sábado, 23 de abril de 2016

Marx sobre a lei de Say



O processo de circulação não se extingue, como se dá na troca direta de produtos, ao mudarem de lugar ou de mão os valores de uso. O dinheiro não desaparece quando sai definitivamente do circuito das metamorfoses de dada mercadoria. Ele se deposita em qualquer ponto da circulação que as mercadorias desocupam. Por exemplo, na metamorfose global do linho: linho-dinheiro-bíblia, primeiro, sai o linho da circulação, e o dinheiro entra no seu lugar; depois, saí a bíblia, e o dinheiro toma o seu lugar. A substituição de mercadoria por mercadoria faz a mercadoria dinheiro depositar-se numa terceira mão¹. A circulação poreja, continuamente, dinheiro.

 Nada mais absurdo do que o dogma de haver um equilíbrio necessário, determinado pela circulação de mercadorias, entre as compras e as vendas, pois cada venda é compra e vice-versa. Se com isso se quer dizer que o número das vendas realizadas iguala o número das compras, expressa-se mera tautologia. Mas o intento é demonstrar que o vendedor conduz seu comprador ao mercado. Venda e compra são um ato único, idêntico, ao constituir relação mútua entre dois pessoas, polarmente opostas, entre o possuidor da mercadoria e o possuidor do dinheiro. Constituem atos polarmente opostos, quando praticados pela mesma pessoa.

 A identidade de venda e compra tem por consequência tornar inútil a mercadoria, que, lançada na retorta alquimista da circulação, não vira dinheiro, não a vende seu possuidor nem a compra, por conseguinte, o possuidor do dinheiro. Essa identidade faz com que, terminado o processo de venda e compra, se constitua um ponto de repouso, um intervalo na vida da mercadoria, o qual pode durar mais ou menos tempo. Uma vez que a primeira fase da mercadoria é, ao mesmo tempo, venda e compra, esse processo, embora parcial, é autônomo. O comprador passa a ter a mercadoria; o vendedor, o dinheiro, isto é, uma mercadoria capaz de entrar em circulação a qualquer tempo. Ninguém pode vender sem que alguém compre. Mas ninguém é obrigado a comprar imediatamente, apenas por ter vendido. A circulação rompe com as limitações temporais, espaciais e individuais, impostas pela troca de produtos, ao dissociar a identidade imediata que, nesta última, une a alienação do produto próprio e a aquisição do alheio, gerando a antítese entre venda e compra. Dizer que esses atos antitéticos, independentes entre si, possuem uma unidade interior equivale a dizer que essa unidade interior transparece através de antíteses externas. 

 Se essa independência exterior dos dois atos -- interiormente independentes por serem complementares -- prossegue se afirmando além de certo ponto, contra ela prevalece, brutalmente, a unidade, por meio de uma crise. A contradição imanente à mercadoria, que se patenteia na oposição entre valor de uso e valor, no  trabalho privado, que tem, ao mesmo tempo, de funcionar como trabalho social imediato, no trabalho concreto particular, que, ao mesmo tempo, só vale como trabalho abstrato geral, e que transparece na oposição entre a personificação das coisas e a representação das pessoas por coisa -- essa contradição imanente atinge formas completas de manifestar-se nas fases opostas da metamorfose das mercadorias. Essas formas implicam a possibilidade, mas apenas a possibilidade, das crises.

[1] Apesar de ser este um fenômeno bastante evidente, dele não cogitam os economistas, em sua maioria, notadamente o liberal vulgar.


MARX, K. ''O dinheiro ou a circulação das mercadorias''. In: _____. O capital: crítica da economia política: livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário