segunda-feira, 29 de junho de 2015

Malafaia, Feliciano e o fascismo à brasileira

''Nenhum humano é ilegal''. A todos devem ser garantidos os direitos fundamentais da pessoa humana, ainda que reacionários briguem e esperneiem. 


 Eu acho uma merda repetir assunto. E acho uma merda falar de gente como o Malafaia. E acho ele um merda. Mas há certas coisas que valem a pena discutir, e mais: elas de certa forma exigem serem discutidas. Pois bem, que eu cumpra tal sina.

 3 acontecimentos recentes puseram a ''questão LGBT'' novamente em debate público: o primeiro foi a propaganda d'O Boticário exibindo dois casais homo-afetivos, um de cada gênero; o segundo foi a performance de Viviane Belebony, uma atriz transsexual, na parada LGBT de São Paulo como Cristo Crucificado; o terceiro foi a legalização do casamento civil igualitário nos EUA na última sexta-feira (26/06), que provocou uma campanha de substituição das fotos de perfil do facebook (não só de indivíduos como também de várias empresas e outras entidades/organizações) por uma versão com o filtro da bandeira LGBT, o arco-íris.

 Todos os acontecimentos desencadearam uma reação por parte dos moralmente conservadores. No primeiro caso, reclamaram de ''propaganda de orientação sexual''; Malafaia chegou a pedir um boicote aos produtos da empresa de cosméticos. No segundo, falaram de ''intolerância religiosa'', e um bocado de membros da bancada da bíblia chegou a ir ao púlpito da câmara dos deputados federais exigindo a punição do ''crime'' (dias depois, uma menina de 11 anos, após sair de um culto de candomblé com um grupo de pessoas vestidas com os trajes típicos da religião, foi vítima de xingamentos e pedradas [1] -- adivinhem de quem). Dão piti agora chamando a campanha do filtro (que muitas pessoas já retiraram, incluso o autor destas linhas) de ''modinha'' e uma miríade de coisas a mais, vide Feliciano afirmando que a formalização do casamento igualitário nos EUA foi uma medida desesperada de Obama pela reeleição (isso quando Obama já completou 2 mandatos e, portanto, tem de ser substituído por outro quadro do partido democrata).

 Outra pérola recente de tais conservadores foi a argumentação de Malafaia num debate recente entre ele e o famoso militante LGBT Tony Reis, que pode ser visualizada por meio do link mais abaixo [2]. De acordo com Malafaia,

 No Brasil, você pode falar mal do Diabo, pode falar mal de Deus, pode falar mal de político, pode falar mal de presidente, pode falar mal de pastor, pode falar mal de padre, pode falar mal do diabo que o carregue, mas se falar alguma coisa contra o homosexualismo é homofóbico... vai ver se eu tô na esquina!

 Como eu já disse em outros textos, tudo isso poderia nos fazer rir, se não nos devesse preocupar. Não acho necessário dizer coisa alguma sobre o caso d'O Boticário e o máximo que sinto vontade de fazer quanto ao da atriz transsexual é indicar a leitura do texto do professor de História da UFT, Bertone Sousa, sobre os direitos de uso da figura de Jesus [3]. Mas as peripécias mais atuais de Malafaia e Feliciano são, de certa forma, perigosas demais para deixar passar sem criticar.

 Quem já leu um pouquinho sobre a laicidade de Estado sabe que ela garante a liberdade de culto e, ao mesmo tempo e pelo mesmo ''fator'', estabelece que as normas jurídicas -- o próprio poder público -- não devem se pautar em crenças ou princípios religiosos, mas no conhecimento científico e na ética; nenhum de nós -- cristãos, judeus, ateus, pagãos, candomblecistas, muçulmanos, umbandistas, etc -- pode (ou deveria) ter sua liberdade de consciência violada e nem ser discriminado por motivos de crença. A laicidade de Estado foi uma pauta do iluminismo e uma conquista das revoluções modernas, desde a revolução inglesa do século XVII à russa do início do século XX, passando pela francesa no finzinho do século XVIII. Ela é uma característica primordial da civilização moderna.

 O problema é que certos indivíduos e grupos não são capazes de conviver com isso: eles desejam impor seus valores e crenças singulares a toda a sociedade. Simplesmente não são capazes de conviver tranquilamente com quem deles discorda. É por isso que Feliciano, por exemplo (ao contrário do ilustre padre Fábio de Melo [4]), além de burrice ou escrotice, afirmou que a conquista do casamento civil igualitário nos EUA não passou de uma medida desesperada obtenção da reeleição de Obama. O pastor-que-pede-cartão-de-crédito simplesmente não concebe que o Estado é algo por ideal distinto da(s) Igreja(s), sendo tal medida uma extensão obrigatória da cidadania; ele e seus companheiros de bancada costumeiramente (eu diria que é só o que eles fazem) incluem argumentações religiosas em seus projetos, uma clara afronta à laicidade do Estado e ao princípio da cidadania universal.

 E quanto a Malafaia? Bem, peço que você releia a citação que fiz mais acima. Malafaia, também por escrotice ou burrice (dado o diploma de psicologia e a fortuna que ele adquiriu no mercado da fé, eu apostaria na primeira opção), põe Deus, o Diabo, ''o presidente'', ''o padre'' e ''o pastor'' no mesmo balaio ontológico que o ''homossexualismo'' (ontologia, para quem não é lá muito chegado à filosofia, é o ''campo'' da metafísica que estuda o ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres). Você consegue perceber alguma diferença essencial entre as coisas que Malafaia citou? Se não, vamos refletir conjuntamente.

 'Presidente', 'padre' e 'pastor' são cargos/postos/funções ocupados por alguém (isto é, por um ser consciente), que deve fazer certas coisas, agir de certas maneiras e não de outras; não cumprindo o que dele se espera, 'o presidente', 'o padre' ou 'o pastor'' torna-se passível de crítica. Observe, entretanto, de que não se trata de uma crítica à presidência ou ao sacerdócio em si: estes são criticáveis em outro âmbito: o de não terem uma raison d'être, isto é, de não precisarem ser desempenhados, de não serem necessários. Deus e o Diabo, que são seres (supondo que existem -- o que não é consenso na humanidade, e mesmo que fosse não garantiria que tal crença é verdadeira -- e ignorando as diferentes concepções que aqueles que neles acreditam deles têm), podem ser criticados no sentido de que não fazerem algo que deles se espera, ou melhor, algo que têm o dever de fazer, que se comprometeram a fazer.

 O ''homossexualismo'' -- nome pelo qual a homossexualidade é conhecida entre nossos contemporâneos Homo neanderthalis -- está também em outro nível ontológico; não é um ser e nem uma função ou cargo, mas uma característica de certos seres. Homossexualidade é como chamamos o desejo erótico-afetivo que os humanos apresentam por outros humanos do mesmo gênero/sexo, em oposição à heterossexualidade, que é tal desejo por humanos do sexo/gênero oposto. Oras, criticar desejos, sensações, sentimentos é como criticar o sistema solar ou a gravidade: sendo um fenômeno natural (e não uma ação ou cargo), não faz sentido condená-los no campo da moral ou da ética. A homossexualidade é, entretanto, diferente da prática/ação homoerótica, do relacionamento entre dois seres humanos do mesmo sexo ou gênero; sob certas premissas morais, poderíamos criticar a última como alguns criticam o beijo, a dança ou o jogar videogame, que são todos ações também. Mas convenhamos: se o relacionamento homoerótico é consensual, se per se* não causa sofrimento e se surge como consequência de uma pulsão natural, por que raios condená-lo?

 Malafaia, Feliciano e seus similares, ao quererem dar uma raison d'être ao ''falar mal do homossexualismo'', se assemelham aos nazistas em seu racismo antissemita: querem tornar legítima uma condenação à própria natureza de alguns seres humanos, de cuja uma das consequências possíveis é a demanda pela eliminação daqueles, o genocídio. Sim, é verdade que Feliciano, até onde sabemos, não enviou ordens de assassinato de LGBTs aos seus seguidores, nem Malafaia começou a comprar peças para construir câmaras de gás; mas vemos o tempo todo na mídia notícias de LGBTs mortos ou severamente agredidos por gente como nossos adoráveis pastores, gente que odiava suas vítimas não por elas terem feito isso ou aquilo, mas meramente por serem quem são.
 Como disse o professor Bertone [5],

Comprando uma briga com o movimento LGBT (outro segmento que também ascendeu junto com os neopentecostais), Malafaia pretendia não apenas estar na mídia, mas fazer algo que nenhum outro líder protestante ainda conseguiu: unir os evangélicos em torno de um líder. E você apenas pode unir segmentos tão heterogêneos criando um inimigo, uma ameaça comum. Não importa que o inimigo seja imaginário, o importante é que as pessoas comprem a ideia. Nesse sentido, ele segue o exemplo de Pat Robertson nos Estados Unidos que, na década de 1960, criou a Maioria Moral (Moral Majority) para combater o feminismo, o divórcio, o aborto, a homossexualidade, a cultura secular.
Malafaia usa o discurso contra o homossexualismo como plataforma para conseguir essa projeção em nível nacional entre os evangélicos. O objetivo vai além: alcançar poder para intervir diretamente nas decisões políticas do país, criando um grupo forte e coeso para fazer lobby junto ao Congresso, ao Senado e à própria presidência da República.

 Malafaia e Feliciano são parasitas fundamentalistas para os quais a população LGBT é um bode expiatório, um meio de consolidar seus interesses, e os resultados disso são em potencial totalitários. Se nós quisermos proteger nossas instituições democráticas e a própria condição de civilização moderna, teremos de combatê-los. A eles e a todos aqueles que desejam fazer voltar a Idade das Trevas.


[1] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1642819-apos-sair-de-culto-de-candomble-menina-de-11-anos-leva-pedrada-no-rio.shtml
[2] https://www.facebook.com/VemPraDireitaBrasil/videos/934482606619023/
[3] https://bertonesousa.wordpress.com/2015/06/11/quem-deve-usar-a-imagem-de-cristo/ 
[4] https://www.facebook.com/jean.wyllys/photos/a.201340996580582.48122.163566147024734/866255353422473/?type=1&permPage=1
[5] https://bertonesousa.wordpress.com/2013/02/06/o-que-quer-silas-malafaia/

*Algumas pessoas sofrem por manterem relacionamentos com pessoas do mesmo sexo/gênero ou por algum ente querido fazê-lo, mas isso ocorre devido às crenças e valores internalizados por essas pessoas, e não pela relação homoerótica em si.

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