segunda-feira, 8 de junho de 2015

Rumo ao ''crash''?


Michael Roberts comenta sobre a especulação em torno dos últimos números de crescimento da China (artigo originalmente publicado aqui); tradução realizada pela página Café Socialista.



O crescimento reduz a marcha


 Há cerca de um mês, o Banco do Povo da China anunciou um corte em sua taxa de juros de referência, para algo ligeiramente acima de 5% ao ano. Esta foi a terceira redução da taxa desde novembro de 2014. O governo está claramente preocupado com a possibilidade de que a economia chinesa esteja reduzindo sua taxa de crescimento de tal forma que isso esteja a ameaçar a sua capacidade de prover emprego e rendimento suficientes para as multidões que seguem a fluir para as movimentadas cidades do país. Um falhanço na produção de crescimento e empregos poderia pôr em risco a condução que a elite chinesa impõe ao país.

 A economia chinesa cresce atualmente ao ritmo mais baixo desde o fim da crise financeira global e da Grande Recessão de 2009. Segundo os números oficiais, o crescimento no primeiro trimestre se reduziu para 7% ao ano sobre os doze últimos meses, contra 7,3% no trimestre anterior; e a maioria das estimativas não-oficiais apontam para um crescimento ainda menor. Além disso, tomava-se como dado que o produto chinês deveria crescer 8% ao ano, de forma a absorver a expansão e a migração da força de trabalho das zonas rurais para as cidades e fábricas. Afinal, por trás da impressionante ascensão econômica da está a maior migração humana da História. Até 2013, algo em torno de 269 milhões de habitantes das zonas rurais já haviam emigrado para as cidades, oferecendo mão-de-obra a custo reduzido e sustentando o crescimento urbano.

 A baixa no ritmo de crescimento é particularmente visível nos setores industriais. O valor adicionado na indústria, que é uma medida da produção manufatureira, atingiu os níveis da crise financeira [de 2009]. A produção industrial cresceu 5,6% em março, ante o mesmo mês do ano anterior - muito abaixo das expectativas dos economistas, de 6,9%. E o consumo também abrandou. As vendas a retalho cresceram 10,2% em março. Parece muito comparado com os padrões das principais economias capitalistas, mas é uma taxa menor do que a registrada durante a crise financeira.

 Acima de tudo, o principal indutor do crescimento - o investimento em ativo fixo, que é a medida dos recursos invertidos em grandes fábricas e projetos - cresceu 13,5% nos doze meses encerrados em março, depois de passar por um pico de 30% em 2009, muito embora a taxa atual ainda seja superior à registrada a princípios da década passada.

 Esta desaceleração é em parte o resultado de uma recuperação letárgica da economia mundial na Europa, no Japão e nos Estados Unidos - os destinos principais das exportações chinesas. Mas também é o resultado de uma política governamental deliberada de enfrentamento de uma imensa bolha imobiliária que se formou desde 2009. Esta bolha foi causada pelas baixas taxas de juros locais, pela imensa poupança acumulada pelos chineses ricos e pelo arrendamento e venda de terras, pelos governos locais, para a construção de habitações e cidades para a população urbana que brota por toda parte.

 Os bancos chineses, em busca de lucros, e administradores públicos corruptos, deram curso à uma imensa bolha imobiliária. O resultado foi uma elevação da dívida, tanto pública, oculta nos livros contábeis pelos governos locais, quanto privada, entre os incorporadores. A dívida, no momento, alcança 282% do PIB, segundo a McKinsey - uma taxa mais alta que a observada nos EUA. (1)

 Com o desmanche da bolha imobiliária, os chineses mais ricos se voltaram para a especulação no mercado bursátil. A Bolsa chinesa disparou. Mas isso já havia ocorrido antes. Entre 2005 e 2007, subiu 800%, para colapsar durante o "crash" financeiro global. Agora, subiu "apenas" 200% - pode, portanto, subir ainda mais.

 As bolhas chinesas - imobiliária e de ações - mostram que a grande expansão da indústria e do investimento ao longo dos últimos dez anos não foi repartida com equanimidade. Durante todo o período, a desigualdade de rendimento e riqueza subiu mais que em qualquer outra economia de porte, e a China apresenta um coeficiente de Gini superior a 0,40 - tão alto quanto o estadunidense e maior que o da maioria dos grandes países capitalistas.

 Há ampla evasão de impostos e fortunas são amealhadas em contas secretas pelos chineses super-ricos - mais uma vez revelada em relatórios vazados sobre os "pequenos príncipes chineses" (princelings), entre outros. Mais de uma dúzia de familiares dos mais altos líderes políticos e militares da China estão a fazer uso de empresas "offshore" localizadas nas Ilhas Virgens Britânicas, conforme revelam documentos oficiais divulgados. O cunhado do atual presidente chinês, Xi Jinping, e o afilhado do ex-primeiro-ministro Wen Jiabao estão entre os apadrinhados políticos que se servem desses paraísos fiscais. (2)

 Na verdade, enquanto o mundo se espanta com a subida de preço das ações chinesas, o dinheiro está a fugir silenciosamente do país no maior ritmo em pelo menos uma década Louis Kuijs, economista-chefe para a China do Royal Bank of Scotland, estima que a China perdeu US$300 mil milhões com as saídas financeiras ocorridas nos últimos seis meses encerrados em março passado. A Deltec International, uma empresa de investimentos das Bahamas, diz que as somas são ainda maiores. Isto expressa o temor que a elite chinesa tem da campanha anticorrupção posta em marcha pela liderança do Partido Comunista, bem como o medo dos investidores estrangeiros de que a bolha creditícia venha a estourar e a China faça uma "aterragem forçada" semelhante ao observado em 2008 no "capitalismo ocidental".

 Com US$ 3,73 milhões de milhões em reservas, não há risco da China ficar sem dinheiro. Mas a economia "mainstream" está confusa sobre os rumos da economia chinesa. Alguns media e economistas creem que a China está a caminhar para uma grande crise ou queda devido ao "superinvestimento" ("overinvestment"), uma reversão da bolha imobiliária impulsionada pelo crédito e uma espiral de créditos podres ocultos no sistema bancário. Por outro lado, alguns economistas acreditam que as autoridades chinesas serão capazes de engendrar uma "aterragem suave" por meio da facilitação do crédito e o financiamento da retirada das dividas do caixa nos balanços ("writing-off"), acumuladas ao longo dos anos.


Capitalismo?


 Por trás do debate sobre o futuro imediato há um outro: poderá a China continuar a crescer rapidamente através do investimento industrial, em infraestrutura e mais exportações, ou terá de migrar para uma economia de consumo, a importar mais e a fornecer produtos para uma "classe média ascendente", como as economias avançadas capitalistas supostamente o fazem? Os economistas do "mainstream" acham que isso não pode ser feito sem o desenvolvimento de uma economia "baseada no mercado", isto é, capitalismo - pois a "complexidade" duma sociedade de consumo somente pode funcionar sob o capitalismo e não sob a "mão-pesada" do planejamento econômico centralizado e com industrias estatais.

 Em minha opinião isto é uma incompreensão da natureza das tendências econômicas da China. Se examinamos as decisões do Terceiro Pleno do Partido Comunista Chinês, explicam-se melhor as coisas. (3) O Pleno emitiu uma resolução detalhada sobre o que a elite pretende fazer com o país nos próximos cinco a dez anos.(4) E esta não se comprometeu com nada parecido ao "capitalismo de livre mercado". Na melhor das hipóteses, acordaram-se alguns passos limitados voltados ao desenvolvimento das forças do mercado no sistema bancário (mais competição entre os bancos estatais) e na agricultura (algumas transações comerciais de propriedades); uma conversa vaga sobre "liberalização" de controles monetários e de capital mais à frente; algumas zonas econômicas especiais para o desenvolvimento de negócios das empresas estrangeiras; e permissão para companhias estrangeiras operar em alguns setores de serviços. E, é claro, haverá um relaxamento muito limitado da terrível política do filho único para as famílias e dos controles de movimentação das áreas rurais para as cidades (hukou), permitindo-se uma maior mobilidade rumo a cidades de menor porte.

 É tudo. Duas coisas chamaram a atenção por terem deixado de acontecer. Não houve qualquer mudança na filosofia geral do "socialismo com características chinesas" e, em consequência, na manutenção da hegemonia do setor estatal. Os elementos pró-capitalistas da elite chinesa pressionaram pela implementação das propostas contidas no extenso relatório do Banco Mundial sobre a China.(5) A primeira e mais enfática recomendação de "reforma" foi a privatização de empresas estatais. O Terceiro Pleno não deu em absoluto qualquer passo nessa direção. A outra mensagem clara é a de que não haverá mais democracia, tal como a transferência do controle de sistemas legais e de decisões, mesmo que locais, para o povo. Ao contrário: a liderança está a estabelecer serviços de segurança ainda mais repressivos, para monitorar e controlar a população e isolar qualquer dissidência.

 Portanto, nada há realmente, nas metas e políticas acordadas pela elite chinesa, que venha a alterar a natureza do modelo econômico, social e político do país A maior parte da liderança seguirá com um modelo econômico que é dominado por companhias estatais, conduzidas, em todos os níveis gerenciais, por funcionários graduados comunistas. Os mercados não ditarão as regras, e a lei do valor não dominará os preços, os salários ou o comércio doméstico. É óbvio que a lei do valor opera na China, mas principalmente através do comércio exterior, dos fluxos de capital (investimentos) e monetários, porém mesmo isso ocorre sob limites estritos, com movimentos apenas graduais para a ampliação desses limites.

 Poderá a elite continuar essa política "nem carne nem peixe" sem provocar uma crise ou um tropeço que a forçará a seguir pela "estrada do capitalismo", como o Banco Mundial e os elementos pró-capitalistas desejam? Terá de enfrentar uma erupção vinda de baixo, à medida que a classe trabalhadora urbana em rápida expansão comece a flexionar seus músculos para fazer valer sua voz na condução da sociedade?

 Bem, eu creio que não, pelo menos por enquanto. O FMI aparentemente pensa que a tendência da taxa de crescimento do produto chinês declinará gradualmente a apenas 6,3% em 2019 Outros são mais pessimistas. O Conference Board dos EUA previu, esta semana, que a tendência de crescimento do país após 2020 será tão-somente de 4% ao ano. Porém, mesmo essas previsões reconhecem que o PIB chinês continuará a crescer à taxa de 7% ao ano, pelo menos pelos próximos cinco anos. A população economicamente ativa ainda é crescente, embora deva atingir o pico por volta de 2020. Ainda há centenas de milhões de camponeses e trabalhadores rurais que terão de ser incorporados à indústria; e a China cada vez mais trata de absorver tanta matéria-prima quanto necessário para sustentar sua expansão industrial.

 John Ross, da Universidade de Xangai, assinalou que o crescimento industrial da China continua a ser verdadeiramente espantoso:

"Nos dados do Banco Mundial, a produção industrial chinesa e 2007 era apenas 60% da registrada nos Estados Unidos. Em 2011, correspondia a 121%. Assim, em apenas seis anos a China partiu de um produto industrial correspondente a menos de dois terços do produto dos EUA, ultrapassando-o por uma margem substancial. Em seis anos, o produto industrial chinês praticamente dobrou, enquanto a produção industrial nos EUA, Europa e Japão sequer atingiu os níveis pré-crise." (6)

 O grande "milagre econômico" chinês ainda não se esgotou.

Notas

(1) The McKinsey Institute, ‘Debt and (not much) deleveraging’, February 2015.
(2) Estas são as últimas revelações feitas por ‘Offshore Secrets’, um esforço de reportagem de dois anos, conduzido pelo Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo (ICIJ, em inglês), que obteve mais de 200 gigabytes de dados financeiros vazados de duas empresas das Ilhas Virgens Britânicas e dividiu a informação com o jornal The Guardian e outros provedores internacionais de notícias. Os documentos também revelam o papel central de grandes bancos e empresas de auditoria ocidentais, incluindo PricewaterhouseCoopers, Credit Suisse e UBS no mundo das companhias offshore, atuando como intermediários no estabelecimento dessas empresas. Entre US$ 1 e US$4 milhões de milhões em ativos não rastreados deixaram a China desde 2000, segundo estimativas (http://www.icij.org/offshore/leaked-records-reveal-offshore-holdings-chinas-elite).
(3) http://wiki.china.org.cn/wiki/index.php/Third_Plenum.
(4) http://chinacopyrightandmedia.wordpress.com/2013/11/15/ccp-central-committee-resolution-concerning-some-major-issues-in-comprehensively-deepening-reform.
(5) World Bank China 2030: www.worldbank.org/en/news/2012/02/27/china-2030-executive-summary.
(6) http://ablog.typepad.com/keytrendsinglobalisation/2013/09/china-has-overtaken-the-us.htm.

O blog de Michael Roberts: https://thenextrecession.wordpress.com.

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