sexta-feira, 29 de abril de 2016

O pleno emprego (e por que ele é importante)


Tradução de ''Full employment, why it is important'', no blog Naked Keynesianism, do prof.º Matías Vernengo






 Em minhas aulas intermediárias de macroeconomia na universidade de Utah, eu sempre começo por perguntar se é um problema mais socialmente relevante um acréscimo de 1% na inflação ou um aumento de 1% no desemprego. Embora as respostas variem um pouco de acordo com as circunstâncias macroeconômicas, é quase sempre verdadeiro que a vasta maioria dos alunos pensem que a inflação é o verdadeiro problema.

 Quando questionados sobre por que eles pensam que a inflação é um problema pior que o desemprego eles raramente sugerem que a inflação pode prejudicar aos pobres mais que aos opulentos, o que revelaria uma preocupação com a distribuição de renda, ou parecem compreender que uma inflação moderada pode ser boa. Além disso, eles não têm ideia de que a deflação é consideravelmente pior que a inflação, e que a razão para isso é que a deflação causa desemprego severo. O ponto é que eles parecem pensar que a inflação não lhes prejudica mais do que o desemprego; afinal de contas, eles estão obtendo uma graduação de nível superior (o que não é muita garantia nos dias de hoje, mas eu vou deixar isso para outra publicação).

 Eu conto então uma estória pessoal sobre inflação e desemprego e por que alguém deveria se preocupar com o nível deste. No outono de 1999, recém-saído da graduação, eu fui empregado como diretor assistente de um think tank. Como descobri depois, havia outros 5 candidatos para o cargo. A taxa de desemprego médio em 1999, eu acrescentaria, era de aproximadamente 4.2% (veja aqui). Acontece que eu tinha outra informação interessante que alguém raramente tem sobre um cargo particular, isto é: o número de candidatos para o mesmo cargo na primeira vez em que este foi aberto, em 1995. 

 Eu sempre pergunto meus alunos, então, sabendo que a taxa de desemprego era por volta de 5.6% (aqui, novamente) -- isto é, 1.4% maior que em 1999 --, quantas pessoas eles acham que se candidataram que se candidataram ao mesmo cargo em 1995. Eles nunca dizem algo próximo aos 300 ou algo assim que competiram para o posto. Em outras palavras, nesse caso particular, uma taxa de desemprego 1.4% mais alta implicou uma esmagadora diferença em termos de concorrência. É claro que alguém não pode, e não deve, generalizar a partir de uma observação, mas a informação anedótica se encaixa na evidência mais substancial para um mercado de trabalho apertado nos últimos anos da década de 1990, nos quais de fato vimos acréscimos nos salários reais para trabalhadores médios nos Estados Unidos.

 Se não por qualquer outro motivo, os estudantes e todo o mundo mais deveriam estar preocupados com a taxa de desemprego porque 1% a mais na taxa pode prejudicar consideravelmente mais do que a equivalente alteração em preços [e é por isso que o Índice de Miséria de Okun, que soma as taxas de desemprego e de inflação, faz pouco sentido; ele mistura coisas que não têm a ver]. Mas ainda mais, é importante lembrar que ao passo que a inflação atinge todo mundo mais ou menos equivalentemente -- mesmo se as pessoas têm diferentes cestas de consumo --, o desemprego é um problema social divisivo, que faz de alguns 'vencedores' e de outros 'perdedores', causando divisões profundas na sociedade (p. ex. ''imigrantes roubam nossos empregos'').

 E é por essa razão que o pleno emprego é a mais importante política econômica e social, a base sobre a qual construir outras políticas. O trabalho define nossas vidas em grande extensão e dá dignidade às pessoas. E eu não falo somente dos pobres. Como falo aos meus alunos, eu sou um profundo crente na ética do trabalho duro, e é por isso que eu penso que renda e riqueza devem ser pesadamente tributadas, de maneira que todo mundo tenha que trabalhar para ganhar a vida. Isso é pleno emprego para todos! 

sábado, 23 de abril de 2016

Marx sobre a lei de Say



O processo de circulação não se extingue, como se dá na troca direta de produtos, ao mudarem de lugar ou de mão os valores de uso. O dinheiro não desaparece quando sai definitivamente do circuito das metamorfoses de dada mercadoria. Ele se deposita em qualquer ponto da circulação que as mercadorias desocupam. Por exemplo, na metamorfose global do linho: linho-dinheiro-bíblia, primeiro, sai o linho da circulação, e o dinheiro entra no seu lugar; depois, saí a bíblia, e o dinheiro toma o seu lugar. A substituição de mercadoria por mercadoria faz a mercadoria dinheiro depositar-se numa terceira mão¹. A circulação poreja, continuamente, dinheiro.

 Nada mais absurdo do que o dogma de haver um equilíbrio necessário, determinado pela circulação de mercadorias, entre as compras e as vendas, pois cada venda é compra e vice-versa. Se com isso se quer dizer que o número das vendas realizadas iguala o número das compras, expressa-se mera tautologia. Mas o intento é demonstrar que o vendedor conduz seu comprador ao mercado. Venda e compra são um ato único, idêntico, ao constituir relação mútua entre dois pessoas, polarmente opostas, entre o possuidor da mercadoria e o possuidor do dinheiro. Constituem atos polarmente opostos, quando praticados pela mesma pessoa.

 A identidade de venda e compra tem por consequência tornar inútil a mercadoria, que, lançada na retorta alquimista da circulação, não vira dinheiro, não a vende seu possuidor nem a compra, por conseguinte, o possuidor do dinheiro. Essa identidade faz com que, terminado o processo de venda e compra, se constitua um ponto de repouso, um intervalo na vida da mercadoria, o qual pode durar mais ou menos tempo. Uma vez que a primeira fase da mercadoria é, ao mesmo tempo, venda e compra, esse processo, embora parcial, é autônomo. O comprador passa a ter a mercadoria; o vendedor, o dinheiro, isto é, uma mercadoria capaz de entrar em circulação a qualquer tempo. Ninguém pode vender sem que alguém compre. Mas ninguém é obrigado a comprar imediatamente, apenas por ter vendido. A circulação rompe com as limitações temporais, espaciais e individuais, impostas pela troca de produtos, ao dissociar a identidade imediata que, nesta última, une a alienação do produto próprio e a aquisição do alheio, gerando a antítese entre venda e compra. Dizer que esses atos antitéticos, independentes entre si, possuem uma unidade interior equivale a dizer que essa unidade interior transparece através de antíteses externas. 

 Se essa independência exterior dos dois atos -- interiormente independentes por serem complementares -- prossegue se afirmando além de certo ponto, contra ela prevalece, brutalmente, a unidade, por meio de uma crise. A contradição imanente à mercadoria, que se patenteia na oposição entre valor de uso e valor, no  trabalho privado, que tem, ao mesmo tempo, de funcionar como trabalho social imediato, no trabalho concreto particular, que, ao mesmo tempo, só vale como trabalho abstrato geral, e que transparece na oposição entre a personificação das coisas e a representação das pessoas por coisa -- essa contradição imanente atinge formas completas de manifestar-se nas fases opostas da metamorfose das mercadorias. Essas formas implicam a possibilidade, mas apenas a possibilidade, das crises.

[1] Apesar de ser este um fenômeno bastante evidente, dele não cogitam os economistas, em sua maioria, notadamente o liberal vulgar.


MARX, K. ''O dinheiro ou a circulação das mercadorias''. In: _____. O capital: crítica da economia política: livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Aspectos políticos do desemprego

pseudo-trechinho introdutório


O artigo assim intitulado (embora em inglês), de que eu já havia falado aqui e de autoria dos professores Franklin Serrano e Luiz Eduardo Melin (da UFRJ e PUC-RJ, respectivamente), recebeu uma versão traduzida de autoria de Miguel Henriques Carvalho. Eis aqui.
 

O preço da disciplina

Por Victor Leonardo de Araújo* e Denise Lobato Gentil** para o Jornal dos Economistas, publicação oficial do CORECON-RJ, edição de janeiro de 2016




 Sem tergiversações, é necessário a firmar que a Presidenta Dilma Rousse tem total responsabilidade pela crise econômica que hoje assola o País. Contudo, as razões que apontamos são distintas das que usualmente aparecem no noticiário: não é a “irresponsabilidade” fiscal, nem a “gastança”, tampouco a opção pela “nova matriz macroeconômica” que provocaram a crise – muito embora a política macroeconômica tenha tido seus descaminhos durante seu governo.

 O tripé relevante para compreender a crise atual não é o da gestão da macroeconomia – regime de metas de in ação, câmbio flutuante com livre mobilidade de capitais e metas de superávit primário – mas sim o da gestão do modelo econômico liberal. Os críticos da “nova matriz macroeconômica” queixam-se da alteração do tripé macroeonômico durante o primeiro governo Dilma. Entretanto, o tripé composto pelas privatizações, abertura comercial e integração com os mercados financeiros globais permaneceu inalterado e foi aprofundado.

 Mas foi nesta última pata do tripé – a integração com os mercados financeiros globais – que os efeitos foram mais devastadores. A obtenção do grau de investimento, em 2008, trouxe ao País uma enxurrada de dólares que, se por um lado contribuiu para o acúmulo de reservas internacionais, por outro induziu elementos de enorme volatilidade econômica, porque o acúmulo de passivo externo de curto prazo traz uma volatilidade potencial à economia, que, para manter os capitais externos, deve seguir a rígida disciplina imposta pelos seus operadores. O preço da desobediência é a fuga de capitais. 

 Mas a obediência também custa caro: requer o abandono da soberania na condução da melhor política econômica para os rumos do País, em um claro trade-o , já que nem sempre os interesses dos credores são compatíveis com o da geração de empregos, renda e desenvolvimento econômico. Sob cenário de menor passivo externo de curto prazo, ou de alguma regulamentação que iniba esses uxos de capitais de curto prazo, ao menos parcialmente, seria possível ao governo brasileiro administrar a desaceleração econômica em curso desde 2012, responsável pela forte redução da arrecadação tributária e pelo dé ficit primário de 0,6% do PIB em 2014.

 É bem verdade que a política de desonerações fiscais realizada pelo governo Dilma também provocou queda da arrecadação, sem que isso gerasse uma resposta mais contundente no nível de atividade. O problema é que, no momento em que a economia brasileira entrou em recessão, o Estado brasileiro viu-se impossibilitado de comandar a reação econômica por meio do gasto e do investimento público, porque permaneceu sob a ameaça das agências de classificação de risco de retirar o grau de investimento e provocar uma crise cambial. Esta ameaça já desvalorizou a taxa de câmbio em mais de 46% entre janeiro e dezembro de 2015 e colocou a in ação em patamar de dois dígitos. O aumento da taxa de juros, em curso desde 2012, mostrou-se incapaz tanto de conter uma in ação notadamente de custos – porque além da desvalorização cambial, o governo também autorizou um “tarifaço” –, como de conter a desvalorização cambial. Os juros elevados têm provocado como único efeito a deterioração das finanças públicas, que terminaram 2014 com dé ficit nominal equivalente a 6,6%, e que imporá a 2015 um total de despesas financeiras superior a 9% do PIB.

 A resposta do governo brasileiro, covardemente, não é a redução das despesas financeiras, mas sim das despesas primárias, ou um “ajuste fiscal” que procura acomodar no orçamento mais espaço para as despesas financeiras, comprometendo as despesas primárias e o funcionamento da máquina estatal. Só que o “ajuste fiscal” agravou a crise econômica, colocando a economia brasileira numa espiral recessiva que reduz ainda mais a arrecadação. Entre janeiro e outubro deste ano, a despesa total foi reduzida em 3,3%, ao passo que a arrecadação caiu 5,8%, em termos reais. 

 Circunstancialmente, a superação da crise requer que o Estado brasileiro retome sua capacidade de comandar o gasto público, o que exige, acima de tudo, uma forte redução das despesas financeiras e, portanto, a escolha de um novo mix de política macroeconômica que priorize a retomada do crescimento. A redução da taxa Selic é condição essencial para o reequilíbrio das contas públicas, mas não é a única. O Estado brasileiro assumiu o ônus do processo de ajuste do setor privado sob diversas formas: assumiu o prejuízo do setor privado endividado em dólar, oferecendo proteção por meio das operações de swap cambial, pelas quais já acumula um prejuízo de R$ 120 bilhões de janeiro a setembro deste ano; assumiu o ônus do ajuste do setor privado nos programas de desonerações fiscais em curso desde o primeiro mandato da Presidenta Dilma; e assumiu o ônus de vários subsídios creditícios ao setor produtivo que não surtiram o efeito desejado em termos de retomada do crescimento econômico.

 É necessária uma ampla revisão da política de subsídios ao setor produtivo. A recuperação da arrecadação obtida por este caminho deve ser direcionada para viabilizar a correção da tabela do imposto de renda – há muito tempo defasada – o que daria uma folga na renda dos assalariados e daria novos e importantes estímulos à economia. Desta forma, a troca de subsídios e isenções ao setor produtivo por correção da tabela do imposto de renda equivaleria a trocar aumento de lucro dos empresários, não convertidos em investimentos ou ampliação da produção e dos empregos, por mais consumo das famílias, convertidos em ampliação da demanda por bens e serviços, dando um necessário fôlego adicional à economia combalida pela crise.

 Pelo lado das receitas, o melhor ajuste fiscal é aquele que privilegia a retomada do crescimento da atividade econômica, que sempre vem acompanhado da expansão da arrecadação de impostos, taxas e contribuições. Mais do que nunca, contudo, a reforma tributária deve retornar à agenda, especialmente pelo tema da progressividade. A tributação de dividendos distribuídos a acionistas, que no Brasil são isentos, renderia ao governo federal arrecadação superior à CPMF, segundo estudos dos economistas Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair. O imposto sobre grandes fortunas, previsto pela Constituição Federal de 1988 e até hoje não regulamentado, também deve ser incluído na agenda. Por princípio, o ônus do ajuste das contas públicas deve recair sobre os segmentos da sociedade com menor propensão marginal a consumir, para preservar o nível da atividade econômica. Priorizando-se a tributa- ção dos ricos, seria possível um ajuste fiscal sem comprometer o funcionamento da máquina estatal, já estrangulada pela redução de despesas em custeio e investimento realizadas ao longo de todo o ano de 2015.

 Finalmente, é salutar, mas ainda insu ficiente, o processo de renegociação dos indexadores das dívidas dos estados e municípios com a União, anunciado nos últimos dias de 2015. Salutar, porque a mudança de indexador permitirá aos entes federados mais estrangulados com os encargos das dívidas pretéritas uma maior folga para enfrentar o cenário de crise econômica e redução da arrecadação. Insu ficiente, porque os encargos com a dívida ainda continuarão a estrangular seus orçamentos. A mudança dos indexadores deve ser o início, e não o término, de um processo de renegociação mais amplo, que deve seguir adiante, prevendo redução de taxas e carências, neste último caso, especialmente durante os momentos de desaceleração econômica. Com efeito, as máquinas estaduais e municipais, igualmente estranguladas, poderiam ser destravadas, evitando penalizar os usuários dos serviços públicos, compostos, em sua maioria, por trabalhadores e trabalhadoras. 


* Victor Leonardo de Araujo é professor da Faculdade de Economia da UFF. E- -mail: victor_araujo@terra.com.br
 ** Denise Lobato Gentil é professora do Instituto de Economia da UFRJ. E-mail: deniselg@uol.com.br

sábado, 9 de abril de 2016

Anselm Jappe, a crise econômica e o colapso da sociedade de mercado

O texto reproduzido abaixo é o capítulo quarto de As Aventuras da Mercadoria (2006), de Anselm Jappe. A grafia ''estranha'' se deve ao fato de que o texto está escrito em português lusitano, não em português brasileiro.

A. Jappe


O valor em crise

 Um modo de produção organizado para alimentar as necessidades e os caprichos dos estratos dominantes, como o feudalismo, pode ter muitos defeitos, mas nunca poderá ser destrutor e autodestrutor como é a sociedade guiada pelo «sujeito autómato». Um sistema que não é tautológico e que está orientado para um objectivo encontra sempre o seu limite e o seu ponto de equilíbrio. Pode dizer-se que todas as sociedades que existiram até hoje são cegas. Não houve nenhuma que verdadeiramente dispusesse de maneira consciente das suas próprias forças e na qual não houvesse mediação fetichista. Porém, essas sociedades, em comparação com a sociedade capitalista, quase não tinham dinâmica própria. O que torna a sociedade moderna tão perigosa é o facto de estar sujeita a um dinamismo muito forte que ela não consegue de modo nenhum controlar porque está inteiramente entregue ao seu médium fetichista.

 Esta ausência de limites só surge no mundo com o dinheiro, ou seja, quando o dinheiro se torna o objectivo da produção. O dinheiro 
enquanto incarnação do valor tem por única finalidade o seu próprio crescimento (1): «Fixado enquanto riqueza, enquanto forma universal da riqueza, enquanto valor que vale como tal, ele [o dinheiro] é, por conseguinte, essa tendência constante para ultrapassar o seu limite quantitativo: um processo sem fim.» (2) Não se trata de uma qualidade suplementar que lhe advenha do exterior, mas sim de uma qualidade que lhe vem da sua estrutura de base (3). Com efeito, a desmesura que caracteriza o capital, Marx a deduz do próprio conceito de capital; o que significa que o capital e a sua desmesura só terão fim conjuntamente. Vimos já que o valor só se conserva com o seu próprio crescimento na circulação. Mas Marx deduz também a desmesura da «contradição que opõe os caracteres gerais do valor à sua existência material numa mercadoria determinada», assunto de que fala no Short outline de 1858. Na sua terceira determinação formal - o dinheiro enquanto dinheiro -, o dinheiro, que não representa senão uma quantidade maior ou menor da riqueza geral, torna-se uma contradição visível: enquanto riqueza geral, o dinheiro é a quinta-essência de todos os valores de uso e tem a capacidade de tudo comprar.  Ao mesmo tempo, porém, sob esta forma, o dinheiro é sempre um quantum determinado e limitado de dinheiro e, consequentemente, um representante limitado da riqueza geral. Esta contradição entre o carácter qualitativamente ilimitado e quantitativamente limitado do dinheiro suscita um progresso quantitativamente infinito, no qual o dinheiro, por intermédio desse seu crescimento permanente, procura aproximar-se da riqueza total. Isso acontece a partir do momento em que o dinheiro, tendo deixado de estar ligado a necessidades concretas, se torna o objectivo da produção: «A condição prévia para que exista o valor de troca, sob a forma de qualquer outra mercadoria, é a necessidade particular do valor de uso particular em que ele incarna: para o ouro e o dinheiro, expressão da riqueza abstracta, não existe qualquer limite deste tipo.» (4) Este carácter tautológico, o aspecto dinâmico do capitalismo e o encadeamento forçado de todas as sociedades na «história» são, pois, apenas aspectos diferentes da mesma coisa (5). A sociedade baseada na produção de mercadorias, com a sua universalidade exteriorizada e abstracta, é necessariamente sem limites, destrutiva e autodestrutiva (6). Tal resultado encontra-se já contido no respectivo conceito, como Marx pôs em relevo em diferentes ocasiões: «O capital, porém, na medida em que representa a forma universal da riqueza - o dinheiro é o impulso sem limite nem medida para a ultrapassagem do seu próprio limite. Para o capital qualquer fronteira é e só pode ser um limite excessivo. Se já não sentisse uma dada fronteira como um limite, deixaria de ser capital: dinheiro produzindo-se a si mesmo. A partir do momento em que deixasse de sentir uma determinada fronteira como um limite e se sentisse bem dentro dessa fronteira enquanto fronteira, tal significaria que o capital teria recuado de valor de troca para valor de uso, da forma universal da riqueza para uma existência substancial determinada da riqueza.» (7) O capital que não procura aumentar recai no estado de tesouro: uma acumulação inerte, fora da circulação.

 Mesmo a abolição final do capitalismo será, segundo Marx, um efeito da sua falta de obstáculos, por via da qual o capital se transforma no seu próprio limite maior, trabalhando em direcção à sua própria abolição (8). A teoria da crise é uma das partes mais originais da obra de Marx, e ele mesmo criticava à economia política burguesa o facto de se tornar completamente «vulgar» ao tratar do problema da crise (9). Em Marx, na verdade, a teoria da crise é no fundamental fragmentária e não desprovida de contradições. Mas pode dizer-se que toda a análise que Marx faz do capitalismo é essencialmente uma «teoria da crise» orientada para o fim «apocalíptico» com o qual previa coroar a sua crí­tica da economia política (10). Marx analisou longamente, sobretudo no terceiro volume do Capital, as crises cíclicas enquanto forma normal do funcionamento do capitalismo, em que a prosperidade nunca é uma coisa estável. Mas desenvolveu também a teoria da «crise final», que entendia ser inevitável por força do limite interno inultrapassável do capitalismo. 
Fê-lo sobretudo nos Grundrisse: mas até ao fim da vida Marx insistiu no facto de que a dinâmica do capitalismo levá-lo-á a uma crise que terminará na completa ruína" (11). Para Marx, a coincidência essencial entre capitalismo e estado de crise não é apenas resultante de Incoerências quantitativas entre os diferentes factores da economia capitalista (incoerências que faziam as delícias da teoria do subconsumo, florescente na época keynesiana). A tendência do capitalismo para a crise é algo que está já contido na estrutura da mercadoria com a respectiva separação fundamental entre a produção e o consumo (12), entre o particular e o universal. Cada nova etapa da crise mais não faz do que desdobrar uma vez mais este potencial de crise: «Permanece, pois, esta verdade: a forma mais abstracta da crise (e, em consequência, da possibilidade formal da crise) é a própria metamorfose da mercadoria, na qual, somente enquanto movimento desenvolvido, se encerra a contradição - implicada na unidade da mercadoria - entre valor de troca e valor de uso, e na sequência entre dinheiro e mercadoria. Mas o que transforma esta possibilidade da crise em crise não está contido nesta própria forma: o que ela contém é apenas o facto de estar aí presente a forma para uma crise. Na análise da economia burguesa é este o ponto importante. As crises do mercado mundial têm que ser entendidas como algo que sintetiza realmente e igualiza violentamente todas as contradições da economia burguesa. Os diversos momentos assim sintetizados nessas crises devem, pois, necessariamente surgir em cada esfera da economia burguesa e desenvolver-se aí, e à medida que mais penetramos nessa esfera é preciso, por um lado, desenvolver novas determinações do conflito e, por outro lado, demonstrar a recorrência e a persistência das suas formas abstractas nas suas formas mais concretas. Pode, pois, dizer-se: sob a sua primeira forma, a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a disjunção da compra e da venda.» (13) Esta longa citação é útil porque é suficiente para dar a compreender que se pode falar de uma unidade entre teoria do valor e teoria da crise em Marx. A crise não é uma interrupção temporária que vem perturbar o funcionamento «normal» do capitalismo. A crise constitui antes a verdade do capitalismo. Assim sendo, no «conceito», na «forma elementar» do capitalismo não está apenas contido o facto de o capitalismo ser «louco», mas também o facto de ele só poder evoluir através de fricções contínuas para acabar finalmente por se desmoronar sob o peso da sua própria lógica, ou melhor, da sua não lógica.

 No fundo, todas as crises do capitalismo são causadas pela ausência de uma comunidade, de uma unidade social. De uma certa maneira, essa unidade reconstitui-se na crise de uma forma violenta: «E a crise mais não é do que o violento pôr em prática da unidade das fases do processo de produção, que se autonomizaram uma em face da outra.» (14) Nas páginas dos Grundrisse sobre o fim do trabalho, de onde retirámos algumas das citações que apresentámos acima, Marx prevê o desmoronamento da produção do valor precisamente como consequência do desenvolvimento da lógica do valor. Preconiza a abolição do trabalho enquanto base da riqueza social: «O roubo do tempo de trabalho de outrem, sobre o qual assenta a riqueza actual, surge como uma base miserável quando comparada àquela outra, recentemente desenvolvida, que foi criada pela grande indústria, ela mesma. A partir do momento em que o trabalho sob a sua forma imediata deixou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa necessariamente de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso. O sobretrabalho da massa deixou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral, da mesma maneira que o não-trabalho de alguns deixou de ser a condição do desenvolvimento dos poderes universais do cérebro humano. Isto significa a derrocada da produção assente sobre o valor de troca, e o processo de produção material imediato perde ele mesmo a forma de penúria e de contradição.» (15)

 Os marxistas tradicionais, contrariamente ao que se tornou lugar-comum nesta matéria, pouco caso fizeram da teoria marxiana da crise. Quando dela se ocuparam, foi em geral em termos puramente quantitativos e autonomizando os diferentes elementos da crise. Mesmo os raros teóricos da crise que alguma vez existiram, como Rosa Luxemburg, Henryk Grossmann e Paul Mattick (16), reportavam-se em geral aos esquemas de reprodução contidos no segundo volume do Capital, a hiperprodução e o subconsumo. Prognosticavam a derrocada do capitalismo, mas sem a deduzirem da estrutura da mercadoria. Para eles, o verdadeiro problema do capitalismo era a baixa tendencial da taxa de lucro. Marx deu de facto muita importância a essa redução. Trata-se de uma consequência da contradição mais visível do capitalismo: o capital tem sempre necessidade de absorver trabalho vivo, que é a única fonte de mais-valia. Ao mesmo tempo, a concorrência leva inevitavelmente os capitalistas a substituir o trabalho pelo emprego de capital fixo, ou seja, de máquinas, que permitem aumentar a produtividade de cada força de trabalho empregue. A longo prazo, o capital investido consiste numa percentagem sempre maior de capital fixo e cada vez menor de capital variável, despendido em salários. Marx chama a este fenómeno «o aumento da composição orgânica do capital». Mas isto significa também que o lucro diminui, mesmo se o grau de exploração aumenta. Marx, ele mesmo, enumerou uma série de factores que retardam esta tendência de diminuição, como a redução dos preços dos factores do capital fixo. Contudo, sublinha que a longo prazo essa diminuição acentuar-se-á cada vez mais, uma vez que a sua principal causa não é eliminável.

 Não é propriamente claro se Marx considerava este fenómeno como um limite interno absoluto que permitisse prever com segurança que um dia o capitalismo «deixará de funcionar». Na verdade, Marx não se colocou verdadeiramente o problema, porque tinha a expectativa, como depois dele os marxistas, de que o capitalismo, muito antes de alcançar o seu limite interno e de se desmoronar sobre si mesmo - segundo Rosa Luxemburg, o processo que aí conduz poder-se-ia prolongar mais ou menos até à «extinção do Sol» -, desapareceria por uma outra razão: com o proletariado, o capitalismo cria o seu próprio inimigo, o seu «coveiro». Segundo esta expectativa, cada crise cíclica aumentaria a consciência do proletariado e reduzir-lhe-ia a paciência. A crise não seria, pois, mais do que um agravamento da luta de classes e simultaneamente o respectivo resultado. Esta explicação da crise pelas lutas do proletariado atingiu o paroxismo com a «extrema-esquerda» e o seu voluntarismo subjectivista que se opunha ao «objectivismo» entorpecido da ortodoxia marxista. Para os «subjectivistas», o próprio facto de se estudarem as leis que regulam o funcionamento da sociedade capitalista equivale a aprová- -las e servi-las. Para eles todos os momentos são bons para «desferir golpes», basta apenas querer intensamente fazê-lo. A crítica que dirigiam aos outros marxistas era na verdade de natureza puramente moral: tratava-se, segundo eles, de traidores que não queriam lançar na batalha as massas que comandavam. De facto, os marxistas de todas as cores estavam e continuam a estar unidos pela sua ignorância tácita do limite interno, lógico, do capitalismo. Recusam a ideia de que o capitalismo possa desembocar numa crise absoluta: com efeito, este tipo de crise seria precisamente uma crise das próprias formas - a mercadoria, o Estado, o dinheiro - que eles querem conquistar para as administrarem «democraticamente» ou «em benefício do proletariado». Se detestam a teoria da derrocada é porque ela prevê também o fim do proletariado e do próprio trabalho. 

 A esperança de que o capitalismo acabasse por desaparecer porque um proletariado sempre mais numeroso, mais miserável, mais concentrado, mais consciente e mais organizado o viesse a abolir terminou antes ainda de chegar ao fim o capitalismo. Nestas circunstâncias, é a outra parte da teoria da crise de Marx que se torna actual: aquela parte da teoria em que Marx antecipou no plano lógico a crise final. O único erro de Marx foi considerar crises finais as crises da sua época, que de facto não eram mais do que crises de crescimento, e nem sequer das mais graves. Foi necessário ainda mais um século para se chegar ao ponto em que a autocontradição inerente ao capitalismo começa a impedir o respectivo funcionamento e em que a máquina entra em aceleração vertiginosa. O que vem hoje à luz do dia é uma crise muito mais profunda do que as que no passado desencadeavam desproporções quantitativas momentâneas. A contradição entre o conteúdo material e a forma valor conduz à destruição do primeiro. Esta contradição torna-se particularmente visível na crise ecológica e apresenta-se então como um «produtivismo», como produção tautológica de bens de uso - produção essa que, contudo, mais não é do que a consequência da transformação tautológica do trabalho abstracto em dinheiro. A produção como fim em si não significa a maior produção possível de valores de uso, como se se tratasse de uma espécie de cobiça de algo de concreto - é desta maneira falsa que o problema é frequentemente apresentado pela argumentação dos ecologistas. A questão fulcral neste domínio não tem a ver com uma irreprimível pulsão de alguém para se rodear de riquezas materiais ou para transformar o mundo. A gigantesca dissipação das bases naturais da vida, que caracteriza o capitalismo actual, também não é a consequência da necessidade de alimentar uma população mundial que cresceu enormemente, ao contrário do que pretendem fazer crer os inúmeros neomalthusianos, como também não é consequência dos desejos «exagerados» dessa mesma população. É antes o resultado da lógica tautológica do sistema da mercadoria. Seis mil milhões de seres humanos poderiam viver muito melhor do que presentemente produzindo e trabalhando muito menos do que hoje.
 
 A produção de valor e de mais-valia, o único objectivo dos sujeitos da mercadoria, pode comportar também uma diminuição da produção de valores de uso, mesmo dos mais importantes. É o que se verifica no caso cada vez mais frequente da desindustrialização de países inteiros nos quais a produção se reduz aos sectores cujos produtos são susceptíveis de ser exportados, mesmo que se trate apenas de amendoim. A «produção pela produção» significa a maior acumulação possível de trabalho morto. Os ganhos de produtividade, designadamente o aumento da produção de valores de uso, em nada alteram o valor produzido em cada unidade de tempo. Uma hora de trabalho continua a ser uma hora de trabalho, e se nessa hora se produzem sessenta cadeiras em vez de uma, tal significa que em cada cadeira está contida apenas a sexagésima parte de uma hora: a cadeira «vale» assim apenas um minuto. O aumento das forças produtivas, empurrado pela concorrência, não aumenta de modo algum o valor de cada unidade de tempo: este facto constitui um limite inultrapassável à criação de mais-valia, cujo crescimento se torna progressivamente mais difícil. Para produzir a mesma quantidade de valor torna-se necessária uma produção sempre mais ampliada de valores de uso e consequentemente um consumo acrescido dos recursos naturais. Ao proprietário do capital, se não quer ser eliminado pela concorrência, torna-se necessário produzir as sessenta cadeiras na esperança de encontrar uma procura compensadora. Pode inclusivamente tentar criar essa procura, sem levar em conta a relação real entre necessidades e recursos no interior da sociedade. A redução da taxa de lucro comporta a necessidade de aumentar continuamente a produção de mercadorias para bloquear a queda da massa de lucro. É precisamente porque os ganhos de produtividade só aumentam a mais-valia indirectamente que é preciso fazer crescer continuamente essa produtividade (17). O mundo concreto, todo ele, vê-se assim consumido a pouco e pouco para que seja conservada a forma valor (18). Na sociedade baseada no valor, a produtividade acrescida do trabalho transforma-se numa calamidade porque é a razão profunda da crise ecológica. Trata-se de uma manifestação da oposição entre forma abstracta e conteúdo concreto que atravessa toda a história do capitalismo.

 O valor descrito por Marx caracteriza-se pelo facto de não proceder no vazio, antes estar sempre na obrigação de lutar contra as resistências do concreto. A forma abstracta procura tornar-se independente do conteúdo concreto e das suas leis. Mas o conteúdo continua sempre a juntar-se com ela porque uma forma sem conteúdo é coisa que não pode existir. O pensamento de Marx caracteriza-se precisamente pela importância atribuída à natureza, lato sensu, por exemplo, quando Marx põe em relevo o papel do valor de uso, negligenciado pelos economistas clássicos, e quando sublinha que o trabalho não é apenas processo de valorização, mas também processo de produção (19). Quase todo o pensamento burguês reflecte a lógica do valor no que toca ao facto de esta pressupor a existência de uma forma autonomizada que pode continuar eternamente a desenvolver-se sem nunca encontrar resistência da parte de um conteúdo ou de uma substância. Os economistas burgueses raciocinam sempre em termos quantitativos e acreditam que é possível aumentar o valor tanto quanto se queira sem ter que temer nenhum limite objectivo, como a capacidade limitada de consumo da sociedade, as leis que decorrem do valor de uso do capital fixo ou o carácter limitado dos recursos naturais e da força de trabalho disponível. E enquanto este último dado é mais ou menos natural, muito mais numerosos são os limites que, sem deixarem de ser sociais, revestem em virtude do seu carácter fetichista um aspecto quase natural, como acontece com a queda da taxa de lucro ou a superprodução. A forma, na medida em que é algo do âmbito do pensamento, é quantitativamente ilimitada, ao passo que o conteúdo tem sempre barreiras concretas. A convicção segundo a qual seria possível manipular infindavelmente a realidade soçobra o mais tardar no momento da crise; a existência de uma realidade incontornável, de uma substância que tem as suas próprias leis, vem então à luz do dia. Todas as teorias relativistas, desde o positivismo ao pós-modernismo, contestaram sempre este facto. O esquecimento dos fundamentos naturais é precisamente o que distingue o pensamento burguês moderno da teoria de Marx. Vê-se assim por que motivos a crítica marxiana da economia política, longe de ser incapaz de explicar a crise ecológica ou de dela dar conta, como por vezes se pretende, oferece pelo contrário para essa crise a única explicação estrutural que não se limita a um conjunto de apelos morais.

 Por outro lado, essa produtividade acrescida do trabalho - que enquanto tal poderia ser naturalmente um bem para toda a humanidade - produz de uma maneira mais directa o desmoronamento da sociedade baseada no valor (20). Paradoxalmente, o capitalismo atinge o seu próprio limite em virtude da sua maior força, a saber, a libertação das forças produtivas: o dispêndio individual de força de trabalho é cada vez menos o factor principal da produção. São as ciências aplicadas, bem como os saberes e capacidades difundidos ao nível social, que se tornam directamente a força produtiva principal. A necessidade de calcular o trabalho efectuado por cada um, e portanto o valor que lhe compete, transforma-se então numa «couraça» que sufoca as possibilidades produtivas, porque o trabalho individual deixa de ser mensurável. O dispêndio de trabalho deixa de poder constituir a forma social da riqueza e deixa de ser a condição para que o individuo participe nos respectivos frutos. A ciência, enquanto força produtiva, aboliu a identificação entre «trabalho» e «metabolismo com a natureza» porque ela criou um processo produtivo no qual o «produtor» se encontra muitas vezes «ao lado» dos meios de produção, limitando- -se a controlá-los e a dirigi-los. Estas novas forças produtivas são obra da sociedade no seu todo; quando um novo procedimento (digamos, um novo produto de software) é inventado, o seu «valor» não se encontra nos produtos (ou encontra-se neles somente em doses homeopáticas). Determinar o trabalho dispensado por cada produtor individual passa então a ser algo de tão impossível quanto de inútil. Nesta situação, a «troca» de unidades de trabalho perde a sua razão de ser, como Marx havia predito relativamente ao comunismo (21). Com efeito, a troca só é necessária em circunstâncias em que os produtores estão separados uns dos outros e em que só as coisas se encontram socializadas. Hoje em dia, porém, a separação dos produtores já não tem base material ou técnica e deriva exclusivamente da forma do valor abstracto, a qual perde assim definitivamente a sua função histórica. 

 Deste modo, o funcionamento efectivo da produção liberta-se cada vez mais da lógica do valor que se transforma numa arcaica camísa-de-forças. É justamente o que Marx, numa sua profecia contida nos Çrundrisse, tinha previsto como um dos resultados possíveis da sociedade do valor. Infelizmente verifica-se que não se trata de uma saída pacífica e gradual para fora da sociedade capitalista, uma saída que precisasse apenas de encontrar tradução no plano político - como pretendem certas concepções que se reportam a essas páginas de Marx, ou como proclamam aqueles que, mesmo sem teoria alguma, apresentam grandes «descobertas», do tipo free software, como se representassem a ultrapassagem do capitalismo. A forma valor continua a existir, não porque as classes dominantes hajam decidido que assim devia ser, mas por se tratar de uma forma fetichista não percebida como tal pelos sujeitos. Longe de se dissipar, a forma valor, embora «objectivamente» ultrapassada, entra cada vez mais em colisão com o conteúdo material que ela ajuda a criar. 

 Tal verifica-se sobretudo no facto de uma sociedade, para a qual o trabalho é a essência e o único motor, abolir o trabalho tornando portanto quase impossível a produção de valor e consequentemente a produção de mais-valia. Dissemos acima que a queda da taxa de lucro acompanhou toda a evolução do capitalismo. Mas durante muito tempo essa queda foi compensada, e mesmo sobrecompensada, pelo aumento da massa do lucro. Bastava que o modo de produção se ampliasse mais rapidamente do que a queda da taxa de lucro: se em dez anos, graças à utilização de novas tecnologias, a parte do capital variável (ou seja, a parte de salário) contida numa mercadoria decresce 20 a 10%, e portanto a taxa de lucro (supondo uma taxa de mais- -valia, ou seja, um grau de exploração, estável de 50%) diminui 10 a 5%, mas se ao mesmo tempo se produz três vezes mais mercadorias, então a massa de lucro cresceu 50% e pode portanto alimentar um ciclo alargado da produção. Esta possibilidade foi prevista por Marx e realizou-se efectivamente durante mais de um século. Contudo, é evidente que esta evolução há-de chegar um dia a um ponto em que a massa de lucro do capital global começará a diminuir até atingir um limite absoluto.

 Com efeito, não basta ao capital absorver trabalho. O capital tem que o fazer com um nível de rentabilidade suficiente, e esse nível é estabelecido em cada momento pela concorrência e pelo uso que esta faz do capital fixo. Se com cem mil Euros investidos em máquinas de última geração é possível fazer com que um único trabalhador, mesmo que se lhe paguem dois mil Euros mensais, produza dez mil pares de sapatos, para quem não pode investir tão pesadamente no capital fixo torna-se não rentável empregar trabalho: mesmo dez trabalhadores pagos a duzentos Euros por mês não conseguiriam produzir, usando instrumentos arcaicos, mais do que mil pares de sapatos. Dito de outro modo, para que o consumo de força de trabalho seja rentá­ vel, são necessários investimentos enormes, coisa que se exprime no facto muito visível de que um emprego «custa» cada vez mais (22).

 Trabalho produtivo e trabalho improdutivo 


 Por outro lado, no capitalismo nem todo o trabalho é trabalho produtivo. Naturalmente não falamos da utilidade real do trabalho, uma vez que esse nível está ausente da lógica da valorização. Trata- -se antes da questão de saber se um trabalho produz mais-valia. Marx dedicou uma certa atenção a esta questão, ao passo que de um modo geral os marxistas a negligenciaram, mostrando-se ainda menos capazes de reconhecer o laço que ela mantém com as crises do capitalismo. Deste modo, os marxistas abandonaram o terreno aos economistas burgueses que presentemente querem fazer crer que cada perda de trabalho nos sectores tradicionais (indústria pesada, agricultura, etc.) é amplamente compensada pelos novos empregos e pelas fantásticas oportunidades de ganho que se abrem e que se abrirão ainda mais num futuro próximo nos serviços, na informática, etc. - ignorando completamente que muitas vezes esses trabalhos, quer sejam «úteis» ou «não», não são «trabalho produtivo» em sentido capitalista Para Marx, o único trabalho produtivo - em sentido capitalista - é o trabalho que cria mais-valia passível de ser reinvestida. Os outros trabalhos mais não fazem do que consumir os rendimentos daqueles que os pagam. Se vou ao alfaiate para mandar fazer um fato para meu uso pessoal, não faço uma despesa produtiva e o alfaiate não fez um trabalho produtivo em sentido capitalista. Se emprego o mesmo dinheiro como salário pago a operários da indústria de confecções cujos fatos produzidos depois revendo, aí trata-se de trabalho produtivo. A prová-lo está o facto de que a primeira despesa, se a repito um número suficiente de vezes, me deixa sem dinheiro, ao passo que a segunda despesa, depois de várias repetições, deveria fazer de mim um homem rico graças à mais-valia extorquida aos trabalhadores (23). Como é natural, o capitalismo não pode renunciar completamente aos trabalhos «não produtivos». Mas, dado que só o trabalho produtivo constitui a «essência» (24) do capitalismo, este tem a obrigação de procurar limitar os trabalhos não produtivos e transformá-los tanto quanto possível em trabalhos produtivos. Por exemplo, um professor, enquanto tal, não é um trabalhador «produtivo». Mas, diz Marx, se ele trabalha numa escola privada criando mais-valia para o seu empregador, então torna-se produtivo (de capital) (25). A distinção que Marx faz entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo foi fortemente atacada, e é muitas vezes acusada de só reconhecer o trabalho material, em particular o trabalho industrial, como produtivo de mais-valia, com exclusão dos serviços e de todos os trabalhos imateriais que hoje supostamente constituem a maior parte do trabalho social. Trata- -se de uma acusação falsa, porque Marx nunca identificou no plano conceptual a questão do carácter produtivo ou não produtivo de um trabalho com o respectivo conteúdo material ou imaterial - mesmo se a preponderância do trabalho material na sua época lhe sugeria uma quase identidade empírica.

 Contudo, hoje em dia é possível determinar melhor a questão do trabalho produtivo. Não se pode decidir num caso isolado se um trabalho é produtivo; a resposta depende da posição desse trabalho dentro do processo completo de reprodução. Só ao nível do capital global se pode ver o carácter produtivo ou não produtivo de um trabalho; as pessoas que no interior de uma empresa estão adstritas às limpezas, por exemplo, ou à contabilidade, são trabalhadores não produtivos. Constituem um mal necessário para a empresa. A organização dessas pessoas em empresas especializadas que oferecem os seus servi­ços às outras empresas, que deixam portanto de empregar trabalhadores fixos para essas tarefas, cria mais-valia para os proprietários de tais empresas de serviços e constitui o segredo daquilo a que se chama «terciarização». Mas estes lucros para os capitais particulares anulam-se ao nível do capital global (infelizmente este facto não está suficientemente desenvolvido na argumentação de Marx), no qual estas actividades representam sempre uma dedução da mais-valia realizada pelo capital produtivo. Para que um trabalho seja produtivo, é preciso que os seus produtos retornem no processo de acumulação do capital e que o seu consumo alimente a produção alargada do capital, sendo consumidos por trabalhadores produtivos ou tornando-se bens de investimento para um ciclo que produza efectivamente mais-valia. Assim compreendida, a diferença entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo não coincide com a distinção entre bens materiais e serviços, nem com a distinção entre despesas do Estado e investimentos privados - mesmo sendo verdade que a quase totalidade das despesas do Estado representam um consumo não produtivo (armamento, administração pública, educação, saúde, etc.). É, pois, uma parte da produção industrial que hoje é não produtiva (26).

 Não é apenas a visível diminuição do trabalho no mundo contemporâneo que põe em crise a valorização, mas mais ainda o recuo invisível do trabalho produtivo. Só uma muito pequena parte das actividades levadas a cabo no mundo cria mais-valia e alimenta ainda o capitalismo (27). A diminuição do trabalho produtivo é igualmente causada pelo aumento constante daquilo a que Marx chama (com uma expressão francesa) os «faux frais», ou seja, os falsos encargos. Os sectores produtivos têm necessidade de numerosas actividades a montante, a jusante e ao lado do verdadeiro processo produtivo. Mas trata-se de trabalhos não produtivos e que muitas vezes não podem obedecer à lógica do valor. Em parte, estes trabalhos situam- -se no interior da empresa, como as limpezas ou a contabilidade que mencionámos acima. Mas a maior parte dos «falsos encargos» encontra-se a cargo do Estado. Com os impostos e restantes rendimentos, o Estado financia tudo o que é demasiado caro, mesmo para as empresas maiores (a construção de caminhos-de-ferro é o exemplo histórico mais conhecido), ou que não pode ser organizado segundo os critérios habituais do lucro, sendo contudo indispensável: a produção moderna necessita de trabalhadores qualificados, precisando portanto de um sistema educativo abrangendo toda a sociedade, coisa que um sistema educativo totalmente privado não seria capaz de garantir. A «segurança» interna e externa, os transportes, o sistema sanitário, a administração e muitas outras coisas são necessárias para que o trabalho produtivo possa desenvolver-se. Em contrapartida, o trabalho produtivo tem que ceder ao Estado uma parte do seu lucro. Cada parcela particular de capital, como é natural, fica satisfeita com o facto de encontrar infra-estruturas que funcionam bem e cujo uso é muitas vezes gratuito. Mas, para o capital global, são falsos encargos que é preciso limitar o mais possível porque caso contrario poderão ameaçar a rentabilidade da produção. Desde os começos do capitalismo, os falsos encargos têm tendência para aumentar constantemente. As causas são o aumento continuo do capital fixo, sobretudo sob a forma da cientificização da produção; mas também o efeito que têm as infra-estruturas sobre a concorrência (um capital que não tenha à sua disposição auto-estradas para encaminhar os seus produtos, perderá na competição mundial), as necessidades da pacificação social, a corrida aos armamentos, a obrigação que o capital tem de encontrar trabalhadores cada vez mais qualificados ou, pelo menos, enquadrados nos valores do capitalismo. A tentativa de organizar estas actividades também sob a forma de empresas capitalistas, típica da época neoliberal, não altera a situação ao nível do capital global e arrasta consigo o risco de fazer explodir o quadro social geral dentro do qual se desenrola a produção de valor.

 A sufocação progressiva da produção de valor em virtude do aumento dos falsos encargos e do trabalho improdutivo, bem como a diminuição da massa de lucro que daí resulta, são, no plano lógico, uma consequência inelutável das contradições de base da mercadoria. A realidade histórica confirmou esta dedução lógica. Primeiro porque o capitalismo clássico, caracterizado pelo padrão-ouro - a convertibilidade ilimitada das moedas em ouro -, pelos orçamentos públicos em equilíbrio e pela livre concorrência sem intervenção do Estado, tinha chegado ao fim com a Primeira Guerra Mundial. Depois porque o capitalismo se encontra numa perpétua fuga para a frente; só continua a funcionar porque vai suspendendo as suas próprias leis. O período que vai de 1920 - e a fortiori de 1945 - até 1975 aproximadamente merece hoje, com boas razões, o nome de «fordismo». A partir da indústria automóvel americana e das inovações introduzidas por Henry Ford e Frederick Taylor (linha de montagem, «gestão científica» da força de trabalho, etc.), difundiu-se um novo sistema económico-social, primeiro nos Estados Unidos e depois, a seguir à Segunda Guerra Mundial, também nos outros países ocidentais. O fordismo andou a par dos métodos keynesianos em matéria de política económica; os resultados foram a produção em massa de bens semiduradouros a baixo preço, os salários elevados, o pleno emprego, a democracia política, os investimentos maciços do Estado nas infra-estruturas e nos serviços sociais, a estabilidade monetária e a penetração dos bens de consumo em todos os dominios da vida. Contudo, o «ciclo virtuoso» fordista não estava fundado sobre bases que lhe fossem próprias. Era o Estado, com os seus investimentos, geralmente pagos a crédito, que permitia o rápido crescimento dos sectores não produtivos - por exemplo, com a construção de auto- -estradas, sem as quais não teria sido possível a automobilização do mundo. Este crescimento tornou possível um aumento dos sectores produtivos, suficiente em termos absolutos para compensar a diminuição relativa do lucro em cada produto particular. Enchendo completamente o mundo de mercadorias, o fordismo conseguiu adiar por várias décadas a crise estrutural do capitalismo que se manifestara já nos anos vinte, explodindo designadamente com a grande crise de 1929.

 Pelos anos de 1970-1975, o ciclo fordista-keynesiano esgotou- -se porque se tornara impossível continuar a financiar os «encargos secundários». O abandono do padrão-ouro em benefício do dólar, em 1971, e o regresso da inflação nos países ocidentais eram os sinais do esgotamento do ciclo. Essa crise agravou-se infinitamente por via da revolução informática. Esta revolução já não instaura um novo modelo de acumulação: desde o início, a informática torna inúteis - «não rentáveis» - enormes quantidades de trabalho. Diferentemente do que se passou com o fordismo, a informática provoca essa inutilidade a um ritmo tal que já não há extensão do mercado que seja capaz de compensar a redução da parte de trabalho contida em cada mercadoria. A informática corta definitivamente o laço entre a produtividade e o dispêndio de trabalho abstracto incarnado no valor. Ela põe a girar o «círculo vicioso» a que temos vindo a assistir de há vinte anos a esta parte. O sistema capitalista, para sobreviver numa situação em que ele mesmo serra o ramo de árvore sobre o qual está sentado - o trabalho -, é obrigado, mais ainda do que antes, a procurar subterfú­ gios para fazer coincidir momentaneamente a circulação e a produção suspendendo praticamente a lei do valor. É importante que nos recordemos de que a produção de bens de uso não está em crise. Mas se fosse seguida à letra a lógica do valor, dever-se-ia abandonar quase toda a produção actual por «falta de rentabilidade». Para evitar chegar a essa conclusão, o «sujeito autómato» lança-se numa fuga para a frente cada vez mais desesperada.

 O capital fictício


 Essa fuga faz-se indirectamente por intermédio do capital fictício, ou seja, pela autonomização dos mercados bolsistas e da especula­ ção. Assim, o capital prolonga a sua vida para lá dos seus limites reais consumindo antecipadamente o seu futuro, isto é, vivendo a crédito. Também o crédito está embrionariamente «contido» na estrutura elementar da mercadoria: a mediação monetária separa a venda da compra porque permite adiar o pagamento. O trabalho e o dinheiro são estádios diferentes do mesmo processo de valorização, mas podem igualmente não coincidir: o dinheiro pode multiplicar-se mais rapidamente que o trabalho morto. Este factor cria a ilusão de que o dinheiro tem o poder místico de crescer por si só, sem a media­ção de um processo produtivo no qual fosse consumido trabalho. O juro monetário, em que na aparência se passa directamente do dinheiro a uma quantidade superior de dinheiro (D-D’, na linguagem utilizada no início do terceiro capítulo deste livro), torna-se na consciência comum a verdadeira forma de lucro - apesar de se tratar somente de uma dedução operada sobre o lucro obtido na produ­ção. Na verdade, só é dinheiro «bom» aquele que resulta de um processo bem sucedido de valorização do valor operada pelo trabalho. O dinheiro que representa trabalho não produtivo e o dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança - cuja forma principal é o crédito - acabam por se desvalorizar.

 A necessidade do crédito deriva do aumento contínuo do capital fixo que ultrapassa as capacidades das empresas. É pois uma consequência da produtividade aumentada do trabalho. Torna-se então indispensável investir no presente os ganhos esperados para o futuro. Enquanto esses ganhos vierem efectivamente no seguimento para pagar juros e para se poder ampliar a dívida, o endividamento não é grande problema. Mas, diferentemente do que se passava com os capitalistas do século XIX, já as empresas da expansão fordista só podiam financiar-se recorrendo ao crédito. Por outro lado, por causa da explosão dos encargos «não produtivos», os «falsos encargos», uma parte crescente dos créditos servia apenas para alimentar o consumo não produtivo. Por outro lado ainda, os Estados - que até à Primeira Guerra Mundial apresentavam orçamentos mais ou menos equilibrados - tinham começado a endividar-se para poderem assegurar as condições infra-estruturais necessárias às economias nacionais. Sendo certo que Keynes pensava que a intervenção do Estado não devia servir senão para «empurrar» a acumulação de modo a que ela pudesse depois voltar a arrancar sobre as suas próprias bases, a verdade é que essas intervenções rapidamente se revelaram uma conditio sine qua non para o funcionamento da economia, e ao mesmo tempo um peso em crescimento permanente para as finanças públicas.

 Quando se esgotou o mecanismo que compensava a diminui­ ção da produtividade de valor através da ampliação da produção, o financiamento por via do crédito mudou de natureza. Depois de as quantidades de créditos em circulação terem ultrapassado largamente a quantidade de ouro existente, a abolição da convertibilidade do dólar em ouro (1971) desarticulou o último dispositivo de segurança. A partir de então, o dinheiro baseia-se exclusivamente na confiança, e não há limite algum para a sua multiplicação. Mas, em boa verdade, o dinheiro mais não é do que a incarnação do trabalho abstracto despendido no interior de processos de valorização suficientemente rentáveis. Como é natural, o Estado pode imprimir papel-moeda sem levar em conta a quantidade de trabalho produtivo, tanto mais que tal quantidade não pode ser medida directamente. Os actores económicos podem criar dinheiro sob a forma de acções, obrigações, empréstimos, etc. Mas a quantidade de dinheiro excedente perde fatalmente o seu valor na inflação ou na deflação. A redução drástica do trabalho produtivo à escala global faz igualmente com que o dinheiro perca a sua substância: o dinheiro torna-se «não válido». Se se calculasse todo o dinheiro que circula no mundo sob todas as sua formas (acções, obrigações, títulos de dívida, etc.), dividindo-o de seguida pelo número de habitantes do planeta, chegar-se-ia provavelmente a uma inflação global de várias centenas porcento. Se essa hiperinflação não se manifesta ainda, é porque em grande parte o dinheiro permanece «resguardado» nas estruturas financeiras sob a forma de acções, de dinheiro «virtual», de «direitos especiais de levantamento antecipado», etc.

 A multiplicação milagrosa do dinheiro suscitou fortes receios no início dos anos setenta - mas as somas em causa nessa altura não eram mais do que uma pequena fracção do «capital fictício» que viria a estar em circulação trinta anos mais tarde. O conceito de «capital fictício» foi desenvolvido por Marx no terceiro volume do Capital para designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação e na expectativa de ganhos futuros; logo que alguém exija o pagamento real das dívidas, a «bolha» não poderá deixar de rebentar com falências em cadeia. Porém, na época de Marx, tratava-se de um epifenómeno de que vinham acompanhadas as crises económicas reais. Os crashes financeiros tinham nesse tempo uma função de purga e não 'afectavam os processos produtivos reais. Até ao final do ciclo fordista, a especulação financeira seguia mais ou menos o ritmo e as dimensões da acumulação real.

 Tudo isso mudou enormemente a partir do momento em que a acumulação real, apesar de todos os créditos, estagnou. A partir de então, o recurso ao crédito serve para estimular uma acumulação inexistente e para prolongar artificialmente a vida de um modo de produção que já está morto28. Somente uma quantidade muito pequena dessa liquidez circulante foi emitida directamente pelos Estados; a maior parte são acções, obrigações, créditos, valores imobiliários, «dinheiro electrónico», etc. - o que contribui para tornar este processo completamente incontrolável. Mediante uma reviravolta grotesca, que nem mesmo Marx foi capaz de prever, a produção real passou a ser um apêndice do capital fictício. Os movimentos vertiginosos registados a partir de 1987 nos mercados bolsistas já nada têm a ver com as oscilações conjunturais daquilo que resta da economia real. O capital fictício tornou-se inclusivamente o verdadeiro motor do crescimento. Os ganhos realizados com operações financeiras puramente especulativas tornaram-se um elemento indispensável nas finanças das empresas, dos Estados e dos privados - quer se trate do «milagre económico» americano, financiado com o maior endividamento da história, ou das numerosas famílias americanas que obtêm créditos bancários exclusivamente com base nas acções que detêm e na expectativa de que o respectivo preço venha a subir, ou das empresas, mesmo empresas «sérias», que têm orçamentos equilibrados apenas graças a receitas financeiras. Neste quadro, o famoso endividamento do terceiro mundo não é senão uma pequena parte de todo o capital fictício. Já não são apenas as receitas do Estado, mas também as de toda a sociedade, que se encontram antecipadamente gastas.

 Não é possível entrar aqui nos meandros das finanças internacionais e descrever os circuitos internacionais do défice (em que o défice entre os Estados Unidos e o Japão é o mais importante). A derrocada da estrutura financeira efectivar-se-á apenas após um certo período de incubação. Mas terá consequências catastróficas pois ver-se-á então que a acumulação real já terminara há muito. A subida cada vez mais fantástica dos mercados bolsistas segue a par da aparente tranquilidade das instituições económicas internacionais, que sem pestanejar fazem chegar aos países em falência (como a Indonésia, o Brasil ou a Turquia) somas - da ordem das dezenas de milhar de milhões de dólares - que poucos anos antes teriam feito estremecer até aos seus fundamentos as finanças internacionais, como sucedeu no caso da crise do México em 1995. Contudo, os movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a consequência das perturbações na economia real. A economia real não progrediria melhor se fossem abolidos os «excessos» especulativos, como tratam de pregar certos observadores inquietos, por exemplo, George Soros ou Ignacio Ramonet. Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar logo que lhe tenham sido retiradas as muletas da especulação. Com efeito, depois do rebentamento da bolha financeira, ver-se-á que era precisamente ela que durante um certo período escondia o facto de que a acumulação de valor tinha já atingido o seu limite histórico. Naturalmente isso não significará necessariamente o fim da produção de bens de uso - com a condição, contudo, de esta última ser desligada da produção de valor.

 A «desvalorização do valor» não é somente uma crise económica, antes significa uma crise total: o colapso de toda uma «civilização». A produção de mercadorias já não constitui um sector no quadro da vida social, antes ocupa nela uma parte cada vez maior, tanto geograficamente como no interior da sociedade, tanto em extensão como em intensidade. O final desta produção de mercadorias será portanto catastrófico para todo o planeta. Uma derrocada do capitalismo em 1900 teria sido muito mais limitada nas suas consequências. Hoje em dia, a sociedade mercantil, depois de ter sequestrado todos os recursos da humanidade, retira-os aos homens e renuncia quase completamente à sua utilização. Os homens já não podem pôr em acção os seus próprios meios, porque o fetiche da «rentabilidade» não o permite. Ao mesmo tempo, o «sujeito autómato» já não pode incorporar a força de trabalho que está disponível em grandes quantidades: todas as forças produtivas têm que passar pelo buraco da agulha da respectiva transformação em valor, e esse buraco torna-se cada vez mais estreito.

 O valor conduz à sua própria abolição precisamente por causa dos seus sucessos. A vitória definitiva do capitalismo sobre os restos pré-capitalistas representa também a sua derrota definitiva. Quando o capitalismo, plenamente desenvolvido, coincide com o seu conceito, não se chega a uma situação que signifique o fim de toda e qualquer possibilidade de crise, mas antes pelo contrário chega-se àquilo que é o início da verdadeira crise. Com efeito, a transformação do trabalho em valor não pode ter lugar se não estiver rodeada por um grande número de outras actividades que, por seu turno, não podem seguir os critérios da rentabilidade e da transformação em valor, ou são actividades em que o dispêndio de trabalho não é sequer determinável. Os «falsos encargos» da produção representam somente uma parte de tais actividades, e uma parte que se encontra ainda no interior do campo «económico». Muito mais espalhadas, ainda que incalculáveis, encontram-se todas aquelas actividades que são indispensáveis à reprodução social e que se desenrolam fora da esfera «económica». Pode falar-se de um «reverso obscuro» da valorização, ou seja, de uma enorme zona de sombra sem a qual não existiria a luz daquilo que vale como «produção». A parte mais importante destas actividades que não são consideradas «trabalho», e que portanto não são pagas, é efectuada pelas mulheres. «O valor é o macho» diz o título de um ensaio de Roswitha Scholz, publicado na revista Krisis, n.° 12 (1992) (29). Apesar do seu carácter abstracto, o valor não é «neutro» no plano do sexo, porque se baseia numa «cisão»: tudo o que é susceptível de criar valor é «masculino». As actividades que em caso algum podem tomar a forma do trabalho abstracto, e sobretudo a criação de um espaço protegido onde o trabalhador possa repousar das suas fadigas, são estruturalmente «femininas» e não são pagas. É uma das razões pelas quais a sociedade capitalista negou durante muito tempo à mulher o estatuto de «sujeito» (por exemplo, o direito de voto). Na sociedade mercantil, só o indivíduo que despende trabalho abstracto é considerado como sujeito de pleno direito. As outras actividades, por mais fatigantes e necessárias que sejam, mas que não alcançam a «dignidade» de se ser consumido directamente pela máquina da valorização, permanecem marcadas com o sinal da inferioridade. É, pois, uma consequência da lógica do valor o facto de se considerar que a mulher que trata do sogro idoso não «trabalha», ao passo que o marido, que produz bombas ou porta-chaves, esse sim, «trabalha». É certo que nas últimas décadas muitas mulheres passaram a ser «sujeitos», no sentido da mercadoria, chegando mesmo por vezes a ocupar lugares de direcção. Mas para tanto precisaram de se tornar «machos»: com efeito, a «cisão» operada pelo valor implica também que o sujeito capitalista desenvolva em si mesmo somente as qualidades necessárias ao sucesso no mundo do trabalho, e essas qualidades são estruturalmente consideradas como sendo «masculinas»: autodisciplina, racionalidade, lógica, firmeza relativamente a si próprio e aos outros. A própria parte «feminina» dos indivíduos é inteiramente delegada nas mulheres que devem utilizá-la para «mobilar» o repouso do guerreiro. O facto de hoje em dia essas qualidades, que são evidentemente culturais, poderem estar dissociadas dos seus portadores biológicos mais não faz do que reforçar o mecanismo estrutural: aquele que, homem ou mulher, se comportasse no mundo do trabalho segundo critérios tradicionalmente «femininos», como a compaixão, não iria muito longe.

 As propostas no sentido de alterar esta situação pelo pagamento do «trabalho» doméstico ou dos cuidados com a educação das crian­ ças não conduzem a nada. Já não falando no seu carácter ilusório numa época em que o Estado se vê forçado - não por más escolhas políticas - a diminuir as suas despesas sociais, estas propostas significariam estender a lógica do valor e do trabalho abstracto a novos sectores em vez de se reconhecer o respectivo fracasso. O valor entra em colapso precisamente no momento em que procura transformar toda a actividade humana, cada movimento de respiração e cada pensamento, em trabalho abstracto para contrariar o esgotamento do trabalho. Mas na sua maior parte estas actividades, entre as quais os cuidados prestados às crianças, a afectividade nas relações humanas (que também faz parte da «reprodução da força de trabalho»), as actividades domésticas, não podem, pela sua própria natureza, entrar na camisa-de-forças do valor. Pode imaginar-se que seria possível romper a lógica que reconhece o estatuto de sujeito somente a quem exerce «trabalho abstracto», mas não é possível transformar cada um dos indivíduos à escala mundial num tal sujeito no próprio momento em que o estreitamento do valor expulsa cada vez mais gente desse estatuto - um desempregado, por exemplo, ou o indivíduo que recebe ajuda pública já perderam uma parte da sua «dignidade» em face do valor.

 No final da sua trajectória histórica, o pior mal que o capitalismo faz aos homens já não é a exploração. É sobretudo a expulsão. O estádio final do capitalismo não se caracteriza pela existência de um proletariado cada vez maior e cada vez mais revolucionário - também porque a diminuição do capital variável faz com que o trabalho assalariado perca a sua importância e portanto faz com que o proletariado clássico perca também a influência que teve. O estádio final do capitalismo caracteriza-se, pelo contrário, pela ausência de pessoas que valha a pena explorar. Poder-se-ia objectar à crítica do valor que, se a mais-valia não é senão uma categoria derivada, daí deveria decorrer a possibilidade de uma produção de valor sem mais-valia. Na verdade tal coisa é impossível. Mesmo se a taxa e a massa do lucro baixam continuamente, têm contudo que continuar a existir de um modo qualquer, porque caso contrário a produção de valor enquanto tal perderia a sua razão de ser e retrocederia para a produção de bens de uso. Mas não decorrerá daí a existência necessária de uma classe explorada de trabalhadores assalariados? Formalmente, sim, no sentido de que efectivamente terá que haver alguém que produz mais valor do que aquele que recebe. Contudo, tal facto não precisa de corresponder necessariamente à ideia tradicional de massas operárias exploradas (ao passo que o marxismo se fixou numa certa forma de existência histórica e empírica da categoria lógica do «trabalhador»). Nos nossos dias, a nível mundial, um pequeno estrato de trabalhadores produtivos, frequentemente muito bem pagos, consegue, com um emprego extremamente elevado de capital fixo, produzir para os seus empregadores uma mais-valia muito maior do que aquela que produziriam grandes quantidades de trabalhadores com salários baixos - também porque os produtos dos primeiros, em virtude dos mecanismos que regulam a concorrência no mercado mundial, se apropriam de uma parte sobredimensionada da criação mundial de valor. A necessidade de criar mais-valia continua a existir estruturalmente no capitalismo, mas hoje exprime-se menos na «exploração» (sobretudo se se identifica essa «exploração» com a «pobreza», porque um operário europeu, por maior que seja o seu sobretrabalho, é um indivíduo rico, à escala mundial) do que no facto de uma parte crescente da humanidade ser expulsa do processo de produção, consequentemente posta à margem de todas as possibilidades de reprodução e de sobrevivência. A absorção de trabalho vivo continua a ser o «carburante» do modo de produção capitalista, mas onde essa absorção efectivamente funciona garante pelo menos a sobrevivência dos explorados. Hoje em dia, contudo, há populações inteiras que já não são «úteis» para a lógica da valorização. Já não se trata de um exército crescente de proletários, mas sim de uma humanidade supérflua: eis o estádio final do capitalismo ao qual ele é conduzido pela necessidade contínua de criar mais-valia. O capitalismo pode ter triunfado sobre os adversários que assumiu serem os seus, mas não pode vencer a sua própria lógica. É o resultado da contradição entre as capacidades elaboradas pela espécie humana e a sua forma efectiva alienada (30).

A política não é uma solução 

 Mesmo se há muita gente que recusa ainda compreender a lógica inexorável que conduziu a um estado tão sombrio do mundo, amplia- -se 9 convicção de que a economia capitalista colocou a humanidade face a grandes problemas. Quase sempre a primeira resposta é a seguinte: «É preciso regressar à política para impor regras ao mercado. É preciso restabelecer a democracia ameaçada pelo poder das multinacionais e das Bolsas.» Mas será que a política e a democracia são verdadeiramente o contrário da economia autonomizada, será que são capazes de reconduzir essa economia aos seus «justos limites»? A «política» e a «economia» são esferas da totalidade social, são subsistemas complementares entre si. As sociedades pré-capitalistas tal como não tinham «economia» no sentido moderno do termo, também não tinham uma «política» como nós a entendemos. A partir do momento em que o valor se impõe enquanto forma da totalidade social, implica o nascimento de subsistemas diferenciados. O valor, com a sua pulsão impessoal para a ampliação tautológica, não é uma categoria puramente «económica», à qual se pudesse opor a «polí­ tica» como se esta fosse a esfera do livre arbítrio, da discussão e da decisão em comum. Esta ideia, que é desde há muito um dos pilares de toda a esquerda, tem em vista «democratizar» a vida política para de seguida impor regras à economia. Mas, na sociedade fetichista da mercadoria, a política é um subsistema secundário. Nasce do facto de a troca de mercadorias não prever relações sociais directas e de, por conseguinte, ser necessária uma esfera para as relações directas e para a realização dos interesses universais. Sem instância política, os sujeitos do mercado passariam imediatamente a uma guerra generalizada de todos contra todos, e naturalmente ninguém quereria encarregar-se das infra-estruturas (31). Os homens, na sua qualidade de representantes de mercadorias, não podem encontrar-se uns aos outros na sua individualidade e não podem portanto formar uma comunidade. A lógica do valor baseia-se em produtores privados que não têm laço social entre si, e é por isso que essa lógica tem que produzir uma instância separada que se ocupe dos aspectos gerais. O Estado moderno é, pois, uma criação da lógica da mercadoria. É a outra face da mercadoria; Estado e mercadoria estão ligados entre si como dois pólos inseparáveis. A relação entre ambos mudou várias vezes durante a história do capitalismo, mas é um erro enorme deixarmo-nos arrastar pela actual polémica dos neoliberais contra o Estado (que aliás é desmentida pela sua prática nos casos em que detêm o poder) e acreditar que o capital tenha uma aversão fundamental contra o Estado. Contudo, o marxismo do movimento operário e quase toda a esquerda quase sempre fizeram o jogo do Estado, por vezes até ao delírio, julgando ver nele o contrário do capitalismo. A crítica contemporânea do capitalismo neoliberal evoca com frequência um «regresso do Estado», unilateralmente identificado com o Estado-providência da época keynesiana. Na verdade, foi o próprio capitalismo que recorreu maciçamente ao Estado e à política durante a sua fase de instalação (entre o século XV e o final do século XVIII) e que continuou a fazê-lo em todas as circunstâncias em que as categorias capitalistas tinham ainda que ser introduzidas - os países atrasados, no Oriente e no Sul, durante o século XX. E é ao Estado que o capitalismo recorre sempre que se encontra em situação de aflição. É somente nos períodos em que o mercado parece aguentar-se sobre a suas próprias pernas que o capital gostaria de reduzir os falsos encargos implicados por um Estado forte.

 
A esquerda engana-se enormemente ao atribuir ao Estado poderes soberanos de intervenção. Em primeiro lugar, porque a política é cada vez mais pura política económica. Tal como em certas sociedades pré-capitalistas tudo era motivado pela religião, hoje em dia toda a discussão política gira em torno do fetiche da economia. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial a diferença entre a direita e a esquerda consiste essencialmente nas receitas divergentes que uma e a outra têm no âmbito da política económica. A política, longe de ser exterior ou superior à esfera económica, move-se completamente no interior dela. Tal não fica a dever-se a uma má orientação dos actores políticos, antes assenta numa razão de ordem estrutural: a política não tem meios autónomos de intervenção. A política tem sempre que servir-se do dinheiro e cada decisão que toma tem que ser «financiada». De cada vez que o Estado procura criar o seu próprio dinheiro, imprimindo papel-moeda, este dinheiro desvaloriza-se logo de seguida. O poder do Estado só funciona enquanto for capaz de ir buscar dinheiro a processos de valorização bem sucedidos. Logo que estes processos começam a abrandar, a economia limita e sufoca cada vez mais o espaço de acção da política. Torna-se então evidente que na sociedade do valor a política se encontra numa relação de dependência face à economia. Com o desaparecimento dos seus meios financeiros, o Estado reduz-se à gestão, sempre mais repressiva, da pobreza. No final, até os soldados desertam se não são pagos e as forças armadas tornam-se propriedade privada dos restos barbarizados das instituições estatais - coisa que aconteceu em numerosos países do terceiro mundo, mas também na antiga Jugoslávia.

 Indicámos os elementos mais importantes da crise da socializa­ção baseada na forma valor: a sociedade do trabalho encontra-se sem trabalho e lança populações inteiras fora da corrida. O Estado nacional, enquanto mecanismo de regulação, está em vias de desaparecer. A crise ecológica significa que, para que continue a haver criação de valor, o mundo inteiro é lançado no caldeirão da valorização. A rela­ ção tradicional entre os sexos foi posta em discussão porque o trabalho feminino, enquanto «reverso obscuro» da valorização, não pode ser integrado na lógica do valor. Estes problemas permanecem fora do alcance da política, que começa assim a girar no vazio. A política degenera definitivamente num espectáculo publicitário que cobre os governos de unidade nacional que em todos os países ocidentais de facto mais não fazem do que gerir a urgência contínua.

 
O problema não reside no facto de a política não ser suficientemente «democrática». A própria democracia é a outra face do capital, e não o seu contrário. O conceito de democracia, em sentido forte, pressupõe que a sociedade seja composta por sujeitos dotados de livre arbítrio. Para terem uma tal liberdade de decisão, os sujeitos teriam que estar situados fora da forma mercadoria e em condições de dispor do valor como objecto seu. Numa sociedade fetichista, porém, não pode existir esse sujeito autónomo e consciente. Podem existir somente fragmentos desse sujeito, em vias de formação. O valor não se limita a ser uma forma de produção; é também uma forma de consciência. E não apenas no sentido em que cada modo de produção produz ao mesmo tempo formas de consciência correspondentes. O valor, à semelhança de outras formas históricas de fetichismo, é algo mais: é uma forma a priori, no sentido de Kant (32). O valor é um esquema de que os sujeitos não têm consciência porque se apresenta como sendo «natural», e não como algo de historicamente determinado. Dito de outra maneira, tudo o que os sujeitos do valor possam pensar, imaginar, querer ou fazer, oferece-se já sob forma de mercadoria, de dinheiro, de poder do Estado, de direito (33). O livre arbítrio não é livre em face da sua própria forma, ou seja, em face da forma dinheiro e das respectivas leis. Numa constituição fetichista, não existe uma vontade do sujeito que possa ser colocada em oposição com a realidade «objectiva». Tal como as leis do valor se encontram fora do alcance do livre arbitrio dos individuos, essas mesmas leis são também inacessíveis à vontade política. Nesta situa­ ção, «a democracia mais não é do que a submissão completa à lógica sem sujeito do dinheiro»34. Na democracia, nunca são as próprias formas fetichistas de base que constituem o objecto da «discussão democrática». Elas estão já pressupostas antes de todas as decisões, as quais, portanto, só podem dizer respeito à melhor maneira de servir o fetiche. Na sociedade mercantil, a democracia não é «manipulada», «formal», «falsa», «burguesa». A democracia é a forma mais adequada à sociedade capitalista, na qual os indivíduos interiorizaram completamente a necessidade de trabalhar e ganhar dinheiro. Nos sítios em que é preciso inculcar à força nos indivíduos a submissão ao capital, o capitalismo encontra-se ainda numa forma bastante imperfeita. Passa-se ao lado do essencial se nos limitamos, como faz constantemente a esquerda, a pôr em relevo o facto de os grupos económicos, os media, as Igrejas, etc., manipularem os eleitores e transformarem a democracia em algo de fundamentalmente diferente do que está escrito nas Constituições - embora, como é evidente, tais manipulações existam. A democracia encontra-se completa no momento em que tudo está submetido a negociações - excepto os constrangimentos que derivam do trabalho e do dinheiro. Os sujeitos para quem a transformação do trabalho em dinheiro é o fundamento indiscutível da sua existência decidir-se-ão sempre, mesmo sendo «completamente livres» de escolher, por aquilo que as leis da mercadoria impõem sob a forma de «imperativos tecnológicos» ou de «imperativos do mercado». «Desmascarar» os «verdadeiros interesses» escondidos por trás destes «imperativos» é um dos desportos preferidos da esquerda. O que é necessário, contudo, é algo de diferente: pôr em discussão o sistema fetichista que produz estes imperativos, bem reais no seio desse mesmo sistema (35).

 As ilusões «de esquerda» sobre a democracia pareceram particularmente audaciosas no momento em que se apresentaram como exigência de «autogestão operária» das empresas, ou seja, como extensão da «democracia» ao processo produtivo. Porém, se o que se trata de autogerir é urna empresa que tem que realizar lucros monetários, os operários em autogestão mais não podem fazer, colectivamente, do que o que fazem todos os outros sujeitos do mercado: têm que fazer sobreviver a sua unidade de produção no seio da concorrência. A falência de todas as tentativas de autogestão, mesmo daquelas que foram organizadas em larga escala, como sucedeu na Jugoslávia, não é imputável apenas à sabotagem levada a cabo pelos burocratas (mesmo se é verdade que tal se verificou efectivamente). Na ausência de um modo de produção directamente socializado, as unidades de produção separadas estão condenadas, quer queiram quer não, a seguir as leis fetichistas da rentabilidade. Na sociedade mercantil plenamente desenvolvida, os indivíduos, não podendo já imaginar uma vida situada fora do trabalho e da mercadoria, executam por sua própria iniciativa tudo o que é necessário para fazer avançar este sistema, sem que haja necessidade de serem manipulados. Nota-se, com efeito, que existem cada vez mais sujeitos de mercado que reú­ nem em si mesmos as categorias lógicas do proprietário de meios de produção e do assalariado: no quadro do enorme crescimento do número de trabalhadores «autónomos», os quais em alguns países são já mais numerosos do que os assalariados, esta figura do auto- -explorado conheceu uma grande difusão. Entre os assalariados que permaneceram no seu lugar de origem, muitos há que defendem efectivamente os seus «interesses» matando-se a trabalhar para manter a «competitividade» da empresa onde têm o seu «lugar». Por último, a «autogestão operária» encontrou uma paródia cruel na ideia de uma «democracia dos accionistas», «ou seja, de um universo de assalariados que, remunerados em acções, tornar-se-iam colectivamente “proprietários das suas empresas”, realizando a associação perfeitamente bem sucedida entre o capital e o trabalho»36. Pode, com efeito, imaginar-se, pelo menos no plano lógico, uma sociedade capitalista na qual a propriedade dos meios de produção se encontra distribuída entre todos os sujeitos, em vez de estar concentrada num número restrito de mãos. O fundamento desta sociedade é a relação de apropriação privada, e não o número de proprietários. A «democracia dos accionistas» nunca existirá, mas a sua simples possibilidade demonstra que o conflito entre o trabalho e o capital não constitui o cerne da sociedade capitalista. 


 Todas estas considerações levam a concluir que não existe sujeito ontologicamente oposto «em si» ao capitalismo, ao qual esse sujeito se encontrasse simplesmente submetido de um modo exterior. Se assim fosse, bastaria que este sujeito tomasse consciência da sua situação para passar a ser também «para si mesmo» um sujeito anticapitalista, de tal forma que o seu desabrochar coincidiria com a ruína do capitalismo. Porém, no capitalismo, só pode existir um sujeito: o «sujeito autómato» que é necessário abolir, em vez de desenvolver. Apesar disto, para o marxismo tradicional, como já vimos, o sujeito autómato, ou seja, o valor, é um derivado das classes, as quais seriam o verdadeiro sujeito. O capitalismo surge assim como resultado da vontade dos capitalistas, e a abolição do capitalismo seria a consequência da vontade do proletariado. Em História e consciência de classe, Lukács combinou a glorificação marxista do proletariado com a concepção hegeliana do sujeito. Lukács escreve que «o proletariado surge como o sujeito-objecto idêntico da história»37 e como «o verdadeiro sujeito deste processo - ainda que seja um sujeito agrilhoado e a princípio inconsciente»38. Quando os proletários, segundo Lukács nessa mesma obra, se reconhecem a si mesmos como mercadorias, podem reconhecer o carácter fetichista de toda a mercadoria e compreender as «verdadeiras» relações escondidas por trás da forma mercadoria.


 
Hoje em dia, para a maioria dos marxistas, já não é aceitável indicar o proletariado, no sentido do conjunto dos trabalhadores fabris, como sendo o sujeito capaz de levar a cabo a saída do capitalismo. Mas muitas vezes, logo a partir dos anos sessenta, o que se fez foi simplesmente colocar um outro pretendente qualquer no trono, entretanto vago, do sujeito revolucionário, sem modificar em nada a estrutura do discurso. Continuou-se a pressupor que no capitalismo existe um sujeito que só superficialmente faz parte das relações capitalistas e que, na sua forma actual, se encontra já, «em si mesmo», para lá da lógica capitalista. Seria antes necessário reconhecer que os interesses dos assalariados não são essencialmente diferentes dos outros interesses que concorrem no interior da sociedade mercantil. A defesa dos interesses dos assalariados pode ser mais justificada do que a de outros interesses, porque os operários, ou as outras categorias sociais em causa, são mais numerosos, ou mais explorados, ou mais pobres que outros sujeitos do mercado, ou porque são vítimas de uma injustiça maior. Mas na defesa destes interesses não existe nada que seja necessariamente «emancipador». Trata-se somente de fazer valer direitos de uma certa categoria de vendedores de bens (neste caso, vendedores da sua força de trabalho) em face de outras categorias de vendedores. Na sociedade fetichista não pode haver uma «classe da consciência» constituída por uma das categorias funcionais da mercadoria, a qual tivesse ao mesmo tempo a missão histórica de pôr termo à sociedade de classes.

 
A dinâmica da sociedade mercantil não é o efeito da subjectividade dos exploradores, à qual se oporia a subjectividade dos explorados. De facto, na sociedade mercantil não é possível o nascimento de uma verdadeira subjectividade social. Em última análise, trata-se também do limite contra o qual a sociedade mercantil se desagregará. O sujeito autónomo não pode ser bem sucedido na tarefa de governar as dinâmicas que ele próprio pôs em marcha. Pode somente pôr à disposição os elementos de uma nova subjectividade; mas mesmo isto, só o pode fazer destruindo simultaneamente as formas de subjectividade que existiam antes.

 Notas

1 «Dir-se-ia que Hegel, a partir de 1803, se apercebe deste movimento da produ­ção pela produção, de que falará Ricardo, e que em K. Marx se exprimirá pela ideia da colocação em valor do valor que anima todo o processo de produção capitalista» (Hyppolite, Études, pág. 93). 
2 MEW 42/196; Grund. I, pág. 211.3 «O incremento do capital tem que ser desenvolvido como um elemento essencial do conceito de capital; não deve surgir como um elemento contingente» ou ser introduzido sub-repticiamente (Reichelt, Zur logischen Struktur, pág. 213). 4 Urtext, pág. 25; Fragment, pág. 187; Fragmento, pág. 253. 5 Reichelt afirma que nos Grundrisse Marx só conhece duas estruturas, ou seja, «as relações em que a riqueza assume uma forma distinta de si própria, e aquelas em que tal não acontece. Por muito diversas que possam ser entre si as diferentes sociedades, se elas se baseiam na apropriação da riqueza na sua forma particular, não têm história. A história só existe no mundo invertido em que o metabolismo com a natureza se encontra ele mesmo reduzido a ser o meio para se perseguir permanentemente a riqueza abstracta, em que a lógica imanente deste processo toma conta do metabolismo estruturando-o.» É assim que a história invade as estruturas não históricas e as dissolve. Para Marx, a cultura indiana, por exemplo, não tem história (Reichelt, Zur logischen Struktur, pág. 263).
6 Krahl cita a seguinte afirmação de Hegel, extraída da Flistóna da Filosofia: «Pôr em curso abstracções no plano da realidade significa destruir a realidade» (Krahl, Konstitution, pág. 31).
7 MEW 42/252-253; Grund. I, pág. 273.
8 Por exemplo: «A universalidade a que ele [o capital] aspira ininterruptamente defronta-se com obstáculos que encontra na sua própria natureza e que o obrigam a reconhecer-se a si mesmo, numa certa fase do seu desenvolvimento, como obstáculo maior a essa mesma tendência para a universalidade, conduzindo-o, pois, à sua própria abolição. [...] Mas, do seu lado, Ricardo e toda a sua escola nunca compreenderam as crises modernas reais no decurso das quais essa contradição do capital se descarrega em tempestades que o ameaçam progressivamente mais enquanto fundamento da sociedade de produção» (MEW 42/323-324; Grund. I, págs. 349-350). 
9 Por exemplo, MEW 26.2/499-506; Théories II, págs. 595-602.
10 Vejam-se os planos de Marx relativos à Contribuição contidos em MEGA 11.2, pág. 14; Grund. II, pág. 386.
11 Por exemplo, no rascunho da carta a V. Zassulitch (M EW 19/392: Lettre à Zassoulitch, pág. 1564: Primeiro projecto de resposta à carta de Vera Zassúlitch, pág. 175).
12 A mercadoria separa o consumo da produção. A unidade entre consumo e produção não significa que cada indivíduo, ou cada célula de produção (uma grande quinta polivalente tradicional, por exemplo), consuma aquilo que produz, num regime de auto-suficiência total. Essa unidade significa antes que a produção está orientada para necessidades antecipadamente conhecidas, como era o caso, por exemplo, das corporações medievais que estabeleciam a quantidade e a qualidade da produção. A unidade deixa de existir a partir do momento em que a produção se encontra dirigida para mercados anónimos nos quais somente a «mão invisível» decide se o produtor encontrará o respectivo consumidor. Como é evidente, a sociedade que vier a substituir a sociedade mercantil restabelecerá essa unidade sob a forma de decisões preliminares sobre o uso dos recursos. 
13 MEW 26.2/510; Théories II, pág. 608. Já no Short outline, Marx escrevia a Engels: «Nota apenas que a não-coincidênda entre M-D e D-M é a forma mais abstracta e a mais superficial em que se exprime a possibilidade das crises» (MEW 29/316; Corr. V. pág. 173). Nos Grundrisse, Marx explica-se melhor: «O simples facto de a mercadoria ter uma dupla existência, existindo uma vez enquanto produto determinado contendo idealmente (de maneira latente) o seu valor de troca na sua forma de existência natural, e existindo depois enquanto valor de troca manifesto (dinheiro), que por sua vez se desfez de toda e qualquer conexão com a forma de existência natural do produto, essa dupla existência distinta tem necessariamente de progredir até à diferença, e a diferença até à oposição e à contradição. Esta mesma contradição entre a natureza particular da mercadoria enquanto produto e a sua natureza universal enquanto valor de troca, a qual fez nascer a necessidade de a colocar duplamente, uma vez como mercadoria determinada e depois enquanto dinheiro, esta contradição entre as suas propriedades naturais particulares e as suas propriedades sociais universais inclui desde o princípio a possibilidade de estas duas formas de existência das mercadorias não serem convertíveis uma na outra» (M EW 42/81-82; Grund. I, pág. 82).
14 M EW 26.2/510; Théories II, pág. 608.
15 MEW 42/601; Grund. II, pág. 193. Como é evidente, entendemos serem incorrectas as opiniões de autores como Karl Korsch, que (tanto em Marxismo e 
Filosofia, de 1923, como no seu Karl Marx, de 1938) pretende distinguir em Marx o «revolucionário» subjectivo do «investigador» objectivo, e que trata de opor os escritos de juventude, que seriam imediatamente revolucionários, sobretudo o Manifesto, à pretensa resignação das obras da maturidade, que conduziriam ao reformismo. Em boa verdade, pelo menos do ponto de vista da época presente, é precisamente a critica da economia política das obras da maturidade que acaba por ser mais «revolucionária», uma vez que não fundamenta a esperança de transformação no mal-estar subjectivo de uma classe excluída, definida em termos sociológicos, e que já não existe na forma em que Marx a descreveu. A crítica da economia política aposta sobretudo nas contradições internas da sociedade capitalista e na sua incapacidade de as ultrapassar. Resignados, hoje em dia, estão precisamente os discípulos de teorias do tipo da de Korsch.16 Cf. Luxemburg. Rosa, Die Akkumulation des Kapitals, 1913 (trad. port., A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do imperialismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1970); Grossmann, Henryk, Marx. die klassische Nationalökonomie und das Problem der Dynamik [Marx, a economia política clássica e o problema da dinâmica] (1940), Frankfurt a.M., Europäische Verlagsanstalt, 1969; Mattick, Paul, Krisen und Krisentheorien [Crises e teorias da crise], Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1974.17 Postone sublinha que este facto está na origem do carácter «dinâmico» que distingue o capitalismo de todas as outras sociedades precedentes: «Este efeito de “ bola de neve" implica, mesmo ao nível lógico abstracto do problema da dimensão do valor - dito de outra maneira, antes que hajam sido introduzidas a categoria da mais-valia e a relação entre trabalho assalariado e capital -. uma sociedade que é unidireccionalmente dinâmica» (Postone, Time, pág. 290).
18 Marx deu a mais aguda descrição deste aspecto nos seus Resultados do processo de produção imediato: «Produção por oposição aos produtores e independentemente deles. O produtor real enquanto mero meio de produção, a riqueza material enquanto fim em si. [...] A finalidade do modo de produção, a saber, que o produto singular, etc., contenha o máximo possível de trabalho não pago, e isto alcançado somente por intermédio da produção pela produ­ ção» (Resultate, pág. 63; Resultats, pág. 222; Resultados, pág. 92).
19 É importante ter em conta que Marx analisa a dialéctica do concreto e do abstracto, do valor de uso e do valor, e não apenas a abstracção e o valor. Marx sublinha que nos seus escritos «o valor de uso desempenha um papel muito mais importante do que na precedente economia política» (MEW 19/371; Notes sur Wagner, pág. 1545), sobretudo em Ricardo, onde «o valor 
de uso permanece morto, como simples pressuposto» (MEW 42/240; Grund. I, pág. 259); Ricardo «abstrai pura e simplesmente» do valor de uso (MEW 42/193; Grund. i, pág. 208) e com ele «estabelece uma relação em termos meramente exotéricos» (M EW 42/546; Qrund. II, pág. 138). Aos economistas burgueses Marx critica precisamente o facto de se ocuparem de relações puramente quantitativas (MEW 25/270; Le Capital III, pág. 275; O Capital III-1, pág. 195). Vejamos apenas um exemplo da importância do valor de uso em Marx; na sua forma de capacidade social de consumo, o valor de uso constitui um limite à expansão do valor; «a indiferença do valor enquanto tal face ao valor de uso encontra-se assim numa posição tão falsa como a da substância e da medida do valor enquanto trabalho objectivado» (MEW 42/320; Grund. I, pág. 346). Contudo, apesar de tais clarificações, muitas vezes se atribuiu a Marx a mesma negligência relativamente ao valor de uso. Um bom resumo da posição marxiana sobre esta matéria pode ler-se em Rosdolsky, Genèse, págs. 112-140.20 O que se segue, até ao final do capítulo, é particularmente devedor dos escritos publicados em Krisis e aos trabalhos de Robert Kurz; é de esperar que dentro em breve haja traduções desses textos que permitam conhecer com maior pormenor estas argumentações.
21 MEW 19/19; Critique du programme de Gotha. pág. 1418; Crítica do programa de Qotha, pág. 15.
22 Objectar-se-á que no terceiro mundo, sobretudo na Ásia, tem lugar uma exploração colossal de uma força de trabalho de baixo preço que constitui a base dos «milagres de exportação» desses países. Trata-se contudo de fenó­menos de curta duração, circunscritos a sectores como o dos têxteis, e que atingiram já os seus limites nos últimos anos. É certo que nesses países os capitalistas são perfeitamente capazes de repetir todos os horrores da primeira industrialização europeia, mas não estão em condições de criar indústrias em larga escala susceptíveis de concorrer nos mercados mundiais, quanto mais não seja porque nunca poderão permitir-se construir as infra-estruturas necessárias.
23 Adam Smith afirmou que «o soberano, com todos os seus funcionários de justiça e outros detentores de cargos públicos que se encontram ao seu serviço, a totalidade do exército e da marinha, são trabalhadores improdutivos»; «da mesma classe fazem parte os clérigos, os juristas, os médicos, os literatos e os eruditos de toda a espécie; actores, palhaços, músicos, cantores de ópera, bailarinos, etc.» (cit. em MEW 26.1/130; Théories I, pág. 170). A polémica contra os estratos sociais «não produtivos» fazia parte do ataque da burguesia industrial contra as antigas classes dominantes na época das Luzes, embora fosse frequente a confusão entre «produtivo», no sentido do valor de uso, e «produtivo», no sentido do valor capitalista.24 O leitor que tenha gosto pelos jogos de palavras notará que o trabalho é efectivamente a «essência» do capitalismo, não apenas no sentido filosófico, mas também enquanto carburante da máquina da valorização [em fr. «essence» significa «essência» e «gasolina» - N.T.}.
25 M EW 25/532; Le Capital I, pág. 570; O Capital 1-2, pág. 578.
26 Cf. Kurz, Himmelfahrt, págs. 29-37.
27 Trata-se de um dos pontos em que é mais forte a oposição entre a crítica do valor e os restos do marxismo tradicional. Falar de uma criação gigantesca de mais-valia nos bairros de lata dos países do hemisfério sul ou nas fábricas de calçado da Roménia é apenas a prova de uma total ignorância da crítica da economia política. Paradoxalmente, muitos dos marxistas ainda activos aplicam um zelo particular em negar a diminuição global do valor (ao passo que os economistas burgueses há muito perderam qualquer interesse por esta temática, o que equivale a dar total razão a Marx no plano teórico). Segundo a crítica do valor, na sociedade capitalista, o simples produto já é, desde o início, uma mercadoria, em vez de passar a sê-lo somente a partir do momento em que entra na troca, na circulação. Contudo, esta afirmação é contestada por muitos autores que de facto podem apoiar-se na incerteza em que o próprio Marx se encontrava nesta matéria e de que são testemunho as hesitações dos seus escritos, por vezes evidentes em passagens muito próximas umas das outras. Na verdade, não é possível resolver este problema sem levar em conta a diferença fundamental entre as sociedades pré-capitalistas e sociedade capitalista: nas primeiras, o produto adquire - ou pode adquirir - a forma valor na circulação. No modo de produção capitalista, pelo contrário, o produto já é fabricado enquanto mercadoria, com uma determinada dimensão de valor. Esta dimensão, contudo, tem necessidade da troca para se manifestar. Se o valor nasce na produção, ele é resultado do trabalho abstracto que, pela sua natureza, é quantitativamente limitado e que diminui efectivamente em razão do aumento do capital fixo. Se, inversamente, o valor nascesse na circulação, seria resultado de transacções comerciais e a sua quantidade não dependeria do sucesso dessas operações. O valor não teria, portanto, tendência imanente para se esgotar. É esta a razão em virtude da qual os marxistas tradicionais que negam a crise do sistema capitalista aplicam todos os seus esforços em situar na troca a origem do valor.
28 Esta fase «fictícia» do capitalismo constitui a base real do sucesso que nos anos oitenta e noventa tiveram noções como «simulação», «virtual», «hiper-real», etc. 
29 Veja-se, da mesma autora, Das Geschlecht des Kapitalismus. Feministische Theorien und die postmoderne Metamorphose des Patriarchats [O sexo do capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado], Horlemann, Ed. Krisis, Bad Honnef 2000.
30 Uma coisa deveria ficar bem evidente: se convidamos aqueles que só falam da mais-valia e da exploração a começar por considerar o valor e o trabalho abstracto, tal não significa que se trate de maneira nenhuma de um exercício de estilo intelectual para não sujar as mãos com a realidade banal do mundo do trabalho. Pelo contrário, trata-se de nos colocarmos face a face com realidades sem dúvida mais tristes ainda.
31 As infra-estruturas não podem depender completamente da oferta e da procura. Os cortes de electricidade de grandes dimensões ocorridos na Califórnia em 2001, mas também no Brasil, deram uma pequena imagem do que pode suceder quando se tenta organizar os serviços infra-estruturais sob forma privada.
32 Importa tentar resolver com o auxílio das categorias marxianas a questão posta por Kant: como se formam o objecto e o sujeito, como nascem as formas a priori nas quais subsequentemente se nos apresenta todo e qualquer conteúdo? Deste modo, as reflexões de Kant podem ser utilizadas para a renovação das ideias de Marx, mas de uma maneira que nada tem a ver com o marxismo «ético» kantiano do início do século XX, nem com o recurso à teoria política de Kant actualmente em voga em alguns (ex-)marxistas desnorteados (como num livro de André Tosei, de título bastante improvável: Kant réuolutionnaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1988). O tema do fetichismo existe de uma forma latente no pensamento de Kant, quando este analisa a hipostasia dos conceitos - mesmo se Kant não via nisso mais do que um erro do pensamento. O valor é uma forma a priori, em sentido kantiano, porque toda a objectividade se manifesta através dele: é uma retí­cula de que o indivíduo não tem consciência, mas que é preliminar a toda a percepção e lhe constitui os objectos. O apriori kantiano é uma ontologização e individualização não histórica do valor que, na sociedade moderna, é o verdadeiro apriori, mas um apriori social, não natural. Chegamos assim à colocação da seguinte questão: qual é a estrutura de consciência comum a todas as classes no capitalismo, a estrutura cujas formas de consciência por parte das classes particulares são simples variações? Com efeito, uma tal análise não deveria somente conduzir a uma interpretação materialista dos conteúdos da consciência social - coisa que se fez até à exaustão, designadamente com a famosa explicação de K. Kautsky, segundo a qual a filosofia de Espinosa ficava a dever-se aos interesses do comércio holandês de lã -, 
mas também das respectivas formas. Adorno foi um dos primeiros a encetar o debate sobre a «constituição das categorias», embora apenas de um modo indicativo. Em geral, as últimas obras de Adorno caracterizam-se por retomarem a problemática kantiana. Nessa via foi precedido por A. Sohn-Rethel (cf. mais abaixo), que o influenciou, e foi depois seguido pelo seu aluno H.-J. Krahl. Este último concebe nos seguintes termos a relação existente entre Kant, Hegel e Marx: a identidade do eu, que Kant localiza nas profundezas da alma humana, enquanto relação formal a priori com um mundo possível de objectos, é dissolvida por Hegel na relação concreta e social entre sujeito e objecto, e por Marx nas relações de produção (Krahl, Konstitution. pág. 400). O trabalho concreto fornece o material da percepção, enquanto que «a actividade que instaura o valor fornece o quadro não transcendental de apercepção de um mundo de categorias ideologizado», constituindo a ciência e os conceitos (Krahl, Konstitution. pág. 404). A análise das categorias da socialização enquanto formas preliminares a todas as outras questões conduz a uma teoria da mediação social que poderia contribuir para ultrapassar as teorias objectivistas e subjectivistas tradicionais, em vez de se tentar, como frequentemente sucede, uma síntese superficial dessas duas vertentes. Hans-Jürgen Krahl era um dos mais brilhantes alunos de Adorno e ao mesmo tempo foi um dos promotores da revolta estudantil na Alemanha em 1968. No decurso da sua breve existência (morreu no início de 1970, aos trinta anos, num acidente de viação) produziu um grande número de escritos que constituem uma radicalização da teoria crítica. Esses textos foram publicados depois da sua morte numa colectânea com o título de Konstitution und Klassenkampf [Constituição e luta de classes], Este livro teve uma certa influência sobre a nova esquerda na Alemanha, mas também em Itália. E sobretudo notá­ vel o facto de já em 1967, quando quase ninguém discutia ainda este problema, Krahl ter feito no seminário de Adorno uma exposição sobre «A lógica da essência na análise marxiana da mercadoria» (Krahl, Konstitution. pág. 31-81).33 Contudo, haverá que reter que a lógica do valor - como dissemos já - não ocupa, nem poderá alguma vez ocupar, todo o espaço da vida. Também nos indivíduos mais socializados pela mercadoria resta sempre uma parte não configurada pela mercadoria, mesmo se a mercadoria tende a penetrar nesses espaços com a «colonização» da vida quotidiana e das estruturas psíquicas. Apesar disso, os pensamentos e desejos não configurados pela mercadoria não constituem um sector não alienado que possa simplesmente ser mobilizado contra a lógica da mercadoria; com efeito, uns e outros encontram-se frequentemente num papel subordinado e dependente relativamente à lógica dominante.

34 Kurz, Ende der Politik, pág. 86. 35 A esquerda radical exagerou igualmente a importância da «traição dos dirigentes» que se verificou na revolução russa, nas outras revoluções que conduziram à formação de Estados particularmente autoritários e no interior de quase todos os movimentos de contestação. Sem querer retirar nada à justeza do julgamento moral contra os coveiros das revoluções, é contudo necessário notar que estes mais não faziam do que seguir o sujeito autómato que as próprias «vítimas da traição» não tinham ultrapassado. A tónica, por vezes obsessiva, que a esquerda radical colocou nas questões da organização, na crítica dos partidos e dos sindicatos, na definição da burocracia como nova classe parasitária e exploradora, tudo isso, se bem que exacto no plano descritivo, teria podido, no plano explicativo, reclamar-se mais justificadamente de Robert Michels, Vilfredo Pareto ou Max Weber, senão directamente de Nietzsche, em vez de recorrer a Marx. A evolução da sociedade é nestes autores explicada pela vontade dos actores e pela sua «vontade de poder». Percebe-se assim que o «sociologismo» que considera que os sujeitos colectivos são demiurgos da vida social desemboca necessariamente numa antropologia pessimista incapaz de ver outra coisa que não seja o triunfo do mal. 

36 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 98.
37 Lukács, Histoire, pág. 243.
38 Lukács, Histoire, pág. 224.