segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A vida e a(s) economia(s)



"[Q]uando despida de sua estreita forma burguesa, o que é a riqueza, senão a totalidade das necessidades, capacidades, prazeres, potencialidades produtoras, etc., dos indivíduos, adquirida no intercâmbio universal? O que é, senão o pleno desenvolvimento do controle humano sobre as forças naturais -- tanto as suas próprias quanto as da chamada 'natureza'? O que é, senão a plena elaboração de suas faculdades criadoras, sem outros pressupostos salvo a evolução histórica precedente que faz da totalidade desta evolução -- i. e. , a evolução de todos os poderes humanos em si, não medidos por qualquer padrão previamente estabelecido -- um fim em si mesmo? O que é a riqueza, senão uma situação em que o homem não se reproduz a si mesmo numa forma determinada, limitada, mas sim em sua totalidade, se desvencilhando do passado e se integrando no movimento absoluto do tornar-se?''
Karl Marx, Formações econômicas pré-capitalistas  

 Para que serve a ''economia''? Aliás, o que é a ''economia''? Bem, estas não são questões que a maioria das pessoas pessoas se fazem com frequência, por motivos óbvios (ou não). Mas em geral elas sabem, ou pensam, que quando a ''economia'' vai mal, as coisas tendem a piorar para elas. E quando é que a ''economia'' ''vai mal''? Geralmente, aprendem, é quando o ''PIB'' cai, ou cresce demasiado lentamente.

 Economia, então, aparentemente significa ''economia empresarial'', ou melhor: produção empresarial de bens e serviços, produção de bens e serviços como mercadorias tendo por objetivo a venda destes com lucro. Aliás, dizem-nos alguns economistas chamados ''keynesianos'', eis o motivo de a vida da maioria das pessoas tender a piorar quando ''a economia vai mal'': são as empresas que empregam os trabalhadores, e só os empregam quando esperam vender mais (com lucro). Aliás, alguns deles, chamados ''neo-desenvolvimentistas'', dizem-nos que nossas indústrias estão sumindo e que os trabalhadores precisam fazer um aperto no cinto, aceitando a redução de salários reais (o poder de compra dos salários), para que o investimento na indústria volte a ser atrativo para os nossos capitalistas.

 Num certo sentido, nós -- os marxistas -- concordamos com estas coisas. ''Economia'' hoje, realmente é isso aí. Ou melhor: a maior parte da produção de bens e serviços, ou -- o que é mais ou menos a mesma coisa -- a produção da maior parte dos bens e serviços ocorre hoje sob forma (social) capitalista, ou seja: sob a propriedade privada dos meios de produção (as fábricas e instalações empresariais em geral, com suas máquinas e equipamentos; a maior parte das terras, com os recursos naturais nelas contidos, etc.), que tem como consequências os fatos gêmeos de que a) devido à não-posse de meios de produção, a maior parte da população é forçada, pela necessidade, a vender sua capacidade de trabalhar -- sua força de trabalho -- para conseguir se sustentar, o que permite aos proprietários dos meios de produção fazer esses trabalhadores produzirem riqueza para além daquela de que se apropriam sob a forma de salário, isto é: produzirem excedente; b) os produtos do trabalho social são apropriados de maneira privada pelos proprietários dos meios de produção, podendo ser vendidos e convertidos em lucro (que por sua vez pode ser usado para comprar bens e serviços para consumo individual ou novos meios de produção para investimento no capital empresarial, para acumulação).

 Repito: ''economia'' nos dias de hoje é isso aí. E não em todos os lugares do mundo, aliás. A produção capitalista é um fenômeno temporal e geograficamente particular; ''histórica e transitória'', portanto, nas palavras do velho Marx. Aliás, o nosso ponto de vista sobre as questões postas no início deste texto é que a ''economia'' é a reprodução, socialmente realizada, da vida material. Melhor dizendo: como você sabe, nós usamos e precisamos de um enorme conjunto de coisas, que sozinhos não podemos produzir; a produção dessas coisas, como seu transporte, distribuição e troca entre as pessoas, é feita socialmente, através da divisão social do trabalho.

 Uma consequência óbvia do nosso ponto de vista é que a atual economia ''empresarial'', capitalista, não é a única possível. E também não acreditamos que seja a melhor.

 Mas qual o critério para julgar que economia é pior ou melhor? Bem, essa pergunta nos leva de volta à pergunta que iniciou este texto: ''para que serve a economia?'', mas desta vez sob uma forma um pouco diferente: para que deve(ria) servir a economia?

 Minha opinião pessoal, construída tendo Marx por base (e sugiro reler o trecho citado acima deste texto), é que a economia deveria servir ao enriquecimento dos indivíduos. Mas oras, não é isso o que quase todo economista diz, mesmo os mais ''próximos'' das empresas, propagandistas do capitalismo etc.?

 Em aparência, ou forma, pode até ser. Mas o conteúdo das nossas ideias é muito diferente. Explico: a maior parte dos economistas, que pode até pensar que a economia capitalista não é uma coisa natural nem eterna, mas está basicamente satisfeita com as relações capitalistas de produção e/ou acha que ela é o tipo mais eficiente de economia que pode haver (ou que já houve, pelo menos), basicamente só consegue pensar em ''enriquecimento dos indivíduos'' como acumulação contínua e acelerada de capital; o PIB aumenta, e com ele os empregos, o dinheiro na mão das pessoas etc. Uma parte deles, aliás, se satisfaz com a concentração de (muito) dinheiro nas mãos de algumas pessoas; costumamos chamá-los de neoliberais, mas ''canalhas'', ''cretinos'' e similares são bons substitutos.

 E quanto aos marxistas, ou pelo menos a este (autodenominado) marxista que vos escreve, que é que pensamos (ou penso) sobre o que é ''enriquecimento dos indivíduos''? Bem, de primeira acreditamos que o dinheiro é uma forma social particular de riqueza, ou seja: uma forma de riqueza sob determinadas relações sociais (pense, por exemplo, em qual lhe seria a utilidade de 95 trilhões de reais ou mesmo dólares numa ilha deserta ou na Idade Média); o verdadeiro conteúdo da riqueza são os já citados bens e serviços, que, em sua diversidade, atendem às necessidades humanas -- que não se resumem à sobrevivência fisiológica, sendo historicamente constituídas.

 E o tal ''enriquecimento dos indivíduos'', o que é e/ou como deve ser? Primeiro, pegando o gancho do que acabei de dizer, ele é a satisfação das necessidades de toda e cada pessoa, através do acesso à riqueza concreta, aos bens e serviços necessários. E a forma de fazer isso, penso eu (como a maioria dos marxistas), passa pela alteração das relações sociais de produção, distribuição e troca, ou seja: rompendo-se com a propriedade privada dos meios de produção e a produção capitalista de mercadorias, e consequentemente com a exploração capitalista da força de trabalho (ou seja: com a utilização da força de trabalho para a produção de excedentes que se convertem em riqueza para os proprietários dos meios de produção).

 E o que viria no lugar? A conversão destes meios de produção em propriedade social, isto é, coletiva, dos povos, bem como o planejamento social do processo de produção, distribuição e troca dos bens e serviços visando a satisfação das necessidades das pessoas, inclusive regulando a jornada normal de trabalho, definindo o quanto do tempo das pessoas será tempo de trabalho e o quanto será tempo livre -- ''a verdadeira riqueza'' segundo Marx, pressupondo que neste ''tempo livre'' as pessoas estão com suas necessidades satisfeitas e podem dedicar-se a seus prazeres, ao exercício e aprimoramento de seus talentos etc.

 Em outras palavras: a transformação socialista da sociedade, o socialismo.

''Quando se diz que os interesses do capital e os interesses dos trabalhadores são os mesmos, isso significa apenas que capital e trabalho assalariado são dois aspectos de uma mesma relação. Um condiciona o outro como o usurário e o perdulário se condicionam reciprocamente.
Enquanto o trabalhador assalariado for trabalhador assalariado, sua sorte dependerá do capital; eis a tão enaltecida comunhão dos interesses entre o trabalhador e o capitalista.''
Karl Marx, Trabalho assalariado e capital  

domingo, 15 de outubro de 2017

Superpopulação relativa ao resgate?


 Expropriações em massa e radicalização da dependência 



 A segunda década do século XXI se encerra, no Brasil, com uma situação que pode ser considerada a pior derrota da classe trabalhadora brasileira desde o golpe civil-militar de 1964. Após o verdadeiro estelionato eleitoral praticado pelo governo Dilma após sua reeleição em 2014, tivemos o impeachment da presidente e a ascensão de Michel Temer à chefia formal da nação. Este governo, por sua vez, não tardou a propor reformas que modificam elementos centrais da vida social e da institucionalidade brasileira. Este texto se propõe a discutir essas reformas no contexto da acumulação capitalista e sua trajetória no Brasil e no mundo.

 I. Vinte anos de austeridade: a Emenda Constitucional 95

 No segundo semestre de 2016, o governo Temer propôs, como medida que supostamente causaria ''equilíbrio fiscal'' no ''longo prazo'', ajudando no controle da trajetória da dívida pública e afirmando ainda que isso ajudaria na retomada do crescimento econômico nacional, o congelamento do gasto público federal em termos reais, isto é: o gasto público federal seria reajustado de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, ou seja: com a inflação. Poderia aumentar em termos nominais (de R$ 2,00 para R$3,50, por exemplo), mas em termos de poder de compra continuaria a mesma coisa. O projeto, claro, foi aprovado no Congresso e na Câmara, a despeito dos avisos de diversos economistas e pesquisadores de que a medida não causará nenhuma retomada do crescimento (certamente atrapalhará, na verdade), que os saldos fiscais negativos podem ser 'corrigidos' através de outras medidas geradoras de receita (como um imposto sobre grandes fortunas), etc. 

 Até para uma criança, penso eu, deve ser óbvio que, caso se congele uma quantidade de recursos que irá servir a uma quantidade crescente de pessoas, o que se ganha é uma precarização progressiva dos bens e/ou serviços oferecidos. Os economistas Pedro Rossi e Esther Dweck -- professores da UNICAMP e da UFRJ, respectivamente -- expuseram de maneira clara neste documento a inevitável trajetória de piora e escasseamento de recursos na prestação dos serviços prestados pelo governo federal, além da impossibilidade de incluir outros serviços sem piorar ainda mais os já em prática e, também, a impossibilidade de exercer uma política de gastos públicos anticíclica como resposta a tendências recessivas na economia.

 De um ponto de vista marxista, como é que podemos analisar a tragédia que é (para a maioria da população brasileira) a EC 95? Em primeiro lugar, penso, temos de pensá-lo sob o ângulo dos seus efeitos sobre a disponibilidade de força de trabalho para o capital. Como sabemos desde 1867, dinheiro e mercadorias não são em si capital, como também não o são meios de produção e de subsistência; para que eles se tornem tal coisa, é preciso que os portadores de dinheiro e meios de produção e de subsistência (na quantidade necessária) encontrem, no mercado, trabalhadores 'livres', isto é, que sejam proprietários das próprias forças de trabalho e, por outro lado, estejam despojados de meios de produção, tendo basicamente apenas suas próprias forças de trabalho para vender em troca de dinheiro com o qual possam comprar meios de subsistência. Em outro texto que não o capítulo 24 do livro primeiro de O Capital, Marx nos diz que 

''O processo que, de um modo ou outro, separou a massa de indivíduos de suas anteriores relações afirmativas com as condições objetivas de trabalho, que negou taus relações e, portanto, transformou tais indivíduos em trabalhadores livres é, também, o mesmo processo que liberou estas condições objetivas de trabalho, potencialmente, de suas ligações prévias com os indivíduos agora delas separados. (Estas condições de trabalho incluem terra, matérias-primas, meios de subsistência, instrumentos de trabalho, dinheiro ou todos estes juntos.)''

Ou seja: o processo que expropria massas humanas e as transforma em massas de trabalhadores (forças de trabalho) disponíveis para o capital é não só um processo que as separa de meios de produção que anteriormente lhes pertenciam, mas de meios que as permitissem obter sua subsistência sem necessitar vender a força de trabalho em troca de um salário, ou seja: sem precisar realizar trabalho excedente, produzir mais-valor, para um capital. Englobando as contribuições de Karl Polanyi, que vê a origem do (que entende por) capitalismo na Inglaterra no fim da lei dos pobres, creio que podemos considerar que a eliminação das garantias legais e/ou da efetiva oferta de bens e serviços públicos que garantem à população uma subsistência independente do mercado (portanto, de uma renda monetária, em geral auferível somente mediante venda da força de trabalho -- para a maioria da população, pelo menos) como também uma expropriação que, se não cria mais populações disponíveis para o capital, mais força de trabalho livre, no mínimo aumenta o grau de dependência das massas proletárias já existentes em relação ao capital. O 'canal' dessa 'operação' não é um mistério: a eliminação ou precarização de bens e serviços públicos fundamentais torna necessário às pessoas recorrer aos serviços privados, os quais entretanto são acessíveis somente pagamento. Dada sua condição proletária, para a maioria da população isto significa a necessidade de vender sua força de trabalho por mais tempo ou de alguma maneira prestar mais trabalho, com o que se pode obter uma renda salarial maior. Mais trabalho realizado para os capitais significa realização de mais trabalho excedente, produção maior de produto excedente e de mais-valia. 

 O outro lado deste acontecimento, como imagino ser facilmente perceptível, é a criação de novos 'espaços de valorização', de acumulação, para o capital: se os serviços públicos não estão prestando, a iniciativa privada pode fornecê-los! Maravilhosa oportunidade de lucros. E o anúncio da intenção de criação dos 'planos de saúde populares' mostra que o capital não está perdendo o tempo de aproveitá-la. Às custas da população consumidora, tal como no caso da privatização de empresas telefônicas e de energia nos anos 90, que forneceu lucros exorbitantes paralelamente a serviços de qualidade inaceitavelmente abaixo da média mundial. 

II. A reforma da Previdência

 Muitos economistas discutem a questão da reforma da Previdência em termos de dificuldades fiscais; da necessidade de uma parcela cada vez maior da renda nacional ser destinada ao pagamento dos benefícios. Alguns, aparentemente acreditando que os impostos financiam o gasto público, afirmam que isso prejudicaria o crescimento da economia; outros parecem concordar com o autor destas linhas e outros adeptos da doutrina cartalista da moeda estatal [1] que um gasto público crescente não é problema para uma economia nacional com um Estado que emite sua própria moeda (ao menos não por si só), mas afirmam que essa situação de gasto público traria -- por um canal de causalidade que realmente não vi ser apresentado de maneira clara -- inflação, déficits em transações correntes e/ou outros efeitos que não são exatamente 'fiscais', mas que ainda sim justificam, para aqueles 'outros', que uma trajetória de crescentes gastos públicos deficitários e endividamento público seria uma 'crise fiscal'. Daí a necessidade, para eles, da reforma da Previdência. 

 De minha parte, creio que Estados que emitem suas próprias moedas não sofrem de restrições orçamentárias -- vejam a nota [1] -- e que, à maneira do princípio da demanda efetiva, os gastos determinam o nível de produção numa economia capitalista. Portanto, acredito que o problema de enfrentar uma transição demográfica tal como aquela que o Brasil está enfrentando é o de aumentar a produtividade social do trabalho, de maneira tal que o trabalho de uma parcela menor da população seja capaz de prover o que uma crescente parcela de idosos necessitará; significa, portanto, ter de transformar a estrutura produtiva da nossa economia. Ou de impedir que essa transição demográfica se efetive, aumentando a taxa de natalidade. Mas, neste caso, é preciso oferecer às mulheres e aos casais justificativas para ter uma natalidade mais alta. E isto pressupõe que a economia seja capaz de gerar subsistência em qualidade para essas famílias. Se nos prendermos ao horizonte da economia capitalista, isto significa a necessidade de prover emprego, renda e bens e serviços públicos na quantidade e qualidade necessárias.

 Mas passemos agora a uma análise desde o ponto de vista utilizado no item anterior, em que tratamos do congelamento dos serviços públicos sob a égide do 'Novo Regime Fiscal' instaurado pela Emenda Constitucional 95. A Previdência, caso não esteja claro para os leitores, é um benefício social que garante à população uma certa subsistência sem que se faça necessária a venda da força de trabalho. Em outras palavras, é uma restrição à plena disponibilidade da força de trabalho para o capital, na medida que permite às pessoas sobreviver sem receber um salário. O aumento da idade mínima e do tempo mínimo de contribuição necessários para a aposentadoria são, assim, meios de aumentar o grau de disponibilidade da força de trabalho para o capital, como efeitos análogos aos expostos no item I. 

 Para análises de alguns economistas com os quais tenho afinidade analítica e política sobre o tema da Previdência, ver [2].

III. A reforma trabalhista

 Que podemos dizer da reforma trabalhista proposta pelo governo Temer e seus aliados, e muito bem aceitas por todo o patronato brasileiro? Posso relatar aqui que nem aqueles economistas que mencionei verem a 'necessidade' de uma reforma da previdência por motivos de riscos 'fiscais' como inflação, déficits em transações correntes etc acharam que esta reforma teria algo de positivo, pelo contrário; foram veementemente contra. Para sair de subjetividades, posso indicar aqui esta nota técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE. Relações de trabalho profundamente precarizadas, no contexto de uma alta taxa de desemprego, com o consequente grande ganho de poder de barganha para os proprietários dos meios de produção -- os ''job creators'' tão queridos pela teologia liberal do empreendedorismo -- sobre os trabalhadores. 

IV. O horizonte próximo da Terra de Vera Cruz 

 Que podemos esperar para o Brasil nos próximos anos? Exceto para alguns iludidos e outros nem tão verdadeiros otimistas, mas que têm interesse na promoção de ilusões desse tipo, o que parece aguardar a economia capitalista brasileira -- dependente, periférica, subordinada -- é uma relativa estagnação em termos de crescimento do produto interno bruto e da renda per capita, dado o contexto de grande capacidade ociosa na indústria (que leva as empresas a adiarem investimentos), a insegurança de famílias endividadas e afetadas pelo desemprego, um crescimento pouco dinâmico do comércio mundial e, como se não fosse o bastante, o congelamento do gasto público federal e a relutância do Banco Central em alterar sua política de taxa básica de juros. Juntando-se tudo isto tem-se que setor privado, setor externo e setor público apresentam, todos, pouco dinamismo para contribuir ao crescimento econômico brasileiro. O que significa manutenção do trágico nível de desemprego que afeta mais de uma dezena de milhões de brasileiros atualmente.

 O conjunto das reformas (e o reforço da disponibilidade da força de trabalho ao capital), unidas a este alto grau de desemprego, significa também que podemos esperar pelo aumento do grau de exploração da força de trabalho -- isto é, da taxa de mais-valia. Salários reais menores, jornadas em maior extensão e intensidade certamente aguardam a classe trabalhadora brasileira, como se esta já não tivesse de lidar com problemas suficientes. É a velha superexploração da força de trabalho de que nos falava Ruy Mauro Marini.

 Estes salários menores significam um consumo de massas restrito. Com o congelamento dos gastos públicos congelados e dada a relação harmônica entre o padrão de consumo dos mais ricos (cujos bens de consumo típicos são cada vez mais importados ou têm participação crescente de produtos importados em sua composição), podemos esperar um mercado interno crescentemente truncado. As exportações, então, surgem como 'saída' para a venda dos produtos (e para a 'realização' da mais-valia) aqui produzidos. Mas o comércio mundial não vêm apresentando um crescimento lento? Pois é... eis a radicalização da dependência no sentido central posto pelo Marini na Dialética da Dependência de 1973.

 Um país com um número crescente de miseráveis, com crescente concentração de renda e riqueza e com os efeitos prejudiciais da sobrecarga de trabalho atacando a saúde e a vida de cada vez mais trabalhadores: eis o projeto burguês para o Brasil. Felizmente, não é necessário que ele triunfe. A classe trabalhadora organizada, e aqui podemos incluir sua juventude, tem força mais que suficiente para pôr um basta nisso e, melhor ainda, impor um projeto de país que represente os seus interesses, contra os interesses dos latifundiários, da FIESP, da bancocracia e de todos os parasitas representantes destes últimos no Congresso; no (desejado) limite, o projeto socialista de sociedade. Como podemos proceder para tornar realidade a forma e o grau de organização necessários para tanto? Eis uma questão que foge à minha capacidade responder, mas que se impõe de maneira cada vez forte a todos os interessados no progresso da luta dos trabalhadores e na Revolução Brasileira. 


Notas e referências 

[1] A doutrina cartalista da moeda (e dos impostos) nasce basicamente com Knapp e sua 'state theory of money'. Ao longo do século XX, ela evolui com o trabalho de autores como Abba Lerner, William Vickrey e Evsey Domar, economistas que também eram adeptos do 'princípio da demanda efetiva' de Keynes (e Kalecki). Mais recentemente, autores como Matthew Forstater, Pavlina Tcherneva, Randall Wray, Sergio Cesaratto e, no e do Brasil, Franklin Serrano e Felipe Rezende têm buscado atualizar e 'operacionalizar' o aparato analítico da doutrina cartalista. 

[2] https://goo.gl/db9AYc

domingo, 8 de outubro de 2017

Desenvolvimento econômico não-capitalista?


 Sobre uma alternativa histórica de reprodução social da vida material e suas condições, consequências e possibilidades



 Momentos como o que o Brasil vive -- isto é, no aparente fim de uma enorme recessão que elevou a taxa de desemprego de 4.5% para acima de 13% e fez o produto interno bruto (PIB) recuar em mais de 7% em 2 anos -- parecem aumentar e intensificar os debates sobre o ''desenvolvimento econômico'' em sentido popular, isto é, sobre a melhoria do padrão de vida da população e seus condicionantes e consequências. 

 Essa reflexão, entretanto, já há algum tempo parece acontecer sob o horizonte do modo de produção capitalista e, ainda mais, sob os preconceitos e cegueiras particulares do pensamento econômico marginalista (ortodoxo) e da teologia liberal do 'empreendedorismo', sob o peso dos quais a 'imagem' do processo de ''desenvolvimento econômico'' parece ser a de vários jovens 'empreendedores' abrindo mais uma lojinha de açaí com visual rústico e um social media high-tech, quando não solicitações ou imposições à classe trabalhadora a que aceite a redução de salários reais e o aumento e intensificação da jornada de trabalho a fim de aumentar a competitividade da 'indústria nacional', como condição para a manutenção de seus empregos, dentre outras coisas (como consecutivas reformas redutoras dos benefícios da Previdência social). 

 Um debate de qualidade bastante superior -- já livre dos pressupostos e conclusões irrealistas da teoria neoclássica, por exemplo -- é feito pelos economistas estruturalistas e/ou de orientação clássica, ligados àquilo que interpretam como sendo a 'abordagem do excedente' que ligaria Smith e Ricardo a Marx, Quesnay, Petty e outros. Veja-se, por exemplo, este artigo dos professores Franklin Serrano e Carlos Aguiar de Medeiros, ambos do IE-UFRJ. Aqui, põe-se de maneira clara questões como problema de subutilização da capacidade produtiva (isto é, desemprego involuntário e ociosidade da capacidade instalada nas indústrias) que normalmente afeta as economias capitalistas, as diferentes estruturas produtivas associadas a diferentes ramos de produção e suas características (como os diferentes níveis e ganhos de produtividade associados com técnicas produtivas e escalas de produção distintas, em diferentes ramos de produção), o papel central desempenhado por fatores sócio-político-institucionais na determinação da distribuição da renda e da riqueza na sociedade, a restrição externa ao crescimento advinda da escassez de divisas e sua conexão com a especialização produtiva dos países, etc. Entre estes economistas, a discussão sobre as diversas possibilidades de política econômica acontece de maneira muito mais ampla e aberta do que entre ortodoxos e liberais.

 Um nível além neste debate estão, acredito eu, os pesquisadores (em maioria marxistas) que enfatizam a historicidade e transitoriedade do modo de produção capitalista, dando papel central ao fato de que a forma capitalista da produção social implica a subordinação desta à lógica de 'desenvolvimento' do capital (no sentido do processo através do qual o capital acumula, ampliando-se e abarcando cada vez mais regiões geográficas e dimensões da vida humana), assim como às possibilidades de um ''desenvolvimento econômico não-capitalista''.

 Aprofundemo-nos sobre esta última perspectiva. Que significa um ''desenvolvimento econômico não-capitalista'' ou, para fins práticos e de maneira coerente com o projeto político marxista, um ''desenvolvimento econômico socialista'' -- e quais são as suas condições, possibilidades e implicações? Antes de mais nada, é condição fundamental para isto que a propriedade privada dos meios de produção (recursos naturais, máquinas, equipamentos) -- condição básica do modo de produção capitalista -- tenha sido abolida e substituída pela propriedade social, coletiva, dos mesmos. Com este novo regime de propriedade, abre-se aos produtores diretos/trabalhadores -- os verdadeiros produtores -- a possibilidade de apropriarem-se da maior parte da produção; coisa que distingue da situação na maior parte do mundo capitalista e durante a maior parte do tempo de existência deste modo de produção, onde não só houve e há grande desigualdade de renda como também a maior parte desta era e é apropriada pela minoria proprietária.

  Falamos sobre distribuição. E quanto à produção, ou melhor, à composição do produto social e as técnicas produtivas utilizadas, as condições de trabalho envolvidas etc?  Em primeiro lugar, a propriedade social dos meios de produção permitem que esta já não ocorra sob as decisões particulares de produtores privados e formalmente independentes entre si -- que levam o produto de seus trabalhos (ou das pessoas sob seu comando) ao mercado para trocá-lo por outros produtos ou por dinheiro --, mas sim como produção submetida a um plano social, portanto realizada por um organismo produtivo cujas partes (os indivíduos, as unidades produtivas) estão diretamente conectadas e não apenas indiretamente, via mercado. Isto significa que a composição da produção pode e deve se dar através da verificação das necessidades e demandas da população. Um exemplo: a população deseja um aumento da oferta de alimentos e da qualidade dos mesmos, então o organismo social produtivo -- que é composto por boa parte dessas mesmas pessoas -- aloca recursos humanos, técnicos e naturais de maneira a aumentar a produção, bem como utiliza técnicas produtivas e tecnologias diferentes para aumentar a qualidade do produto desde sua produção até o armazenamento, passando pelo transporte, até que chegue às mãos dos consumidores finais. O mesmo pode ser dito de móveis, roupas, videogames, máquinas hospitalares, instrumentos musicais...

 E quanto às técnicas produtivas utilizadas e às condições de trabalho envolvidas? A forma socialista da produção implica que esta ocorra sob a finalidade de satisfação das necessidades e demandas da população, e não como um cálculo de rentabilidade visando maximizar lucro. Assim, enquanto uma empresa capitalista, se tiver que escolher entre uma determinada técnica produtiva que poupa trabalho (''labor-saving'') e outra mais ''trabalho-intensiva'', escolherá aquela que é mais barata, as unidades produtivas socializadas podem e devem ter critérios de escolha de técnicas ligados ao bem-estar das pessoas (tanto enquanto produtores quanto como consumidores) e à sustentabilidade ecológica, dentre outras coisas. Assim, por exemplo, se postas sob a necessidade de escolher entre uma técnica que permita a redução da jornada de trabalho e outra que não o faz, sendo de resto bastante semelhantes, podem e devem escolher a primeira. O controle direto dos produtores sobre os meios de produção também permite que a jornada de trabalho e o ritmo do mesmo sejam determinados não sob o império de metas quantitativas de produção ligadas ao imperativo de transformar uma quantidade abstrata em uma quantidade maior (produzir mais para vender mais para lucrar mais, o que faz parte da natureza do capital), mas sim, por exemplo, de modo a minimizar a quantidade de esforço e desgaste físico necessários para um dado plano de metas de produção ligado às necessidades concretas da população; assim, para um dado plano de metas ou conjunto de necessidades, um aumento da produtividade do trabalho propiciado pelo descobrimento de alguma nova técnica produtiva permite a redução da jornada e/ou intensidade do trabalho, aumentando o tempo livre dos produtores.

 Há muitas coisas que ainda podemos falar sobre as possibilidades da produção socialista, planejada. Exemplos: o plano social pode incluir a construção de mais estradas e/ou de vias de transporte de produtos via bacias hidrográficas, facilitando o acesso de algumas populações a eles; a distribuição geográfica das unidades produtivas e da riqueza enquanto acesso concreto a bens e serviços pode ser ''igualizada'', substituindo o grande desequilíbrio regional que caracteriza atualmente o Brasil e tantos outros países capitalistas; as cidades podem ser planejadas de maneira a terem vários 'núcleos' com escolas, hospitais, áreas de lazer, de maneira que as pessoas não tenham de realizar longos trajetos para ter acessos a esses serviços num local que as concentre geograficamente; etc.

 Isto é apenas uma nota introdutória, um rascunho para um debate sobre as grandes possibilidades de melhoria dos padrões de vida da maioria da população que o socialismo pode fazer e que a meu ver pode desempenhar um papel interessante na atividade de agitação e propaganda e na atração de corações e mentes da classe trabalhadora para o projeto socialista.


P. S. Sugiro, além do supracitado artigo da dupla Franklin Serrano e Carlos Medeiros, a leitura deste, deste e deste artigos.
P. P. S. Eu não afirmei no texto e não sei se ficou claro, então vou explicitar aqui: no sistema de propriedade social e planejamento da produção conforme as necessidades da sociedade, não há o fenômeno do desemprego involuntário nem as suas consequências, que tanto horror causam a muita gente no mundo capitalista (particularmente após o fim das políticas keynesianas de pleno emprego do 2º pós-guerra). Isto porque, em primeiro lugar, a força de trabalho não é mais uma mercadoria, dado que os produtores (os trabalhadores) têm acesso aos meios de produção, e em segundo lugar porque mesmo aqueles que não estiverem trabalhando (como crianças, idosos, algumas pessoas portadoras de deficiência física ou temporariamente incapacitadas de trabalhar por motivo de acidente ou doença etc.) podem ter a satisfação de suas necessidades garantida através do plano social de produção, distribuição, troca e consumo da riqueza produzida pelo trabalho do organismo social. 

domingo, 13 de agosto de 2017

A austeridade fiscal é o melhor meio - ou mesmo chega a ser um meio eficiente - de garantir o equilíbrio fiscal e a estabilidade da dívida pública?


''Cuts'' = cortes, em inglês.


 Não é consensual entre economistas a tese de que o assim chamado ‘’equilíbrio fiscal’’ (o equilíbrio entre a arrecadação T e os gastos primários, não-financeiros G), bem como a estabilidade da dívida pública em níveis baixos como % do PIB, serem coisas boas em si mesmas [1]. Ainda mais controversa, entretanto, é a tese segundo a qual cortes ou o congelamento do gasto primário são meios eficientes de conseguir tais coisas.

 Primeiro, a maior parte dos economistas concorda que pelo menos no chamado ‘’curto prazo’’ (quando a quantidade de pelo menos um dos ‘’fatores de produção’’ não pode ser alterada -- portanto uma categoria de tempo lógico, não tempo histórico, concreto), é a demanda (isto é, os gastos) que determina(m) o nível de produção e emprego, e que os gastos determinam unilateralmente a renda (o que alguém ganha é o que outro alguém gasta). Assim, o gasto público G faz parte da renda nacional Y, o PIB, que também é composto pelo consumo das famílias C, o investimento (privado) I e as ‘’exportações líquidas’’/o saldo da balança comercial -- ou seja, exportações menos importações (X-M). Lembremos que o resultado, balanço ou saldo fiscal/primário é a equação T-G, e que T dependerá das alíquotas de tributação, da fiscalização sobre sonegação etc, e também -- fundamentalmente -- da renda agregada Y. Se Y cai, a receita tributária/arrecadação T tende a cair, de maneira que se pode dizer que os déficits primários (resultados negativos no saldo fiscal) são ‘’endógenos’’ ao ciclo econômico. 

 Outra questão importante é o chamado ‘’efeito (ou mecanismo) multiplicador’’ de gastos:

Cada real gasto pelo governo se transforma em renda para o agente privado que lhe fornece bens e serviços. Com sua renda aumentada pelo valor do gasto público, o agente privado amplia os seus próprios gastos de consumo, de acordo com sua propensão marginal a consumir* aumentando, deste modo, a renda daqueles que atendem à sua demanda de consumo. Também esses últimos consumirão parte da renda que receberam, poupando o restante, transmitindo o impulso de aumento de demanda para os seus próprios fornecedores. Este processo pelo qual a despesa inicial, no caso o gasto público, induz gastos de consumo adicionais é o que Keynes chamou na GT [Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda; ''General Theory...'', no original] de multiplicador.** [2]
  
*Isto é a proporção em que acréscimos de renda se convertem em acréscimos de gastos de consumo. Essa proporção é menor do que a unidade, dado que o consumidor reserva parte de seu acréscimo de renda para uso futuro, ou, em outras palavras, poupa parte de seu acréscimo de renda.
**O multiplicador é apenas o resultado do fato de que o gasto de um indivíduo em bens e serviços aumenta a renda do provedor desses mesmos bens e serviços, colocando este último em posição de reajustar seus próprios gastos de consumo, impactando, assim, a renda de um terceiro agente e assim sucessivamente. Note-se, porém, que o multiplicador não é infinito, porque a cada rodada o gasto passado à frente é menor que o recebido, já que cada agente poupa (isto é, deixa de demandar bens e serviços) parte da renda recebida.

 A depender do efeito multiplicador dos gastos cortados, que por sua vez dependerá do tipo de gasto cortado, da distribuição de renda no país (relacionada ao fato de que os mais pobres tendem a gastar tudo o que ganham e costumam comprar menos produtos importados que os mais ricos) e de outros fatores, o corte pode fazer a renda agregada Y e a arrecadação T caírem mais do que proporcionalmente à redução de G, fazendo o déficit primário (T-G<0) aumentar ainda mais…

...E eis que entramos em outro ponto relevante, a política monetária do governo, na forma da taxa básica de juros (no Brasil, a taxa SELiC). Ela é, ao mesmo tempo, um piso para as demais taxas de juros da economia, um custo de oportunidade para a aplicação de dinheiro e o custo de financiamento de boa parte dos títulos e obrigações a pagar dos quais é composta a dívida pública, definindo a carga de juros nominais J a ser paga por esses títulos (T-G-J é a equação que define o chamado ''saldo nominal'' das contas públicas). Uma taxa de juros relativamente alta desincentiva a tomada de crédito para consumo e investimento e se, mesmo descontada pela inflação (isto é, como ‘’taxa real de juros’’), for maior que a taxa de crescimento anual do PIB, implicará uma dinâmica de crescimento persistente da dívida pública como % do PIB [3].   

 O congelamento do gasto público, portanto (e ainda mais associado a uma taxa de juros injustificadamente alta [4, 5]), não garante nem o equilíbrio fiscal nem a estabilidade da dívida pública. Garante, isso sim, a precarização dos bens e serviços públicos [6, 7, 8] e a manutenção de uma alta e trágica (para os trabalhadores) taxa de desemprego. 

 O que podemos, então, propor como método para reerguer a arrecadação e pôr a economia nacional no caminho do equilíbrio fiscal e da estabilidade da dívida pública? Sem maiores detalhes, podemos afirmar com segurança o seguinte: retomar e intensificar os investimentos em infraestrutura (que além de aumentarem diretamente a renda e o emprego, trazem externalidades positivas para a produtividade do setor privado), reduzir a taxa básica de juros a níveis aceitáveis [9] e fazer mudanças na tributação para direcionar a carga tributária para os mais ricos, estabelecendo impostos sobre grandes fortunas e reestabelecendo o imposto sobre lucros e dividendos, extinto aqui em 1995 e presente na absoluta maioria dos países [10]. Um aumento do gasto público que tivesse como contrapartida estas últimas medidas teria efeito expansivo ‘’líquido’’ sobre o PIB, na medida em que as rendas tributadas ou não seriam gastas, ou seriam usadas na compra de produtos importados. 




REFERÊNCIAS

[1] Ver o capítulo 4, ‘’Dispêndio público, déficits e moeda’’, em WRAY, L. Randall. Trabalho e moeda hoje: a chave para o pleno emprego e a estabilidade dos preços. Editora UFRJ, 2003. Ver também https://goo.gl/YprtyW
[2] DE CARVALHO, Fernando JJ Cardim. Equilíbrio fiscal e política econômica keynesiana. Análise econômica, v. 26, n. 50, 2008. Disponível em https://goo.gl/XX8o4z
[3] Ver Item 1.1, seção 1: BASTOS, Carlos Pinkusfeld; RODRIGUES, Roberto; LARA, Fernando Maccari. As finanças públicas e o impacto fiscal entre 2003 e 2012: 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Ensaios FEE, v. 36, n. 3, p. 675, 2015. Disponível em https://goo.gl/o2j6ER
[4] https://goo.gl/P9AKGt
[5] https://goo.gl/3QLHAV
[6] Veja o artigo de Pedro Rossi e Esther Dweck, ‘’Impactos do Novo Regime Fiscal na saúde e educação’’, disponível em https://goo.gl/BWZvhM
[7] Para a relevância da provisão de bens e serviços públicos no processo de desenvolvimento de um país, veja o artigo de Carlos Pinkusfeld Monteiro Bastos e Bruno Oliveira, ‘’Desenvolvimento Econômico e Provisão de Bens e Serviços Públicos: Aspectos Teóricos deste Debate’’, disponível em https://goo.gl/Ce9WCL
[8] O congelamento dos gastos públicos já está afetando tragicamente a pesquisa científica no país: https://goo.gl/B6yYXQ
[9] https://goo.gl/bYmfST
[10] https://goo.gl/PJpsnQ




segunda-feira, 31 de julho de 2017

Nós podemos controlar as nossas vidas?





''[O] capital e sua autoexpansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da produção; a produção existe para o capital, ao invés de os meios de produção serem apenas meios de acelerar continuamente o desenvolvimento do processo vital para a sociedade dos produtores. (...) Não se produz meios de subsistência demais em relação à população existente. Pelo contrário, o que se produz é muito pouco para satisfazer, de maneira adequada e humana, a massa da população. (...) Não se produz riqueza demais. Mas a riqueza que se produz periodicamente é demais nas formas antagônicas do capitalismo.''
Karl Marx



 Segundo dados oficiais, o primeiro trimestre deste ano terminou com o desemprego aberto -- isto é, excluindo todos aqueles que desistiram de procurar empregos e/ou estão no ''desemprego disfarçado'', como atividades informais de todo tipo -- no triste número de 14,2 milhões de pessoas, com a taxa de 13,7% [1]. Entre os jovens, a taxa sobre para mais de 25% [2, 3]. No país todo, mas com mais destaque no Rio de Janeiro, servidores públicos sofrem com salários parcelados, aposentados têm seus benefícios atrasados e serviços públicos de importância tal como o da UERJ definham totalmente [4]. Tudo isso, se não nos deixa chocados, deveria. Pois trata-se de uma absurda subutilização de vastos recursos humanos e materiais disponíveis -- recursos que poderiam estar servindo às necessidades de várias pessoas. E no caso do desemprego, temos um fenômeno particularmente cruel, pois que, para a maioria das pessoas, desemprego involuntário é sinônimo de pobreza, bem como sentimento auto-depreciativo: o desempregado se vê como um fardo.

 Além disso, vejamos a questão do tempo. Quanto tempo livre nós temos, por dia? Por semana? Para a maioria de nós, a maior parte do dia é tempo gasto com estudos, com o trabalho, com ida e volta do trabalho ou da escola/faculdade, com arrumação da casa etc.; em suma, a maior parte do tempo é tempo gasto com necessidades. O tempo livre, tempo que pode ser dedicado ao ócio ou a uma atividade livremente escolhida, é escasso -- e não raro não pode ser usado naquilo que efetivamente se gostaria de fazer, porque não temos recursos (no geral, dinheiro -- ou algo que se poderia obter com dinheiro) para isso.

 E falando em trabalho, você está satisfeito com o seu emprego (caso você tenha um)? É o que realmente gostaria de fazer da sua vida? As condições são boas? Te permitem ter uma boa vida? Você acha que ele ocupa o tempo necessário da sua vida para as suas necessidades ou mais do que isso? Vou arriscar que a resposta para as 4 primeiras perguntas é não, e chutar a segunda opção para a última pergunta. Pois esse é provavelmente o caso da maior parte da população brasileira, senão mundial.

 E o que tudo isso revela -- ou pelo menos sugere? A mim me parece óbvio: nós simplesmente nos vemos sem controle sobre as nossas vidas. Não falo de ''nós'' somente no sentido de ''a soma de todos os indivíduos singulares e suas respectivas vidas'', mas mesmo enquanto sociedade; a nossa sociedade perdeu o controle sobre seus rumos. Por que isso acontece? Por que não usamos toda os recursos produtivos da sociedade para satisfazer as necessidades (em sentido amplo) de todos e ao mesmo tempo aplicar o máximo de tecnologia e dividir ao máximo o trabalho entre as pessoas, maximizando o tempo livre de todos?

 Karl Marx e Friedrich Engels, os pais do socialismo científico -- o marxismo --, tentaram dar uma resposta. Eles notaram que uma severa transformação social começou a acontecer alguns séculos atrás e a mudar radicalmente todo o mundo: tratava-se da irrupção do modo de produção capitalista. Marx e Engels perceberam -- aliás como outros -- que, a fim de realizar vendas lucrativas, nobres e comerciantes estavam provocando um processo de expropriação das terras e instrumentos de inúmeros camponeses e nativos de terras ''descobertas'', escravização de negros africanos e de alguns nativos de outras regiões etc; isto porque, com os (altos) lucros das vendas que realizavam podiam comprar mais mercadorias; mercadorias estas que só eram/são o que eram/são porque, na ausência de uma regulação social direta da produção, os produtores -- formalmente autônomos, independentes -- produzem para a troca, para o ''mercado'' (e não para satisfazer necessidades). E quanto mais lucravam, mais aqueles nobres e comerciantes desejavam fazer os homens e mulheres que  agora precisavam vender sua força de trabalho por um salário para sobreviver trabalhar e produzir para eles.

 Convertidos em propriedade privada, as terras, os instrumentos de trabalho e as matérias-primas converteram-se assim em meio de extrair trabalho excedente dos outros -- que se viam sem outros meios de vida que não a venda contínua, permanente, de sua própria capacidade de trabalhar, sua força de trabalho (não raro, seja em termos absolutos ou relativos, por um péssimo salário). Uma transformação que não aconteceu sem resistência, aliás: foram 300 anos de luta camponesa na Europa contra o absolutismo do Estado e contra a ''submissão'' destes camponeses ao ''mercado de trabalho'', isto é, sua transformação em proletários que gastam seus dias a produzir riqueza alheia.

 O próprio Estado moderno (burguês) revelou-se como sendo, fundamentalmente, o guardião da propriedade privada -- reprimindo brutalmente as ameaças a ela.

 Assim, como diz a citação que abre esse mini-artigo, ao invés de os meios de produção -- matérias-primas, máquinas e instrumentos -- servirem à satisfação das necessidades de bem-estar material e tempo livre da vasta maioria da humanidade, esses mesmos meios de produção, bem como a força de trabalho humana, estão submetidos a um objetivo que é uma espécie de movimento autotélico: a ininterrupta transformação de dinheiro em mais dinheiro, num processo que inclusive não garante nem a plena utilização da capacidade produtiva instalada nem o pleno emprego de toda a mão-de-obra disponível. Se possível sem que seja preciso ''se sujar'' com a produção, mas, nos casos em que isso não é possível, acumulando a partir da cristalização de parte do trabalho dos trabalhadores em produto que não fica com eles, mas sim com o patrão, e que é a fonte de seus lucros através da venda; o chamado produto excedente.

 Uma tal situação, diziam-nos Marx e Engels, significa concentração de renda e riqueza nas mãos de uns poucos, falta de tempo livre (e excesso de trabalho) para as maiorias, pobreza para uma boa parte da população e miséria em alguns casos, que podem ser muitos, incontáveis. Precisamente essa terrível realidade em que estamos vivendo. Uma realidade frente à qual nós nos sentimos impotentes, fracos, frustrados e inseguros.

 Mas os 2 não se dedicaram somente a descrever essa situação, essas tendências da vida das sociedades ''modernas'', sociedades burguesas. Ao invés disso, e até mesmo em conexão com o seu trabalho de analisar e descrever a realidade, os 2 propuseram uma solução: expropriar os expropriadores, ou seja: transformar as terras, máquinas, instrumentos de trabalho de propriedade privada em ''propriedade'' coletiva, social, de todo o povo (ou todos os povos). E, através do consequente controle social/coletivo dos meios de produção, realizar um planejamento social da produção, visando a satisfação das necessidades de saúde, alimentação, moradia, vestimenta, educação, lazer, ócio etc. de todas as pessoas, utilizando-se para isso de toda a ciência e a tecnologia disponíveis.

 Propuseram, pois, um mundo em que as pessoas não tivessem de se preocupar com fome, desemprego, falta de um teto ou não-capacidade de pagar por atendimento médico, cada uma delas contribuindo com seu próprio trabalho (a tornar-se cada vez mais desnecessário com a adoção de novas e mais produtivas tecnologias) para a produção social da riqueza, e apontaram o caminho para isso. O caminho para que nós, não apenas como indivíduos, mas como sociedade -- e sobretudo como classe social que vive entre a exploração e quase completa a ausência de meios e subsistência --, (re)tomarmos o controle de nossas vidas.

 Saibamos acolher as lições deles.



[1] http://g1.globo.com/economia/noticia/desemprego-fica-em-137-no-1-trimestre-de-2017.ghtml
[2] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/02/1861571-um-quarto-dos-jovens-de-18-a-24-anos-estao-desempregados.shtml
[3] http://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2017/06/desemprego-entre-jovens-e-de-287.html
[4] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/uerj-suspende-ano-letivo-de-2017-por-tempo-indeterminado.ghtml

domingo, 30 de julho de 2017

Saída da crise? É a economia do déficit, estúpido!


Por Roberto Requião


Lamartine, em frente ao Hotel de Ville, em Paris, rejeita a bandeira vermelha. Pintura de Henri Félix Emmanuel Philippoteaux.
A feitio de prólogo, cito Alexis de Tocqueville, comentando a Revolução de 1848, na França:

 “Os líderes de partidos parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, a maioria por falta de qualquer virtude”.

Quem discorda que se repita hoje, o que foi dito tanto tempo atrás? Será que nosso destino será tão feliz quanto a França de 1848?

AUSTERIDADE?

Falarei sobre semântica. Não sobre hermenêutica. Sobre semântica. Especificamente, a origem e o significado das palavras. Mais do significado do que propriamente da origem. Isso porque as palavras, como é bem sabido, podem ter mais de um significado, o que às vezes tem consequências políticas consideráveis, sobretudo quando marteladas continuamente pela mídia em sentido dúbio.

Falarei inicialmente sobre a palavra “austeridade”.

Não há quem não tenha uma noção clara do significado imediato dessa palavra. Ela está associada, por exemplo, à atitude de um pai ou de uma mãe de família de comportamento extremamente comedido, alheio a qualquer tipo de excessos ou de vícios na vida privada ou pública.

Alguém que seja classificado de “austero” merece imediatamente a confiança e o respeito da comunidade onde vive.

Na economia neoliberal, entretanto, a palavra “austeridade” tem um significado inteiramente diferente.

Significa, em geral, uma espécie de código para forçar os governos a cortar gastos públicos e atacar o Estado de Bem-estar Social.

Por exemplo, quando nos apresentaram a emenda do congelamento dos gastos públicos por 20 anos, ela nos foi justificada como uma medida de “austeridade” fiscal “necessária” para o equilíbrio das finanças públicas.

Sendo o equilíbrio das finanças públicas presumivelmente essencial para a retomada do crescimento.

Acho que, passado o debate acalorado que tivemos, ninguém realmente acredito nisso!

É em nome da “austeridade” que a maior parte da União Europeia está sendo estrangulada por uma política econômica suicida e impedida de retomar a expansão econômica.

Um estudo publicado pela VoxEu, a que já me referi aqui, mostra o fracasso da política dita de “austeridade” para a maioria dos países europeus. Este é também o nosso caso.

O famigerado Plano Levy, em má hora adotada no início do segundo mandato da presidente Dilma, foi justificado como uma necessária medida de “austeridade”. E assim também tem sido, de forma obsessiva, sob o comando de Temer e Henrique Meirelles.

“Austeridade” no dicionário neoliberal oculto significa, especificamente, cortar de forma drástica os gastos públicos independentemente das necessidades da economia e da sociedade, cortar salários, cortar empregos, cortar investimentos, quebrar negócios e fazendas, promover o desemprego ou admitir como natural o aumento do desemprego.

A pergunta óbvia é: uma política de “austeridade” nesses termos ajuda a recuperação da economia?

A resposta é um sonoro não, como podemos inferir da própria realidade.

DÉFICIT?

A palavra “austeridade” está associada à condenação radical do “déficit” público pelos neoliberais.

Aqui também a palavra “déficit” tem dois significados, um de origem latina, indicando “falta” de alguma coisa, e outra exprimindo excessos supostamente irresponsáveis de gastos públicos sobre as receitas correntes do Estado.

Nesse sentido, “déficit” é uma espécie de contrário de “austeridade”: um governo austero, nessa definição, não faz “déficit”.

E um governo que não faz déficit real, mesmo que faça grandes déficits financeiros como o atual governo Temer, seria um “bom governo” para o bancos e para a imprensa.

DÍVIDA PÚBLICA?

Uma terceira palavra, esta composta, “dívida pública”, se associa aos conceitos de duplo significado que são em geral manipulados pela mídia, ou que a mídia difunde a partir de outros manipuladores, sobretudo da área financeira.

Assim como “déficit”, “dívida pública” tem conotação negativa, a partir da falsa ideia de que sempre representa ameaça de calote aos seus detentores, ou significando um peso a ser suportado por gerações futuras.

É uma falácia.

Esquece-se que dívida pública é uma instituição que nasceu com o capitalismo e faz parte intrinsecamente da própria estrutura do capital.

Os capitalistas precisam de instrumentos financeiros para acumular seus lucros, antes de fazer novos investimentos, e o instrumento para isso é a dívida pública.

Uma vez que, a médio e longo prazo, os instrumentos financeiros privados não são suficientemente seguros e confiáveis.

Quando protestam contra o aumento da dívida púbica fora da órbita estrita do capital financeiro– isto é, quando o aumento da dívida decorre de investimentos e gastos reais em favor do povo – eles protestam contra o aumento da dívida através da mídia controlada.

O que lhes incomoda de fato não a dívida, que compram com entusiasmo, mas os gastos em favor do povo. Não se verá protesto dos capitalistas quando a dívida pública aumenta por conta de juros estratosféricos.

RESPONSABILIDADE?

Finalmente, temos um conceito tão poderoso em sua eficácia manipuladora que se tornou nome de lei. É a chamada “Lei de Responsabilidade Fiscal”.

Quem, em sã consciência, poderia ser contra a responsabilidade fiscal, entendida como adequação dos gastos públicos às necessidades objetivas da população e à capacidade de financiamento do Estado, incluindo um endividamento bem ancorado?

Mas, por trás desse conceito, o objetivo explícito é reduzir os gastos dos entes federativos, sobretudo os associados a serviços públicos, para ampliar o espaço de exploração para o setor privado.

A lei limita os gastos de pessoal e custeio dos Estados e municípios a 60% da receita corrente líquida, presumindo que seria uma irresponsabilidade fiscal ultrapassar esse limite.

Contudo, Estados e Municípios, diferentemente da União, são principalmente prestadores de serviços públicos nas áreas de educação, saúde e segurança.

Setores que necessariamente mobilizam grande contingente de funcionários, e não necessariamente pesados investimentos.

Além disso, a demanda de pessoal depende do próprio investimento: o custeio anual de um hospital, por exemplo, corresponde em geral ao custo de um hospital novo.

Se o município construir um hospital, com sua margem de investimento de 40%, não poderá colocá-lo em funcionamento porque a contratação de pessoal ultrapassaria o limite de 60%.

A chamada lei de responsabilidade fiscal leva a construir hospitais e escolas sem permitir que haja recursos para os médicos e professores.

A ineficácia da Lei de Responsabilidade Fiscal não se revela em seu descumprimento.

Revela-se no fato de que, anos depois de sua edição, ela não conseguiu dar qualquer contribuição ao equilíbrio fiscal de Estados e Municípios, que entraram numa crise fiscal sem paralelo por força sobretudo da recessão e de fatores como a crise da Petrobrás.

E por causa da irresponsabilidade fiscal do Governo federal em baixar e manter programas fiscais recessivos, através da contração de investimentos e das taxas de juros básicas extorsivas.

Examinado cada uma dessas palavras ou conceitos, podemos observar as razões mais profundas de sua manipulação pela mídia.

CICLOS ECONÔMICOS E POLÍTICA ANTI-CÍCLICA?

Vejamos a manipulação da palavra “déficit”.

A economia capitalista não segue um curso linear. Ora cresce, ora se estabiliza ou se contrai em ciclos sucessivos.

No caso de uma contração, a razão é geralmente uma queda da demanda, do investimento, do gasto público ou do superávit com o exterior, neste caso quando se trata de uma economia super-exportadora. O setor privado, com vendas deprimidas, não tem como reverter por si mesmo o curso da queda da demanda.

Nessa situação, a recuperação depende essencialmente do gasto público: o investimento privado, como disse, não cresce porque não há aumento de demanda, e o superávit externo, exceto, como também mencionado, em economias estruturalmente exportadoras, não pode dar conta da retomada.

É o gasto público deficitário, dito autônomo porque não depende de outras variáveis, e sim exclusivamente da vontade mandatória do governo, que pode desencadear um processo de aumento de demanda. E por consequência produzirá um aumento do investimento, do emprego e, num círculo virtuoso, novamente da demanda e assim por diante, levando à retomada do PIB e da própria receita tributária, que cancelará o déficit, que já não é mais necessário.

Insista-se que o investimento público só terá efeito no crescimento se for feito a partir de um aumento da dívida pública.

Na recessão, só o “déficit” público real gera crescimento. Caso se tente fazê-lo a partir de tributação adicional, o efeito sobre o crescimento será nulo, pois o que se retira da economia sob a forma de impostos lhe é devolvido, nas mesmas proporções, como gasto público não deficitário.

Ao longo da retomada da economia, com o crescimento do PIB, o déficit deve ser zerado ou mesmo transformado num pequeno superávit, já que terá ocorrido aumento da receita.

Não estou apresentando nenhum delírio: é o que se chama política anticíclica, usada no mundo inteiro.

OS INIMIGOS DA RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA

Foi a base para o programa do New Deal com que o presidente Roosevelt acabou com a Grande Depressão nos Estados Unidos nos anos 30. Também foi a âncora das economias de bem-estar social no pós-guerra na Europa, levando-a à fronteira da civilização, até a reversão atual, pós 2008, ditada pelas políticas de “austeridade”.

A economia dos tecnocratas e dos neoliberais não explica porque há tanta resistência das classes dominantes e das elites dirigentes aos déficits temporários para financiar o aumento da demanda.

Sim, porque uma política que não propõe aumento de tributos a curto prazo e ao mesmo tempo oferece ao setor privado a base de demanda para o crescimento de seus investimentos e lucros deveria ser aplaudida por todos.

Todavia, há uma questão ideológica por baixo também desse comportamento: um aumento dos gastos públicos deficitários significa reforçar ou ampliar pelo menos parte do Estado para atender necessidades básicas da população.

Isso não atende os interesses da banca, os maiores interessados em ganhar dinheiro com a política de “austeridade”, com a resistência ao “déficit” e ao aumento da dívida pública.

LULA REDUZIU A DÍVIDA PÚBLICA INOPORTUNAMENTE

Considero um dos grandes equívocos do Governo Lula a política de redução da dívida pública antes da consolidação de uma política de crescimento econômico sustentável.

Foi uma capitulação ao pensamento neoliberal, num momento em que não havia nenhuma necessidade disso por conta da confortável situação em reservas cambiais e do desemprego ainda elevado.

UM ANO DE TEMER

No atual Governo a situação é bem pior: abusa-se do endividamento e do aumento da dívida pública apenas para favorecer o capital financeiro através de taxas escorchantes de juros. Já não se financia nada com o déficit, em termos reais.

O aumento da dívida pública no governo Temer é dinheiro embolsado diretamente por financistas externos e internos, sem conexão com o financiamento das necessidades da população.

Disso nada fala a grande imprensa.

E quando fala, por pressão da realidade, dos juros altos, não estabelece relação com as decisões anti-nacionais e classistas do Banco Central ao fixa-los nas alturas.

Sequer fala que, em termos reais – isto é, descontada a inflação – estamos com juros básicos mais altos do que no Governo Dilma, para alegria dos banqueiros e financistas.

Dos juros para empréstimos ao povo só se fala em nota de pé de página, já que são simplesmente escandalosos, da ordem de 300 a 400% ao ano. Disso, porém, não vou falar agora. Hoje é o dia das palavras. Mais à frente falarei de números, sobretudo os números da economia Meirelles-Temer.

Como epígrafe, novamente Tocqueville:


Os líderes de partido parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, e a maioria por falta de qualquer virtude.



Originalmente publicado em Revista Opera

Dívida pública: mitos e realidade, por José Luís Fevereiro

Dívida pública como % do PIB ao redor do mundo. Dados de 2011




Dívida Pública: mitos e realidade


O problema da dívida não é a sua existência, mas a quem ela serve. Enquanto for remunerada a taxas de juros despropositadas ela serve à elite rentista

José Luis Fevereiro*, em 28/01/2016

Sobre a origem

A dívida pública brasileira é estimada em torno de R$3 trilhões (conforme a metodologia usada pode ser mais ou menos). Isso corresponde a cerca de 65% do PIB, no caso da dívida bruta, e a cerca de 49% do PIB na dívida líquida (descontadas as reservas). Em termos comparativos com outros países, não é uma dívida grande. O Japão deve mais de 230% do PIB, os EUA quase 100%. No entanto, desde 1994 até hoje, ela cresceu de cerca de R$50 bilhões para os valores atuais. No início dos anos 90, com o plano Collor, a dívida brasileira havia sido quase toda "esterilizada". O bloqueio dos ativos financeiros, a não incorporação da inflação de março de 90 (de quase 80%) e a posterior correção desses ativos em valores inferiores à inflação real corresponderam a um calote efetivo na dívida, que foi reduzida a valores muito baixos.

Reza a lenda, difundida pela mídia conservadora e pelos economistas liberais, que o crescimento da divida é resultado da "gastança" dos governos, culpa da Constituição de 88 que foi muito "generosa" com os direitos sociais, culpa dos aposentados - e por aí vai. Na verdade, com exceção de alguns anos do governo FHC e dos dois últimos anos do governo Dilma, em nenhum momento os gastos primários do governo (excluindo juros) foram maiores que a arrecadação de tributos e contribuições sociais. O chamado déficit primário foi exceção nos últimos 21 anos em relação aos superávits primários.

Na verdade, a história começa com o Plano Real e a sua concepção embutida de trocar inflação por dívida. Ao ancorar informalmente o real ao dólar e abrir o país às importações, com o objetivo de impedir remarcações de preço pelos produtores nacionais, o governo precisava de entrada de dólares para sustentar o câmbio e cobrir os déficits comerciais e de serviços nas contas externas. A forma de obtê-los foi o programa de privatizações e a subida alucinada da taxa de juros sobre a dívida pública, atraindo toda a sorte de capital especulativo. Taxas de juros reais (descontada a inflação) de mais de 10% ao ano eram normais nos anos 90.

Lula assume em 2003 com uma dívida pública já inflada para R$630 bilhões, decorrente exatamente dessas taxas de juros extravagantes. A política de juros elevados é mantida por Lula com Henrique Meirelles na presidência do Banco Central. A alegação era de que juros altos são essenciais numa economia com tendências inflacionárias crônicas. Dito assim, pode parecer que a inflação é algo no DNA do povo brasileiro ou decorrente da água que bebemos. Na verdade, duas são as razões estruturais para o Brasil ter uma taxa de inflação tão resiliente na faixa media dos 5 a 6%.

A primeira é que como economia em transição há um ajuste de preços relativos em curso que os países ricos já fizeram faz tempo. A elevação em termos reais do salário mínimo, bem como a melhoria dos padrões educacionais, encareceram o custo da mão de obra de baixa qualificação, elevando o preço dos serviços. A estabilidade da moeda e a abertura do crédito imobiliário (praticamente inexistente até então), mesmo que caro, encareceram o preço dos imóveis. Estes preços relativos os países ricos já corrigiram faz tempo. Por esta razão é impensável que possamos ter inflação Suíça, na faixa de 1 a 2% ao ano.

O segundo fator é a persistência de indexações indesejadas na economia brasileira. Diz-se entre economistas que uma das vertentes da luta de classes é o esforço em desindexar a renda do outro lado mantendo a sua perfeitamente indexada. Assim, o discurso conservador aponta a necessidade de desindexar o piso da previdência e agora até o próprio salário mínimo da inflação, possibilitando o "ajuste" em tempos de crise. Mas o Brasil é dos poucos países onde um contrato de aluguel de 30 meses vem com cláusula de reajuste anual, onde as concessões de serviços públicos têm cláusulas de reajuste anual indexadas a índices inflacionários, onde portanto a renda do patrimônio e do capital segue perfeitamente indexada sem contestações, reprogramando para a frente a inflação passada.

Neste cenário a política de juros altos, muito pouco eficaz no controle da inflação, nada mais é que um mecanismo de transferência de renda do conjunto da sociedade para os beneficiários do rentismo.

Dívida Pública: para que serve e para o que deveria servir

Na maior parte dos países a dívida pública é algo positivo. O Estado gastar mais do que arrecada para realizar investimentos em infraestrutura, educação, universalização da rede de saúde, benefícios que atingirão gerações, diluindo estes custos no tempo, sempre foi um instrumento positivo para acelerar o desenvolvimento. O maior desenvolvimento daí decorrente aumentará no momento seguinte a própria arrecadação tributária, aumentando a capacidade de gasto do estado. Obviamente que estamos falando de países que remuneram a sua divida com taxas próximas à inflação e em alguns casos até abaixo. Inacreditáveis taxas de 0,5% ao ano são frequentes no Japão, por exemplo. Não imagino que fosse possível taxas dessa natureza no Brasil porque nossa moeda não é considerada reserva de valor ao contrário do Dólar, do Yen e do Euro, mas taxas próximas à média da inflação (portanto taxa zero em termos reais) seriam perfeitamente possíveis.

Para além disso, dívida pública é fundamental como mecanismo de política econômica para regular a liquidez da economia induzindo maior ou menor crescimento. Se, por uma intervenção celestial, a dívida fosse extinta, teria que ser recriada.

O problema, portanto, da dívida brasileira não é o seu tamanho nem a sua existência. É a quem ela serve. Enquanto for remunerada a taxas de juros despropositadas, obrigando o estado a gerar superávits primários para a sustentar, ela serve à elite rentista. Retomar o controle público sobre a dívida, transformando-a em fator de financiamento do desenvolvimento econômico e social do Brasil, é o programa que a esquerda brasileira deve assumir como central.

Quanto dos nossos impostos vai anualmente para pagar a dívida

Em 2014 e 2015, zero. A União teve déficit primário e, portanto, não sobrou da arrecadação de impostos e contribuições nem um centavo para a dívida, fazendo com que toda ela fosse rolada com a emissão de novos títulos com vencimento a futuro. Mais do que isso, parte dos gastos primários do governo, o déficit primário, também foi financiado com emissão de dívida. Essa, aliás, é a razão da grita da mídia conservadora e dos defensores do rentismo, porque esta taxa de juros só é sustentável se a União obtiver robustos superávits primários, como aconteceu de 2003 a 2013.

Circula pelas redes sociais um gráfico em forma de pizza atribuído à Auditoria Cidadã da Divida (ACD) que mais confunde que explica. Essa "pizza" mostra a estrutura de gastos do Orçamento Geral da União e compara despropositadamente gastos com educação, saúde e investimentos, todos vinculados ao orçamento fiscal, com os gastos de amortizações e juros da dívida. Se tivesse, junto à mesma "pizza", algo que mostrasse a origem dos recursos do Orçamento Geral da União, veríamos que de 2003 a 2013 a maior parte dos recursos pagos na rubrica da dívida teriam vindo de captações de novos empréstimos com lançamento de novos títulos da dívida, restando uma parte menor paga com os superávits primários. Em 2014 e 2015, veríamos que os recursos captados com o lançamento de novos títulos da dívida superaram os valores pagos relativos à divida vincenda. A diferença é que de 2003 a 2013, o Brasil realizou superávits primários e, em 2014 e 2015, teve déficits cobertos com nova dívida.

Para os leigos em economia o tal gráfico passa a noção absurdamente errada de que, se não tivesse dívida, teríamos mais 45% do orçamento para gastar. No cenário de hoje, com déficit fiscal primário em 2014, 2015 e certamente em 2016, a decorrência de uma moratória ou suspensão de pagamentos da dívida seria a União ter que apertar mais ainda o orçamento por não ter como financiar o déficit. Paradoxalmente, significaria mais arroxo.

Dois apontamentos para uma política econômica de esquerda

Esclarecida a inviabilidade das soluções mitológicas como "suspenda-se o pagamento da dívida e a profecia Bíblica de que o mel jorrará para todos se cumprirá", é necessário pensar um programa de esquerda capaz de enfrentar a realidade.

O primeiro ponto obviamente será mudar o enfoque do enfrentamento da inflação. Este deverá passar pela desindexação de contratos, quebrando-se a reprogramação inercial da inflação passada para o futuro, preservando-se apenas a indexação do salário mínimo e da previdência, baixando a taxa de juros a patamares próximos à inflação, o que significa taxa real próxima a zero. Neste cenário torna-se sustentável ter déficits primários continuados (os EUA têm déficits primários ininterruptos desde 1960), aumentando significativamente a capacidade de gasto do Estado. Trata-se aqui de fazer da dívida uma aliada do desenvolvimento

O segundo ponto passa por uma reforma tributária efetiva que aumente a taxação do patrimônio e da renda, reduzindo os impostos indiretos que oneram o consumo e a produção. Aumentar a progressividade das alíquotas do Imposto de Renda, voltar a tributar distribuição de lucros, isento desde os anos 90, criar um imposto federal sobre heranças (a melhor e mais eficiente forma de tributar grandes fortunas).

Não pretendo nem tenho capacidade de esgotar este assunto, mas acho fundamental que a esquerda faça um debate sério sobre economia e aponte saídas reais fora da mitologia que com frequência a cerca - e que no máximo serve para fazer propaganda de má qualidade.

*Economista e dirigente nacional do PSOL

Os custos sociais da austeridade fiscal





 Embora muitos dos nossos colegas na esquerda (não menos na esquerda comunista) escrevam sobre ''austeridade'' -- e coisas intelectualmente rigorosas, inclusive --, é comum que se o faça sem oferecer uma definição precisa do termo, pois que este já é costumeiramente ligado ao corte de gastos, redução dos serviços públicos etc. 

 Pretendo trabalhar aqui com uma definição do termo e, a partir desta definição, determinar o que está no título deste post, isto é, o que seriam os custos sociais da austeridade fiscal. Além disso, como marxista, pretendo fazer uma análise que parta do ponto de vista da classe trabalhadora. Então, prossigamos: ''austeridade fiscal'', nos termos deste trabalho, deve ser entendida como as medidas que visam atingir o ''equilíbrio fiscal'' (igualdade entre despesas primárias e arrecadação tributária) ou mesmo a obtenção de superávits primários através da elevação da carga tributária -- seja pela criação de novos impostos, seja pelo aumento do valor cobrado a partir dos já existentes -- ou da redução dos gastos primários do governo, de maneira a reduzir a renda disponível (ou pelo menos o acesso real a bens e serviços) daqueles que necessitam dos serviços públicos graças ao seu nível de renda, o que engloba no mínimo a maior parte dos membros da classe trabalhadora (e, consequentemente, da população).  

 Da própria definição que estamos utilizando, já se revelam alguns dos problemas, mas vamos expô-los de maneira clara nas linhas abaixo.

1º) a austeridade fiscal tende a aumentar o desemprego ou, pelo menos, a impedir que o pleno emprego seja alcançado 

 A boa teoria econômica aponta a inexistência de um mecanismo automático que leve à plena utilização dos recursos produtivos numa economia capitalista. Isto já fora exposto por Marx no seu conceito de exército industrial de reserva [1], e, se é controverso se neste autor se acha (e/ou se se pode derivar) ou não uma teoria precisa do nível de utilização da capacidade instalada e emprego, uma tal teoria é-nos oferecida pelo princípio da demanda efetiva de Keynes e Kalecki [2, 3], ao qual pode-se juntar as reflexões de Ruy Mauro Marini [4]. Uma conclusão necessária dessas contribuições é que empresário algum contratará trabalhadores se não esperar que as mercadorias produzidas por estes sejam vendidas, ou seja, se não achar que haja demanda com capacidade de pagamento por essas mercadorias a preços que ofereçam pelo menos a taxa média de lucro (''preços de produção'') -- o que chamamos de demanda efetiva. (Note: é o gasto agregado, na forma de compras dos produtos, que vai determinar o nível de produção e emprego.) O corte de gastos primários pelo governo ou o aumento da cobrança de impostos num valor que seria gasto na compra de produtos nacionais e que não é revertido em aumento do gasto primário e nem compensado por aumento do gasto privado ocasiona na redução do nível de produção (e consequentemente do nível de utilização da capacidade instalada), com uma enorme tendência a causar aumento do desemprego. Caso compensado pelo aumento do gasto privado, pode ainda assim estar impedindo o ''atingimento'' do pleno emprego e/ou contribuindo para o aumento do endividamento das famílias e empresas e o comprometimento da renda das primeiras com o serviço de dívidas no futuro.

 É preciso destacar o fato de que, na medida em que o desemprego aumenta, pioram as condições de barganha dos trabalhadores e, consequentemente, mais fácil fica para os empregadores impor os salários e as condições de trabalho que quiserem para os trabalhadores -- e salários menores, bem como intensidade e jornada de trabalho maiores, além de não-pagamento de direitos trabalhistas, descaso com a segurança e a salubridade do local de trabalho etc são todos elementos que reduzem os custos médios de produção dos capitalistas, e consequentemente aumentam suas taxas de lucro.

2º) a austeridade fiscal pode impedir a realização de gastos de alta importância, relacionados ao desenvolvimento socioeconômico do país 

  O não-aumento ou mesmo corte dos gastos primários do governo pode impedir a realização de gastos necessários em saúde e educação públicas, infraestrutura, ciência e tecnologia, entre outras áreas. Os 2 primeiros são vitais à qualidade de vida de todos aqueles que não podem pagar pelos respectivos serviços privados sem passar por quaisquer privações mais consideráveis, condição na qual está a maioria da população brasileira: pobre e (ou ''porque'') pertencente à classe trabalhadora; os 3 últimos são fundamentais para o processo de sofisticação da estrutura produtiva do país, e mesmo para a determinação da capacidade de aumento da renda e riqueza no longo prazo, na medida em que países sem moeda conversível como o nosso necessitam substituir importações por produção nacional e/ou aumentar exportações a fim de fazer com que ''sobrem'' divisas (reservas de moedas) estrangeiras em quantidade suficiente para que possamos importar os bens e serviços vitais ao nosso desenvolvimento e vida e que não podemos (ou pelo menos ainda não podemos) produzir aqui, evitando crises no balanço de pagamentos -- tal como já esclareceram vários economistas [5].

3º) a austeridade fiscal pode nem mesmo funcionar para o objetivo para o qual os governos oficialmente a utilizam 

 Keynes e Kalecki -- o segundo mais que o primeiro -- enfatizaram o fato de que os gastos determinam unilateralmente a renda (não confundir com reservas de poder de compra, como o crédito) na sociedade capitalista [6]. Também notaram a existência de um ''efeito multiplicador'' de gastos, isto é: o fato de que um dado acréscimo de gastos num valor n na economia faz com que a renda de algum agente aumente em n; este agente, por sua vez, gastará uma parte maior ou menor de n (ao qual provavelmente serão descontados alguns impostos), a depender de sua ''propensão marginal a consumir'' (quanto ele irá gastar a mais a partir do aumento de sua renda em 1 unidade monetária -- R$1,00 em nosso caso); estes gastos converter-se-ão na renda de outros agentes e assim seguirá o processo.  Desta maneira, um acréscimo de gastos de algum agente econômico no valor n acaba por se converter num aumento da renda nacional em yn, sendo y um coeficiente maior que 0, que pode ser fracionário e menor que 1, inclusive [7]. Por outro lado, o multiplicador também pode funcionar para redução de gastos: se algum agente deixe de gastar n, isso pode gerar uma redução total de gastos maior ou menor que n. (Observe, em conexão com o que foi mencionado no item anterior, que na medida em que os gastos aumentam, aumenta a produção nacional e, consequentemente, o nível de emprego.)

 Assim, quando o governo corta gastos e/ou aumenta impostos, isso pode acabar gerando uma redução total de gastos que faz a renda agregada Y cair mais que proporcionalmente, fazendo a arrecadação tributária do governo cair e este ter um déficit primário ao invés de um (supostamente) desejado equilíbrio fiscal ou mesmo superávit; e se a taxa de juros reais (ou seja, a taxa de juros descontada pela inflação) dos títulos da dívida pública for maior que a taxa de crescimento do país, isto pode acabar gerando um aumento da dívida pública como % do Produto Interno Bruto. Aliás, o governo pode ser obrigado a emitir títulos da dívida pública mesmo se obtiver superávits primários, podendo ter aumentos da dívida pública em relação ao PIB; este será o caso sempre que os superávits forem menores que a carga de juros a ser paga pelo setor público [8]

 Esse aumento pode ser usado por um lobby de empresários e rentistas como argumento: haveria uma suposta necessidade de realização de ''reformas estruturais'' ou mesmo de novos cortes de gastos primários e aumento de impostos (evidentemente, impostos que incidam -- ao menos principalmente -- sobre a classe trabalhadora e os mais pobres, que não raro se verão forçados a trabalhar mais para aumentar sua renda e atingir de novo um nível básico necessário; o que aliás também pode acontecer com a redução da quantidade e qualidade dos serviços públicos) para que houvesse um aumento do crescimento econômico -- a despeito de ter sido esse ajuste fiscal, provavelmente em combinação com outros elementos (como o nível da taxa de juros), o causador da elevação da relação dívida/PIB e da queda deste último [9].

Observação 1: não defini austeridade fiscal como a mera tentativa de realizar ajustes fiscais que causassem equilíbrio fiscal ou superávits primários porque isto pode ser feito através de uma política indutora de crescimento econômico, que faz crescer a renda agregada Y e, tendencialmente, a arrecadação. O chamado teorema de Haavelmo [10] nos mostra inclusive que é possível realizar uma elevação contínua dos gastos que leve ao aumento de Y com equilíbrio fiscal; neste caso, observar-se-á uma elevação da carga tributária. Também não defini como meras políticas de cortes de gastos primários, porque essas podem ser (parte de) uma tentativa de frear o gasto agregado (consumo + investimento privado + gasto público + exportações) antes do nível que supere a capacidade produtiva instalada (causando inflação de demanda) e/ou seja compatível com o equilíbrio externo (ver [5]).

Observação 2: também espero que não se entenda que considero o ''equilíbrio fiscal'' ou a manutenção da dívida -- seja em números absolutos, seja como % do PIB -- em valores ''baixos'' com um fim em si mesmo; considero, tal como Abba Lerner, que as políticas fiscal e monetária do governo numa economia capitalista tem de estar subordinada à busca do pleno emprego, da estabilidade de preços e do equilíbrio externo -- no que devem ser ajudadas pela política cambial, industrial etc. Como Lerner, também, bem como outros, não acho que um governo que possua soberania monetária -- emita sua própria moeda -- possa tecnicamente ser obrigado a fazer moratória de uma dívida denominada nessa mesma moeda (sobre isso, ver o artigo linkado em [9]).


Notas/referências 

[1] https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap23/03.htm
[2] http://www.ie.ufrj.br/intranet/ie/userintranet/hpp/arquivos/090320170036_Keynes_TeoriaGeraldoempregodojuroedamoeda.pdf
[3] http://www.projetos.unijui.edu.br/economia/files/Kaleki.pdf
[4] http://www.marini-escritos.unam.mx/060_crisis_cambio_tecnico.html#1
[5] http://www.excedente.org/artigos/insercao-externa-exportacoes-e-crescimento-no-brasil/
[6] http://www.excedente.org/blog/macroeconomia-a-falacia-do-pai-de-familia-e-a-pec-241/
[7] Ver o item 3 em http://seer.ufrgs.br/index.php/AnaliseEconomica/article/view/10906/6484
[8] Aliás, várias análises têm concluído ser esta a causa da rápida elevação da dívida pública a partir do Plano Real, em 1994. Veja, por exemplo, aqui, aqui e aqui
[9] https://drive.google.com/file/d/0B_-AnAt-7778dGtNRXRWNlQyT2s/view?usp=sharing (Ver a seção 4, ou pelo menos o item 4.4)
[10] Ver item 3.1 do artigo acima linkado.