domingo, 8 de outubro de 2017

Desenvolvimento econômico não-capitalista?


 Sobre uma alternativa histórica de reprodução social da vida material e suas condições, consequências e possibilidades



 Momentos como o que o Brasil vive -- isto é, no aparente fim de uma enorme recessão que elevou a taxa de desemprego de 4.5% para acima de 13% e fez o produto interno bruto (PIB) recuar em mais de 7% em 2 anos -- parecem aumentar e intensificar os debates sobre o ''desenvolvimento econômico'' em sentido popular, isto é, sobre a melhoria do padrão de vida da população e seus condicionantes e consequências. 

 Essa reflexão, entretanto, já há algum tempo parece acontecer sob o horizonte do modo de produção capitalista e, ainda mais, sob os preconceitos e cegueiras particulares do pensamento econômico marginalista (ortodoxo) e da teologia liberal do 'empreendedorismo', sob o peso dos quais a 'imagem' do processo de ''desenvolvimento econômico'' parece ser a de vários jovens 'empreendedores' abrindo mais uma lojinha de açaí com visual rústico e um social media high-tech, quando não solicitações ou imposições à classe trabalhadora a que aceite a redução de salários reais e o aumento e intensificação da jornada de trabalho a fim de aumentar a competitividade da 'indústria nacional', como condição para a manutenção de seus empregos, dentre outras coisas (como consecutivas reformas redutoras dos benefícios da Previdência social). 

 Um debate de qualidade bastante superior -- já livre dos pressupostos e conclusões irrealistas da teoria neoclássica, por exemplo -- é feito pelos economistas estruturalistas e/ou de orientação clássica, ligados àquilo que interpretam como sendo a 'abordagem do excedente' que ligaria Smith e Ricardo a Marx, Quesnay, Petty e outros. Veja-se, por exemplo, este artigo dos professores Franklin Serrano e Carlos Aguiar de Medeiros, ambos do IE-UFRJ. Aqui, põe-se de maneira clara questões como problema de subutilização da capacidade produtiva (isto é, desemprego involuntário e ociosidade da capacidade instalada nas indústrias) que normalmente afeta as economias capitalistas, as diferentes estruturas produtivas associadas a diferentes ramos de produção e suas características (como os diferentes níveis e ganhos de produtividade associados com técnicas produtivas e escalas de produção distintas, em diferentes ramos de produção), o papel central desempenhado por fatores sócio-político-institucionais na determinação da distribuição da renda e da riqueza na sociedade, a restrição externa ao crescimento advinda da escassez de divisas e sua conexão com a especialização produtiva dos países, etc. Entre estes economistas, a discussão sobre as diversas possibilidades de política econômica acontece de maneira muito mais ampla e aberta do que entre ortodoxos e liberais.

 Um nível além neste debate estão, acredito eu, os pesquisadores (em maioria marxistas) que enfatizam a historicidade e transitoriedade do modo de produção capitalista, dando papel central ao fato de que a forma capitalista da produção social implica a subordinação desta à lógica de 'desenvolvimento' do capital (no sentido do processo através do qual o capital acumula, ampliando-se e abarcando cada vez mais regiões geográficas e dimensões da vida humana), assim como às possibilidades de um ''desenvolvimento econômico não-capitalista''.

 Aprofundemo-nos sobre esta última perspectiva. Que significa um ''desenvolvimento econômico não-capitalista'' ou, para fins práticos e de maneira coerente com o projeto político marxista, um ''desenvolvimento econômico socialista'' -- e quais são as suas condições, possibilidades e implicações? Antes de mais nada, é condição fundamental para isto que a propriedade privada dos meios de produção (recursos naturais, máquinas, equipamentos) -- condição básica do modo de produção capitalista -- tenha sido abolida e substituída pela propriedade social, coletiva, dos mesmos. Com este novo regime de propriedade, abre-se aos produtores diretos/trabalhadores -- os verdadeiros produtores -- a possibilidade de apropriarem-se da maior parte da produção; coisa que distingue da situação na maior parte do mundo capitalista e durante a maior parte do tempo de existência deste modo de produção, onde não só houve e há grande desigualdade de renda como também a maior parte desta era e é apropriada pela minoria proprietária.

  Falamos sobre distribuição. E quanto à produção, ou melhor, à composição do produto social e as técnicas produtivas utilizadas, as condições de trabalho envolvidas etc?  Em primeiro lugar, a propriedade social dos meios de produção permitem que esta já não ocorra sob as decisões particulares de produtores privados e formalmente independentes entre si -- que levam o produto de seus trabalhos (ou das pessoas sob seu comando) ao mercado para trocá-lo por outros produtos ou por dinheiro --, mas sim como produção submetida a um plano social, portanto realizada por um organismo produtivo cujas partes (os indivíduos, as unidades produtivas) estão diretamente conectadas e não apenas indiretamente, via mercado. Isto significa que a composição da produção pode e deve se dar através da verificação das necessidades e demandas da população. Um exemplo: a população deseja um aumento da oferta de alimentos e da qualidade dos mesmos, então o organismo social produtivo -- que é composto por boa parte dessas mesmas pessoas -- aloca recursos humanos, técnicos e naturais de maneira a aumentar a produção, bem como utiliza técnicas produtivas e tecnologias diferentes para aumentar a qualidade do produto desde sua produção até o armazenamento, passando pelo transporte, até que chegue às mãos dos consumidores finais. O mesmo pode ser dito de móveis, roupas, videogames, máquinas hospitalares, instrumentos musicais...

 E quanto às técnicas produtivas utilizadas e às condições de trabalho envolvidas? A forma socialista da produção implica que esta ocorra sob a finalidade de satisfação das necessidades e demandas da população, e não como um cálculo de rentabilidade visando maximizar lucro. Assim, enquanto uma empresa capitalista, se tiver que escolher entre uma determinada técnica produtiva que poupa trabalho (''labor-saving'') e outra mais ''trabalho-intensiva'', escolherá aquela que é mais barata, as unidades produtivas socializadas podem e devem ter critérios de escolha de técnicas ligados ao bem-estar das pessoas (tanto enquanto produtores quanto como consumidores) e à sustentabilidade ecológica, dentre outras coisas. Assim, por exemplo, se postas sob a necessidade de escolher entre uma técnica que permita a redução da jornada de trabalho e outra que não o faz, sendo de resto bastante semelhantes, podem e devem escolher a primeira. O controle direto dos produtores sobre os meios de produção também permite que a jornada de trabalho e o ritmo do mesmo sejam determinados não sob o império de metas quantitativas de produção ligadas ao imperativo de transformar uma quantidade abstrata em uma quantidade maior (produzir mais para vender mais para lucrar mais, o que faz parte da natureza do capital), mas sim, por exemplo, de modo a minimizar a quantidade de esforço e desgaste físico necessários para um dado plano de metas de produção ligado às necessidades concretas da população; assim, para um dado plano de metas ou conjunto de necessidades, um aumento da produtividade do trabalho propiciado pelo descobrimento de alguma nova técnica produtiva permite a redução da jornada e/ou intensidade do trabalho, aumentando o tempo livre dos produtores.

 Há muitas coisas que ainda podemos falar sobre as possibilidades da produção socialista, planejada. Exemplos: o plano social pode incluir a construção de mais estradas e/ou de vias de transporte de produtos via bacias hidrográficas, facilitando o acesso de algumas populações a eles; a distribuição geográfica das unidades produtivas e da riqueza enquanto acesso concreto a bens e serviços pode ser ''igualizada'', substituindo o grande desequilíbrio regional que caracteriza atualmente o Brasil e tantos outros países capitalistas; as cidades podem ser planejadas de maneira a terem vários 'núcleos' com escolas, hospitais, áreas de lazer, de maneira que as pessoas não tenham de realizar longos trajetos para ter acessos a esses serviços num local que as concentre geograficamente; etc.

 Isto é apenas uma nota introdutória, um rascunho para um debate sobre as grandes possibilidades de melhoria dos padrões de vida da maioria da população que o socialismo pode fazer e que a meu ver pode desempenhar um papel interessante na atividade de agitação e propaganda e na atração de corações e mentes da classe trabalhadora para o projeto socialista.


P. S. Sugiro, além do supracitado artigo da dupla Franklin Serrano e Carlos Medeiros, a leitura deste, deste e deste artigos.
P. P. S. Eu não afirmei no texto e não sei se ficou claro, então vou explicitar aqui: no sistema de propriedade social e planejamento da produção conforme as necessidades da sociedade, não há o fenômeno do desemprego involuntário nem as suas consequências, que tanto horror causam a muita gente no mundo capitalista (particularmente após o fim das políticas keynesianas de pleno emprego do 2º pós-guerra). Isto porque, em primeiro lugar, a força de trabalho não é mais uma mercadoria, dado que os produtores (os trabalhadores) têm acesso aos meios de produção, e em segundo lugar porque mesmo aqueles que não estiverem trabalhando (como crianças, idosos, algumas pessoas portadoras de deficiência física ou temporariamente incapacitadas de trabalhar por motivo de acidente ou doença etc.) podem ter a satisfação de suas necessidades garantida através do plano social de produção, distribuição, troca e consumo da riqueza produzida pelo trabalho do organismo social. 

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