domingo, 30 de julho de 2017

Os custos sociais da austeridade fiscal





 Embora muitos dos nossos colegas na esquerda (não menos na esquerda comunista) escrevam sobre ''austeridade'' -- e coisas intelectualmente rigorosas, inclusive --, é comum que se o faça sem oferecer uma definição precisa do termo, pois que este já é costumeiramente ligado ao corte de gastos, redução dos serviços públicos etc. 

 Pretendo trabalhar aqui com uma definição do termo e, a partir desta definição, determinar o que está no título deste post, isto é, o que seriam os custos sociais da austeridade fiscal. Além disso, como marxista, pretendo fazer uma análise que parta do ponto de vista da classe trabalhadora. Então, prossigamos: ''austeridade fiscal'', nos termos deste trabalho, deve ser entendida como as medidas que visam atingir o ''equilíbrio fiscal'' (igualdade entre despesas primárias e arrecadação tributária) ou mesmo a obtenção de superávits primários através da elevação da carga tributária -- seja pela criação de novos impostos, seja pelo aumento do valor cobrado a partir dos já existentes -- ou da redução dos gastos primários do governo, de maneira a reduzir a renda disponível (ou pelo menos o acesso real a bens e serviços) daqueles que necessitam dos serviços públicos graças ao seu nível de renda, o que engloba no mínimo a maior parte dos membros da classe trabalhadora (e, consequentemente, da população).  

 Da própria definição que estamos utilizando, já se revelam alguns dos problemas, mas vamos expô-los de maneira clara nas linhas abaixo.

1º) a austeridade fiscal tende a aumentar o desemprego ou, pelo menos, a impedir que o pleno emprego seja alcançado 

 A boa teoria econômica aponta a inexistência de um mecanismo automático que leve à plena utilização dos recursos produtivos numa economia capitalista. Isto já fora exposto por Marx no seu conceito de exército industrial de reserva [1], e, se é controverso se neste autor se acha (e/ou se se pode derivar) ou não uma teoria precisa do nível de utilização da capacidade instalada e emprego, uma tal teoria é-nos oferecida pelo princípio da demanda efetiva de Keynes e Kalecki [2, 3], ao qual pode-se juntar as reflexões de Ruy Mauro Marini [4]. Uma conclusão necessária dessas contribuições é que empresário algum contratará trabalhadores se não esperar que as mercadorias produzidas por estes sejam vendidas, ou seja, se não achar que haja demanda com capacidade de pagamento por essas mercadorias a preços que ofereçam pelo menos a taxa média de lucro (''preços de produção'') -- o que chamamos de demanda efetiva. (Note: é o gasto agregado, na forma de compras dos produtos, que vai determinar o nível de produção e emprego.) O corte de gastos primários pelo governo ou o aumento da cobrança de impostos num valor que seria gasto na compra de produtos nacionais e que não é revertido em aumento do gasto primário e nem compensado por aumento do gasto privado ocasiona na redução do nível de produção (e consequentemente do nível de utilização da capacidade instalada), com uma enorme tendência a causar aumento do desemprego. Caso compensado pelo aumento do gasto privado, pode ainda assim estar impedindo o ''atingimento'' do pleno emprego e/ou contribuindo para o aumento do endividamento das famílias e empresas e o comprometimento da renda das primeiras com o serviço de dívidas no futuro.

 É preciso destacar o fato de que, na medida em que o desemprego aumenta, pioram as condições de barganha dos trabalhadores e, consequentemente, mais fácil fica para os empregadores impor os salários e as condições de trabalho que quiserem para os trabalhadores -- e salários menores, bem como intensidade e jornada de trabalho maiores, além de não-pagamento de direitos trabalhistas, descaso com a segurança e a salubridade do local de trabalho etc são todos elementos que reduzem os custos médios de produção dos capitalistas, e consequentemente aumentam suas taxas de lucro.

2º) a austeridade fiscal pode impedir a realização de gastos de alta importância, relacionados ao desenvolvimento socioeconômico do país 

  O não-aumento ou mesmo corte dos gastos primários do governo pode impedir a realização de gastos necessários em saúde e educação públicas, infraestrutura, ciência e tecnologia, entre outras áreas. Os 2 primeiros são vitais à qualidade de vida de todos aqueles que não podem pagar pelos respectivos serviços privados sem passar por quaisquer privações mais consideráveis, condição na qual está a maioria da população brasileira: pobre e (ou ''porque'') pertencente à classe trabalhadora; os 3 últimos são fundamentais para o processo de sofisticação da estrutura produtiva do país, e mesmo para a determinação da capacidade de aumento da renda e riqueza no longo prazo, na medida em que países sem moeda conversível como o nosso necessitam substituir importações por produção nacional e/ou aumentar exportações a fim de fazer com que ''sobrem'' divisas (reservas de moedas) estrangeiras em quantidade suficiente para que possamos importar os bens e serviços vitais ao nosso desenvolvimento e vida e que não podemos (ou pelo menos ainda não podemos) produzir aqui, evitando crises no balanço de pagamentos -- tal como já esclareceram vários economistas [5].

3º) a austeridade fiscal pode nem mesmo funcionar para o objetivo para o qual os governos oficialmente a utilizam 

 Keynes e Kalecki -- o segundo mais que o primeiro -- enfatizaram o fato de que os gastos determinam unilateralmente a renda (não confundir com reservas de poder de compra, como o crédito) na sociedade capitalista [6]. Também notaram a existência de um ''efeito multiplicador'' de gastos, isto é: o fato de que um dado acréscimo de gastos num valor n na economia faz com que a renda de algum agente aumente em n; este agente, por sua vez, gastará uma parte maior ou menor de n (ao qual provavelmente serão descontados alguns impostos), a depender de sua ''propensão marginal a consumir'' (quanto ele irá gastar a mais a partir do aumento de sua renda em 1 unidade monetária -- R$1,00 em nosso caso); estes gastos converter-se-ão na renda de outros agentes e assim seguirá o processo.  Desta maneira, um acréscimo de gastos de algum agente econômico no valor n acaba por se converter num aumento da renda nacional em yn, sendo y um coeficiente maior que 0, que pode ser fracionário e menor que 1, inclusive [7]. Por outro lado, o multiplicador também pode funcionar para redução de gastos: se algum agente deixe de gastar n, isso pode gerar uma redução total de gastos maior ou menor que n. (Observe, em conexão com o que foi mencionado no item anterior, que na medida em que os gastos aumentam, aumenta a produção nacional e, consequentemente, o nível de emprego.)

 Assim, quando o governo corta gastos e/ou aumenta impostos, isso pode acabar gerando uma redução total de gastos que faz a renda agregada Y cair mais que proporcionalmente, fazendo a arrecadação tributária do governo cair e este ter um déficit primário ao invés de um (supostamente) desejado equilíbrio fiscal ou mesmo superávit; e se a taxa de juros reais (ou seja, a taxa de juros descontada pela inflação) dos títulos da dívida pública for maior que a taxa de crescimento do país, isto pode acabar gerando um aumento da dívida pública como % do Produto Interno Bruto. Aliás, o governo pode ser obrigado a emitir títulos da dívida pública mesmo se obtiver superávits primários, podendo ter aumentos da dívida pública em relação ao PIB; este será o caso sempre que os superávits forem menores que a carga de juros a ser paga pelo setor público [8]

 Esse aumento pode ser usado por um lobby de empresários e rentistas como argumento: haveria uma suposta necessidade de realização de ''reformas estruturais'' ou mesmo de novos cortes de gastos primários e aumento de impostos (evidentemente, impostos que incidam -- ao menos principalmente -- sobre a classe trabalhadora e os mais pobres, que não raro se verão forçados a trabalhar mais para aumentar sua renda e atingir de novo um nível básico necessário; o que aliás também pode acontecer com a redução da quantidade e qualidade dos serviços públicos) para que houvesse um aumento do crescimento econômico -- a despeito de ter sido esse ajuste fiscal, provavelmente em combinação com outros elementos (como o nível da taxa de juros), o causador da elevação da relação dívida/PIB e da queda deste último [9].

Observação 1: não defini austeridade fiscal como a mera tentativa de realizar ajustes fiscais que causassem equilíbrio fiscal ou superávits primários porque isto pode ser feito através de uma política indutora de crescimento econômico, que faz crescer a renda agregada Y e, tendencialmente, a arrecadação. O chamado teorema de Haavelmo [10] nos mostra inclusive que é possível realizar uma elevação contínua dos gastos que leve ao aumento de Y com equilíbrio fiscal; neste caso, observar-se-á uma elevação da carga tributária. Também não defini como meras políticas de cortes de gastos primários, porque essas podem ser (parte de) uma tentativa de frear o gasto agregado (consumo + investimento privado + gasto público + exportações) antes do nível que supere a capacidade produtiva instalada (causando inflação de demanda) e/ou seja compatível com o equilíbrio externo (ver [5]).

Observação 2: também espero que não se entenda que considero o ''equilíbrio fiscal'' ou a manutenção da dívida -- seja em números absolutos, seja como % do PIB -- em valores ''baixos'' com um fim em si mesmo; considero, tal como Abba Lerner, que as políticas fiscal e monetária do governo numa economia capitalista tem de estar subordinada à busca do pleno emprego, da estabilidade de preços e do equilíbrio externo -- no que devem ser ajudadas pela política cambial, industrial etc. Como Lerner, também, bem como outros, não acho que um governo que possua soberania monetária -- emita sua própria moeda -- possa tecnicamente ser obrigado a fazer moratória de uma dívida denominada nessa mesma moeda (sobre isso, ver o artigo linkado em [9]).


Notas/referências 

[1] https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap23/03.htm
[2] http://www.ie.ufrj.br/intranet/ie/userintranet/hpp/arquivos/090320170036_Keynes_TeoriaGeraldoempregodojuroedamoeda.pdf
[3] http://www.projetos.unijui.edu.br/economia/files/Kaleki.pdf
[4] http://www.marini-escritos.unam.mx/060_crisis_cambio_tecnico.html#1
[5] http://www.excedente.org/artigos/insercao-externa-exportacoes-e-crescimento-no-brasil/
[6] http://www.excedente.org/blog/macroeconomia-a-falacia-do-pai-de-familia-e-a-pec-241/
[7] Ver o item 3 em http://seer.ufrgs.br/index.php/AnaliseEconomica/article/view/10906/6484
[8] Aliás, várias análises têm concluído ser esta a causa da rápida elevação da dívida pública a partir do Plano Real, em 1994. Veja, por exemplo, aqui, aqui e aqui
[9] https://drive.google.com/file/d/0B_-AnAt-7778dGtNRXRWNlQyT2s/view?usp=sharing (Ver a seção 4, ou pelo menos o item 4.4)
[10] Ver item 3.1 do artigo acima linkado. 

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