quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Sociologia enlatada versus sociologia dinâmica


O texto abaixo é o item II da ''Primeira parte'' do livro ''Introdução Crítica à Sociologia Brasileira'' (RJ: UFRJ, 1995), de Alberto Guerreiro Ramos.




 A melhor maneira de fazer ciência é a partir da vida, ou ainda, a partir da necessidade de responder aos desafios da realidade. 

 Seguindo esta regra, proponho-me a tratar, aqui, dos problemas da sociologia brasileira pelo aprofundamento da análise de um caso ocorrido no II Congresso Latino-americano de Sociologia, realizado no Rio e em São Paulo, entre 10 e 17 de julho de 1953. Na qualidade de presidente da Comissão de Estruturas Nacionais e Regionais, submeti à apreciação daquele certame um documento que continha as seguintes recomendações:

 1ª - as soluções dos problemas sociais dos países latino-americanos devem ser propostas tendo em vistas as condições efetivas de suas estruturas nacionais e regionais, sendo desaconselhável a transplantação literal de medidas adotadas em países plenamente desenvolvidos;

 2ª - a organização do ensino de sociologia nos países latino-americanos deve obedecer ao propósito fundamental de contribuir para a emancipação cultural dos discentes, equipando-os de instrumentos intelectuais que os capacitem a interpretar, de modo autêntico, os problemas das estruturas nacionais e regionais a que se vinculam;

 3ª - no exercício de atividades de aconselhamento, os sociólogos latino-americanos não devem perder de vista as disponibilidades da renda nacional de seus países, necessárias para suportar os encargos decorrentes das medidas propostas;

 4ª - no estádio atual de desenvolvimento das nações latino-americanas e em face das suas necessidades cada vez maiores de investimentos em bens de produção, é desaconselhável aplicar recursos na prática de pesquisa sobre minudências da vida social, devendo se estimular a formulação de interpretações genéricas dos aspectos global e parciais das estruturas nacionais e regionais;

 5ª - o trabalho sociológico deve ter sempre em vista que a melhoria das condições de vida das populações está condicionada ao desenvolvimento industrial das estruturas nacionais e regionais;

 6ª - é francamente desaconselhável que o trabalho sociológico, direta ou indiretamente, contribua para a persistência, nas nações latino-americanas, de estilos de comportamento de caráter pré-letrado. Ao contrário, no que concerne às populações indígenas ou afro-americanas, os sociólogos devem aplicar-se no estudo e na proposição de mecanismos de integração social que apressem a incorporação desses contingentes humanos na atual estrutura econômica e cultural dos países latino-americanos;

 7ª - na utilização da metodologia sociológica, os sociólogos devem ter visto que as exigências de precisão e refinamento decorrem do nível de desenvolvimento das estruturas nacionais e regionais. Portanto, dos países latino-americanos, os métodos e processos de pesquisa devem coadunar-se com os seus recursos econômicos e de pessoal técnico e com o nível cultural genérico de suas populações.

 Todavia, essas teses foram ruidosamente desaprovadas, por 22 votos contra 9, com o agravante ainda de o autor deste estudo ter sido francamente agredido com demonstrações de ódio e desapreço por um de seus opositores. É significativo assinalar que as opiniões contrárias àqueles enunciados foram coordenadas por congressistas brasileiros.

 Ora, como se depreenderá da leitura das recomendações, o que se tinha em vista era encorajar os esforços para a prática, nos países latino-americanos, de uma sociologia que refletisse os seus problemas; era estimular [que] se cortassem os cordões umbilicais que têm tornado esta disciplina um subproduto abortício do pensamento sociológico europeu e norte-americano.

 Assim, a atitude do plenário em face daquelas teses serviu para dar um flagrante de que hoje, no Brasil pelo menos, se distinguem, com clareza, entre outras, duas correntes de pensamento sociológico: uma corrente que pode ser chamada, como já propus certa vez, de ''consular'', visto que, por muitos aspectos, pode ser considerada como um episódio da expansão cultural dos países da Europa e dos Estados Unidos; e outra que, embora aproveitando a experiência acumulada do trabalho sociológico universal, está procurando servir-se dele como instrumento de autoconhecimento e desenvolvimento das estruturas nacionais e regionais. As proposições acima enunciadas pretendem representar esta corrente,

 A essência de toda sociologia autêntica é, direta ou indiretamente, um propósito salvador e de reconstrução social. Por isso, inspira-se numa experiência comunitária vivida pelo sociólogo, em função da qual adquire sentido. Desvinculada de uma realidade humana efetiva, a sociologia é uma atividade lúdica da mesma natureza do pif-paf. Quem diz vida, diz problema. A essência da vida é sua problematicidade incessante. Daí, na medida que o sociólogo exercita vitalmente a sua disciplina, é forçosamente levado a entrelaçar o seu pensamento com a sua circunstância nacional ou regional.

 Mas a formação do sociólogo brasileiro ou latino-americano consiste, via de regra, num adestramento para o conformismo, para a disponibilidade da inteligência em face das teorias. Ele aprende a receber prontas as soluções, e quando se defronta com um problema de seu ambiente, tenta resolvê-lo confrontando textos, apelando para as receitas em que se abeberou nos compêndios. Adestrado para pensar por pensamentos feitos, torna-se frequentemente, quanto aos sentimentos e à volição, um répétiteur, isto é, sente por sentimentos feitos, quer por vontades feitas, como diria Péguy.

 Abram-se os nossos compêndios de sociologia. Um ou outro foge à regra: em geral, cada um deles traz de tudo, arrola autores e sistemas, sem proporcionar ao aprendiz um critério diretivo de crítica. Como quem insinua: o educado que procure a verdade sociológica, tirando um pouquinho daqui, outro pouquinho dali. Pois nesses compêndios de que falo, a quase totalidade dos que se escrevem nestas bandas, supõem esta enormidade: que exista uma verdade sociológica, eterna, imutável, au-delá da contingência histórica, resultante da média agregativa de todos os sistemas.

 Por outro lado, outra espécie de vício mental é patente em grande número de nossas obras sociológicas. O sociólogo indígena parte, quase sempre, de um sistema importado, ao qual dá validade absoluta e se filia incondicionalmente. O mal vem de origem. Sempre aqui tivemos positivistas, haeckelistas, evolucionistas e outras espécies de aficionados à outrance. E quando se apresenta o sociológo patrício a alguém, a pergunta vem logo: que escola o senhor segue?

 Além de ''consular'', esta é uma sociologia que pode ser dita enlatada, visto que é consumida como uma verdadeira conserva cultural.

 Nestas condições, assume-se, entre nós, em face dos métodos e produtos do trabalho sociológico no exterior, uma atitude apologética. Tudo que de lá vem é ortodoxo, excelente, imitável. Não se acordou ainda para o fato de que os meios e resultados do trabalho sociológico são condicionados por estruturas nacionais ou regionais. Afirma-se a eficácia imanente das transplantações. Não se assume uma posição sociológica na discussão da sociologia. De modo que, muitas vezes, os certames ou reuniões ditos de sociólogos se resumem em pronunciamentos idólatras e até mesmo de intrepidez patriótica, como daqueles que consideram a necessidade de adotar procedimentos metodológicos simplificados, num país subdesenvolvido, uma diminuição dos brios nacionais. Já assisti, num congresso de sociologia, à queda de uma proposta sociologicamente correta, em virtude de ter-se invocado os brios patrióticos dos presentes.

 Esse exemplarismo é um dos aspectos do que se pode chamar a ''doença infantil'' da sociologia nos países coloniais, doença que torna a disciplina referida uma ''gesticulação'', vazia de significados, um ato em oco, uma ação ilusória, mas capaz de satisfazer a certos indivíduos.

 O ''gesticulante'' satisfaz-se em fingir a ação que anela cometer, mas não comete realmente.

 Há, pois, no que concerne ao comportamento de grande parte dos sociólogos de países como o Brasil, uma patologia da normalidade. Desde que, em suas propostas mentais, é generalizado aquele traço culturologicamente mórbido, passa o mesmo a ser normal. Entre eles, teremos também de levar a sério as ficções para vivermos em paz. Se ousarmos ser sensatos, estamos perdidos, não nos toleram.

 Esta é a doença infantil da sociologia no Brasil. Não a creio, entretanto, incurável, O próprio fato de ser capaz de fazer o seu exame de consciência a encaminha para a maturidade. Um indício de que estou certo é o que se passa com o pensamento econômico latino-americano. Sob os auspícios de um organismo como a CEPAL, realiza-se a descolonização do economista latino-americano, e a contribuição dos brasileiros para esta mudança é das mais ilustres.


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