quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O marxismo sob ataque (de falácias)

À parte poucas tentativas honestas de examinar o marxismo,  a ciência burguesa e suas denúncias dos ''erros e estupidezas'' do mesmo refletem apenas o vício ideológico de uma classe que não quer abandonar seus privilégios.  


 Desde a segunda metade do século XIX, quando se tornou hegemônico entre os movimentos da classe operária, o marxismo têm estado sob ataque constante da ciência burguesa. À parte o interesse claro desses ataques — deslegitimar a ''ciência proletária'' e desarticular os trabalhadores, garantindo assim a manutenção do status quo —, é possível dizer que houveram tentativas honestas de refutar Marx. Muitos dos ideólogos burgueses infiltrados na academia, porém, não têm tal compromisso com a verdade, e suas obras não passam de libelos anti-marxistas.

 Meu mais recente contato com algo do tipo foram os livros ''Marx morreu: Viva Marx!'', organizado pela acadêmica brasileira Bárbara Freitag, e ''Economia política da nova esquerda'', do economista sueco Assar Lindbeck, que me causaram bastante impacto à primeira leitura, mas revelaram-se parcial ou totalmente embusteiros conforme avancei em meus estudos. Não dissertarei aqui sobre o livro de Lindbeck; este recebeu uma fenomenal réplica pelo economista marxista Paul M. Sweezy ainda na época de seu lançamento, e a realidade continua a refutá-lo diariamente, como é possível constatar na sensacional explanação das causas e consequências da crise de 2008 exposta no blog do também economista marxista Michael Roberts, The Next Recession. Tratarei do coração do livro de Freitag: o seu próprio artigo.


A sociologia do espantalho


 Diz Freitag em seu artigo:

''Ao analisarmos o opus magnum [?] de Marx, Das Kapital, cuja contribuição para a compreensão do modo de produção é indiscutível, levantamos algumas questões, em torno das quais os 'herdeiros' de Marx não admitiam nenhuma fonte de debate. Trata-se de críticas levantas pelos assim chamados 'clássicos' da sociologia, via de regra antimarxistas, que por sua vez passaram a ser objeto de reflexão de alguns marxistas afastados pelo Partido, por sua 'infidelidade' ou seu 'revisionismo' face ao 'ideário' básico de Marx.''

 Confessa ela, no trecho, que as teses que abordará provém de antimarxistas, e afirma, contra a história, que os marxistas não admitiam debate. Oras, que eram a Segunda e a Terceira Internacionais se não também centros de intenso debate teórico? A própria ''questão nacional'' e a ''autonomia das superestruturas'' não foram fontes de intensos debates?

 Prossegue ela:

''Fazem parte desses questionamentos as seguintes teses, apresentadas por Marx em O Capital:

(1) A tese da determinação, em última instância, do econômico sobre o político, jurídico, social e ideológico;
(2) A teoria do valor, baseada na tese da extração da mais-valia do trabalhador pelo capitalista;
(3) A tese da concentração de renda nas mãos de um punhado de capitalistas, com consequente pauperização em massa do resto da humanidade;
(4) A teoria das crises cíclicas do capitalismo, que levaria à sua dissolução e desmoronamento interno.''

 Ignoremos que a dita socióloga confunde, no tópico 2, premissa e consequência, e continuemos a leitura de seu texto:

''1- A tese da monocausalidade (determinação, em última instância, da economia) foi contestada enfaticamente pelo sociólogo alemão, Max Weber (...).''

 É a partir do trecho acima que o título secundário ''a sociologia do espantalho'' se justifica. Seria, de fato, muito fácil fazer os marxistas passarem por idiotas caso algum de nós defendesse o absurdo de que a economia é a única causa de todo e qualquer conflito e fenômeno superestrutural, ainda por cima usando a autoridade de Weber. Engels já esclarecera, numa carta de 1890 a J. Bloch, que:


''De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida material. Mais do que isso, nem eu nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto, afirmando que o fator econômico é o único determinante, ela transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia.''

 O resto do tópico é mero chute em cachorro morto, chegando a invocar o nome de Gramsci e Althusser, entre outros marxistas, para arrogar alguma autoridade a si próprio. Prossigamos:

''2 - Essa teoria do valor [a de Marx], mais especificamente da mais-valia, tem como pressuposto a redução da força de trabalho qualitativa em quantitativa. (...) De acordo com seus críticos, Marx ignora as diferenças quantitativas entre os trabalhadores, sua formação e grau de profissionalização. Marx também ignora os diferentes níveis de modernização da indústria em diferentes lugares do mundo.''


 Bem, bem, vejamos o que Marx afirma n'O Capital, suposta fonte das críticas que Freitag trabalha:



''A fim de modificar a natureza humana, de forma que alcance habilidade e destreza em determinada espécie de trabalho e se torne força de trabalho desenvolvida e específica, é mister educação ou treino que custa uma soma maior ou menor de valores em mercadorias.  Esta soma varia com o nível de qualificação da força de trabalho. Os custos de aprendizagem, ínfimos para a força de trabalho comum, entram, portanto, no total de valores despendidos para sua produção.'' (2013, p. 202)


Desnecessário comentar pormenorizadamente a gafe cometida na última frase. Qualquer um que tenha lido ao menos os prefácios do Manifesto do Partido Comunista, em especial o de 1882, sabe que isso é uma grande mentira.

 Vamos em frente?

 ''3 - Marx subestimou a capacidade de aprendizado e a flexibilidade do modo de produção capitalista. Longe de levar a concentração de renda às últimas consequências, permitindo a pauperização geral da classe operária, o capitalismo soube redistribuir a riqueza (...) na Europa, a tese da pauperização gradativa do proletariado tornou-se insustentável (...).''

 'Na Europa, a tese da pauperização gradativa do proletariado tornou-se insustentável'. Gostaria que Freitag dissesse isso aos jovens gregos, metade dos quais está desempregado, ou aos jovens espanhóis, que passam por aperto semelhante. Muitos países europeus sofrem com os efeitos da crise que se arrasta, e o keynesianismo 
— a ferramenta reformista (e distributivista) por excelência do século XX — já não é mais viável. De qualquer forma, analisemos as circunstâncias de distribuição de renda no século XX, tratadas pela nossa socióloga, aparentemente, como uma decisão consciente do capitalismo:

''A equalização (da distribuição de renda) se deu, nesses países (industriais, onde impera o Estado de Bem-Estar social), como consequência da destruição do capital físico e da subversão dos padrões sociais provocada pelo conflito mundial. (Mas) Os exemplos não estão somente nos países industriais. Entre os países em desenvolvimento não-socialistas, dois que tem a renda nacional bastante bem distribuída são Formosa e Coreia do Sul. Aí também foi a guerra que eliminou a classe proprietária japonesa, possibilitando uma ampla reforma agrária.'' (Bacha, 1978, p. 54)
''O fato de a (2ª) guerra ter acabado na Grã-Bretanha com a derrota eleitoral de Winston Churchill, o líder de guerra amado e admirado e símbolo do patriotismo britânico, e com a vitória maciça do Partido Trabalhista, é demonstrado sem argumentações; qualquer que tenha sido a euforia de libertação em outros lugares, vista com ponderação pela opinião pública, a eleição geral britânica de 1945 era incontestável. Ambos os partidos, Conservador e Trabalhista, comprometeram-se com a vitória, mas apenas um comprometeu-se formalmente com a vitória e com a transformação social.'' (Hobsbawm, 1990, p. 176) 
''O edifício do reformismo assentava-se sobre três alicerces. O primeiro era a dimensão e o crescimento da classe operária, uma consciência que soldava uma massa díspar de trabalhadores aos mais ou menos pobres, tornando-os uma classe única (...) A Revolução Russa  dera ao reformismo seu segundo alicerce: o medo do comunismo e da União Soviética (...) o pleno emprego... seria o terceiro alicerce do reformismo.'' (Hobsbawm, 2011, pp.369-370)

 Ademais, como atesta o estudo de Thomas Piketty, o rock star da vez no mundo da economia, a desigualdade na distribuição de riqueza mostra-se, nos dias de hoje, semelhante àquela do século XIX. Nada surpreendente diante do avanço do neoliberalismo nas décadas finais do século XX.

''4 - (...) Marx subestimou a força dos mecanismos de reajustamento embutida na própria lógica de mercado, em que um setor de produção é tranquilamente sacrificado em favor ou detrimento de outro. Subestimou ainda, a capacidade regeneração interna da economia de mercado e o poder institucionalizado dos Estados nacionais em minimizar a crise... A sobrevivência do capitalismo no mundo e a facilidade com a qual o socialismo burocrático sucumbiu depois de setenta anos de vida são elucidativos para o fato, de que Marx realmente subestimou o poder de articulação política das economias capitalistas hegemônicas. Resulta daí, que a teoria das crises, assim como vislumbrada por Marx, exigiria uma radical formulação... Há evidências históricas suficientes para desmentir a sua validade nos termos em que Marx a formulou.''

 Tratei do funcionamento da economia soviética no artigo chamado ''Uma economia socialista funciona?'', tradução do artigo ''Do a planned, public owned economy works?'', de Stephen Gowans. Ao contrário do que escreveu Freitag, o socialismo soviético não caiu com ''facilidade''; só caiu após a intensificação da ''segunda economia'' e dos gastos militares e da liberalização pró-mercado. Mas falemos sobre capitalismo. Por acaso Marx nega em suas obras, do início de sua produção intelectual até sua morte, que o reformismo seja possível? Não. O que a economia marxista nos permite compreender é que um tipo de intervencionismo como o que caracterizou o welfare state é a longo prazo prejudicial à própria economia capitalista, uma vez que concorre com os capitalistas, reduzindo a lucratividade dos investimentos destes e, posteriormente, a própria ''massa'' de investimentos. Com menos investimentos, menos empregos, e por aí vai.

 A opinião marxiana de que a revolução socialista explodiria primeiro nos países principais da economia capitalista mostrou-se equivocada, fazendo mais sentido a tese leninista de que essa ocorreriam nos ''elos mais fracos da corrente'', países como China e Rússia. Apesar disso, os fundamentos da teoria marxiana das crises, fatores como superprodução, queda da taxa de lucro etc, mostram sua veracidade após a crise de 1929 e perante a crise que se arrasta de 2008 aos dias atuais.

 Freitag tem mais a dizer:

 ''Os dois amigos e co-autores dos textos aqui citados estava convencidos como Rousseau de que a origem de todos os males da sociedade contemporânea provinha da propriedade privada de bens e terras.''

 Mera repetição da crítica exposta no tópico 2.

 ''Não cabe aqui refazer o amplo debate travado entre os economistas de dentro e fora das alas marxistas. Mas entre os que cedo advertiram para as dificuldades técnicas e práticas de uma economia planejada estão os trabalhos dos austríacos Oskar Mises e Friedrich von Hayek, dos anos 30 e 40, cujo reexame é recomendado a todos aqueles que ainda acreditam numa economia socialista, livre do 'socialismo burocrático e de caserna' e superior em produtividade e competitividade às economias do 'capitalismo tardio'.''

 Sim, meus caros. Nada de keynesianos ou pós-keynesianos, e sim austríacos, os famosos crentes do deus-mercado. Atenção especial para o tom da nossa acadêmica de falar de 'todos aqueles que ainda acreditam uma economia socialista'.

''Na teoria da revolução Marx defendia a tese de que a história mundial teria sido o resultado de uma sequência de revoluções de classe, em que as classes oprimidas, mediante o recurso legítimo da violência, haviam derrubado as classes opressoras, assumindo, depois da vitória, as rédeas do processo histórico.''

 Aqui, novamente, temos um espantalho. O que Marx afirma, já na segunda página do Manifesto, é que ''a história de todas as sociedades até hoje é a história da luta de classes'' (com uma nota de Engels logo abaixo lembrando que se trata da história escrita). De 1995 até os dias atuais, no Brasil, temos tido lutas de classes, mas nenhuma revolução. O que acha o leitor? Terá o Brasil tido história durante esse intervalo?

 ''Esses autores contemporâneos simplesmente confirmam a tese... da autonomia das esferas econômicas e de poder (...) Ao diluírem em sua utopia comunista o político no econômico, Marx e Engels subestimaram a força organizatória do poder também na área econômica. As formações societárias não se reduzem a 'modos de produção' de bens, mas são sempre também co-determinadas pelas formas de organização do próprio poder, que inclui de forma legalizada ou não, legitimada ou não, o uso da força.''

 Autonomia das esferas econômicas e de poder, diz-nos ela. E entretanto, que se percebe ao observar a política no Brasil ou na maioria dos países capitalistas, senão um predomínio da participação burguesa no Estado, em detrimento da participação dos próprios trabalhadores? É verdade que a democracia liberal impôs limites à própria voracidade do capital 
— não sem luta —, mas este tenta subvertê-la para consolidar os próprios interesses, e em casos extremos, quando não consegue fazê-lo, não tem escrúpulos para atacar a própria democracia liberal burguesa (coisa já fenomenalmente descrita pelo próprio Marx n'O 18 Brumário de Luís Bonaparte e exemplificada realisticamente com as ditaduras militares na América Latina na segunda metade do século XX, sendo o Chile, na opinião deste que vos escreve, o caso mais notável).

 É de uma graça singular o fato de que, embora não tenha posto uma citação sequer d'O Capital (ou de qualquer outra obra marxista) no seu próprio artigo, que diz discutir essencialmente tal obra, Freitag nos presenteie com as seguintes afirmações na contra-capa de seu livro:

 ''Seus textos podem ser enfeixados em três grupos: os que analisam o modelo teórico de Marx a partir de seus próprios fundamentos; os que analisam como Marx abordou determinados temas como a luta de classes e os movimentos políticos, a questão dos direitos e da mulher; e os que abordam determinadas experiências específicas como a Revolução Russa e o socialismo real.
  O retorno ao pensamento de Marx para a análise de temas da atualidade é a principal contribuição desta obra.''

 Nós, marxistas, apreendemos o segredo da dialética histórica e fizemos um juramento de serviço à classe trabalhadora de todo o mundo, servindo-lhe de vanguarda e esclarecendo-lhe contra os charlatões da ciência burguesa e outras formas de ideologia. Sabemos que não basta esperarmos sentados até as contradições do modo de produção capitalista criarem uma consciência de classe revolucionária, sendo necessário o ativismo político ininterrupto, assim como a constante batalha das ideias. E seguiremos adiante.

 

Bibliografia:

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
BACHA, Edmar. Política econômica e distribuição de renda, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

HOBSBAWM, Eric J. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, São Paulo, Cia. das Letras, 2011.








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