própria religião é uma emanação de Deus. Dizendo que as relações atuais — as relações da produção burguesa — são naturais, os economistas dão a entender que se trata de relações nas quais se cria a riqueza e se desenvolvem as forças produtivas de acordo com as leis da natureza. Logo, estas relações são elas mesmas leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem reger sempre a sociedade. Assim, já existiu história, mas não existe mais. Existiu história, pois que existiram instituições de feudalidade, e que nestas instituições de feudalidade se encontram relações de produção inteiramente diferentes daquelas da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais e portanto eternas.''

MARX, Karl. ''A metafísica da economia política: 1. O método: Sétima e última observação''. In: _____. Miséria da Filosofia. São Paulo: Martin Claret, 2008, pp. 144-145.

domingo, 18 de outubro de 2015

A teoria da ''ideologia'' em Althusser


Louis Althusser (1918-1990)

 A teorização que o filósofo francês faz acerca da ''ideologia'' está, como ele bem cedo deixa claro, intima e mesmo essencialmente relacionada com a sua interpretação da ''teoria marxista da história'' (1979, p. 204). Partindo desta última, e assim definindo os '''sujeitos' da História'' como ''as sociedades humanas dadas'', ele afirma que estas são 

''(...) totalidades, cuja unidade é constituída por um certo tipo específico de complexidade, pondo em jogo as instâncias que se pode mui esquematicamente, na sequência de Engels, reduzir a três: a economia, a política e a ideologia. Em toda sociedade se constata, pois, sob formas às vezes muito paradoxais, a existência de uma atividade econômica de base, de uma organização política e de formas ''ideológicas'' (religião, moral, filosofia). A ideologia faz, pois, organicamente, parte, como tal, de uma totalidade social. [grifo do autor]'' (Idem, pp. 204-5)

 Ainda segundo ele, ''as sociedades humanas segregam a ideologia como o elemento e a atmosfera mesma indispensáveis à sua respiração'', e ''(a ideologia) é uma estrutura essencial à vida histórica das sociedades'' (Ibid, p. 205). Mas que é, exatamente, a ideologia? Diz-nos ele que 

''Uma ideologia é um sistema (possuindo a sua lógica e o seu rigor próprios) de representações (imagens, mitos, ideias ou conceitos segundo o caso) dotado de uma existência e de um papel históricos de uma sociedade dada.'' (Ibid, p. 204)


 E prossegue:

 ''Convencionou-se dizer que a ideologia pertence à região da 'consciência'. É preciso não se deixar enganar por esse epíteto, que permanece contaminado pela problemática idealista anterior a Marx. Na verdade, a ideologia pouco tem a ver com 'consciência',  ao supor-se que esse termo tenha um sentido univoco. Ela é profundamente inconsciente, mesmo quando se apresenta (como na 'filosofia' pré-marxista) sob uma forma refletida. A ideologia é, antes de tudo, um sistema de representações: mas essas representações na maior parte das vezes nada têm a ver com 'consciência': elas são na maior parte das vezes imagens, às vezes conceitos, mas é antes de tudo como estruturas que elas se impõem à imensa maioria dos homens, sem passar para a sua consciência. São objetos culturais percebidos-aceitos-suportados, e que agem funcionalmente sobre os homens por um processo que lhes escapa.'' (Ibid, p. 206)

 Compreende-se, então, que a ''ideologia'' (no entender  de Althusser) não é algo como um dado específico ou uma opinião -- dos quais se pode estar consciente --, mas algo como um ''horizonte'' de pensamento, os ''limites'' dentro dos quais as consciências dos homens concebem a realidade:

''(...) os homens vivem as suas ações... na ideologia, através e pela ideologia; ...a relação 'vivida' dos homens com o mundo, inclusive a História (na ação ou inação política), passa pela ideologia, ou melhor, é ela própria a ideologia. É nesse sentido que Marx dizia que é na ideologia (como lugar de lutas políticas) que os homens tomam consciência de seu lugar no mundo e na história: é no seio dessa inconsciência ideológica que os homens chegam a modificar as suas relações 'vividas' com o mundo, e a adquirir essa nova forma de inconsciência específica que se chama 'consciência'.'' (Ibid, idem)

 E acrescenta:

 ''A ideologia é, então, a expressão da relação dos homens com o seu 'mundo', isto é, a unidade (sobredeterminada) da sua relação com o real e da sua relação imaginária com as as suas condições reais. Na ideologia, a relação real está, inevitavelmente, investida na relação imaginária: relação que exprime mais uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionária), mesmo uma esperança ou uma nostalgia, que não descreve uma realidade.'' (Ibid, pp. 205-6)

 A ''ideologia'' é, então, um ''sistema de representações'' que ''orienta'' a realidade social (as relações entre os indivíduos) para uma formação específica, uma ''ordem'' social específica, concebida como natural, única possível ou necessária, numa espécie de ''racionalização'' -- de forma que garante sua reprodução através do tempo, dominando os indivíduos sem o uso de repressão.

''A ideologia, assim, responde a uma exigência anterior à necessidade da reprodução das relações de produção (capitalistas ou outras) e da dominação política de classe, como ainda entendem diversos autores (marxistas ou não). Anterior a qualquer outra coisa, a ideologia assegura, em todo sistema de sociedade, mesmo naqueles nos quais não há classes, que a ordem social não desabe enquanto uma ordem simbólica, ratificando-a, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e certas ideias sociais, como uma ordem natural, única, universal, imutável, divina. Resultado que a ideologia procura obter invertendo o caráter de coisa construída de toda ordem social e suas instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida sem o recurso da força. A ideologia constitui o modo de operar de qualquer cultura (enquanto sistema de sociedade), ao procurar naturalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos sociais (variando do mito à ciência moderna) que oferecem significações legitimadoras do que em cada cultura está instituído.'' (SOUSA FILHO, 2009)

 O caráter de ideologia é definido pela função que o ''sistema de representações'' específico desempenha:

''Sem entrar nos problemas das relações de uma ciência com o seu passado (ideológico) diremos que a ideologia como sistema de representações se distingue da ciência nisto em que a sua função prático-social tem preeminência sobre a função teórica (ou função de conhecimento).'' (ALTHUSSER, 1979, p. 204).

''Há, finalmente, em Gramsci, além do sentido polêmico e prático desse conceito [o de historicismo], uma verdadeira concepção 'historicista' de Marx: concepção 'historicista' da teoria da relação da teoria de Marx com a história real. Não se trata de puro acaso que Gramsci esteja constantemente perseguido pela teoria crociana da religião, pois que aceita seus termos e a estende das religiões efetivas à nova 'concepção de mundo' que é o marxismo; não faz, sob esse aspecto, diferença alguma entre essas religiões e o marxismo; classifica religiões e marxismo sob o mesmo conceito de 'concepções de mundo' ou 'ideologias'; identifica também facilmente religião, ideologia, filosofia e teoria marxista, sem ressalvar que o que distingue o marxismo dessas 'concepções ideológicas de mundo' é menos essa diferença formal (importante) de pôr fim a todo 'além' supraterrestre que a forma distintiva dessa imanência absoluta (sua 'terrestridade'): a forma da cientificidade. Essa 'ruptura' entre as antigas religiões ou ideologias inclusive 'orgânicas' e o marxismo, que é uma ciência, e que deve tornar-se ideologia 'orgânica' da história humana, produzindo nas massas uma nova forma de ideologia (uma ideologia que repousa agora numa ciência -- o que jamais se viu) -- essa ruptura não é verdadeiramente por Gramsci (...).'' (Idem, 1980, pp.74-5)


 Um exemplo de ideologia (ou de manifestação da ideologia) seria o fenômeno do ''fetichismo da mercadoria'', que Marx descreve no Livro Primeiro de O Capital:

''(A mercadoria encobre) ...as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características sociais inerentes ao produto do trabalho; (ocultando,) ...portanto, a relação social entre o trabalho individual dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho''. (2014, p. 94)
''O que é verdadeiro apenas para essa determinada forma de produção, a produção de mercadorias... parece aos produtores de mercadorias  tão natural e definitivo... quanto o ar''. (Idem, p. 96)

 Ou a ''heteronormatividade'', segundo a qual o desejo sexual na espécie humana ocorre universalmente sob o imperativo da reprodução -- uma racionalização das diferenças anatômicas entre os seres humanos:

 ''Não é a heterossexualidade uma forma inata de sexualidade; como uma prática sexual, ela é social e historicamente construída, e sua naturalização e hegemonia ocorreram por efeito de um longo trabalho de domestificação do imaginário local das sociedades humanas, que se faz invalidando, ao mesmo tempo, a prática da homossexualidade, excluída como uma 'inversão' da sexualidade 'normal'''. (SOUSA FILHO, 2009)

Referências 

ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Étienne (orgs). Ler O Capital, volume 2. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
SOUSA FILHO, Alípio de. ''Teorias sobre a gênese da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude''. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Por que o Brasil é diferente?


 O texto abaixo corresponde ao capítulo 5 do livro A persistência da raça: Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005) de Peter Fry -- famoso antropólogo inglês que trabalhou vários anos no Brasil e foi (juntamente como Edward McRae) coautor do clássico O que é homossexualidade?, parte da coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense --, cujo nome está no título deste post; nele (originalmente lançado em 1996), comentando sobre duas obras lançadas nos EUA acerca das relações raciais no Brasil, o autor tenta demonstrar a especificidade no Brasil quanto a elas e a relação disso com a conduta e o desempenho dos movimentos negros nacionais. Pretendo transcrever outras passagens do livro futuramente. 


 Em 1995, foram publicados nos Estados Unidos dois livros importantes sobre a movimentação política em torno da questão ''racial'' no Brasil, Orpheus and Power: The ''Movimento Negro'' of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1968, do cientista político norte-americano Michael Hanchard e Slave Rebellion in Brazil: The Muslim uprising of 1835 in Bahia, do historiador brasileiro João José Reis. O contraste entre os dois livros e as situações que descrevem levaram-me a pensar sobre a antiga construção argumentativa das diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos no que diz respeito à escravidão e à subsequente elaboração e administração das diferenças supostamente raciais.

 Do início do século XX até a década de 1940, negros americanos que visitavam o Brasil voltavam fazendo grandes elogios ao país. Michael George Hanchard observa, por exemplo, que líderes como Brooker T. Washington e W. E. B. DuBois descreveram de modo positivo a impressão que tiveram dos negros brasileiros, enquanto o líder nacionalista negro Henry McNeal Turner e o jornalista de esquerda Cyril Briggs chegaram a defender a ideia de imigração para o Brasil, onde encontrariam refúgio contra a opressão vivida em seu país. Mas a experiência de Hanchard cinquenta anos depois foi muito diferente. Assim que chegou ao Brasil em 1988, ao sair de um supermercado foi abordado por um empregado da loja, que lhe perguntou se havia pago suas compras. Ao fazer menção de mostrar o recibo, o gerente aproximou-se e, com um aceno das mãos, mandou que ele fosse embora. ''Foi aí que eu compreendi'', diz Hanchard, ''que a sociedade brasileira não podia estar imune ao preconceito, à discriminação e à exploração, por razões raciais, existentes em sociedades que se constituíram historicamente de modo semelhante.

 DuBois e Hanchard falam de experiências distintas em épocas diferentes. Na época de DuBois, o Brasil era conhecido como uma ''democracia racial'', onde pessoas de diferentes cores de pele conviviam de modo harmonioso e sem problemas, tanto assim que a UNESCO financiou uma série de pesquisas no país na esperança de descobrir ''soluções'' que pudessem ser exportadas para sociedades mais habituadas ao conflito racial. Mas, na realidade, o projeto da UNESCO acabou revelando que havia tanto preconceito racial no Brasil quanto em qualquer outro lugar e, desde então, tem crescido o número de estudos que comprovam a existência da desigualdade racial nos locais de trabalho, no sistema educacional, em toda parte, e constatam que o Brasil padece de um racismo profundamente insidioso, que se torna ainda mais traiçoeiro por ser oficialmente negado. O ''mito'' da democracia racial só faz piorar a situação, pois ''mascara'' o racismo e torna ainda mais difícil percebê-lo e denunciá-lo. Este é o ambiente intelectual que cerca a viagem de Hanchard ao Brasil e a base de sua argumentação no livro sobre o Movimento Negro brasileiro.

 Orpheus and Power consiste na descrição e na análise cuidadosamente circunstanciada das várias organizações negras que surgiram no Brasil dos últimos quarenta anos, utilizando dados históricos, entrevistas com cerca de duzentos militantes e contendo uma valiosa resenha da literatura acadêmica sobre relações raciais no mesmo período. Ao contrário da maioria dos pesquisadores que até então haviam feito trabalhos sobre os Movimentos Negros brasileiros, Hanchard fez uma pesquisa bastante pertinente e de difícil resposta: por que razão o movimento negro não conseguia ultrapassar um pequeno número de militantes. Colocando a questão numa perspectiva comparativa, Hanchard indaga por que no Brasil não se criou ''um movimento social afro-brasileiro que recebesse um apoio comparável ao do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos ou às rebeliões nacionalistas africanas do Sul do Saata e de outras regiões do Novo Mundo após a Segunda Guerra Mundial''.

 A resposta de Hanchard encontra-se no que ele chama de ''um processo de hegemonia racial'', que neutraliza a identificação racial entre os não-brancos. Diz ele que a ''hegemonia racial'' estimula a discriminação racial e simultaneamente nega sua existência, e, dessa maneira, ''ajuda a reproduzir as desigualdades sociais entre brancos e não-brancos''. Em outras palavras, o ''mito da democracia racial'' atua permanentemente no sentido de desativar a ''consciência'' da discriminação racial e da desigualdade.

 Se o mito da democracia racial é o principal ''impedimento'' ao sucesso do movimento negro, outros obstáculos também estão presentes, a saber, ''a carência de recursos e instituições'', o ''culturalismo'' e um forte pendor para disputas ideológicas secretas. Hanchard afirma ainda que o Movimento Negro gasta tempo demais com as questões da cultura negra e as iniquidades do passado escravista e dedica pouco atenção às verdades da discriminação contemporânea. Como Orfeu, o Movimento Negro é impelido a olhar para trás e perder sua Eurídice. Depois de fazer essas observações críticas, Hanchard passa a sugerir possibilidades de mudança. Faz uma advertência contra a criação de consciência sem atividade política e sugere que o Movimento deveria concentrar-se no trabalho de informação sobre extensão da discriminação racial e deveria dedicar-se à organização ''no nível das comunidades, por intermédio do desenvolvimento e coordenação de grupos locais e nacionais para o monitoramento  dos casos de violência racial e outras formas de discriminação (...). Isso daria ao Movimento uma base mais sólida do que a atualmente existente.''

 O livro de João José Reis, Slave Rebellion in Brazil, também é o relato de um fracasso. Trata da rebelião de escravos mais importante da Bahia, a Revolta Malê, que ocorreu em 1835 em Salvador. Em um domingo de janeiro, durante o Ramadã, cerca de seiscentos escravos e libertos, sob a inspiração dos mestres muçulmanos (chamados de malês na Bahia, naquele tempo) e carregando talismãs que continham textos sagrados do Alcorão, insurgiram-se contra o governo. Provocaram uma enorme confusão na cidade até que foram vencidos e levados a julgamento. Aterrorizados diante da perspectiva de que a Bahia se tornasse uma nova São Domingos, as autoridades apressaram-se em pronunciar as sentenças. Dos rebeldes, quatro foram condenados à morte, dezesseis à prisão, oito a trabalhos forçados, quarenta e cinco ao açoite e trinta e quatro à deportação. Como ninguém na Bahia estava apto a exercer a função de carrasco, a sentença de morte foi executada por um esquadrão de artilharia. O castigo do açoite foi tão terrível, o número de golpes prescritos variando entre cinquenta e mil, que teve de ser cumprido em etapas, para que as vítimas não morressem antes que ele terminasse.

 Graças à minúcia sociológica com que foram elaborados os autos do processo -- a investigação policial abordou as condições de trabalho, moradia, a situação conjugal e a origem étnica dos conspiradores --, Reis apresenta tamanha riqueza de informações e detalhes sobre o contexto social da rebelião e sobre os conspiradores que o próprio leitor se torna uma testemunha ocular dos acontecimentos. Para compreender as circunstâncias da rebelião, Reis vai juntando e articulando gradativamente a situação política do Brasil, dominado por revoltas logo após sua independência de Portugal, com a crise da produção de açúcar e a complexa mistura étnica e racial da sociedade baiana da época. Embora a clivagem social dominante da época fosse entre escravos e senhores, vários outros conflitos e alianças cruzavam-na de cima a baixo. Nem todos os senhores de escravos eram brancos, havia quase tantos homens libertos quanto escravos, e a população não-branca dividia-se entre os nascidos na África (os pretos), os nascidos no Brasil (os crioulos) e os nascidos de uniões inter-raciais (os mulatos). Os pretos, por sua vez, dividiam-se por linhas étnicas, recriando em Salvador as ''nações'' às quais pertenciam na África. Não surpreende, portanto, que a Revolta Malê não tenha sido apenas uma briga entre brancos e não-brancos. Ela foi um levante de escravos da África Ocidental e de libertos, principalmente homens de origem iorubá, que haviam aderido ao islamismo. Eles formavam a grande maioria das pessoas de origem africana na Bahia, pois o tráfico, embora proibido, tinha continuado a importar negros de regiões que hoje correspondem à Nigéria e ao Benin. Escravos e libertos de origem angolana não participaram da rebelião, assim como também não o fizeram os crioulos e os mulatos. Segundo Reis, os angolanos tendiam a tomar uma posição diferente, principalmente formando quilombos. Os crioulos e mulatos haviam conseguido incorporar-se à sociedade baiana e muitas vezes participavam da repressão às revoltas de escravos. ''Se os africanos se organizassem de acordo com seus 'laços nacionais''', escreve Reis, ''crioulos e mulatos não teriam mais sucesso do que os outros. Mas sua 'nação' era a Bahia, não Oio, Daomé ou o califado de Sokoto.''

 Slave Rebellion in Brazil, portanto, é muito mais que a narrativa de uma revolta, embora seu estilo denuncie a admiração de Reis pela bravura dos conspiradores. O livro contém uma descrição e uma análise da Bahia entre linhas ''raciais'', mas como uma sociedade que produziu uma multiplicidade de identidades baseadas na profissão, nas origens ''étnicas'' e nos graus de proximidade com as correntes predominantes na cultura brasileira. Analisando as consequências da revolta, Reis mostra que as autoridades empenharam-se numa campanha maciça e cruel para forçar a ''assimilação'' a qualquer preço. Como assinala Reis:

O africano que quisesse ficar deveria deixar para trás suas raízes. Do ponto de vista da elite dirigente da Bahia, esta não era só a única via possível para manter a paz em sua sociedade escravista como era também o único meio possível para um futuro mais civilizado. Os que se opusessem a esse objetivo, ainda que considerados bárbaros, deveriam ser punidos como advertência aos demais -- de acordo com leis estabelecidas de maneira civilizada.

 O que é importante notar nesta citação não é tanto o desejo das autoridades baianas de manter seu poder e posição -- isto é óbvio --, mas a lógica cultural usada para fazê-lo. O caminho para a civilização no Brasil deveria ser pavimentado não com o estabelecimento de comunidades de base ''racial'' e ''étnica'' distintas e segregadas, cada uma com seu estilo de vida particular, mas pela assimilação e integração.

 O relato histórico de Reis nos oferece instrumentos para examinar e avaliar a análise política contemporânea feita por Hanchard. Enquanto Reis interpreta a Revolta Malê pelo ângulo do contexto social e cultural em que originou, a interpretação de Hanchard fica muitas vezes prejudicada, como, aliás, acontece com boa parte dos estudos contemporâneos sobre relações raciais no Brasil, por uma linguagem analítica e uma abordagem teórica que subestimam a especificidade dessas relações.

 Como arguto observador do Brasil, Hanchard compreende perfeitamente que a sociedade brasileira é diferente da dos Estados Unidos. Mesmo assim, ele conclui que ''há mais semelhanças que diferenças entre a política racial praticada no Brasil e a que se verifica em outras sociedades que contêm uma população descendente de africanos''. Estabelecido este princípio, a ''democracia racial'', e tudo o que a acompanha, torna-se de certo modo exterior à questão fundamental, definida como a da dominação e opressão por razões raciais. Sua ''função''  é ''tolher'' a consciência e impedir a atividade política subsequente. O argumento não é muito diferente daquele que ''culpa'' a cultura pelo fracasso de tantos projetos de desenvolvimento no mundo chamado, significativamente, de ''em desenvolvimento''. A hipótese comum aos dois argumentos é a de que todos os homens e mulheres de sociedades e períodos históricos diferentes são essencialmente os mesmos, exceto pelo fato de que alguns têm de lutar contra suas ''culturas'', enquanto outros não precisam fazê-lo.

 Uma outra maneira de interpretar o problema é olhá-lo por um ângulo mais ''antropológico''. Quando Hanchard e outros descrevem a democracia racial como um mito, fazem-no porque entendem os mitos como falsos. Reúnem e organizem as indiscutíveis provas do preconceito, da discriminação e da desigualdade de base racial no Brasil com o intuito de desmascarar o ''mito'' da igualdade e da harmonia. Os antropólogos, porém, costumam ser mais benevolentes em relação aos mitos. Admitem que não são inverdades, produtos de equívocos que podem ser desmascarados e denunciados pela superioridade do saber ocidental, mas antes sistemas ordenados de pensamento social que consagram e exprimem percepções fundamentais sobre a vida social. Entender a democracia racial e seus corolários não mais como ''impedimentos'' à consciência racial, mas como fundamento do que de fato significa a raça no Brasil leva a uma radical mudança de ênfase. Não se quer saber se há mais ou menos diferenças ou semelhanças entre o Brasil e outras ''sociedades onde vivem pessoas de descendência africana'', mas quais são exatamente são essas diferenças e semelhanças. Pode-se dizer que as semelhanças estão nas correlações entre a cor e o bem-estar socioeconômico medido pelos índices padronizados de riqueza, renda, educação, mortalidade infantil e expectativa de vida. Esses fatores assinalam a universalidade da discriminação de cor. As diferenças encontram-se na maneira como a ''raça'' é construída como categoria social e no modo como funciona a discriminação racial. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ''racismo científico'' declarava que o ''sangue negro'' poluía o ''sangue branco'' e a regra de que ''uma gota é suficiente'' (''one-drop rule'') definia uma fronteira nítida entre os que se consideravam ''brancos'' e os que eram considerados ''negros''. Essa regra constituía, até o início do movimento dos direitos civis, na década de 1960, a base da segregação legal e da criação de comunidades, culturas e formas linguísticas ''negras'' separadas. Hoje, ela é invocada para regulamentar a ação afirmativa. Nesse sistema, o suposto essencial era (e ainda é para muitos) que os negros e brancos são intrinsecamente diferentes e devem ser mantidos separados. O grande anátema era (e talvez ainda seja para muitos) a miscigenação biológica e cultural. Mutatis mutandis, criaram-se sistemas semelhantes onde quer que ingleses, alemães ou holandeses estivessem no controle de sociedades de natureza multiétnica: o apartheid sul-africano é o exemplo mais extremo.

 No Brasil e em outras antigas colônias de Portugal, preferiu-se enfatizar a ''conversão'' dos diversos grupos étnicos à cultura dominante. Por volta da década de 1930, o Brasil tinha acrescentado um outro ingrediente: o elogio da miscigenação cultural e biológica. Os portugueses podem ser justamente acusados de imperialismo cultural e racismo cotidiano, mas a sociedade que seus herdeiros construíram no Brasil não inclui a raça como fator de segregação ou discriminação legal. Além disso, e como consequência desse fato, não existe no Brasil a mesma separação consensual entre ''brancos'' e ''negros'' que predomina nos Estados Unidos e na África do Sul. Pelo contrário, o neolamarckismo brasileiro é muito mais sofisticado. Enquanto os americanos acham que um único ancestral africano é suficiente para produzir um ''afro-americano'', ou ''uma pessoa de descendência africana'', os brasileiros acreditam herdar as características de todos os seus ancestrais. Um efeito disso é que os brasileiros se classificam, e são classificados pelos outros, em função de sua aparência física, o que gera um arco-íris de categorias ''raciais'' que vai do preto-azulado ao mulato-claro. Uma pesquisa realizada em 1976 revelou a existência de nada menos que 135 categorias desta natureza¹.

 Outro corolário da constituição racial do Brasil é que crenças, práticas e modos de ser de origem africana são amplamente disseminados pelo conjunto da sociedade brasileira. O samba, por exemplo, tornou-se um dos principais símbolos do orgulho da nação brasileira, justamente, segundo Hermano Vianna, por meio de alianças significativas entre intelectuais e músicos do asfalto e do morro. Estudo histórico realizado por Yvonne Maggie demonstra que o sistema de crenças do candomblé afro-brasileiro era compartilhado por advogados, promotores e juízes, quase todos brancos, encarregados de processar os ''falsos praticantes''. Como tentei argumentar alguns anos atrás, no Brasil não há nada equivalente à soul food², tanto é que a moderna movimentação negra -- e penso no Olodum e no Afro-Reggae -- produz símbolos sui generis como marca de distinção.

 Desde a década de 1970, a identity politics [política de identidades] nos Estados Unidos têm atraído muitos simpatizantes no Brasil, onde começaram a ser organizados movimentos sociais cuja retórica é quase igual à de seus equivalentes americanos, e que recebem financiamento e apoio de entidades filantrópicas sediadas nos Estados Unidos e na Europa. Os movimentos de maior ''sucesso'' são os de mulheres e o de índios. O primeiro tem tido, direta e indiretamente, muita influência sobre um grande número de mulheres e deu origem a mudanças importantes nas atitudes sociais bem como na legislação. O segundo, nascido de uma sólida aliança entre líderes índios e intelectuais não-índios muitos deles antropólogos), tem conseguido chamar atenção para as consequências negativas dos projetos de desenvolvimento em curso e para a questão da garantia dos direitos dos índios à terra. A explicação desses ''sucessos'' provavelmente está no fato de sua retórica ter caído em solo fértil, principalmente porque tanto as mulheres quanto os índios sabem quem são.

 Os movimentos de negros e homossexuais consideram-se menos ''bem-sucedidos'' exatamente porque nenhum deles sabem exatamente quem é. O conceito moderno de homossexual cai em ouvidos moucos daqueles que vivem num mundo social onde as práticas homoeróticas são generalizadas e onde a masculinidade e a feminilidade são consideradas mais importantes do que a homo ou a heterossexualidade em si e onde, por exemplo, se acredita que um parceiro ''ativo'' numa relação entre dois homens mantém sua masculinidade intacta, ou até reforçada. Por uma lógica semelhante, a noção de solidariedade negra soa esquisita numa sociedade que se acostumou a ver-se como uma coleção de indivíduos de diversas origens étnicas que se distribuem segundo linhas de classe, e não linhas raciais. A própria ideia de de um Movimento Negro supõe a existência de uma grande comunidade negra consciente de si mesma. Como no Brasil essa comunidade se restringe aos militantes negros, não é de estranhar que o primeiro objetivo do movimento seja criar uma ''consciência racial''. Para isso, é preciso convencer o povo brasileiro de que o espectro de colorações da pele não passa de uma ilusão que mascara a ''verdadeira'' divisão entre brancos e negros, tal como acontece nos Estados Unidos. Antes de mais nada, esses movimentos tinham de convencer os mulatos, os morenos e os de outras categorias do espectro de cores possíveis de que, afinal de contas, todos eram realmente negros, e que sua cultura lhes teria sido, por assim dizer, roubada pela elite branca dominante. Por isso é que o Movimento põe tanta ênfase na ''recuperação'' da cultura negra, que funcionaria como um centro aglutinador de uma identidade considerada perdida. Executar essa tarefa não tem sido fácil, porque ela vai de encontro ao mito básico da democracia racial e aos arranjos e culturais e sociais que negam o particularismo racial em nome de valores universais.

 É quase impossível não concluir, após a leitura de Orpheus and Power, que a incapacidade dos militantes negros de promover um movimento de massas tem causa ainda mais profundas do que as apresentadas por Hanchard. O ''fracasso'' do Movimento Negro na conquista de corações e mentes dos brasileiros decorre do conflito entre os principais segregacionistas que estão no cerne da ideologia do Movimento e os anseios assimilacionistas que continuam fortes no senso comum brasileiro. Pesquisa feita em São Paulo, em 1986, sobre atitudes da população em relação à raça, parece sustentar essa opinião. Perguntados sobre ''o que os negros e mulatos deveriam fazer para defender seus direitos'', 75.3% dos negros e 81.3% dos brancos responderam que preferiam a formação de um movimento composto de brancos, mulatos e negros. Menos de 10% de cada uma dessas categorias achavam que o problema deveria ser resolvido individualmente ou exclusivamente pelo Movimento Negro.

 Não estou querendo dizer com isso que o Brasil é melhor ou pior do que o resto do mundo do ponto de vista das relações de raça; apenas afirmo que ele é diferente. Pode-se dizer que o mesmo dos Estados Unidos. Nem um país nem o outro são exemplos a seguir ou mercadorias a serem exportadas. De seu confronto, fica-nos a poderosa advertência de que ''raça'' e ''relações de raça'' não têm absolutamente nada de natural. Cotejando-se um país com o outro, fica-nos a conclusão de que democracia racial e one-drop rule são ideias igualmente exóticas.

[1] SILVA, N. do V., ''Distância social e casamento inter-racial no Brasil'', Estudos afro-asiáticos, 14:54-84, 1987.
[2] Soul food é como é conhecida uma versão popular de culinária afro-americana nos EUA; enquanto a feijoada é, aqui no Brasil, um prato nacional, nos EUA ela não passa de soul food, com a qual os negros estadunidenses estão acostumados desde a infância.