sábado, 26 de julho de 2014

''A política econômica do governo Dilma'', por Ricardo Musse e Carlos Pissardo



''A partir de 2003, os governos do PT estabeleceram por meta principal a reversão da desigualdade social no Brasil. O propósito foi atingido por meio da combinação de distribuição direta de benefícios com aumento real de salários, a partir da elevação consistente de seu piso mínimo, e da ampliação da parcela da população com acesso ao crédito.

Essas políticas geraram consequências facilmente visíveis, como o desmonte de certas conformações políticas locais antirrepublicanas. Seu impacto na economia, no entanto, ainda não foi suficientemente reconhecido. Os programas que inicialmente apareciam como política civilizatória de um partido de esquerda tornaram-se o principal fundamento do ciclo de desenvolvimento que floresceu nos dois governos de Lula da Silva.

Invertendo o cínico clichê dos porta-vozes dos mercados, a divisão do bolo consistiu no principal motor de seu crescimento. Estudo do IPEA mostrou que cada um real gasto com o Bolsa Família teve um impacto de R$ 2,4 no consumo das famílias e R$ 1,78 no PIB. Tudo indica que esse efeito multiplicador da distribuição de renda alavancou o PIB no período.

Tais resultados confirmam a experiência histórica de que o Brasil só obtém altas taxas de crescimento econômico por meio de políticas de inclusão social. Entre 1930 e 1980, período em que o PIB brasileiro manteve um ritmo acelerado, o motor dessa expansão extensiva foram os processos de urbanização e industrialização, capitaneados pela inserção de milhões de pessoas no mercado de trabalho e pela cobertura social da legislação trabalhista.

Por representar a continuidade desse projeto, Dilma Rousseff foi eleita em 2010. Desde então se verifica, entretanto, uma guinada no interior desse modelo. Por certo, seu governo manteve as políticas que propriciam a redução das desigualdades. A renda real do trabalhador continuou tendo aumentos reais nos últimos três anos e não houve recuo nos programas sociais. Mas a tendência parece inercial: é sintomático que, segundo dados do IBGE, o consumo das famílias tenha atingido, em 2013, a menor taxa de crescimento dos últimos 10 anos (2,3%), empatando com o crescimento do PIB.

Em vez de apostar no crescimento da demanda como motor da oferta, a política macroeconômica do atual governo voltou-se para o incentivo direto da oferta: por meio do combate ao alarmado “custo Brasil”, com a política de concessões à iniciativa privada de setores logísticos antes geridos pelo Estado; pelo controle artificial dos preços administrados; pela concessão crescente de incentivos fiscais. Segundo dados da Receita Federal, estes últimos custaram ao tesouro, em 2013, R$ 77,8 bilhões. A previsão é de que, em 2014, essa quantia chegue a 94,3 bilhões – cerca de quatro vezes o valor reservado para o Programa Bolsa Família.

As principais decisões do governo na área econômica andam de mãos dadas com a agenda da FIESP; atendem às pautas da indústria e, a rigor, só dela. Mas se estamos diante de um projeto “neodesenvolvimentista”, trata-se de um neodesenvolvimentismo sem desenvolvimento. Apesar de todos os incentivos à oferta, a taxa de investimento não se amplia. Apesar dos estímulos ao capital local – incluindo uma exitosa desvalorização do real sem surto inflacionário – a indústria patina e se justifica reclamando mais e mais “apoio”.

Dificilmente o almejado crescimento sustentável será obtido sem a deflagração de nova onda de inclusão social. Esse ciclo deve se orientar não apenas pelas estratégias já conhecidas de distribuição de renda, mas sobretudo por mecanismos indiretos. Nessa direção, seria recomendável implantar um ousado programa de investimentos em serviços públicos, em especial, na saúde, educação e transporte, desencadeado pela adoção das reformas tributárias, urbana e agrária.

A acreditar na palavra de seus economistas, as duas principais forças eleitoriais da oposição não estão comprometidas com uma política desse tipo. Cabe à esquerda, dentro e fora do PT, promover sua defesa.''

Enviado ao Blog da Boitempo pelo autor, este artigo foi publicado também na revista Carta Capital, n. 795, em abril de 2014 (p. 50-51).  

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