A sufocação progressiva da produção de valor em virtude do aumento
dos falsos encargos e do trabalho improdutivo, bem como a diminuição
da massa de lucro que daí resulta, são, no plano lógico, uma
consequência inelutável das contradições de base da mercadoria.
A realidade histórica confirmou esta dedução lógica. Primeiro porque
o capitalismo clássico, caracterizado pelo padrão-ouro - a convertibilidade
ilimitada das moedas em ouro -, pelos orçamentos públicos
em equilíbrio e pela livre concorrência sem intervenção do Estado,
tinha chegado ao fim com a Primeira Guerra Mundial. Depois porque
o capitalismo se encontra numa perpétua fuga para a frente; só
continua a funcionar porque vai suspendendo as suas próprias leis.
O período que vai de 1920 - e a fortiori de 1945 - até 1975 aproximadamente
merece hoje, com boas razões, o nome de «fordismo».
A partir da indústria automóvel americana e das inovações introduzidas
por Henry Ford e Frederick Taylor (linha de montagem, «gestão
científica» da força de trabalho, etc.), difundiu-se um novo sistema económico-social, primeiro nos Estados Unidos e depois, a seguir
à Segunda Guerra Mundial, também nos outros países ocidentais.
O fordismo andou a par dos métodos keynesianos em matéria de
política económica; os resultados foram a produção em massa de
bens semiduradouros a baixo preço, os salários elevados, o pleno
emprego, a democracia política, os investimentos maciços do Estado
nas infra-estruturas e nos serviços sociais, a estabilidade monetária e
a penetração dos bens de consumo em todos os dominios da vida.
Contudo, o «ciclo virtuoso» fordista não estava fundado sobre bases
que lhe fossem próprias. Era o Estado, com os seus investimentos,
geralmente pagos a crédito, que permitia o rápido crescimento dos
sectores não produtivos - por exemplo, com a construção de auto-
-estradas, sem as quais não teria sido possível a automobilização do
mundo. Este crescimento tornou possível um aumento dos sectores
produtivos, suficiente em termos absolutos para compensar a diminuição
relativa do lucro em cada produto particular. Enchendo completamente
o mundo de mercadorias, o fordismo conseguiu adiar por
várias décadas a crise estrutural do capitalismo que se manifestara
já nos anos vinte, explodindo designadamente com a grande crise
de 1929.
Pelos anos de 1970-1975, o ciclo fordista-keynesiano esgotou-
-se porque se tornara impossível continuar a financiar os «encargos
secundários». O abandono do padrão-ouro em benefício do dólar, em
1971, e o regresso da inflação nos países ocidentais eram os sinais do
esgotamento do ciclo. Essa crise agravou-se infinitamente por via da
revolução informática. Esta revolução já não instaura um novo modelo
de acumulação: desde o início, a informática torna inúteis - «não rentáveis»
- enormes quantidades de trabalho. Diferentemente do que
se passou com o fordismo, a informática provoca essa inutilidade a
um ritmo tal que já não há extensão do mercado que seja capaz de
compensar a redução da parte de trabalho contida em cada mercadoria.
A informática corta definitivamente o laço entre a produtividade e
o dispêndio de trabalho abstracto incarnado no valor. Ela põe a girar
o «círculo vicioso» a que temos vindo a assistir de há vinte anos a esta parte. O sistema capitalista, para sobreviver numa situação em
que ele mesmo serra o ramo de árvore sobre o qual está sentado - o
trabalho -, é obrigado, mais ainda do que antes, a procurar subterfú
gios para fazer coincidir momentaneamente a circulação e a produção
suspendendo praticamente a lei do valor. É importante que nos recordemos
de que a produção de bens de uso não está em crise. Mas se
fosse seguida à letra a lógica do valor, dever-se-ia abandonar quase
toda a produção actual por «falta de rentabilidade». Para evitar chegar
a essa conclusão, o «sujeito autómato» lança-se numa fuga para a
frente cada vez mais desesperada.
O capital fictício
Essa fuga faz-se indirectamente por intermédio do capital fictício,
ou seja, pela autonomização dos mercados bolsistas e da especula
ção. Assim, o capital prolonga a sua vida para lá dos seus limites reais
consumindo antecipadamente o seu futuro, isto é, vivendo a crédito.
Também o crédito está embrionariamente «contido» na estrutura
elementar da mercadoria: a mediação monetária separa a venda da
compra porque permite adiar o pagamento. O trabalho e o dinheiro
são estádios diferentes do mesmo processo de valorização, mas
podem igualmente não coincidir: o dinheiro pode multiplicar-se mais
rapidamente que o trabalho morto. Este factor cria a ilusão de que
o dinheiro tem o poder místico de crescer por si só, sem a mediação de um processo produtivo no qual fosse consumido trabalho.
O juro monetário, em que na aparência se passa directamente do
dinheiro a uma quantidade superior de dinheiro (D-D’, na linguagem
utilizada no início do terceiro capítulo deste livro), torna-se na
consciência comum a verdadeira forma de lucro - apesar de se tratar
somente de uma dedução operada sobre o lucro obtido na produção. Na verdade, só é dinheiro «bom» aquele que resulta de um processo
bem sucedido de valorização do valor operada pelo trabalho.
O dinheiro que representa trabalho não produtivo e o dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança - cuja forma principal é o crédito
- acabam por se desvalorizar.
A necessidade do crédito deriva do aumento contínuo do capital
fixo que ultrapassa as capacidades das empresas. É pois uma consequência
da produtividade aumentada do trabalho. Torna-se então
indispensável investir no presente os ganhos esperados para o futuro.
Enquanto esses ganhos vierem efectivamente no seguimento para
pagar juros e para se poder ampliar a dívida, o endividamento não
é grande problema. Mas, diferentemente do que se passava com os
capitalistas do século XIX, já as empresas da expansão fordista só
podiam financiar-se recorrendo ao crédito. Por outro lado, por causa
da explosão dos encargos «não produtivos», os «falsos encargos»,
uma parte crescente dos créditos servia apenas para alimentar o consumo
não produtivo. Por outro lado ainda, os Estados - que até à
Primeira Guerra Mundial apresentavam orçamentos mais ou menos
equilibrados - tinham começado a endividar-se para poderem assegurar
as condições infra-estruturais necessárias às economias nacionais.
Sendo certo que Keynes pensava que a intervenção do Estado não
devia servir senão para «empurrar» a acumulação de modo a que ela
pudesse depois voltar a arrancar sobre as suas próprias bases, a verdade
é que essas intervenções rapidamente se revelaram uma conditio
sine qua non para o funcionamento da economia, e ao mesmo tempo
um peso em crescimento permanente para as finanças públicas.
Quando se esgotou o mecanismo que compensava a diminui
ção da produtividade de valor através da ampliação da produção, o
financiamento por via do crédito mudou de natureza. Depois de as
quantidades de créditos em circulação terem ultrapassado largamente
a quantidade de ouro existente, a abolição da convertibilidade do
dólar em ouro (1971) desarticulou o último dispositivo de segurança.
A partir de então, o dinheiro baseia-se exclusivamente na confiança,
e não há limite algum para a sua multiplicação. Mas, em boa verdade,
o dinheiro mais não é do que a incarnação do trabalho abstracto
despendido no interior de processos de valorização suficientemente
rentáveis. Como é natural, o Estado pode imprimir papel-moeda sem levar em conta a quantidade de trabalho produtivo, tanto mais que
tal quantidade não pode ser medida directamente. Os actores económicos
podem criar dinheiro sob a forma de acções, obrigações,
empréstimos, etc. Mas a quantidade de dinheiro excedente perde
fatalmente o seu valor na inflação ou na deflação. A redução drástica
do trabalho produtivo à escala global faz igualmente com que
o dinheiro perca a sua substância: o dinheiro torna-se «não válido».
Se se calculasse todo o dinheiro que circula no mundo sob todas as
sua formas (acções, obrigações, títulos de dívida, etc.), dividindo-o
de seguida pelo número de habitantes do planeta, chegar-se-ia provavelmente
a uma inflação global de várias centenas porcento. Se
essa hiperinflação não se manifesta ainda, é porque em grande parte
o dinheiro permanece «resguardado» nas estruturas financeiras sob
a forma de acções, de dinheiro «virtual», de «direitos especiais de
levantamento antecipado», etc.
A multiplicação milagrosa do dinheiro suscitou fortes receios no
início dos anos setenta - mas as somas em causa nessa altura não
eram mais do que uma pequena fracção do «capital fictício» que viria
a estar em circulação trinta anos mais tarde. O conceito de «capital
fictício» foi desenvolvido por Marx no terceiro volume do Capital
para designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação
e na expectativa de ganhos futuros; logo que alguém exija o pagamento
real das dívidas, a «bolha» não poderá deixar de rebentar com
falências em cadeia. Porém, na época de Marx, tratava-se de um epifenómeno
de que vinham acompanhadas as crises económicas reais.
Os crashes financeiros tinham nesse tempo uma função de purga e
não 'afectavam os processos produtivos reais. Até ao final do ciclo
fordista, a especulação financeira seguia mais ou menos o ritmo e as
dimensões da acumulação real.
Tudo isso mudou enormemente a partir do momento em que a
acumulação real, apesar de todos os créditos, estagnou. A partir de
então, o recurso ao crédito serve para estimular uma acumulação inexistente
e para prolongar artificialmente a vida de um modo de produção
que já está morto28. Somente uma quantidade muito pequena dessa liquidez circulante foi emitida directamente pelos Estados; a
maior parte são acções, obrigações, créditos, valores imobiliários,
«dinheiro electrónico», etc. - o que contribui para tornar este processo
completamente incontrolável. Mediante uma reviravolta grotesca,
que nem mesmo Marx foi capaz de prever, a produção real passou
a ser um apêndice do capital fictício. Os movimentos vertiginosos
registados a partir de 1987 nos mercados bolsistas já nada têm a ver
com as oscilações conjunturais daquilo que resta da economia real.
O capital fictício tornou-se inclusivamente o verdadeiro motor do crescimento.
Os ganhos realizados com operações financeiras puramente
especulativas tornaram-se um elemento indispensável nas finanças
das empresas, dos Estados e dos privados - quer se trate do «milagre
económico» americano, financiado com o maior endividamento
da história, ou das numerosas famílias americanas que obtêm créditos
bancários exclusivamente com base nas acções que detêm e na
expectativa de que o respectivo preço venha a subir, ou das empresas,
mesmo empresas «sérias», que têm orçamentos equilibrados apenas
graças a receitas financeiras. Neste quadro, o famoso endividamento
do terceiro mundo não é senão uma pequena parte de todo o capital
fictício. Já não são apenas as receitas do Estado, mas também
as de toda a sociedade, que se encontram antecipadamente gastas.
Não é possível entrar aqui nos meandros das finanças internacionais
e descrever os circuitos internacionais do défice (em que o défice
entre os Estados Unidos e o Japão é o mais importante). A derrocada
da estrutura financeira efectivar-se-á apenas após um certo período de
incubação. Mas terá consequências catastróficas pois ver-se-á então
que a acumulação real já terminara há muito. A subida cada vez mais
fantástica dos mercados bolsistas segue a par da aparente tranquilidade
das instituições económicas internacionais, que sem pestanejar
fazem chegar aos países em falência (como a Indonésia, o Brasil
ou a Turquia) somas - da ordem das dezenas de milhar de milhões
de dólares - que poucos anos antes teriam feito estremecer até aos
seus fundamentos as finanças internacionais, como sucedeu no caso
da crise do México em 1995. Contudo, os movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a consequência das perturbações
na economia real. A economia real não progrediria melhor se fossem
abolidos os «excessos» especulativos, como tratam de pregar
certos observadores inquietos, por exemplo, George Soros ou Ignacio
Ramonet. Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar
logo que lhe tenham sido retiradas as muletas da especulação.
Com efeito, depois do rebentamento da bolha financeira, ver-se-á que
era precisamente ela que durante um certo período escondia o facto
de que a acumulação de valor tinha já atingido o seu limite histórico.
Naturalmente isso não significará necessariamente o fim da produção
de bens de uso - com a condição, contudo, de esta última ser desligada
da produção de valor.
A «desvalorização do valor» não é somente uma crise económica,
antes significa uma crise total: o colapso de toda uma «civilização».
A produção de mercadorias já não constitui um sector no quadro da
vida social, antes ocupa nela uma parte cada vez maior, tanto geograficamente
como no interior da sociedade, tanto em extensão como
em intensidade. O final desta produção de mercadorias será portanto
catastrófico para todo o planeta. Uma derrocada do capitalismo em
1900 teria sido muito mais limitada nas suas consequências. Hoje
em dia, a sociedade mercantil, depois de ter sequestrado todos os
recursos da humanidade, retira-os aos homens e renuncia quase completamente
à sua utilização. Os homens já não podem pôr em acção
os seus próprios meios, porque o fetiche da «rentabilidade» não o
permite. Ao mesmo tempo, o «sujeito autómato» já não pode incorporar
a força de trabalho que está disponível em grandes quantidades:
todas as forças produtivas têm que passar pelo buraco da agulha da
respectiva transformação em valor, e esse buraco torna-se cada vez
mais estreito.
O valor conduz à sua própria abolição precisamente por causa
dos seus sucessos. A vitória definitiva do capitalismo sobre os restos
pré-capitalistas representa também a sua derrota definitiva. Quando
o capitalismo, plenamente desenvolvido, coincide com o seu conceito, não se chega a uma situação que signifique o fim de toda e
qualquer possibilidade de crise, mas antes pelo contrário chega-se
àquilo que é o início da verdadeira crise. Com efeito, a transformação
do trabalho em valor não pode ter lugar se não estiver rodeada por um
grande número de outras actividades que, por seu turno, não podem
seguir os critérios da rentabilidade e da transformação em valor, ou
são actividades em que o dispêndio de trabalho não é sequer determinável.
Os «falsos encargos» da produção representam somente
uma parte de tais actividades, e uma parte que se encontra ainda
no interior do campo «económico». Muito mais espalhadas, ainda
que incalculáveis, encontram-se todas aquelas actividades que são
indispensáveis à reprodução social e que se desenrolam fora da esfera
«económica». Pode falar-se de um «reverso obscuro» da valorização,
ou seja, de uma enorme zona de sombra sem a qual não existiria a luz
daquilo que vale como «produção». A parte mais importante destas
actividades que não são consideradas «trabalho», e que portanto não
são pagas, é efectuada pelas mulheres. «O valor é o macho» diz o
título de um ensaio de Roswitha Scholz, publicado na revista Krisis,
n.° 12 (1992) (29). Apesar do seu carácter abstracto, o valor não é «neutro»
no plano do sexo, porque se baseia numa «cisão»: tudo o que é
susceptível de criar valor é «masculino». As actividades que em caso
algum podem tomar a forma do trabalho abstracto, e sobretudo a
criação de um espaço protegido onde o trabalhador possa repousar
das suas fadigas, são estruturalmente «femininas» e não são pagas.
É uma das razões pelas quais a sociedade capitalista negou durante
muito tempo à mulher o estatuto de «sujeito» (por exemplo, o direito
de voto). Na sociedade mercantil, só o indivíduo que despende trabalho
abstracto é considerado como sujeito de pleno direito. As outras
actividades, por mais fatigantes e necessárias que sejam, mas que
não alcançam a «dignidade» de se ser consumido directamente pela
máquina da valorização, permanecem marcadas com o sinal da inferioridade.
É, pois, uma consequência da lógica do valor o facto de se
considerar que a mulher que trata do sogro idoso não «trabalha», ao
passo que o marido, que produz bombas ou porta-chaves, esse sim, «trabalha». É certo que nas últimas décadas muitas mulheres passaram
a ser «sujeitos», no sentido da mercadoria, chegando mesmo por
vezes a ocupar lugares de direcção. Mas para tanto precisaram de se
tornar «machos»: com efeito, a «cisão» operada pelo valor implica
também que o sujeito capitalista desenvolva em si mesmo somente
as qualidades necessárias ao sucesso no mundo do trabalho, e essas
qualidades são estruturalmente consideradas como sendo «masculinas»:
autodisciplina, racionalidade, lógica, firmeza relativamente a
si próprio e aos outros. A própria parte «feminina» dos indivíduos é
inteiramente delegada nas mulheres que devem utilizá-la para «mobilar»
o repouso do guerreiro. O facto de hoje em dia essas qualidades,
que são evidentemente culturais, poderem estar dissociadas dos
seus portadores biológicos mais não faz do que reforçar o mecanismo
estrutural: aquele que, homem ou mulher, se comportasse no mundo
do trabalho segundo critérios tradicionalmente «femininos», como a
compaixão, não iria muito longe.
As propostas no sentido de alterar esta situação pelo pagamento
do «trabalho» doméstico ou dos cuidados com a educação das crian
ças não conduzem a nada. Já não falando no seu carácter ilusório
numa época em que o Estado se vê forçado - não por más escolhas
políticas - a diminuir as suas despesas sociais, estas propostas significariam
estender a lógica do valor e do trabalho abstracto a novos
sectores em vez de se reconhecer o respectivo fracasso. O valor entra
em colapso precisamente no momento em que procura transformar
toda a actividade humana, cada movimento de respiração e cada pensamento,
em trabalho abstracto para contrariar o esgotamento do
trabalho. Mas na sua maior parte estas actividades, entre as quais os
cuidados prestados às crianças, a afectividade nas relações humanas
(que também faz parte da «reprodução da força de trabalho»), as actividades
domésticas, não podem, pela sua própria natureza, entrar na
camisa-de-forças do valor. Pode imaginar-se que seria possível romper
a lógica que reconhece o estatuto de sujeito somente a quem exerce
«trabalho abstracto», mas não é possível transformar cada um dos
indivíduos à escala mundial num tal sujeito no próprio momento em que o estreitamento do valor expulsa cada vez mais gente desse estatuto
- um desempregado, por exemplo, ou o indivíduo que recebe
ajuda pública já perderam uma parte da sua «dignidade» em face do
valor.
No final da sua trajectória histórica, o pior mal que o capitalismo
faz aos homens já não é a exploração. É sobretudo a expulsão.
O estádio final do capitalismo não se caracteriza pela existência de
um proletariado cada vez maior e cada vez mais revolucionário - também
porque a diminuição do capital variável faz com que o trabalho
assalariado perca a sua importância e portanto faz com que o proletariado
clássico perca também a influência que teve. O estádio final do
capitalismo caracteriza-se, pelo contrário, pela ausência de pessoas
que valha a pena explorar. Poder-se-ia objectar à crítica do valor que,
se a mais-valia não é senão uma categoria derivada, daí deveria decorrer
a possibilidade de uma produção de valor sem mais-valia. Na verdade
tal coisa é impossível. Mesmo se a taxa e a massa do lucro
baixam continuamente, têm contudo que continuar a existir de um
modo qualquer, porque caso contrário a produção de valor enquanto
tal perderia a sua razão de ser e retrocederia para a produção de bens
de uso. Mas não decorrerá daí a existência necessária de uma classe
explorada de trabalhadores assalariados? Formalmente, sim, no sentido
de que efectivamente terá que haver alguém que produz mais
valor do que aquele que recebe. Contudo, tal facto não precisa de
corresponder necessariamente à ideia tradicional de massas operárias
exploradas (ao passo que o marxismo se fixou numa certa forma de
existência histórica e empírica da categoria lógica do «trabalhador»).
Nos nossos dias, a nível mundial, um pequeno estrato de trabalhadores
produtivos, frequentemente muito bem pagos, consegue, com
um emprego extremamente elevado de capital fixo, produzir para os
seus empregadores uma mais-valia muito maior do que aquela que
produziriam grandes quantidades de trabalhadores com salários baixos
- também porque os produtos dos primeiros, em virtude dos
mecanismos que regulam a concorrência no mercado mundial, se apropriam de uma parte sobredimensionada da criação mundial de
valor. A necessidade de criar mais-valia continua a existir estruturalmente
no capitalismo, mas hoje exprime-se menos na «exploração»
(sobretudo se se identifica essa «exploração» com a «pobreza», porque
um operário europeu, por maior que seja o seu sobretrabalho, é
um indivíduo rico, à escala mundial) do que no facto de uma parte
crescente da humanidade ser expulsa do processo de produção, consequentemente
posta à margem de todas as possibilidades de reprodução
e de sobrevivência. A absorção de trabalho vivo continua a
ser o «carburante» do modo de produção capitalista, mas onde essa
absorção efectivamente funciona garante pelo menos a sobrevivência
dos explorados. Hoje em dia, contudo, há populações inteiras que
já não são «úteis» para a lógica da valorização. Já não se trata de
um exército crescente de proletários, mas sim de uma humanidade
supérflua: eis o estádio final do capitalismo ao qual ele é conduzido
pela necessidade contínua de criar mais-valia. O capitalismo pode ter
triunfado sobre os adversários que assumiu serem os seus, mas não
pode vencer a sua própria lógica. É o resultado da contradição entre
as capacidades elaboradas pela espécie humana e a sua forma efectiva
alienada (30).
A política não é uma solução
Mesmo se há muita gente que recusa ainda compreender a lógica
inexorável que conduziu a um estado tão sombrio do mundo, amplia-
-se 9 convicção de que a economia capitalista colocou a humanidade
face a grandes problemas. Quase sempre a primeira resposta é
a seguinte: «É preciso regressar à política para impor regras ao
mercado. É preciso restabelecer a democracia ameaçada pelo poder
das multinacionais e das Bolsas.» Mas será que a política e a democracia
são verdadeiramente o contrário da economia autonomizada,
será que são capazes de reconduzir essa economia aos seus «justos
limites»? A «política» e a «economia» são esferas da totalidade social, são
subsistemas complementares entre si. As sociedades pré-capitalistas
tal como não tinham «economia» no sentido moderno do termo,
também não tinham uma «política» como nós a entendemos. A partir
do momento em que o valor se impõe enquanto forma da totalidade
social, implica o nascimento de subsistemas diferenciados. O valor,
com a sua pulsão impessoal para a ampliação tautológica, não é uma
categoria puramente «económica», à qual se pudesse opor a «polí
tica» como se esta fosse a esfera do livre arbítrio, da discussão e da
decisão em comum. Esta ideia, que é desde há muito um dos pilares
de toda a esquerda, tem em vista «democratizar» a vida política para
de seguida impor regras à economia. Mas, na sociedade fetichista da
mercadoria, a política é um subsistema secundário. Nasce do facto
de a troca de mercadorias não prever relações sociais directas e de, por
conseguinte, ser necessária uma esfera para as relações directas e para
a realização dos interesses universais. Sem instância política, os sujeitos
do mercado passariam imediatamente a uma guerra generalizada
de todos contra todos, e naturalmente ninguém quereria encarregar-se
das infra-estruturas (31). Os homens, na sua qualidade de representantes
de mercadorias, não podem encontrar-se uns aos outros na sua individualidade
e não podem portanto formar uma comunidade. A lógica
do valor baseia-se em produtores privados que não têm laço social
entre si, e é por isso que essa lógica tem que produzir uma instância
separada que se ocupe dos aspectos gerais. O Estado moderno é,
pois, uma criação da lógica da mercadoria. É a outra face da mercadoria;
Estado e mercadoria estão ligados entre si como dois pólos inseparáveis.
A relação entre ambos mudou várias vezes durante a história
do capitalismo, mas é um erro enorme deixarmo-nos arrastar pela
actual polémica dos neoliberais contra o Estado (que aliás é desmentida
pela sua prática nos casos em que detêm o poder) e acreditar que
o capital tenha uma aversão fundamental contra o Estado. Contudo,
o marxismo do movimento operário e quase toda a esquerda quase
sempre fizeram o jogo do Estado, por vezes até ao delírio, julgando
ver nele o contrário do capitalismo. A crítica contemporânea do capitalismo neoliberal evoca com frequência um «regresso do Estado»,
unilateralmente identificado com o Estado-providência da época keynesiana.
Na verdade, foi o próprio capitalismo que recorreu maciçamente
ao Estado e à política durante a sua fase de instalação (entre
o século XV e o final do século XVIII) e que continuou a fazê-lo
em todas as circunstâncias em que as categorias capitalistas tinham
ainda que ser introduzidas - os países atrasados, no Oriente e no Sul,
durante o século XX. E é ao Estado que o capitalismo recorre sempre
que se encontra em situação de aflição. É somente nos períodos em
que o mercado parece aguentar-se sobre a suas próprias pernas que
o capital gostaria de reduzir os falsos encargos implicados por um
Estado forte.
A esquerda engana-se enormemente ao atribuir ao Estado poderes
soberanos de intervenção. Em primeiro lugar, porque a política é
cada vez mais pura política económica. Tal como em certas sociedades
pré-capitalistas tudo era motivado pela religião, hoje em dia toda
a discussão política gira em torno do fetiche da economia. Depois
do fim da Segunda Guerra Mundial a diferença entre a direita e a
esquerda consiste essencialmente nas receitas divergentes que uma
e a outra têm no âmbito da política económica. A política, longe
de ser exterior ou superior à esfera económica, move-se completamente
no interior dela. Tal não fica a dever-se a uma má orientação
dos actores políticos, antes assenta numa razão de ordem estrutural:
a política não tem meios autónomos de intervenção. A política tem
sempre que servir-se do dinheiro e cada decisão que toma tem que
ser «financiada». De cada vez que o Estado procura criar o seu próprio
dinheiro, imprimindo papel-moeda, este dinheiro desvaloriza-se logo
de seguida. O poder do Estado só funciona enquanto for capaz de
ir buscar dinheiro a processos de valorização bem sucedidos. Logo
que estes processos começam a abrandar, a economia limita e sufoca
cada vez mais o espaço de acção da política. Torna-se então evidente
que na sociedade do valor a política se encontra numa relação
de dependência face à economia. Com o desaparecimento dos seus
meios financeiros, o Estado reduz-se à gestão, sempre mais repressiva, da pobreza. No final, até os soldados desertam se não são pagos
e as forças armadas tornam-se propriedade privada dos restos barbarizados
das instituições estatais - coisa que aconteceu em numerosos
países do terceiro mundo, mas também na antiga Jugoslávia.
Indicámos os elementos mais importantes da crise da socialização baseada na forma valor: a sociedade do trabalho encontra-se sem
trabalho e lança populações inteiras fora da corrida. O Estado nacional,
enquanto mecanismo de regulação, está em vias de desaparecer.
A crise ecológica significa que, para que continue a haver criação de
valor, o mundo inteiro é lançado no caldeirão da valorização. A rela
ção tradicional entre os sexos foi posta em discussão porque o trabalho
feminino, enquanto «reverso obscuro» da valorização, não pode
ser integrado na lógica do valor. Estes problemas permanecem fora
do alcance da política, que começa assim a girar no vazio. A política
degenera definitivamente num espectáculo publicitário que cobre os
governos de unidade nacional que em todos os países ocidentais de
facto mais não fazem do que gerir a urgência contínua.
O problema não reside no facto de a política não ser suficientemente
«democrática». A própria democracia é a outra face do capital,
e não o seu contrário. O conceito de democracia, em sentido
forte, pressupõe que a sociedade seja composta por sujeitos dotados
de livre arbítrio. Para terem uma tal liberdade de decisão, os sujeitos
teriam que estar situados fora da forma mercadoria e em condições
de dispor do valor como objecto seu. Numa sociedade fetichista,
porém, não pode existir esse sujeito autónomo e consciente. Podem
existir somente fragmentos desse sujeito, em vias de formação.
O valor não se limita a ser uma forma de produção; é também uma
forma de consciência. E não apenas no sentido em que cada modo
de produção produz ao mesmo tempo formas de consciência correspondentes.
O valor, à semelhança de outras formas históricas de
fetichismo, é algo mais: é uma forma a priori, no sentido de Kant (32).
O valor é um esquema de que os sujeitos não têm consciência porque
se apresenta como sendo «natural», e não como algo de historicamente
determinado. Dito de outra maneira, tudo o que os sujeitos do valor possam pensar, imaginar, querer ou fazer, oferece-se já sob
forma de mercadoria, de dinheiro, de poder do Estado, de direito (33).
O livre arbítrio não é livre em face da sua própria forma, ou seja,
em face da forma dinheiro e das respectivas leis. Numa constituição
fetichista, não existe uma vontade do sujeito que possa ser colocada
em oposição com a realidade «objectiva». Tal como as leis do valor
se encontram fora do alcance do livre arbitrio dos individuos, essas
mesmas leis são também inacessíveis à vontade política. Nesta situa
ção, «a democracia mais não é do que a submissão completa à lógica
sem sujeito do dinheiro»34. Na democracia, nunca são as próprias
formas fetichistas de base que constituem o objecto da «discussão
democrática». Elas estão já pressupostas antes de todas as decisões,
as quais, portanto, só podem dizer respeito à melhor maneira de servir
o fetiche. Na sociedade mercantil, a democracia não é «manipulada»,
«formal», «falsa», «burguesa». A democracia é a forma mais
adequada à sociedade capitalista, na qual os indivíduos interiorizaram
completamente a necessidade de trabalhar e ganhar dinheiro. Nos
sítios em que é preciso inculcar à força nos indivíduos a submissão
ao capital, o capitalismo encontra-se ainda numa forma bastante
imperfeita. Passa-se ao lado do essencial se nos limitamos, como faz
constantemente a esquerda, a pôr em relevo o facto de os grupos
económicos, os media, as Igrejas, etc., manipularem os eleitores e
transformarem a democracia em algo de fundamentalmente diferente
do que está escrito nas Constituições - embora, como é evidente,
tais manipulações existam. A democracia encontra-se completa no
momento em que tudo está submetido a negociações - excepto os
constrangimentos que derivam do trabalho e do dinheiro. Os sujeitos
para quem a transformação do trabalho em dinheiro é o fundamento
indiscutível da sua existência decidir-se-ão sempre, mesmo sendo
«completamente livres» de escolher, por aquilo que as leis da mercadoria
impõem sob a forma de «imperativos tecnológicos» ou de
«imperativos do mercado». «Desmascarar» os «verdadeiros interesses»
escondidos por trás destes «imperativos» é um dos desportos preferidos
da esquerda. O que é necessário, contudo, é algo de diferente: pôr em discussão o sistema fetichista que produz estes imperativos,
bem reais no seio desse mesmo sistema (35).
As ilusões «de esquerda» sobre a democracia pareceram particularmente
audaciosas no momento em que se apresentaram como
exigência de «autogestão operária» das empresas, ou seja, como
extensão da «democracia» ao processo produtivo. Porém, se o que se
trata de autogerir é urna empresa que tem que realizar lucros monetários,
os operários em autogestão mais não podem fazer, colectivamente,
do que o que fazem todos os outros sujeitos do mercado: têm
que fazer sobreviver a sua unidade de produção no seio da concorrência.
A falência de todas as tentativas de autogestão, mesmo daquelas
que foram organizadas em larga escala, como sucedeu na Jugoslávia,
não é imputável apenas à sabotagem levada a cabo pelos burocratas
(mesmo se é verdade que tal se verificou efectivamente). Na ausência
de um modo de produção directamente socializado, as unidades
de produção separadas estão condenadas, quer queiram quer não,
a seguir as leis fetichistas da rentabilidade. Na sociedade mercantil
plenamente desenvolvida, os indivíduos, não podendo já imaginar
uma vida situada fora do trabalho e da mercadoria, executam por
sua própria iniciativa tudo o que é necessário para fazer avançar este
sistema, sem que haja necessidade de serem manipulados. Nota-se,
com efeito, que existem cada vez mais sujeitos de mercado que reú
nem em si mesmos as categorias lógicas do proprietário de meios
de produção e do assalariado: no quadro do enorme crescimento do
número de trabalhadores «autónomos», os quais em alguns países
são já mais numerosos do que os assalariados, esta figura do auto-
-explorado conheceu uma grande difusão. Entre os assalariados que
permaneceram no seu lugar de origem, muitos há que defendem efectivamente
os seus «interesses» matando-se a trabalhar para manter
a «competitividade» da empresa onde têm o seu «lugar». Por último,
a «autogestão operária» encontrou uma paródia cruel na ideia de uma
«democracia dos accionistas», «ou seja, de um universo de assalariados
que, remunerados em acções, tornar-se-iam colectivamente
“proprietários das suas empresas”, realizando a associação perfeitamente bem sucedida entre o capital e o trabalho»36. Pode, com efeito,
imaginar-se, pelo menos no plano lógico, uma sociedade capitalista
na qual a propriedade dos meios de produção se encontra distribuída
entre todos os sujeitos, em vez de estar concentrada num número
restrito de mãos. O fundamento desta sociedade é a relação de apropriação
privada, e não o número de proprietários. A «democracia dos
accionistas» nunca existirá, mas a sua simples possibilidade demonstra
que o conflito entre o trabalho e o capital não constitui o cerne da
sociedade capitalista.
Todas estas considerações levam a concluir que não existe sujeito
ontologicamente oposto «em si» ao capitalismo, ao qual esse sujeito
se encontrasse simplesmente submetido de um modo exterior. Se
assim fosse, bastaria que este sujeito tomasse consciência da sua
situação para passar a ser também «para si mesmo» um sujeito anticapitalista,
de tal forma que o seu desabrochar coincidiria com a ruína
do capitalismo. Porém, no capitalismo, só pode existir um sujeito:
o «sujeito autómato» que é necessário abolir, em vez de desenvolver.
Apesar disto, para o marxismo tradicional, como já vimos, o sujeito
autómato, ou seja, o valor, é um derivado das classes, as quais seriam
o verdadeiro sujeito. O capitalismo surge assim como resultado da
vontade dos capitalistas, e a abolição do capitalismo seria a consequência
da vontade do proletariado. Em História e consciência de
classe, Lukács combinou a glorificação marxista do proletariado com
a concepção hegeliana do sujeito. Lukács escreve que «o proletariado
surge como o sujeito-objecto idêntico da história»37 e como «o verdadeiro
sujeito deste processo - ainda que seja um sujeito agrilhoado e
a princípio inconsciente»38. Quando os proletários, segundo Lukács
nessa mesma obra, se reconhecem a si mesmos como mercadorias,
podem reconhecer o carácter fetichista de toda a mercadoria e compreender
as «verdadeiras» relações escondidas por trás da forma mercadoria.
Hoje em dia, para a maioria dos marxistas, já não é aceitável indicar
o proletariado, no sentido do conjunto dos trabalhadores fabris, como sendo o sujeito capaz de levar a cabo a saída do capitalismo.
Mas muitas vezes, logo a partir dos anos sessenta, o que se fez foi
simplesmente colocar um outro pretendente qualquer no trono,
entretanto vago, do sujeito revolucionário, sem modificar em nada a
estrutura do discurso. Continuou-se a pressupor que no capitalismo
existe um sujeito que só superficialmente faz parte das relações capitalistas
e que, na sua forma actual, se encontra já, «em si mesmo»,
para lá da lógica capitalista. Seria antes necessário reconhecer que
os interesses dos assalariados não são essencialmente diferentes dos
outros interesses que concorrem no interior da sociedade mercantil.
A defesa dos interesses dos assalariados pode ser mais justificada do
que a de outros interesses, porque os operários, ou as outras categorias
sociais em causa, são mais numerosos, ou mais explorados, ou
mais pobres que outros sujeitos do mercado, ou porque são vítimas
de uma injustiça maior. Mas na defesa destes interesses não existe
nada que seja necessariamente «emancipador». Trata-se somente de
fazer valer direitos de uma certa categoria de vendedores de bens
(neste caso, vendedores da sua força de trabalho) em face de outras
categorias de vendedores. Na sociedade fetichista não pode haver
uma «classe da consciência» constituída por uma das categorias funcionais
da mercadoria, a qual tivesse ao mesmo tempo a missão histórica
de pôr termo à sociedade de classes.
A dinâmica da sociedade mercantil não é o efeito da subjectividade
dos exploradores, à qual se oporia a subjectividade dos explorados.
De facto, na sociedade mercantil não é possível o nascimento
de uma verdadeira subjectividade social. Em última análise, trata-se
também do limite contra o qual a sociedade mercantil se desagregará.
O sujeito autónomo não pode ser bem sucedido na tarefa de governar
as dinâmicas que ele próprio pôs em marcha. Pode somente pôr
à disposição os elementos de uma nova subjectividade; mas mesmo
isto, só o pode fazer destruindo simultaneamente as formas de subjectividade
que existiam antes.
Notas
1 «Dir-se-ia que Hegel, a partir de 1803, se apercebe deste movimento da produção pela produção, de que falará Ricardo, e que em K. Marx se exprimirá pela
ideia da colocação em valor do valor que anima todo o processo de produção
capitalista» (Hyppolite, Études, pág. 93). 2 MEW 42/196; Grund. I, pág. 211.3 «O incremento do capital tem que ser desenvolvido como um elemento essencial
do conceito de capital; não deve surgir como um elemento contingente» ou
ser introduzido sub-repticiamente (Reichelt, Zur logischen Struktur, pág. 213). 4 Urtext, pág. 25; Fragment, pág. 187; Fragmento, pág. 253. 5 Reichelt afirma que nos Grundrisse Marx só conhece duas estruturas, ou seja,
«as relações em que a riqueza assume uma forma distinta de si própria, e
aquelas em que tal não acontece. Por muito diversas que possam ser entre si
as diferentes sociedades, se elas se baseiam na apropriação da riqueza na sua
forma particular, não têm história. A história só existe no mundo invertido
em que o metabolismo com a natureza se encontra ele mesmo reduzido a
ser o meio para se perseguir permanentemente a riqueza abstracta, em que a
lógica imanente deste processo toma conta do metabolismo estruturando-o.»
É assim que a história invade as estruturas não históricas e as dissolve. Para
Marx, a cultura indiana, por exemplo, não tem história (Reichelt, Zur logischen
Struktur, pág. 263).
6 Krahl cita a seguinte afirmação de Hegel, extraída da Flistóna da Filosofia:
«Pôr em curso abstracções no plano da realidade significa destruir a realidade»
(Krahl, Konstitution, pág. 31).
7 MEW 42/252-253; Grund. I, pág. 273.
8 Por exemplo: «A universalidade a que ele [o capital] aspira ininterruptamente
defronta-se com obstáculos que encontra na sua própria natureza e que o
obrigam a reconhecer-se a si mesmo, numa certa fase do seu desenvolvimento,
como obstáculo maior a essa mesma tendência para a universalidade,
conduzindo-o, pois, à sua própria abolição. [...] Mas, do seu lado, Ricardo e
toda a sua escola nunca compreenderam as crises modernas reais no decurso
das quais essa contradição do capital se descarrega em tempestades que o
ameaçam progressivamente mais enquanto fundamento da sociedade de produção»
(MEW 42/323-324; Grund. I, págs. 349-350). 9 Por exemplo, MEW 26.2/499-506; Théories II, págs. 595-602.
10 Vejam-se os planos de Marx relativos à Contribuição contidos em MEGA 11.2,
pág. 14; Grund. II, pág. 386.
11 Por exemplo, no rascunho da carta a V. Zassulitch (M EW 19/392: Lettre
à Zassoulitch, pág. 1564: Primeiro projecto de resposta à carta de Vera
Zassúlitch, pág. 175).
12 A mercadoria separa o consumo da produção. A unidade entre consumo e
produção não significa que cada indivíduo, ou cada célula de produção (uma
grande quinta polivalente tradicional, por exemplo), consuma aquilo que produz,
num regime de auto-suficiência total. Essa unidade significa antes que
a produção está orientada para necessidades antecipadamente conhecidas,
como era o caso, por exemplo, das corporações medievais que estabeleciam
a quantidade e a qualidade da produção. A unidade deixa de existir a partir
do momento em que a produção se encontra dirigida para mercados anónimos
nos quais somente a «mão invisível» decide se o produtor encontrará o
respectivo consumidor. Como é evidente, a sociedade que vier a substituir
a sociedade mercantil restabelecerá essa unidade sob a forma de decisões
preliminares sobre o uso dos recursos. 13 MEW 26.2/510; Théories II, pág. 608. Já no Short outline, Marx escrevia a
Engels: «Nota apenas que a não-coincidênda entre M-D e D-M é a forma mais
abstracta e a mais superficial em que se exprime a possibilidade das crises»
(MEW 29/316; Corr. V. pág. 173). Nos Grundrisse, Marx explica-se melhor:
«O simples facto de a mercadoria ter uma dupla existência, existindo uma vez
enquanto produto determinado contendo idealmente (de maneira latente)
o seu valor de troca na sua forma de existência natural, e existindo depois
enquanto valor de troca manifesto (dinheiro), que por sua vez se desfez de
toda e qualquer conexão com a forma de existência natural do produto, essa
dupla existência distinta tem necessariamente de progredir até à diferença,
e a diferença até à oposição e à contradição. Esta mesma contradição entre
a natureza particular da mercadoria enquanto produto e a sua natureza universal
enquanto valor de troca, a qual fez nascer a necessidade de a colocar
duplamente, uma vez como mercadoria determinada e depois enquanto
dinheiro, esta contradição entre as suas propriedades naturais particulares e
as suas propriedades sociais universais inclui desde o princípio a possibilidade
de estas duas formas de existência das mercadorias não serem convertíveis
uma na outra» (M EW 42/81-82; Grund. I, pág. 82).
14 M EW 26.2/510; Théories II, pág. 608.
15 MEW 42/601; Grund. II, pág. 193. Como é evidente, entendemos serem incorrectas
as opiniões de autores como Karl Korsch, que (tanto em Marxismo e Filosofia, de 1923, como no seu Karl Marx, de 1938) pretende distinguir em
Marx o «revolucionário» subjectivo do «investigador» objectivo, e que trata
de opor os escritos de juventude, que seriam imediatamente revolucionários,
sobretudo o Manifesto, à pretensa resignação das obras da maturidade, que
conduziriam ao reformismo. Em boa verdade, pelo menos do ponto de vista
da época presente, é precisamente a critica da economia política das obras
da maturidade que acaba por ser mais «revolucionária», uma vez que não
fundamenta a esperança de transformação no mal-estar subjectivo de uma
classe excluída, definida em termos sociológicos, e que já não existe na forma
em que Marx a descreveu. A crítica da economia política aposta sobretudo
nas contradições internas da sociedade capitalista e na sua incapacidade de
as ultrapassar. Resignados, hoje em dia, estão precisamente os discípulos de
teorias do tipo da de Korsch.16 Cf. Luxemburg. Rosa, Die Akkumulation des Kapitals, 1913 (trad. port.,
A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do
imperialismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1970); Grossmann, Henryk, Marx. die
klassische Nationalökonomie und das Problem der Dynamik [Marx, a economia
política clássica e o problema da dinâmica] (1940), Frankfurt a.M.,
Europäische Verlagsanstalt, 1969; Mattick, Paul, Krisen und Krisentheorien
[Crises e teorias da crise], Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1974.17 Postone sublinha que este facto está na origem do carácter «dinâmico» que
distingue o capitalismo de todas as outras sociedades precedentes: «Este
efeito de “ bola de neve" implica, mesmo ao nível lógico abstracto do problema
da dimensão do valor - dito de outra maneira, antes que hajam sido
introduzidas a categoria da mais-valia e a relação entre trabalho assalariado
e capital -. uma sociedade que é unidireccionalmente dinâmica» (Postone,
Time, pág. 290).
18 Marx deu a mais aguda descrição deste aspecto nos seus Resultados do processo
de produção imediato: «Produção por oposição aos produtores e independentemente
deles. O produtor real enquanto mero meio de produção, a
riqueza material enquanto fim em si. [...] A finalidade do modo de produção,
a saber, que o produto singular, etc., contenha o máximo possível de trabalho
não pago, e isto alcançado somente por intermédio da produção pela produ
ção» (Resultate, pág. 63; Resultats, pág. 222; Resultados, pág. 92).
19 É importante ter em conta que Marx analisa a dialéctica do concreto e do
abstracto, do valor de uso e do valor, e não apenas a abstracção e o valor.
Marx sublinha que nos seus escritos «o valor de uso desempenha um papel
muito mais importante do que na precedente economia política» (MEW
19/371; Notes sur Wagner, pág. 1545), sobretudo em Ricardo, onde «o valor de uso permanece morto, como simples pressuposto» (MEW 42/240; Grund.
I, pág. 259); Ricardo «abstrai pura e simplesmente» do valor de uso (MEW
42/193; Grund. i, pág. 208) e com ele «estabelece uma relação em termos
meramente exotéricos» (M EW 42/546; Qrund. II, pág. 138). Aos economistas
burgueses Marx critica precisamente o facto de se ocuparem de relações puramente
quantitativas (MEW 25/270; Le Capital III, pág. 275; O Capital III-1,
pág. 195). Vejamos apenas um exemplo da importância do valor de uso em
Marx; na sua forma de capacidade social de consumo, o valor de uso constitui
um limite à expansão do valor; «a indiferença do valor enquanto tal face ao
valor de uso encontra-se assim numa posição tão falsa como a da substância
e da medida do valor enquanto trabalho objectivado» (MEW 42/320; Grund.
I, pág. 346). Contudo, apesar de tais clarificações, muitas vezes se atribuiu
a Marx a mesma negligência relativamente ao valor de uso. Um bom resumo
da posição marxiana sobre esta matéria pode ler-se em Rosdolsky, Genèse,
págs. 112-140.20 O que se segue, até ao final do capítulo, é particularmente devedor dos escritos
publicados em Krisis e aos trabalhos de Robert Kurz; é de esperar que
dentro em breve haja traduções desses textos que permitam conhecer com
maior pormenor estas argumentações.
21 MEW 19/19; Critique du programme de Gotha. pág. 1418; Crítica do programa
de Qotha, pág. 15.
22 Objectar-se-á que no terceiro mundo, sobretudo na Ásia, tem lugar uma
exploração colossal de uma força de trabalho de baixo preço que constitui a
base dos «milagres de exportação» desses países. Trata-se contudo de fenómenos de curta duração, circunscritos a sectores como o dos têxteis, e que
atingiram já os seus limites nos últimos anos. É certo que nesses países os
capitalistas são perfeitamente capazes de repetir todos os horrores da primeira
industrialização europeia, mas não estão em condições de criar indústrias
em larga escala susceptíveis de concorrer nos mercados mundiais, quanto
mais não seja porque nunca poderão permitir-se construir as infra-estruturas
necessárias.23 Adam Smith afirmou que «o soberano, com todos os seus funcionários de
justiça e outros detentores de cargos públicos que se encontram ao seu serviço,
a totalidade do exército e da marinha, são trabalhadores improdutivos»;
«da mesma classe fazem parte os clérigos, os juristas, os médicos, os literatos
e os eruditos de toda a espécie; actores, palhaços, músicos, cantores
de ópera, bailarinos, etc.» (cit. em MEW 26.1/130; Théories I, pág. 170).
A polémica contra os estratos sociais «não produtivos» fazia parte do ataque
da burguesia industrial contra as antigas classes dominantes na época das Luzes, embora fosse frequente a confusão entre «produtivo», no sentido do
valor de uso, e «produtivo», no sentido do valor capitalista.24 O leitor que tenha gosto pelos jogos de palavras notará que o trabalho é efectivamente
a «essência» do capitalismo, não apenas no sentido filosófico, mas
também enquanto carburante da máquina da valorização [em fr. «essence»
significa «essência» e «gasolina» - N.T.}.
25 M EW 25/532; Le Capital I, pág. 570; O Capital 1-2, pág. 578.
26 Cf. Kurz, Himmelfahrt, págs. 29-37.
27 Trata-se de um dos pontos em que é mais forte a oposição entre a crítica
do valor e os restos do marxismo tradicional. Falar de uma criação gigantesca
de mais-valia nos bairros de lata dos países do hemisfério sul ou nas
fábricas de calçado da Roménia é apenas a prova de uma total ignorância
da crítica da economia política. Paradoxalmente, muitos dos marxistas ainda
activos aplicam um zelo particular em negar a diminuição global do valor (ao
passo que os economistas burgueses há muito perderam qualquer interesse
por esta temática, o que equivale a dar total razão a Marx no plano teórico).
Segundo a crítica do valor, na sociedade capitalista, o simples produto já é,
desde o início, uma mercadoria, em vez de passar a sê-lo somente a partir do
momento em que entra na troca, na circulação. Contudo, esta afirmação é
contestada por muitos autores que de facto podem apoiar-se na incerteza em
que o próprio Marx se encontrava nesta matéria e de que são testemunho as
hesitações dos seus escritos, por vezes evidentes em passagens muito próximas
umas das outras. Na verdade, não é possível resolver este problema sem
levar em conta a diferença fundamental entre as sociedades pré-capitalistas e
sociedade capitalista: nas primeiras, o produto adquire - ou pode adquirir - a
forma valor na circulação. No modo de produção capitalista, pelo contrário, o
produto já é fabricado enquanto mercadoria, com uma determinada dimensão
de valor. Esta dimensão, contudo, tem necessidade da troca para se manifestar.
Se o valor nasce na produção, ele é resultado do trabalho abstracto que,
pela sua natureza, é quantitativamente limitado e que diminui efectivamente
em razão do aumento do capital fixo. Se, inversamente, o valor nascesse na
circulação, seria resultado de transacções comerciais e a sua quantidade não
dependeria do sucesso dessas operações. O valor não teria, portanto, tendência
imanente para se esgotar. É esta a razão em virtude da qual os marxistas
tradicionais que negam a crise do sistema capitalista aplicam todos os seus
esforços em situar na troca a origem do valor.
28 Esta fase «fictícia» do capitalismo constitui a base real do sucesso que nos
anos oitenta e noventa tiveram noções como «simulação», «virtual», «hiper-real», etc. 29 Veja-se, da mesma autora, Das Geschlecht des Kapitalismus. Feministische
Theorien und die postmoderne Metamorphose des Patriarchats [O sexo do
capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado],
Horlemann, Ed. Krisis, Bad Honnef 2000.
30 Uma coisa deveria ficar bem evidente: se convidamos aqueles que só falam
da mais-valia e da exploração a começar por considerar o valor e o trabalho
abstracto, tal não significa que se trate de maneira nenhuma de um exercício
de estilo intelectual para não sujar as mãos com a realidade banal do mundo
do trabalho. Pelo contrário, trata-se de nos colocarmos face a face com realidades
sem dúvida mais tristes ainda.
31 As infra-estruturas não podem depender completamente da oferta e da procura.
Os cortes de electricidade de grandes dimensões ocorridos na Califórnia
em 2001, mas também no Brasil, deram uma pequena imagem do que pode
suceder quando se tenta organizar os serviços infra-estruturais sob forma
privada.
32 Importa tentar resolver com o auxílio das categorias marxianas a questão
posta por Kant: como se formam o objecto e o sujeito, como nascem as formas
a priori nas quais subsequentemente se nos apresenta todo e qualquer
conteúdo? Deste modo, as reflexões de Kant podem ser utilizadas para a
renovação das ideias de Marx, mas de uma maneira que nada tem a ver com
o marxismo «ético» kantiano do início do século XX, nem com o recurso à
teoria política de Kant actualmente em voga em alguns (ex-)marxistas desnorteados
(como num livro de André Tosei, de título bastante improvável:
Kant réuolutionnaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1988). O tema
do fetichismo existe de uma forma latente no pensamento de Kant, quando
este analisa a hipostasia dos conceitos - mesmo se Kant não via nisso mais
do que um erro do pensamento. O valor é uma forma a priori, em sentido
kantiano, porque toda a objectividade se manifesta através dele: é uma retícula de que o indivíduo não tem consciência, mas que é preliminar a toda
a percepção e lhe constitui os objectos. O apriori kantiano é uma ontologização
e individualização não histórica do valor que, na sociedade moderna,
é o verdadeiro apriori, mas um apriori social, não natural. Chegamos assim
à colocação da seguinte questão: qual é a estrutura de consciência comum
a todas as classes no capitalismo, a estrutura cujas formas de consciência
por parte das classes particulares são simples variações? Com efeito, uma tal
análise não deveria somente conduzir a uma interpretação materialista dos
conteúdos da consciência social - coisa que se fez até à exaustão, designadamente
com a famosa explicação de K. Kautsky, segundo a qual a filosofia
de Espinosa ficava a dever-se aos interesses do comércio holandês de lã -, mas também das respectivas formas. Adorno foi um dos primeiros a encetar
o debate sobre a «constituição das categorias», embora apenas de um modo
indicativo. Em geral, as últimas obras de Adorno caracterizam-se por retomarem
a problemática kantiana. Nessa via foi precedido por A. Sohn-Rethel (cf.
mais abaixo), que o influenciou, e foi depois seguido pelo seu aluno H.-J.
Krahl.
Este último concebe nos seguintes termos a relação existente entre Kant,
Hegel e Marx: a identidade do eu, que Kant localiza nas profundezas da alma
humana, enquanto relação formal a priori com um mundo possível de objectos,
é dissolvida por Hegel na relação concreta e social entre sujeito e objecto,
e por Marx nas relações de produção (Krahl, Konstitution. pág. 400). O trabalho
concreto fornece o material da percepção, enquanto que «a actividade
que instaura o valor fornece o quadro não transcendental de apercepção de
um mundo de categorias ideologizado», constituindo a ciência e os conceitos
(Krahl, Konstitution. pág. 404). A análise das categorias da socialização
enquanto formas preliminares a todas as outras questões conduz a uma teoria
da mediação social que poderia contribuir para ultrapassar as teorias objectivistas
e subjectivistas tradicionais, em vez de se tentar, como frequentemente
sucede, uma síntese superficial dessas duas vertentes. Hans-Jürgen
Krahl era um dos mais brilhantes alunos de Adorno e ao mesmo tempo foi
um dos promotores da revolta estudantil na Alemanha em 1968. No decurso
da sua breve existência (morreu no início de 1970, aos trinta anos, num acidente
de viação) produziu um grande número de escritos que constituem
uma radicalização da teoria crítica. Esses textos foram publicados depois da
sua morte numa colectânea com o título de Konstitution und Klassenkampf
[Constituição e luta de classes], Este livro teve uma certa influência sobre
a nova esquerda na Alemanha, mas também em Itália. E sobretudo notá
vel o facto de já em 1967, quando quase ninguém discutia ainda este
problema, Krahl ter feito no seminário de Adorno uma exposição sobre
«A lógica da essência na análise marxiana da mercadoria» (Krahl, Konstitution.
pág. 31-81).33 Contudo, haverá que reter que a lógica do valor - como dissemos já - não
ocupa, nem poderá alguma vez ocupar, todo o espaço da vida. Também nos
indivíduos mais socializados pela mercadoria resta sempre uma parte não
configurada pela mercadoria, mesmo se a mercadoria tende a penetrar nesses
espaços com a «colonização» da vida quotidiana e das estruturas psíquicas.
Apesar disso, os pensamentos e desejos não configurados pela mercadoria
não constituem um sector não alienado que possa simplesmente ser mobilizado
contra a lógica da mercadoria; com efeito, uns e outros encontram-se frequentemente num papel subordinado e dependente relativamente à lógica
dominante.
34 Kurz, Ende der Politik, pág. 86. 35 A esquerda radical exagerou igualmente a importância da «traição dos dirigentes»
que se verificou na revolução russa, nas outras revoluções que conduziram
à formação de Estados particularmente autoritários e no interior de
quase todos os movimentos de contestação. Sem querer retirar nada à justeza
do julgamento moral contra os coveiros das revoluções, é contudo necessário
notar que estes mais não faziam do que seguir o sujeito autómato que as
próprias «vítimas da traição» não tinham ultrapassado. A tónica, por vezes
obsessiva, que a esquerda radical colocou nas questões da organização, na
crítica dos partidos e dos sindicatos, na definição da burocracia como nova
classe parasitária e exploradora, tudo isso, se bem que exacto no plano descritivo,
teria podido, no plano explicativo, reclamar-se mais justificadamente
de Robert Michels, Vilfredo Pareto ou Max Weber, senão directamente de
Nietzsche, em vez de recorrer a Marx. A evolução da sociedade é nestes
autores explicada pela vontade dos actores e pela sua «vontade de poder».
Percebe-se assim que o «sociologismo» que considera que os sujeitos colectivos
são demiurgos da vida social desemboca necessariamente numa antropologia
pessimista incapaz de ver outra coisa que não seja o triunfo do mal.
36 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 98.
37 Lukács, Histoire, pág. 243.
38 Lukács, Histoire, pág. 224.