terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Nacionalismo e xenofobia

O texto abaixo constitui o item 3 da ''Primeira parte'' do livro ''Introdução crítica à sociologia brasileira'' (Rio de Janeiro: UFRJ, 1995), de Alberto Guerreiro Ramos




 Muita gente ainda não se deu conta de que nada tem a ver com xenofobia a posição nacionalista que vêm assumindo crescentemente os intelectuais mais representativos das tendências atuais do Brasil. Não é uma nova moda, como o foi, em grande parte, por exemplo, o movimento modernista de 1922, nem tampouco um conjunto de manifestações temperamentais, algo que estivesse acontecendo, como se, por acaso, todos os Antônio Torres do país tivessem se reunido.

 O nacionalismo, na fase atual da vida brasileira, se me permitem, é algo ontológico, é um verdadeiro processo, é um princípio que permeia a vida do povo, é, em suma, expressão da emergência do ser nacional. 

 Até recentemente, como já observava Alberto Torres, a nação brasileira era uma ficção jurídico-institucional. Alberto Torres havia percebido corretamente que, em nosso país, a nação era algo artificial, imposta de cima para baixo, que não correspondia a suportes consuetudinários. Mas não compreendeu por que isto acontecia. Não viu que a nação não se dá independentemente da existência de um mercado interno, de um sistema de transportes e comunicação suscetível de interligar todos os recantos do território. Não viu, em resumo, que a nação brasileira só poderia verificar-se, em toda a sua plenitude, com o surgimento de um capitalismo brasileiro. Alberto Torres não percebeu o condicionamento econômico do fenômeno nacional. Era dos que advogava que o Brasil não deveria jamais desviar-se de sua ''vocação agrícola''. Por isso, propôs que se formasse a nação brasileira de cima para baixo, da inteligência para as emoções, com a tutela do povo pelas elites nacionalistas.

 Mas o nacionalismo não tem apenas fundamento psicológico. Tem também fundamento econômico. Na medida que, em nossos dias, surgem no Brasil as componentes objetivas da nação, que faltavam até há bem pouco, o nacionalismo se torna verdadeiramente um fato sociológico.

 É esse fato novo que está suscitando as transformações de superestrutura em nosso país. A nova teoria sociológica que está sendo formada por alguns profissionais de vanguarda é a tradução, no plano teórico,, daquele fato; não é uma invenção arbitrária, é manifestação necessária de transformações estruturais, e, por isto, esta teoria se propaga rapidamente, de maneira irresistível. 

 Pela primeira vez, na história das ideias em nosso país, aparece uma teoria sociológica autêntica, em cujas categorias se reconhecem aqueles que estão vivendo o que é novo no Brasil.

 Pela primeira vez, em nosso país, a formação do sociólogo passa a resultar menos do manuseio de livros estrangeiros do que da indução dos fatos nacionais, naturalmente ajudada pela posse do conhecimento básico da ciência social.

 É assim que adquire pleno sentido a expressão de Graciliano Ramos: ''quem não tem vergonha na cara, não pode ser sociólogo''. Graciliano Ramos dizia isto, referindo-se a certo ''sociólogo'' indígena. Pode-se, entretanto, endereçar esta frase a outros ''sociólogos'' nacionais. Alguns anos depois que ela foi pronunciada, reencontro-a no fundo de minha memória e percebo nela toda uma receita a administrar aqueles que desejam alcançar a nova teoria sociológica brasileira. 

 Graciliano Ramos, em outras palavras, formulou um postulado fundamental da filosofia contemporânea, segundo o qual, quando nós assumimos voluntariamente o que nos condiciona, transformamos a estreiteza em profundidade. Tratando esta matéria, escreveram Mikel Dufrenne e Paul Ricoeur [1]:

Os pais que eu não escolhi não se tornam meus pais num sentido absoluto... senão quando deles pra mim e de mim para eles se estabelece uma corrente de pertinência, e esta pertinência mútua, decorrente da menor elegida, é uma ocasião para a mais íntima comunicação. Quando adoto minha origem como se a tivesse querido, tenho acesso á verdadeira piedade filial, que pode permanecer invulnerável, mesmo no ódio: não posso mais romper com os meus pais, sem romper com uma parte de mim mesmo e abalar-me em meus fundamentos.

 A assunção no Brasil seria, portanto, nessa ordem de ideias, a condição prévia, necessária, para descobri-lo teoricamente. 

 Não hesito em dizer que, na raiz da nova teoria sociológica, está uma assunção do novo fato sociológico a que me referia acima. A nuança nacionalista desta teoria não é arbitrária, tem seu fundamento na realidade empírica concreta.

 É porque esse fundamento existe, pode-se afirmar, sem exagero, que começamos hoje, no Brasil, a poder exportar ideias sociológicas. Por exemplo, em alguns aspectos, a sociologia anglo-americana está atrasada em relação à brasileira. Nos Estados Unidos e na Inglaterra ainda se levam a sério a antropologia cultural e a etnologia de caráter empírico, enquanto no Brasil ela constitui fenômeno de arcadismo. Também, em nosso país, os estudos sociológicos sobre relações de raça sobrepujam, em qualidade, os norte-americanos. Basta dizer que só agora se esta problematizando a brancura nos Estados Unidos (vide o livor de Frankin Frazier [2], La Bourgeoisie [2], La bourgeoisie, enquanto no Brasil isto já faz desde 1950 graças ao movimento do Teatro Experimental do Negro, que instalou uma nova visão das relações de raça em nosso meio. Finalmente, os Estados Unidos não têm uma teoria sociológica de análise macroscópica ou global, enquanto no Brasil já a temos e já a aplicamos em larga escala.

 Tudo isto são fatos. Não são sentimentos. Em tais condições, o nosso nacionalismo não pode ser confundido com xenofobia.

 Na medida em que vivemos verdadeiramente nacional, não passamos a discernir apenas as falácias dos sistemas sociológicos estrangeiros: também se revela de maneira nítida a situação deplorável em que ficam os intelectuais brasileiros, que, até agora, se mantêm alheios ao que está ocorrendo no Brasil.

 No domínio das ciências sociais, esse alheamento é particularmente lastimável. Pirandeliano. [3]

Notas
[1] Cf. DUFRENNE, M. & RICOEUR, P. Karl Jaspers et la Philiosphie de l'Existence. Ed. du Seuil, 1947. 
[2] FRAZIER, Franklin. La Bourgeoisie Noire, Plon. Paris, 1955. 
[3] O Jornal, 1/7/56.

Nenhum comentário:

Postar um comentário