terça-feira, 24 de março de 2015

A barbárie da sociedade burguesa e a alternativa comunista

 O texto abaixo constitui um trecho do artigo ''A crise do socialismo e a alternativa comunista'', publicado no livro de bolso ''Crise do socialismo e a ofensiva neoliberal'' do professor José Paulo Netto para a coleção ''Questões de nossa época'', da editora Cortez.


José Paulo Netto é doutor em serviço social pela PUC-SP e professor da UFRJ. Tem experiências docentes na área do Serviço Social (Brasil, Portugal, América Latina), tematizando os fundamentos filosóficos, teóricos e metodológicos do Serviço Social, suas relações com as ciências sociais e o marxismo. Participa do debate brasileiro e latino-americano sobre a tradição marxista e a obra de Marx e Lukács. 



 Não seria exagerado falar em barbárie, no momento mesmo em que a massa crítica de que dispõe a humanidade lhe permitiria um controle da natureza capaz de, sem destruí-la (antes, preservando-a), prover otimamente as necessidades de reprodução da sociedade? Não seria uma retórica de mau gosto falar em barbárie, quando as condições técnicas da socialização dos bens culturais possibilitariam aos homens um desenvolvimento ideal sem precedentes? Não seria insensato falar em barbárie, quando a ordem burguesa aparece plenamente constituída, com todas as suas potencialidades em processo de explicitação?

 É precisamente porque estamos confrontados com a ordem burguesa plenamente constituída que a barbárie revela sua face contemporânea. A fome não é um fenômeno a afetar somente massas de milhões de homens no ''Terceiro Mundo'':

''Nos Estados Unidos, fontes oficiais estimam que cerca de 10 a 20 milhões de habitantes são cronicamente subalimentados. O destino dos aposentados que vivem de pensões miseráveis causa pena em países como Grã-Bretanha, França, Itália, Espanha. Na Andaluzia, não longe do paraíso turístico de Costa del Sol, famílias de 300.000 trabalhadores agrícolas devem e contentar durante boa parte do ano com uma refeição ordinária composta de pão seco e tomates'' (Mandel, 1990: 116-117).

 E esta fome, em todas as suas latitudes, é grandemente produzida

''(...) pela política deliberada de sustentação de preços através da redução artificial das áreas plantadas e da produção, ou seja, através da lógica infernal da economia de mercado'' (Idem, 115).

A ignorância e o analfabetismo são expressões da miséria do ''Terceiro Mundo'', mas a cretinização geral dos indivíduos envolve o capitalismo desenvolvido: em maio de 1990, a revista VEJA informava que, no sistema universitário norte-americano, ''um em cada quatro estudantes não sabe quando Colombo chegou à América, é capaz de confundir um discurso de Stálin com outro de Churchill e não sabe que Dante escreveu a Divina Comédia''. Um ano depois, a mesma publicação resumia dados de uma pesquisa, realizada no Oregon, com 2.000 alfabetizados entre 16 e 65 anos, mostrando que somente ''35% dos pesquisados conseguiram determinar a dose correta de um remédio infantil usando uma tabela de peso e idade e somente 18% conseguiram achar os horários de partida dos ônibus dispostos numa placa''; comentando a mesma pesquisa, o Jornal da Ciência Hoje, de maio de 1991, observava que apenas ''um em cada cem adultos... sabem interpretar um gráfico e só nove compreendem claramente o que leem''.

 A verdade é que a ordem burguesa, no seu patamar de desenvolvimento contemporâneo, continua apresentado a necessária contradição que é uma das suas marcas mais peculiares: no seu processo, objetivam-se compulsoriamente possibilidades de libertação e realização dos homens e realidades regressivas, mutilantes e opressoras; o diferencial efetivo entre possibilidades e realidades manifesta o caráter da barbárie que lhe é própria. O assombroso, todavia, quando se considera a sua realidade atual, é que seus apologistas e arautos a situem como a forma adequada, modelar e desejável de organização societária, que estaria, em face da ''crise do socialismo'', comprovadamente destinada a assinalar o ''fim da História''; de fato, dada a evidente crise do ''socialismo real'', o que essa consideração patenteia é, mais uma vez, ''a sóbria verdade de que a supremacia econômica é capaz de produzir as fomas mais inesperadas de mistificação ideológica'' (Meszáros, 1989: 170).

 Com efeito, a consequência mais visível da crise do ''socialismo real'', para a ordem burguesa, ''é que o capitalismo e os ricos pararam, por enquanto, de ter medo'', e precisamente porque, ''por enquanto, não há  nenhuma parte do mundo que apresente com credibilidade um sistema alternativo ao capitalismo'' (Hobsbawm, in Blackburn, org.; 1992: 103-104). É assim que, neste quadro, pôde a ordem burguesa fazer-se passar -- por enquanto -- com a paragem final do milenar processo de construção da socialidade, como o ''fim da História''.

 Mas a folha-corrida da ordem burguesa, ao longo deste século [lembro que o livro foi publicado em fins do século XX], não autoriza nenhum otimismo quanto à natureza desse ''fim da História'': duas guerras mundiais e dezenas de conflagrações localizadas, uma crise econômica catastrófica que pôs abaixo o sistema social e crises menores, mas reiterativas, o imperialismo, o fascismo etc. Um único dado é suficiente para indicar a barbárie ou, se se preferir, a ''eficiência'' da ordem burguesa madura na promoção do crescimento econômico e do bem-estar: a abrangência do ''mundo desenvolvido'' reduziu-se de cerca de 33% da população mundial, em 1900, para cerca de 15%, em 1989 (Hobsbawm, op. e loc. cit.). E se o capitalismo e a ordem burguesa ''funcionam'' hoje para 15% da humanidade, a situação dos qe não fazem parte desta minoria está mais longe ainda de depor favoravelmente para esta santa ordem social -- a pobreza é a generalizada dominante que ela vem produzindo, como o atestam fontes indesmentíveis [1].

 Os apologistas da ordem burguesa, compreensivelmente, colocam entre parênteses estes dados factuais, que desprezam como acidentes de percurso, e se limitam, cínica ou ingenuamente, a propor, diante do que enunciam como a ''morte do comunismo'', o capitalismo  do ''Estado mínimo'' e a ''insuperável'' dinâmica do mercado. A receita ideal foi aplicada na Inglaterra, sob a batuta da Sra. Thatcher, e o resultado é paradigmático: uma década de paralisia e empobrecimento [2]. E quando se trata de sugerir a eficácia do receituário para além do ''Primeiro Mundo'', os neoliberais (ou neo-conservadores) acenam com o ''milagre'' dos chamados ''Tigres Asiáticos'' (Hong-Kong, Coreia do Sul, Singapura e Taiwan), escamoteando as condições de exploração da força de trabalho nestas áreas -- onde, diga-se de passagem, o exemplo coreano demonstra bem que espécie de direitos sociais e liberdades políticas estão reservados aos que se dispõem a aceitar a terapia [3].

 Um fato histórico central destas últimas décadas do século XX é que a ordem burguesa -- tanto no seu centro quanto na sua periferia -- vem experimentando uma curva decrescente na sua eficácia econômico-social. Isso não significa que uma espécie qualquer de colapso lhe seja iminente, mas significa que sua manutenção e evolução estão implicando sucessivos ônus sócio-humanos. Na consideração do seu processo nos países centrais, o que se tem verificado é uma nítida redução na taxa de crescimento econômico em termos de médio prazo (Mandel, 1976); em termos conjunturais, o panorama de transição dos anos oitenta aos noventa nada tem de alentador [4].  Inclusive nas áreas limitadas da ordem burguesa em que o crescimento pode ser avaliado como positivo, os seus custos para a masas dos trabalhadores são ascendentes e tendem a restringir antigos direitos e conquistas [5]. O que sobreleva, em qualquer análise séria da ordem burguesa contemporânea, é que sua realidade e perspectivas econômico-sociais, mesmo para aqueles (como é o meu caso) que não compartilham de qualquer ótica catastrofista [6], só oferecem projeções de crescentes instabilidade e insegurança. E parece legítimo jogar com a hipótese de que ''o conjunto do sistema esteja se aproximado de certos limites estruturais do capital'' [7].

 É nesta decrescente eficácia econômico-social da ordem burguesa que reside o núcleo elementar da sua exponenciada problematicidade. Mas o que compromete a ordem burguesa como totalidade -- e manifesta especialmente a sua barbarização -- é muito mais abrangente e inclusivo do que se pode fazer crer numa pura análise econômico-social: centra-se nas peculiaridades sócio-culturais e políticas macroscópicas que vincam o conjunto das instâncias e expressões da vida social no mundo burguês. A descrição do ''sistema irracional'', feita por Baran e Sweezy (1966) há mais de um quarto de século, não resistiu apenas à prova do tempo: ganhou cores mais dramáticas e dimensões mais sombrias. O modo de vida burguês, nas suas áreas mais desenvolvidas -- e proclamadas exemplares pelos seus apologistas --, vem engendrando um ethos em que o consumismo compulsivo se inscreve numa constelação ideal de alienação e individualismo [8]; florescem o privatismo, o intimismo, a agressividade e o cinismo disfarçados de ''modernidade'' [9]. No terreno estritamente político, as liberdades democráticas, resultantes de lutas populares de largo curso [10] e por isto mesmo profundamente inseridas na ''cultura política'' da ordem burguesa, não foram golpeadas nos últimos cinquenta anos -- e no plano dos direitos civis, registraram-se mesmo desenvolvimentos progressistas; mas a possibilidade de fazer incidir tais liberdades no sistema de poder das sociedades típicas da ordem burguesa tem sido amplamente neutralizada pelos mecanismos que, nelas, conectam os aparatos das grandes corporações capitalistas com as instâncias estatais -- donde quer uma acentuada autonomia deste sistema em face de aspirações objetivadas pelos movimentos democráticos [11], quer uma prática corrupta recorrente [12], configurando as consequências de uma das características contraditórias da ordem burguesa: a sua compatibilidade com a socialização da política (cuja significação positiva não pode, em momento algum, ser menosprezada) é simultânea à sua incompatibilidade com a socialização do poder político [13].

 Com estes traços, a ordem burguesa defronta-se, no limiar do século XXI, com três desafios fundamentais: ''o crescente alargamento da distância entre o mundo rico e o mundo pobre (e provavelmente dentro do mundo rico, entre seus ricos e seus pobres); a ascensão do racismo e da xenofobia; e a crise ecológica do globo, que nos afetará a todos'' (Hobsbawm, op. e loc. cit., p. 104). Em face destes desafios, acrescenta em seguida o historiador que estou citando: ''As formas de lidar [com eles] ainda não são claras, mas a privatização e o livre mercado não se incluem nelas'' (Idem). É pertinente a contundência desta conclusão, que aponta para a impossibilidade de a ordem burguesa reproduzir-se sem reproduzir a barbárie? A resposta é afirmativa: nenhum desses problemas pode ser resolvido sem modalidades de controle social cuja racionalidade transcenda aquelas que é inerente ao capital; esses problemas só podem ser equacionados e solucionados, sem a reiteração de vetores barbarizantes, mediante intervenções cuja estratégia supere compulsoriamente as requisições específicas da lógica de acumulação e valorização sem a qual o movimento do capital é impensável. Curta e grossamente: no marco da ordem burguesa, esses problemas tendem a cronificar-se, a receber pseudo-soluções ou soluções de altíssimo custo sócio-humano, porque ''o capitalismo e a racionalidade do planejamento social abrangente são radicalmente incompatíveis'' [14].

 Com estas pontuações, estou longe de sugerir que a ordem burguesa se revela à análise como esgotada ou em vias de entrar em algo semelhante a um colapso -- a ideia de uma ''crise geral'' catastrófica, com o capitalismo e suas instituições sociais à beira da dêbacle, não me parece encontrar suportes sólidos --; enfim, não se trata de supor o capitalismo como agonizante, incapaz já de reproduzir-se como tal. Com tais pontuações, quero apenas ressaltar que a ordem burguesa contemporânea exauriu-se como padrão progressista, esgotou-se no que pode oferecer de ascensional aos homens. Superado o seu grandioso papel histórico-universal emancipador, ela só pode reproduzir-se agora com a (re)produção de complexos e contradições, antagonismos e problemas que, no seu marco, não podem ser ladeados senão com o aprofundamento de traços barbarizantes: mesmo os avanços e êxitos que possa lograr na exploração de novas alternativas geradoras de riquezas e de sequelas tais que não se trava o aviltamento de imensos contingentes populacionais [15].

 Esta argumentação vem tematizando a ordem burguesa em bloco, como um todo. O procedimento não é infundado: o desenvolvimento histórico do capitalismo universalizou, há muito, os seus processos de matrização sócio-política -- globalizada, a lógica específica do capital opera independentemente de latitudes e longitudes. Isto, entretanto, não cancela formas e arranjos sócio-políticos diferenciais sobre o topus da dominação do capital. É sabido que a análise teórica, quando recusa a redução economicista e a ilusão politicista, verifica concretamente que uma determinada estrutura econômica pode imbricar-se congruentemente com ordenamentos sócio-políticos alternativos (cuja pluralidade, todavia, tem fronteiras). O estudo da ordem burguesa, na sua maturação histórica, mostra que estruturas econômicas substancialmente similares comportam configurações sócio-políticas muito diversas -- a estrutura do capitalismo monopolista suporta tanto o Welfare State quanto o modelo fascista --; ou, como já tive oportunidade de assinalar, ''o sistema capitalista tem produzido e articulado distintos regimes políticos, compatibilizando, é verdade que diferenciadamente, seus mecanismos estritamente econômicos com formas políticas muito variadas'' (Netto, 1990: 72 ). Esta determinação é necessária para permitir tangenciar o projeto sócio-político que veio disputando com os liberais e conservadores a direção de vários Estados burgueses e que, agora, com a ''crise do socialismo'', adquire um relevo curioso: o projeto social-democrata.

 Quanto à sua prática política, onde se pôde realizar experiências duráveis, a social-democracia operou com uma ''gestão social'' do capitalismo: um Estado com forte iniciativa no campo de políticas socais redistributivas e com pronunciada intervenção nos serviços e equipamentos sociais, fiador de controles tributários sobre o capital e articulador institucional de parcerias entre capital e trabalho, sobre a base do jogo político democrático. Geralmente, a eficácia do modelo social-democrata é localizada em alguns países da Europa nórdica, a laterização dos seus pobres experimentos sul-europeus. Este modelo, como é notório, pouco tem a ver com a social-democracia ''clássica'', inspirada no movimento operário revolucionário do século XIX e marcada por influxos marxistas; de ato, o que se efetiva neste modelo é uma proposta política de controle, redução e reforma dos aspectos mais brutais  da ordem burguesa, sem a vulnerabilização dos seus fundamentos. Tem-se, em realidade, uma configuração sócio-política que, de alguma forma limitando as sequelas próprias à ordem burguesa, é compatível com a dinâmica do capital. Não é um acidente, pois, que, em seus experimentos mais logrados, as propostas social-democratas jamais tenham afetado substantivamente as estruturas básicas da ordem burguesa -- antes as tenham consolidado e legitimado. Por outra parte, é significativo que estes experimentos só registrem êxito em conjunturas de expansão capitalista: não só não se creditam a eles processos de arranque no crescimento como, especialmente, mostraram-se sempre muito susceptíveis de reversão em tempos de crise. Em suma, a gestão social-democrata da ordem burguesa -- certamente contabilizando ganhos para setores sociais amplos, que não os obteriam nos quadros do ''liberalismo'' -- não contribuiu para superar o capitalismo e suas instituições básicas.

 Vale lembrar, ainda, em se tratando da social-democracia, duas outras notas importantes para a sua apreciação. No que se refere ao seu desenvolvimento prático-político, ele se realizou em geral sob uma pressão a dois níveis internacionais: internacional, com a existência do ''campo socialista'', com seu apoio sobre ponderáveis segmentos de trabalhadores e intelectuais [17]; nacional, com a existência de núcleos comunistas disputando a direção do movimento operário. É pouco plausível que a social-democracia se modelasse tal como a conhecemos sem esta dupla pressão -- e é supérfluo aduzir de que seu arrefecimento afetará a evolução da social-democracia. Quanto à natureza sócio-política atual dos partidos social-democratas (independentemente de sua designação), eles não se distinguem da social-democracia ''clássica'' apenas no plano teórico-ideológico, mas sobretudo porque deixaram de ser partidos classistas: enquanto aquela tinha o seu centro de gravitação nas massas operárias, os partidos social-democratas contemporâneos, mesmo que suportes de base sindical lhes pareçam necessários, funcionam ''como organismos capazes de mobilizar um eleitorado socialmente heterogêneo, unido principalmente pelo descontentamento com os regimes conservadores existentes e pelo desejo de um conjunto de reformas no Estado, na economia e na sociedade'' [18].

 Esta referência à social-democracia é imperativa para indicar o fracasso de um projeto cuja longínqua inspiração se direcionava para a superação da ordem burguesa -- afinal, antes de ser capturado pela lógica do capital, o projeto social-democrata fundava-se num ideário que apontava para uma ordem alternativa. O seu fracasso, expresso tanto pelos resultados práticos de suas experiências quanto pela conversão dos seus partidos em máquinas eleitorais muito pouco diversas das similares liberais e conservadoras, porém, não pode ser registrado isoladamente: também não apresentaram resultados efetivos, em termos da superação da ordem burguesa, os projetos condensados em torno dos partidos comunistas.

 Obviamente, não pretendo equalizar os projetos e/ou práticas dos partidos social-democratas e dos partidos comunistas. Nem, por outo lado, inclino-me a considerar que, no último meio século, tenha sido inócua a experiência de partidos comunistas nos espaços da ordem burguesa; ao contrário: tanto mais se transformaram em partidos nacionais de massas, centralizados no proletariado, tanto mais contribuíram (direta e/ou indiretamente) para importantíssimas conquistas dos trabalhadores e da cidadania --basta pensar em países como Itália e França para que se desvaneçam quaisquer dúvidas a respeito. O fato incontestável, entretanto, é que, nas áreas desenvolvidas, o desempenho dos partidos comunistas não conduziu à superação da ordem burguesa; e mais: salvo casos pontuais, que não me parecem prefigurar um movimento consistente, de êxitos eleitorais, o que se verifica, a partir de fins dos anos setenta, é a decrescente gravitação político-social destas organizações [19].

 Na verdade, o que todos os indícios minimamente  seguros sugerem é que estas duas formas organizativas político-partidárias, a da social-democracia e a comunista, estão se esgotando como viabilizadoras de transformações profundas na ordem burguesa, pelo menos nas áreas onde sua estrutura societária revela-se mais complexa e madura. Extrair desses indícios a ideia de que os partidos políticos estão superados me parece algo precipitado; instâncias organizadoras da vontade política, capazes de universalizá-la no desdobramento de particularismos e de conduzi-la ao exercício do poder, afiguram-se-me indispensáveis na dinâmica das lutas sociais no marco da ordem burguesa. Parece-me, porém, indiscutível que, no caso dos partidos comunistas, a sua concepção e estruturas tradicionais (envolvendo não apenas a sua organização interna e as suas práticas instrumentais, mas ainda o seu estatuto no conjunto das instituições e agências cívico-políticas) não respondem mais seja aos seus ideários, seja às demandas sociais concretamente postas hoje. Para não me alongar quanto a  este ponto: a famosa ''teoria da organização leninista'' -- exposta canonicamente em 1903 -- mostra-se atualmente absolutamente insatisfatória (e não creio que qualquer ''retorno a Lênin'' -- de 1903 -- possa ser produtivo).

O que se constata, neste andamento, é o que me parece ser o impasse: a reforma ao gosto social-democrata não vulnerabiliza a ordem burguesa, a revolução à moda bolchevique não se concretiza; os adeptos da primeira limitam-se, quando muito, à gestão razoável da ordem burguesa, enquanto aqueles que se esperava deviam implementar a segunda declararam sem ambiguidades que ela é inviável [20]. A impressão, pois, é de que a ordem burguesa se eterniza: no máximo, pode-se controlá-la -- mas não erradicá-la, superando-a. No imite, portanto, parece mesmo que a história chega ao fim.

 Esta impressão, a meu juízo, falseia a realidade e não resiste à análise crítica. O fracasso da reforma social-democrata não resulta de uma pretensa intangibilidade da ordem burguesa, mas da natureza da concepção que funda aquele projeto politico -- o da reforma que põe como limite a aceitação das estruturas básicas do ordenamento capitalista; na medida em que não efetiva a crítica radical da ordem burguesa, a reforma social-democrata desloca necessariamente a sua ação dos níveis substantivos desta ordem; daí o caráter que a reforma adquire: independentemente dos seus ganhos, ela opera como mantenedora da ordem. Quanto à também pretensa inviabilidade da revolução, ela deriva da concepção que a identifica a processos insurrecionais, catastrofistas, num típico decalque das revoluções anteriores à consolidação da ordem burguesa [21] -- e, com esta plenamente desenvolvida, o padrão insurrecional parece remeter-se mais ao domínio do imaginário social. Estes ''paradigmas'' -- o reformista limitado e o revolucionário insurrecional -- estão desterrados do reino das possibilidades exitosas da ordem burguesa contemporânea: não porque esta tenha se imunizado á erosão das suas estruturas fundamentais, mas porque deixou para trás as condições que, noutro tempo, poderiam tornar eficazes aqueles ''paradigmas''. A ordem burguesa derruiu, há muito, as bases que confeririam chances de sucesso ao reformismo bem-pensante, ao estilo dos fabianos, E também socavou, há muito, os suportes da revolução proletária explosiva, tal como os militantes operários a pensaram a partir do modelo de 1848 e 1871 e como Lênin a empreendeu em 1917. Neste processo, porém, ela não eliminou ou reduziu as contradições e tensões que inscrevem a possibilidade da sua superação na imanência mesma do seu movimento: antes adensou-as, tornando-as mais complexas e profundas. O que a ordem burguesa madura deitou por terra foram duas projeções:uma, que supunha possível superá-la operando de forma evolucionista-gradual, contendo suas sequelas e limitando as suas implicações através do seus próprios mecanismos; outra, que pensava a sua superação como ''necessidade histórico-natural'', como desenlace disruptivo do acúmulo das suas contradições e antagonismos.

 Parece claro, hoje, que a superação da ordem burguesa não se realizará por estas vias. Para que a superação venha a concretizar-se, serão precisas uma vontade e iniciativa políticas que, mediante novos padrões organizativos, possam mobilizar e (auto)direcionar massas de milhões de homens para empreender a construção de uma ordem societária que erradique as bases estruturais da ordem vigente -- a propriedade privada dos meios fundamentais de produção, a lógica do capital e as mediações societais centradas na dinâmica do mercado.  Tais vontade/iniciativa e padrões organizativos deverão descartar o reformismo limitado, mas implementar reformas que abram caminho no sentido da socialização da economia e do poder político; deverão descartar os modelos de desenlaces explosivos e insurrecionais, mas sem iludir-se quanto (e preparando-se politicamente para) à inevitabilidade de momentos traumáticos num processo certamente pouco idílico -- e sem qualquer concessão a uma ''lógica dos tempos'' (um de ''reforma'', outro de ''revolução''): trata-se, aqui, de uma processualidade complexa que sintetiza, num só ''tempo'', todas as dimensões do que Marx chamou de ''uma época de revolução social'' [22].

 O que é próprio deste fim de século é que aquelas vontade e iniciativa políticas não se mostram condensadas (e as formas organizativas existentes não dão indicações seguras de contribuir para a sua condensação) e que os novos padrões organizativos não emergem nítidos. Entretanto, esta é uma conjuntura -- e, se não podemos ainda ter clareza do seu curso, não temos nenhum motivo para deixar de tratá-la como tal. Imaginar a sua perdurabilidade infinita seria um grave equívoco. Supor que a massa dos trabalhadores, numa época em que os recursos de socialização das ideias e dos projetos e experiências sociais são imensos, será acometida de uma paralisia histórico-política de largo prazo -- eis aí uma suposição que parece desafiar tudo o que se conhece seguramente sobre a história e a sociedade. Mais plausível é outra projeção: a de que experimentamos uma transição histórico-universal onde as formas tradicionais dos programas e das organizações políticas voltadas para a superação da ordem burguesa mostram-se exaustas e na qual a gestação das suas futuras sucessoras ainda não se cumpriu. Fundando-se esta projeção em análises da realidade contemporânea, é possível avançar algumas ideas -- por exemplo:

 - o topus privilegiado da superação da ordem burguesa recentra-se nas áreas urbano-industriais de ponta;
- os partidos revolucionários terão que redefinir substantivamente o seu estatuto social, os seus papeis e as suas relações com os movimentos cívicos, sociais e culturais;
- o protagonismo direto dos trabalhadores (com o proletariado amplamente redimensionado, em função das modificações ocorrentes nos processos e na organização do trabalho) haverá de saturar todas as articulações econômico-sociais e políticas etc.

 Numa palavra, toda uma cultura política (mais largamente: uma cultura sociocêntrica) deverá ser substituída, configurando-se a prospecção de uma revolução processual cuja estratégia terá que ser resgatada, pela razão teórica, do movimento histórico-social real -- o movimento ao comunismo, uma vez que este ''não é um estado a implantar-se, um ideal que a realidade deve sujeitar-se. Chamamos comunismo ao movimento real que anula e supera o estado de coisas atual. As condições deste movimento arrancam das premissas hoje existentes'' (Marx e Engels, 1978: 37).

 Estas premissas, de forma muito mais clara do que à época em que foram escritas tais palavras, estão dadas: é hoje possível erradicar a barbárie, substituindo a ordem burguesa pela ''livre associação de livres produtores'', transitando da ''pré-história'' à ''história humana''.

 O fato de, nesta dramática conjuntura de final de século, esta possibilidade não aparecer, nítida, para os sujeitos sociais mais interessados nela, e de a ela não se imbricar já uma estratégia política que a potencie e a atualize -- este fato não depõe contra a sua efetividade. Não seria a primeira vez, aliás, que a consciência social tardaria a apreender (e intervir sobre) tendências históricas operando abaixo da epiderme da sociedade: a velha toupeira de que falava Marx prossegue o seu trabalho, ainda que os seus possíveis beneficiários não o visualizem.

 Por tudo isto, a alternativa à barbárie -- o comunismo -- é uma possibilidade histórica concreta. E, por tudo isto, a conjuntura não deixa de recolocar, com mais força que antes, o dilema: o comunismo ou a barbárie.

 A este breve escrito polêmico escapa a tematização da ultrapassagem da conjuntura. Mas lhe é indispensável a afirmação de que a aposta na superação da ordem burguesa não é um voto fideísta num futuro escatológico -- é uma projeção calcada em tendências reais. Os homens podem preferir a barbárie, mas é pouco provável que o façam, pela simples (ou muito complexa) razão de que, com esta escolha, ao contrário do poeta, prefeririam nenhum movimento.

 Notas

[1] Cf. FGV/Banco Mundial (1990). O mesmo panorama é reiterado na segunda versão do ''Relatório de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/PNUD'' (cf. O Estado de São Paulo, ed. 23 de maio de 1991).
[2] Veja-se um comedido balanço da tão elogiada ''era Thatcher'': ''Nos dois primeiros anos do novo governo, os impostos aumentaram, os salários reais caíram e o PIB caiu em 3,5%. O que é pior, a produção manufatureira caiu em 14% no mesmo período e a taxa de emprego caiu na mesma proporção... Depois da queda inicial, a recuperação foi lenta, principalmente na indústria manufatureira. A produção não alcançou os níveis daquela de 1979 até 1987 e a taxa de empregou continuou a cair. A taxa de desemprego geral cresceu, de cerca de 4% para mais de 10% e continuou em tal nível até 1987-1988, quando começou a declinar lentamente'' (Humprey, in Soares, org., 1990: 216)
[3] Uma síntese didática a acessível do que se passa nos Tigres Asiáticos é oferecida por Salinas (1986).
[4] Eis algumas verificações, registradas em publicação destinada ao grande público não-especialista e digna de crédito: ''Estimava-se que o crescimento do produto nacional bruto dos países desenvolvidos [em 1990] em 2,6%, contra 3,4% em 1989''; ''O PNB no hemisfério ocidental... caiu cerca de 0,5% [1990], contra um ganho de 1,6% no ano interior''; ''O crescimento dos investimentos do bloco desenvolvido [caiu] para apenas 3% [1990], contra 5% no ano interior''; ''Em meados de 1990, o índice de desemprego sofria uma elevação em diversos países'' [EUA, França e Grã-Bretanha] (Encyclopedia Britannica, 1991: 308-310).
[5] Considerando-se a antiga Alemanha do Oeste, sabe-se, por exemplo, que, em comparação com a Grã-Bretanha, as demissões e os acidentes de trabalho na indústria apresentam taxas significativamente mais altas (cf. a indicação feita por Humprey, op. e loc. cit., p. 218); agora, com a anexação da ex-Alemanha Democrática, a massa de desempregados alcança a cifra dos 4 milhões de trabalhadores (cf. O Estado de São Paulo, ed. de 11 de maio de 1991). No Japão, a exploração extensiva e intensiva da força de trabalho é de tal magnitude que as mortes por ela provocadas são objeto de uma designação especial -- Koraschi; neste país, cabe notar que ''o sistema dito de emprego vitalício e de antiguidade'' está hoje em crise, com as grandes empresas recorrendo ''cada vez mais a competências vindas do exterior, ao trabalho em tempo parcial'' e sem ''condições de 'garantir um emprego permanente aos seus antigos empregados' '' (Lojkine, 1990: 136).
[6] Catastrofismo de que enferma a brilhante análise de Kurz (1992), ela mesma portadora de sérios equívocos teóricos.
[7] A hipótese é de Mészáros (1989: 171) que, na sequência, agrega: ''...ainda que seja excessivamente otimista sugerir que o modo de produção capitalista já atingiu seu ponto de não-retorno a caminho do colapso''.
[8] Recorde-se: ''quanto menos indivíduo temos, tanto mais individualismo'' (Adorno e Horkheimer, 1969: 56).
[9] Traços que o colonialismo cultural difunde e que fascinam certa intelectualidade embevecida com seu próprio umbigo. A encarnação mais patética desse ethos degradado, na mídia brasileira, é o inveterado mistificador Paulo Francis -- quando eram ainda impactantes as imagens da catástrofe que ceifou a vida de quase 150000 bengalis, o encanecido enfant terrible pontificou: ''Verifico irritado que Les Tournebroches, meu lugar favorito para um almoço decente e a preços razoáveis, fechou. [...] A perda me entristece mais que o povo de Bangladesh vítima do último ciclone'' (O Estado de São Paulo, ed. de 12 de maio de 1991).
[10] É inteiramente supérfluo reiterar aqui que instituições políticas democráticas não são conaturais à ordem burguesa -- já e acacionismo notar que liberalismo não é sinônimo de democracia. A democracia política, expressando possibilidades da ordem burguesa, jamais foi seu resultado ''normal'' -- foi sempre o fruto de conquistas dos trabalhadores.
[11] Uma das formas imediatas da percepção deste fenômeno aparece no estereótipo de que nada é mais igual aos conservadores no governo que os oposicionistas que os substituem. Outro sinal é o preocupante absenteísmo que se registra nos processos eleitorais significativos.
[12] Pouco importa que os casos mais escandalosos dessas práticas corriqueiras -- que não são apanágio de uma ou outra ''cultura política'', posto que não atingem da impoluta realeza belga aos honoráveis dirigentes japoneses --, vindos a público, sejam eventualmente objeto de sanção.
[13] Contradição que Lênin agarrou com perspicácia: antes de anotar que ''o desenvolvimento do capitalismo cria as premissas para que todos possam realmente intervir na direção do Estado'', ele constatou que ''se todos intervêm realmente na direção do Estado, o capitalismo já não poderá sustentar-se'' (Lênin, 1987: 141)
[14] A determinação é de Meszáros (1987: 31), que, neste texto, desenvolve uma arguta reflexão em torno da ''crise estrutural geral das instituições capitalistas de controle social na sua totalidade social''.
[15] Parece-me esclarecedor, a título de exemplo, remeter aos novos métodos de organização do trabalho na ordem burguesa -- se já estão para trás, nas áreas desenvolvidas, os tempos da ''gerência científica'' taylorista, nem por isto os trabalhadores submetidos à gerência ''humanizada'' ou ''com preocupações sociais'', ''participativa'', têm reduzida a sua exploração integral. Cf. entre muitos estudos, os ensaios de C. Dejours, dos quais está vertido ao português A loucura do trabalho (1989).
[16] Esta macroavaliação, frise-se, não pode esbater a diferencialidade que existiu, historicamente, entre propostas e práticas social-democratas e propostas e práticas conservadoras e/ou liberais.
[17] Aqui está um claro exemplo de como a mera existência de um ''campo socialista'', enquanto ameaça factual à ordem burguesa, contribuiu para produzir, no interior do mundo capitalista, modificações tendentes a amenizar as constrições sobre a vida de amplos contingentes populacionais.
[18] A anotação é de Hobsbawm (1989: 39); ele se refere especificamente aos partidos socialistas que ressurgiram nos anos setenta (França, Espanha, Grécia), mas me parece que o apontamento tem validez bem mais ampla.
[19] Estou pensando no quadro das áreas capitalistas desenvolvidas; como já sugeri, o panorama e os cenários do ''Terceiro Mundo'' ainda podem reservar algumas condições de operacionalidade para estes projetos e organizações.
[20] Eis o que afirma Giorgio Napolitano, dirigente do ex-PCI, identificando claramente revolução com insurreição: ''Já pertence ao passado a disputa sobre a via a seguir que por décadas dividiu o movimento operário europeu. Faz tempo que a alternativa revolucionária tornou-se inapresentável'' (Napolitano, 1990: 5; os grifos não são do original).
[21] Não há dúvidas de que o privilégio do modelo insurrecional está inscrito nos textos dos fundadores da tradição marxista -- inscrição inteiramente legítima se se recorda o processo histórico que era a matéria de sua elaboração. Mas este privilégio nunca foi absoluto e sabe-se que o velho Engels o superou, conforme prova o seu célebre prefácio de 1895 à obra de Marx, As lutas de classe na França (1848-1850).
[22] A expressão aparece no prefácio, datado de janeiro de 1859, a Para a crítica da economia política. É interessante notar a utilização de época, que denota um largo decurso temporal; não foi por acaso, aliás, que Gramsci, em junho de 1920, anotou que ''a revolução proletária é um longuíssimo processo histórico'' (apud Coutinho, 1981: 147).


 Bibliografia


ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. La sociedad. Leciones de sociología. Buenos Aires, Proteo, 1969.
BARAN, P., SWEEZY, P. Monopoly Capital. New York, Monthly Review Press, 1966
COUTINHO, C. N. Gramsci. Porto Alegre, L&PM, 1981.
HOBSBAWM, E. J. (org.). História do marxismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989.
LÊNIN, V. I. O Estado e a revolução. São Paulo, Global, 1987.
MANDEL, E. Le troisiéme âge du capitalisme. Paris, UGE, 1976.
___________. A crise do capital. São Paulo/Campinas, Ensaio/Unicamp, 1990.
MÉSZÁROS, I. A necessidade de controle social. São Paulo, Ensaio, 1987.
____________. A crise atual. Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 17-18, 1989.
NAPOLITANO, G. O futuro do socialismo. Lua Nova. São Paulo, CEDEC/Marco Zero, n. 22, dezembro de 1990.
NETTO, J. P. Democracia e transição socialista. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990.
SALINAS, S. S. O bando dos quatro. Porto Alegre,  Mercado Aberto, 1986.
SOARES, R. M. (org.). Gestão da empresa, automação e competitividade. Brasília, IPEA/IPLAN, 1990.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Dez coisas que Bertone Sousa ainda precisa aprender



 Bertone de Oliveira Sousa, professor do curso de História da UFT que já teve artigos reproduzidos neste blog, recentemente lançou em seu blog o artigo ''Dez coisas que a esquerda brasileira ainda precisa aprender'', parecido com uma publicação anterior chamado ''Notas avulsas'': um conjunto de teses do autor sobre a nossa realidade. Gostaria de fazer aqui uma crítica às teses divulgadas nesse artigo mais recente.

  1. O PT promoveu inclusão social, mas isso não deveria lhe dar o direito de saquear o país. Em última análise, os mensalões e petrolões foram roubos aos próprios trabalhadores, que agora são forçados a pagar os prejuízos. O PT se mostrou tão patrimonialista quanto qualquer outro partido e somente se mantém no poder porque a direita, apesar de também ser patrimonialista, não quer inclusão nem ascensão social, por isso não consegue ser oposição e vencer eleições. E como não há oposição, o PT se destrói por dentro como vem fazendo. A direita nunca vai querer políticas sociais, por isso sempre vai vociferar contra elas. A crise atual ocorre porque o governo deixou de fazer reformas importantes e agora tem que recuar das políticas sociais e deixar a economia decrescer. Isso não tem a ver com “ódio burguês ou elitista”, isso é resultado apenas de má administração e fisiologismos partidários.

 Que o PT é patrimonialista e corrupto como suas contrapartes mais à direita todos nós sabemos; o elemento diferenciador dessa tese do professor seria a de que a ''crise atual'' ocorre somente porque o governo deixou de fazer as tais reformas, e que essa negligência seria apenas resultado de má administração e fisiologismos partidários. Ok, mas por que houve (e há) má administração e fisiologismos partidários? Talvez convenha dizer que o oligopólio midiático e a estrutura de financiamento das campanhas cerceiam o potencial de conscientização dos partidos à esquerda, gerando uma conjuntura conservadora que dificulta o progressismo. Veja bem, não estou dizendo que nestes anos todos o governo estivesse completamente impedido de fazer reformas mais à esquerda, mas que a conjuntura conservadora, somada ao fato de que o governo negligenciou a conscientização da classe trabalhadora (''Mas classe não existe, e nem luta de classes!'', dirá o professor), são um forte impedimento a essas reformas. O governo federal petista, em 2003, optou por um caminho que buscava conciliar os interesses de classe antagônicos. Por um período de mais ou menos 10 anos esse modelo pôde funcionar devido a um cenário externo favorável, mas caiu por terra recentemente. Eis a real causa da crise. E o ''ódio burguês e elitista'' agora exige austeridade e até mesmo intervenção militar, para jogar mais esta crise do capitalismo -- que, não sabe o professor Bertone, ameaça jogar-nos em mais uma recessão mundial nos próximos 2 ou 3 anos -- na conta dos trabalhadores e dos mais pobres (mais informações sobre o impacto da depressão econômica mundial no Brasil aqui e aqui).

2. Não existe imprensa golpista no Brasil. Quem faz golpe são militares, milícias ou grupos armados tomando as ruas e prédios governamentais. Imprensa faz oposição e oposição não é golpe.

 De fato, a imprensa sozinha não é capaz de derrubar um governo. Esqueceremos, porém, coisas como o apoio dado por tantos e tantos jornais conservadores ao impedimento de João Goulart, ainda que esse estivesse muito mais à esquerda que Dilma? Esqueceremos como a própria emissora que levou o neoliberal Fernando Collor de Melo, recentemente absolvido das acusações utilizadas como justificativa para o impeachment por falta de provas, tirou-lhe do poder?


3. Não existe luta de classes no mundo contemporâneo. Existem, sim, ricos e pobres e suas diferenças não se manifestam mais na forma de luta de classes. Marx usou esse conceito no século XIX como parte de uma filosofia da história em que o desenvolvimento produtivo da sociedade capitalista levaria de forma inevitável à ditadura do proletariado, que seria a passagem para a abolição de todas as classes. O conceito de classe, em Marx, sobrepuja o indivíduo, cujos pensamentos e modos de viver são condicionados por sua posição em uma classe social, compreendida como unidade sólida. Nossa época é a da afirmação do indivíduo, das minorias e da rejeição a ideologias coletivistas. Os pobres não querem revolução social nem são movidos por ideais classistas, eles querem consumir, querem ampliação de direitos e integração. Algumas lideranças de esquerda perceberam a importância disso ainda na década de 1870 e criaram a social-democracia. Hoje, evocar “luta de classes” apenas serve para jornalistas pagos pelo governo polarizarem debates e inflamarem ânimos. Somente. Tirando isso é um conceito fora de tempo.

 Devo dizer que essa é, de todo o texto, minha tese favorita, por apresentar explicitamente a forma pós-moderna de pensar do professor Bertone. Diz ele que já não há luta de classes no mundo contemporâneo; por que então estariam sindicatos lutando por coisas como o aumento do salário mínimo e de outros benefícios trabalhistas, com a oposição dos patrões e proprietários, que querem margens de lucro sempre maiores? Essa oposição de interesses, que não é meramente a oposição de interesses individuais mas sim de interesses de grupos, é simplesmente o antagonismo de classes inseparável do capitalismo. Bertone diz que o conceito de luta de classes era praticamente apenas uma desculpa, uma justificativa para a conclusão da filosofia da história de Marx, e que os pobres de hoje querem simplesmente consumir, ter seus direitos ampliados e aumentar sua integração aos frutos da civilização moderna; o professor inverte Marx, que primeiro partiu da análise da produção material da vida para daí desenvolver sua filosofia da história (ou, em outras palavras, primeiro descobriu a luta de classes no capitalismo para dai então concluir que esta levaria à ditadura do proletariado e então à abolição das classes), e esquece que, para poder consumir e integrar-se, os pobres precisam ganhar mais (um valor a mais que talvez, diria eu, seus empregadores -- donos dos meios de produção -- não estejam afim de pagarem), e que para terem seus direitos ampliados (e aqui eu entendo direitos sociais, como saúde e educação públicas de qualidade, além de emprego), é preciso que o governo aloque recursos do setor capitalista e até mesmo de outros consumidores. Um último adendo: a social-democracia festejada por Bertone no final do parágrafo é a mesma que apoiou a permanência de alguns países na primeira guerra mundial quando estavam em seus governos -- permanência essa combatida pelos ''atrasados'' comunistas e socialistas.

Há algum tempo, aliás, escrevi um texto sobre luta de classes que pode ser lido aqui.

4. É preciso entender que não faz mais sentido colocar os adjetivos “socialista” e “comunista” em siglas de partido, ainda mais quando vêm acompanhados do substantivo “liberdade”. Alguém saberia dizer o que é um socialismo com liberdade? Alguém sabe dizer como construir o socialismo sem que isso resulte no fracasso das experiências do século passado? Por que o partido que reúne esses dois termos apenas defende lugares onde não há liberdade?

 Bertone não justifica o porquê de não ''fazer mais sentido'' colocar os adjetivos ''socialista'' e ''comunista'' em siglas de partido; não é o normal a se fazer quando uma organização política com um projeto de nação socialista ou comunista se forma? É também risível o que Bertone fala a seguir, repetindo como um papagaio a propaganda de certos liberais do Ocidente. O socialismo -- o regime de propriedade pública dos meios de produção com um Estado proletário -- é essencialmente libertário, exatamente pelo fato de que os trabalhadores já não precisam se submeter às condições que a classe capitalista monopolizadora dos meios de produção impõe àqueles para que obtenham seu ganha-pão, e a possibilidade de um planejamento racional e democrático da produção social permite a satisfação das necessidades humanas individuais. Talvez Bertone esteja falando de um Estado autoritário, fortemente repressor, cujos membros teriam absoluto poder sobre a população; diz também ele que as experiências socialistas do passado foram um fracasso. Pois bem, se eu puder usar a Rússia soviética como exemplo de que Bertone está errado, gostaria de apresentar 2 citações do famoso historiador Isaac Deutscher e deixar as conclusões por conta dos leitores:

''No curso desse decênio [1929-1939] a produção de eletricidade por ano elevou-se de 6 para 40 bilhões de kWh; a produção de carvão passou de 30 para 133 milhões de toneladas; a de petróleo, de 11 para 32 bilhões de toneladas; a de automóveis, de 1400 para 211 mil unidades. Antes da revolução, o número de médicos era de 20 mil, em 1937 passou a 105 mil. O número de leitos de hospital passou de 175 para 618 mil. Em 1914, 8 milhões de pessoas frequentavam escolas de todos os níveis; em 1928, 12 milhões de pessoas, em 1938, 31,5 milhões. Em 193, 112 mil pessoas estudavam em estabelecimentos de nível universitário; em 1939, 620 mil. Antes da revolução, as bibliotecas públicas possuíam 640 livros para cada 10 mil habitantes; em 1939, 8610.''

 ''Os deputados dos sovietes não eram escolhidos por um período fixo. O eleitorado tinha o direito de substituí-los por outros a qualquer momento. Sua composição renovava-se, portanto, através de frequentes eleições suplementares. Por isso, eles se transformaram num reflexo perfeito do cambiante estado de espírito popular. Esta era a fonte de uma incomparável autoridade moral. Além de dar representação semi-parlamentar às classes inferiores, eram também o poder executivo de fato, com a qual a administração normal jamais poderiam competir.''

 Lembremos que a URSS foi aquela que conseguiu crescer 2125% nos dois primeiros Planos Quinquenais de Stálin, esmagou o exército nazista, se recuperou rapidamente da destruição causada pela guerra e ainda lançou o primeiro homem ao espaço (além de prover uma logística que pôde proteger os alemães orientais do inverno marcado pela fome com o qual sua contraparte ocidental, enteada dos EUA, sofreu). O gráfico abaixo demonstra o crescimento do PIB (repare na ausência de recessões) na pátria socialista:


O socialismo falhou; reverta para capitalismo!

 Aquele que ainda acreditar na tese direitista da ''impossibilidade de uma economia socialista eficiente'', leia esse texto.

5. Cuba não é um exemplo de saúde e educação que ainda se possa elogiar. Vários países construíram excelentes índices de educação e saúde pública sem sacrificar as liberdades individuais de seus cidadãos e nem abrir mão da democracia, como fez Cuba.

Farei outra citação:

“Cuba é internacionalmente reconhecida por seus êxitos nos campos da educação e da saúde, com um serviço social que supera o da maior parte dos países em vias de desenvolvimento e em certos setores se compara ao dos países desenvolvidos. Desde a Revolução Cubana, em 1959, e do subsequente estabelecimento de um governo comunista com partido único, o país criou um sistema de serviços sociais que garante o acesso universal à educação e à saúde, proporcionado pelo Estado. Esse modelo permitiu a Cuba alcançar a alfabetização universal, erradicar certas doenças, [prover] acesso geral à água potável e salubridade pública de base, [atingir] as taxas mais baixas da região de mortalidade infantil e uma das maiores expectativas de vida. Uma revisão dos indicadores sociais de Cuba revela uma melhora quase contínua de 1960 até 1980. Vários indicadores principais, como a expectativa de vida e a taxa de mortalidade infantil continuaram melhorando durante a crise econômica do país nos anos 90 [...]. Atualmente, os serviços sociais de Cuba são parte dos melhores do mundo em desenvolvimento, como documentam numerosas fontes internacionais, incluindo a Organização Mundial da Saúde, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, além de outras agências da ONU e o Banco Mundial […]. Cuba supera amplamente a América Latina, o Caribe e outros países de renda média nos indicadores principais: educação, saúde e salubridade pública”. (Barbara Bruns & Javier Luque, Profesores excelentes. Cómo mejorar el aprendizaje en América Latina y el Caribe, Washington, Banco Mundial, 2014, pp. 87-88)

''Cuba possui altos índices de saúde e educação, com um alto Índice de Desenvolvimento Humano: de 0,815 em 2014. De acordo com os dados apresentados pelas Nações Unidas, Cuba foi a única nação em todo o mundo que em 2006 atingiu a definição de desenvolvimento sustentável do World Wide Fund for Nature, com uma pegada ecológica de menos de 1,8 hectares per capita, 1,5 hectares, e um Índice de Desenvolvimento Humano de mais de 0,855.''



Mais informações sobre a saúde e educação de Cuba aqui. Sobre o suposto caráter ditatorial de Cuba, sugiro a leitura do texto da professora Anita Leocádia Prestes, ''O sistema político de Cuba: uma democracia autêntica''.

6. A democracia socialista é totalitarismo. Só existia (e só existe) para o partido e sua nomenklatura, que encarna a vontade da coletividade sem consultá-la. Hoje não falamos mais em “democracia burguesa”, falamos genericamente em democracia e pensando o acesso das minorias e a inclusão dos pobres nela. É nessa via que a esquerda ainda pode ser bem-sucedida porque a direita governa para os ricos e em detrimento dos pobres. Por isso, a direita sempre terá os pobres contra ela. A única alternativa que sobrou à democracia ocidental é o radicalismo islâmico.


 Não é preciso me aprofundar nessa tese. A citação de Deutscher sobre o sistema de sovietes na URSS e o texto da professora Leocádia demonstram que a democracia socialista, longe de ser ''totalitarismo'' -- categoria consagrada pro uma pensadora que recebia dinheiro da CIA para escrever suas sobras e que foi destroçada por Domenico Losurdo aqui --, é mil vezes mais democrática que qualquer democracia burguesa.


7. Militar em partidos é abrir mão da inteligência. Partidos existem em função de projetos de poder e, quando precisam, fazem negociatas com seus adversários políticos. Militantes são rebanho, massa de manobra.

 Eis o genial julgamento do professor! Unir-se a outras pessoas por uma causa comum, um projeto de nação, é ''abrir mão da inteligência''. Que tipo de coisas mais nos apresentará o nosso querido pós-moderno?
 8. Antiamericanismo e antissionismo são expressões infantis que não levam a lugar algum, exceto à depreciação da democracia, que é tudo o que a esquerda não precisa fazer. É possível criticar a política externa norte-americana sem jogar no lixo a democracia e a riquíssima herança cultural desta sociedade, com quem ainda temos muito a aprender. O mesmo pode ser dito em relação ao Estado de Israel. Mas neste caso as vergonhosas manifestações da esquerda a favor do Hamas em tempos de conflito na Palestina resultam apenas de muita ignorância histórica e de um dogmatismo ranheta.

 Estaria Bertone aqui acusando a esquerda de antiamericanismo e chamando o regime interno desse país de ''democracia''? A primeira coisa é uma acusação natimorta, pois a esquerda tupiniquim não tem problemas em receber elementos da ''riquíssima herança cultural'' desse país, ou de adotar o progressismo que é lá realizado. Façamos, porém, a ressalva de que um país com tamanha população carcerária (em presidiárias privadas!) e com tantas mortes de negros por uma polícia racista é um tanto quanto difícil de se chamar de democrático.
9. Analisar conjunturas sociais e econômicas a partir de posições apriorísticas, isto é, tomando por base sempre uma formação ideológica, geralmente leva a abordagens reducionistas. Os casos acima citados são exemplos clássicos e muitos outros poderiam ser citados de meios jornalísticos de esquerda ou direita. Nenhuma abordagem social é imparcial, mas pode não ser redutiva e nesse ponto a compreensão histórica e análises de caso são mais importantes do que as categorias ideológicas. Ideologias não interpretam, rotulam; não compreendem nem dialogam, denegam. Por isso as ideologias estão mortas, pois não interpretam mais o mundo. O liberalismo foi a única que sobreviveu e não por acaso é a menos universalista delas.

''Analisar conjunturas sociais e econômicas a partir de posições apriorísticas, isto é, tomando por base sempre uma formação ideológica, geralmente leva a abordagens reducionistas''. Eis algo que, como apontam minhas críticas às teses anteriores, o próprio Bertone deveria levar para a vida. 

10. A esquerda fala de Marx mais do que o lê e quando lê fala de burguesia, capitalismo e imperialismo como se ainda estivessem no início do século 20. Ler Marx e compreender historicamente suas ideias já seria um passo importante para entender uma modernidade que não é mais a nossa e não cometer os equívocos elencados acima.
 

 Espero que não soe como arrogância, mas creio que não sou nenhum ''esquerdista que fala de Marx mais do que o lê'', uma vez que já li, dentre vários textos de introdução e explanação do pensamento do filósofo de Treves, A Ideologia Alemã, Manifesto do Partido Comunista, Manuscritos Econômico-Filosóficos, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Miséria da Filosofia e o Livro Primeiro de O Capital (cuja continuação estou começando a folhear); tampouco não compreendo historicamente suas ideias: são um reflexo do antagonismo de classes intrínseco à sociedade capitalista tal qual ele se apresentava na época em que Marx era vivo. Se, entretanto, o professor acha que o uso de categorias como ''burguesia'' e ''imperialismo'' são pura infantilidade, apenas faço questão de lembrar-lhe como as medidas neoliberais são exatamente a expressão da vontade de grupos com certos interesses contra a classe trabalhadora, e como os EUA seguem hoje, como antigamente, com suas agressões mundo afora, inclusive dando apoio aos nazistas na Ucrânia, sem falar nos milhares de civis mortos com o uso de drones no Oriente Médio.

 O professor Bertone, que -- para usar as clássicas expressões de Marx em crítica à economia vulgar -- ''se jacta de saber'' que já não existem classes ou luta de classes, que projetos sociais comuns são uma estupidez, que a única e melhor democracia possível é o ato de ir às urnas de 2 em 2 anos escolher aquele que irá nos roubar melhor, ''realmente nada aprendeu''.















domingo, 15 de março de 2015

O espectro da deflação




Michael Roberts
–  A desaceleração na maioria das economias junto de uma forte queda dos preços energéticos aumentou a ameaça da deflação nas principais economias mundiais.

A queda brutal dos preços da energia e de outras matérias-primas no final de 2014 derrubou a taxa geral de inflação dos preços de todos os produtos. Junto de um crescimento mais rápido do PIB e do emprego nos EUA, parece surgir um cenário mais otimista em 2015 para o capitalismo. A redução dos preços da gasolina significa que os lares norte-americanos e de outros países podem gastar mais dinheiro em outros produtos e, assim, impulsionar a demanda.

Este é o argumento dos otimistas entre a maioria dos analistas. Um argumento que tem em Gavyn Davies, ex-economista chefe do Goldman Sachs e agora colunista do Financial Times um dos expoentes mais notáveis. Conforme ele afirma: “Depois de vários anos nos quais uma demanda insuficiente limitou seriamente a atividade na economia mundial, forçando repetidas reduções das previsões de crescimento, 2015 deveria ser melhor. Preços do petróleo mais baixos e um pacote de política econômica fiscal/monetária mais favorável à demanda deveriam produzir um crescimento mais rápido do que a demanda agregada… Este será o ano em que se começará a absorver o excesso de capacidade da economia mundial”.

Davies apoia este prognóstico na aparente recuperação da demanda e do emprego nos EUA. Com um crescimento “potencial” em longo prazo nos EUA, de mais ou menos de 1,7%, Davies espera que a economia norte-americana cresça de alguma forma acima dessa cifra em 2015. Reconhece que a zona do euro e o Japão estão lutando para evitar uma nova recessão, mas espera que o Banco Central Europeu (BCE), aplique a flexibilização quantitativa, apesar de ser “muito duvidoso que seja suficiente para reestabelecer as expectativas de inflação até o objetivo do BCE, tendo em conta que a inflação geral se reduzirá a zero à medida que os efeitos do preço do petróleo se ampliem através do sistema.”

Entretanto, o crescimento do PIB real deveria melhorar em 2015. Quanto às economias emergentes, é possível que a China esteja desacelerando, mas ainda consegue crescer em 6-7% ao ano, razão por que o crescimento global mundial alcançaria 3%, acima de 2014.

A única consideração sobre este prognóstico que posso fazer é que está cheio de falhas. Um crescimento do PIB real mundial de somente 3% não pode exatamente ser chamado de boom. E depende de a China não reduzir seu crescimento, de a Europa e o Japão evitaram uma depressão deflacionários e de os Estados Unidos continuarem aumentando seu crescimento à medida que os consumidores gastem uma parte de suas rendas adicionais que obtêm graças à queda dos preços da gasolina.

Se levarmos em conta que os dados publicados na primeira semana do ano em todo o mundo, a imagem não é nada alentadora para os prognósticos de Davies. Por exemplo, a Alemanha é o único motor do crescimento na zona do euro. Os pedidos das fábricas caíram 2,4% em novembro, muito mais do que o esperado. A produção industrial da Alemanha também é muito mais fraca do que os economistas haviam prognosticado em novembro, caindo 0,1% em relação ao mês anterior. Agora está caindo a uma taxa de 0,5% ao ano.

A produção industrial e a construção do Reino Unido também diminuíram inesperadamente em novembro, caindo 2% ao mês, muito longe das expectativas de um rebote depois da contração de outubro. A construção está crescendo 3,6% ao ano – muito abaixo da expectativa de 6,7%. É um sinal de que o motor do crescimento no Reino Unido em 2014, o boom imobiliário, está se esgotando.  A produção industrial francesa também caiu no ano passado em novembro 0,3%, depois de uma diminuição de 0,8% em outubro.

A economia dos Estados Unidos é agora o motor do crescimento mundial. No ano passado, seu PIB real cresceu em termos absolutos mais do que qualquer outra economia, incluindo a da China. Contribuiu em 18% do crescimento do PIB real mundial, mais do que qualquer outra economia. Mas o crescimento dos Estados Unidos será suficiente para estimular o resto do mundo? Bem, as últimas cifras de pedidos de bens manufaturados não foram promissoras. Em novembro, caíram 0,7%, razão por que a cifra interanual se reduziu em 1% em comparação com um aumento de 2,1% em outubro.

Os números do emprego de dezembro nos EUA foram publicados recentemente. A cifra total de 252 mil parece bastante boa e, em 2014, o número de postos de trabalho aumentou mais do que em qualquer outro ano desde 1999. A taxa de desemprego encerrou o ano em 5,6%, o número mais baixo desde a Grande Recessão. Mas se for comparado com a população economicamente ativa, a porcentagem de norte-americanos com emprego ou que procuram emprego caiu para a cifra mais baixa das últimas três décadas, 62,7% em dezembro.


E o nível de desempregados de longa duração permanece bem acima que antes da Grande Recessão.



Mais importante ainda, a renda média por ano aumentou somente em 2,3% em 2014. Em comparação, os salários dos trabalhadores cresceram 3,7% em 1999, após 4% em 1998. De forma que mais postos de trabalho não trouxeram melhores salários e melhores ingressos reais para os trabalhadores. De fato, em novembro, a renda por hora para os empregados do setor privado foram reduzidas em cinco centavos, ficando em 24,57 dólares, marcando a maior queda mensal desde 2006. O que parece estar acontecendo é que os novos postos de trabalho foram criados em setores de baixa remuneração, como o comércio de varejo e o trabalho de meia jornada nos períodos de férias. Estes novos trabalhadores recebem menores salários.


Entretanto, as horas trabalhadas semanalmente pelos empregados alcançou seu nível mais alto após a recessão, de forma que a renda semanal se recuperou. Em suma, há mais emprego, mas se paga menos, e então as pessoas querem fazer hora extra para conseguir mais dinheiro.

Em todo o mundo, os últimos índices de atividade econômica sugerem uma desaceleração, não uma aceleração. No seguinte gráfico, construiu-se um índice composto a partir dos Índice de Gerente de Compras Industrial (PMI).

Parece-me que as economias capitalistas desenvolvidas ainda estão se expandindo (acima do nível 50), mas em um ritmo muito mais lento do que no verão passado, enquanto as economias emergentes (incluindo a China) não estão se desacelerando. Ocorre que a economia mundial avança com um ritmo mais baixo do que há um ano.



Apesar de Gavyn Davies estar otimista em relação ao crescimento econômico mundial em 2015 graças a uma demanda “superior”, Tim Adam, presidente do Instituto de Finanças Internacionais, um grupo que representa os bancos, fundos de pensões e as maiores companhias de seguros do mundo, afirma: “A pergunta é ‘pode o efeito da riqueza alimentado pela liquidez da economia dos Estados Unidos proporcionar o motor do crescimento da economia mundial?’… Pode se chegar a ter uma perspectiva bastante pessimista sobre o crescimento mundial se levarmos em conta todas estas considerações”.

A desaceleração na maioria das economias junto de uma forte queda dos preços energéticos aumentou a ameaça da deflação nas principais economias capitalistas, pela primeira vez desde a Grande Depressão da década de 1930. Em dezembro, a zona do euro caiu em deflação pela primeira vez em mais de cinco anos. O Japão está quase nela e as taxas anuais de inflação dos Estados Unidos e do Reino Unido está muito abaixo dos objetivos de seus bancos centrais de 2% ao ano!



A revista The Economist está preocupada (http://www.economist.com/news/briefing/21627625-politicians-and-central-bankers-are-not-providing-world-inflation-it-needs-some). Seu texto explica: “a queda dos preços do petróleo se deve em parte a uma maior oferta, mas também é resultado da desaceleração do crescimento em todo o mundo. A falta de apetite da China para as matérias-primas afetou os provedores dos mercados emergentes com uma especial dureza. E uma queda dos preços induzida pela energia, apesar de positiva para o poder aquisitivo para os consumidores, corre o risco de reforçar as expectativas de menos inflação em geral; é parte da natureza perniciosa da ameaça que tais expectativas se confirmem por si só facilmente”.

Apesar de os preços mais baixos da energia poderem beneficiar os lares médios reduzindo suas despesas, permitindo que gastem mais com outras coisas, isso exerce uma pressão para reduzir a rentabilidade da produção capitalista. O que poderia alentar a introdução de novas tecnologias para reduzir os custos. Mas há poucos indícios disso nas principais economias capitalistas. Os produtores de energia estão reduzindo o investimento em nível mundial (cerca de 40% do investimento total de capital), mas outros setores não estão compensando isso com aumentos em novos investimentos.

Pelo contrário, a maioria das empresas capitalistas continua tentando aumentar a rentabilidade mediante o aumento das margens de benefício, reduzindo e congelando salários. Um recente documento de trabalho do Banco da Reserva Federal de São Francisco defende que a “rigidez dos salários” teria obstacularizado a capacidade das empresas norte-americanas de ajustar seus custos durante a Grande Recessão (http://www.frbsf.org/economic-research/publications/economic-letter/2015/january/unemployment-wages-labor-market-recession/). O documento defende que os salários foram mantidos “muito altos”, e por isso as empresas preferem não aumentar os salários em momentos de recuperação.

Mas, se a demanda de vendas e os aumentos de preço precisarem ser freados de novo, isso poderia implicar em uma demanda “contida” para diminuir mais postos de trabalho. O que poderia paralisar a melhora no mercado de trabalho nos Estados Unidos.

O outro problema da baixa inflação e/ou da deflação é que o valor real da dívida existente acumulada pelas empresas e lares aumenta, e se o FED continuar com seu plano de elevar as taxas de juros no final deste ano, o custo dos juros do serviço da dívida se elevará, afetando a capacidade de investir das empresas e de gastar dos lares. Desde que a crise financeira eclodiu em 2008, o mundo se moveu muito mais; a dívida pública e privada total chegou a 272% do PIB do mundo desenvolvido em 2013, segundo documento “Relatório Anual de Genebra sobre a Economia Mundial”.

O Banco Central Europeu anunciará em breve uma nova rodada de injeções de crédito planejada para proporcionar dinheiro para investir ou gastar praticamente grátis aos bancos e às grandes corporações. Até agora, a flexibilização quantitativa no Japão, Europa e até nos EUA não conseguiu convencer como uma arma capaz de evitar que as economias caiam em deflação o se desacelerem. O espectro da deflação continua sendo uma ameaça real.





Michael Roberts
é um renomado economista marxista britânico que trabalhou por 30 anos na City Londinense como analista econômico. Escreve em seu blog The Next Recession.

Tradução de Daniella Cambaúva

Texto postado originalmente em:

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/O-espectro-da-deflacao/7/32708

O fascismo está outra vez em ascensão

Artigo de John Pilger publicado em resistir.info

''Pravy Sektor'' é a tradução ucraniana para ''setor Direita''

 O recente 70.º aniversário da libertação de Auschwitz foi uma evocação do grande crime do fascismo, cuja iconografia nazi está entranhada na nossa consciência. O fascismo está preservado na história, em filmes com ondas de camisas negras em passo de ganso, com a sua criminalidade terrível e clara. Porém, nessas mesmas sociedades liberais, cujas elites que fazem as guerras nos aconselham a nunca o esquecer, não se fala do perigo acelerado dum tipo de fascismo moderno; porque é o fascismo delas.

"Iniciar uma guerra de agressão…", disseram os juízes do Tribunal de Nuremberga em 1946, "não é só um crime internacional, é o supremo crime internacional, que apenas difere de outros crimes de guerra porque contém em si o mal acumulado de todos eles".

 Se os nazis não tivessem invadido a Europa, não teria acontecido Auschwitz e o Holocausto. Se os Estados Unidos e os seus satélites não tivessem iniciado a sua guerra de agressão no Iraque em 2003, ainda hoje viveria quase um milhão de pessoas; e o Estado Islâmico, ou o ISIS, não nos manteria reféns da sua selvajaria. Eles são a prole do fascismo moderno, desmamados pelas bombas, pelos banhos de sangue e pelas mentiras que são o teatro surrealista conhecido por "noticiários".
Tal como o fascismo dos anos 30 e 40, as grandes mentiras são proferidas com a precisão dum metrónomo: graças aos media omnipresentes, repetitivos e graças à sua virulenta censura por omissão. Vejam a catástrofe na Líbia.

 Em 2011, a NATO desencadeou 9700 ataques contra a Líbia, dos quais mais de um terço foram dirigidos contra alvos civis. Usaram ogivas de urânio; as cidades de Misurata e Sirte foram atapetadas com bombas. A Cruz Vermelha identificou sepulturas em massa e a Unicef noticiou que "a maior parte [das crianças mortas] tinha menos de dez anos".

 A sodomização pública do presidente líbio Muammar Gaddafi com uma baioneta "rebelde" foi saudada pela então secretária de Estado, Hillary Clinton, com as palavras: "Chegámos, vimos e ele morreu" ('We came, we saw, he died"). O seu assassínio, tal como a destruição do seu país, foi justificado por uma grande mentira já bem conhecida: ele estaria a planear um "genocídio" contra o seu próprio povo. "Sabíamos… que se esperássemos mais um dia", disse o presidente Obama, "Benghazi, uma cidade do tamanho de Charlotte, podia ser vítima de um massacre que se reflectiria por toda a região e mancharia a consciência do mundo".


  Foi esta a maquinação das milícias islamitas que enfrentavam a derrota frente às forças governamentais líbias. Disseram à Reuters que ia haver "um verdadeiro banho de sangue, um massacre como o que se vira no Ruanda". Transmitida a 14 de Março de 2011, a mentira foi a primeira faísca para o inferno da NATO, descrito por David Cameron como uma "intervenção humanitária".

 Abastecidos e treinados secretamente pelos SAS da Grã-Bretanha, muitos dos "rebeldes" passaram para o ISIS, cujo último vídeo mostra a decapitação de 21 trabalhadores cristãos coptas capturados em Sirte, a cidade destruída pelos bombardeiros da NATO.

 Para Obama, para Cameron e para Hollande, o verdadeiro crime de Khadafi era a independência económica da Líbia e a sua intenção declarada de cessar a venda em dólares americanos das maiores reservas petrolíferas de África. O petrodólar é um pilar do poder imperial americano. Kadhafi planeava atrevidamente promover uma divisa africana comum com base no ouro, instituir um banco para toda a África e promover uma união económica entre países pobres com recursos valiosos.

 Mesmo que isso não viesse a acontecer, só essa ideia era intolerável para os EUA, que se preparavam para "entrar" em África e subornar os governos africanos com "parcerias" militares.

 Na sequência do ataque da NATO, ao abrigo de uma resolução do Conselho de Segurança, Obama, como escreveu Garikai Chengu :
"confiscou 30 mil milhões de dólares ao Banco Central da Líbia, que Khadafi havia destinado ao estabelecimento de um Banco Central Africano e para a divisa dinar sustentada pelo ouro africano". [NR]
 A "guerra humanitária" contra a Líbia assentou num modelo querido dos corações liberais ocidentais, em especial dos media. Em 1999, Bill Clinton e Tony Blair mandaram a NATO bombardear a Sérvia, porque, mentiram eles, os sérvios estavam a praticar um "genocídio" contra os albaneses étnicos na província secessionista de Kosovo. David Scheffer, o embaixador americano itinerante para crimes de guerra [sic], afirmou que podiam ter sido mortos "225 mil albaneses étnicos entre os 14 e os 59 anos". Clinton e Blair evocaram o Holocausto e "o espírito da Segunda Guerra Mundial". Os heróicos aliados do Ocidente eram o Exército de Libertação do Kosovo (ELK), cujo registo criminal foi ignorado. O secretário do Foreign Office, Robin Cook, disse-lhes para lhe ligarem por telemóvel, sempre que quisessem.

 Com os bombardeamentos da NATO e grande parte das infraestruturas da Sérvia em ruínas, juntamente com escolas, hospitais, mosteiros e a estação nacional da TV, equipas forenses internacionais avançaram para Kosovo a fim de arranjar provas do "holocausto". O FBI não conseguiu encontrar uma única sepultura em massa e voltou para casa. A equipa forense espanhola fez o mesmo, e o seu chefe denunciou irritado "uma pirueta semântica feita pelas máquinas de propaganda da guerra". Um ano depois, um tribunal das Nações Unidas na Jugoslávia anunciou o total de mortos no Kosovo: 2788. Isto incluía combatentes dos dois lados e sérvios e romenos assassinados pelo ELK. Não houvera qualquer genocídio. O "holocausto" tinha sido uma mentira. O ataque da NATO fora fraudulento.


 Por detrás da mentira, havia um objectivo importante. A Jugoslávia era uma federação singularmente independente, multiétnica, que se tinha mantido como uma ponte política e económica durante a Guerra-fria. A maior parte das suas instalações e fábricas principais eram de propriedade privada. Isso não era aceitável para a Comunidade Europeia em expansão, especialmente para a Alemanha recém unida, que tinha começado a avançar para leste a fim de captar o seu "mercado natural" nas províncias jugoslavas da Croácia e da Eslovénia. Na altura em que os europeus se encontraram em Maastricht em 1991 para traçar planos para a desastrosa eurozona, foi feito um acordo secreto: a Alemanha iria reconhecer a Croácia. A Jugoslávia estava condenada.

 Em Washington, os EUA viam que à debilitada economia jugoslava foi recusado um empréstimo do Banco Mundial. A NATO, na altura praticamente uma relíquia quase defunta da Guerra-fria, foi reinventada como polícia imperial. Numa conferência de "paz" do Kosovo, em 1999, em Rambouillet, França, os sérvios foram submetidos às tácticas traiçoeiras dessa polícia. O acordo de Rambouillet incluía um Anexo B secreto, que a delegação dos EUA inseriu no último dia. Este exigia a ocupação militar de toda a Jugoslávia – um país com recordações amargas da ocupação nazi – e a implementação de uma "economia de mercado livre" e a privatização de todos os activos governamentais. Nenhum estado soberano podia assinar uma coisa daquelas. A punição seguiu-se rapidamente: as bombas da NATO caíram sobre um país indefeso. Foram as precursoras das catástrofes no Afeganistão e no Iraque, na Síria e na Líbia, e na Ucrânia.

 A partir de 1945, mais de um terço dos membros das Nações Unidas – 69 países – sofreram parte ou tudo aquilo que se segue às mãos do moderno fascismo da América. Foram invadidos, os seus governos foram derrubados, os movimentos populares suprimidos, as eleições subvertidas, as populações bombardeadas e as economias despojadas de toda a protecção, as sociedades sujeitas a um cerco debilitante designado por "sanções". O historiador britânico Mark Curtis avalia o total de mortes em milhões. Em todas as situações, foi montada uma enorme mentira.

"Esta noite, pela primeira vez desde o 11 de Setembro, terminou a nossa missão de combate no Afeganistão". Foram estas as palavras de Obama, na abertura do discurso de o Estado da União, em 2015. Na realidade, mantêm-se no Afeganistão 10 mil efectivos e 20 mil contratados militares (mercenários) em missões indefinidas. "A guerra americana mais longa da história está a chegar a uma conclusão responsável", disse Obama. Na verdade, foram mortos mais civis no Afeganistão em 2014 do que em qualquer outro ano desde que as Nações Unidas passaram a manter registos. A maioria foi morta – civis e soldados – durante a presidência de Obama.

 A tragédia do Afeganistão só tem igual no crime monstruoso da Indochina. No seu livro elogiado e muito citado "O grande tabuleiro de xadrez: o primado americano e os seus imperativos geoestratégicos (The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives), Zbigniew Brzezinski, o padrinho das políticas dos EUA desde o Afeganistão até aos dias de hoje, escreve que, se a América quiser controlar a Eurásia e dominar o mundo, não pode sustentar uma democracia popular porque "a busca do poder não é um objectivo que comande a paixão popular… A democracia é inimiga da mobilização imperialista". Tem toda a razão. Como a WikiLeaks e Edward Snowden revelaram, o estado de vigilância e policial está a usurpar a democracia. Em 1976, Brzezinski, na altura conselheiro de Segurança Nacional do presidente Carter, demonstrou o seu ponto de vista desferindo um golpe mortal contra a primeira e única democracia do Afeganistão. Quem conhece esta história vital?

 Nos anos 60, uma revolução popular varreu o Afeganistão, o país mais pobre da terra, acabando por derrubar os vestígios do regime aristocrático em 1978. O Partido Popular Democrático do Afeganistão (PPDA) formou um governo e declarou um programa de reformas que incluía a abolição do feudalismo, a liberdade de todas as religiões, direitos iguais para as mulheres e justiça social para as minorias étnicas. Foram libertados mais de 13 mil prisioneiros políticos e os arquivos policiais foram queimados em público.

 O novo governo instituiu cuidados médicos gratuitos para os mais pobres; foi abolida a servidão, foi lançado um amplo programa de alfabetização. Para as mulheres, os ganhos foram inauditos. No final dos anos 80, metade dos alunos da universidade eram raparigas e as mulheres eram quase metade dos médicos do Afeganistão, um terço dos funcionários públicos e a maioria dos professores. "Todas as raparigas", recorda Saira Noorani, uma cirurgiã, "podiam entrar na universidade. Podíamos ir onde quiséssemos e usar o que quiséssemos. Costumávamos ir aos cafés e ao cinema ver o último filme indiano à sexta-feira e ouvir as últimas músicas. Tudo começou a correr mal quando os mujaheddin começaram a ganhar. Matavam professoras e queimavam escolas. Ficámos aterrorizadas. Era cómico e triste pensar que eram estas as pessoas que o Ocidente apoiava".

 O governo do PPDA era apoiado pela União Soviética, apesar de, conforme posteriormente o antigo secretário de Estado Cyrus Vance reconheceu, "não haver provas de qualquer cumplicidade soviética [na revolução]". Alarmados pela crescente confiança dos movimentos de libertação em todo o mundo, Brzezinski decidiu que, se o Afeganistão conseguisse ter êxito com o PPDA, com a sua independência e progresso, isso iria constituir a "ameaça de um exemplo promissor".

 A 3 de Julho de 1979, a Casa Branca, secretamente, autorizou o apoio aos grupos tribais "fundamentalistas", conhecidos por mujaheddin, um programa que acabou por aumentar para 500 milhões de dólares por ano em armamento norte-americano e outro tipo de apoios. O objectivo era o derrube do primeiro governo laico e reformista do Afeganistão. Em Agosto de 1979, a embaixada dos EUA em Cabul, noticiou que "o principal interesse dos Estados Unidos… seria atingido com a queda [do governo do PPDA], apesar de quaisquer recuos que isso pudesse significar para as futuras reformas sociais e económicas no Afeganistão". Os itálicos são meus.

 Os mujaheddins eram os antecessores da al-Qaeda e do Estado Islâmico. Incluíam Gulbuddin Hekmatyar, que recebeu dezenas de milhões de dólares em dinheiro da CIA. A especialidade de Hekmatyar era o tráfico do ópio e atirar ácido à cara das mulheres que se recusavam a usar o véu. Convidado em Londres, foi elogiado pela primeira-ministra Thatcher como um "combatente pela liberdade".

 Estes fanáticos podiam ter-se mantido no seu mundo tribal se Brzezinski não tivesse desencadeado um movimento internacional para promover o fundamentalismo islâmico na Ásia Central e corroer assim uma libertação política secular e "desestabilizar" a União Soviética, criando, conforme ele escreveu na sua autobiografia, "alguns muçulmanos conflituosos". O seu grande plano coincidia com as ambições do ditador paquistanês, o general Zia ul-Hag, para dominar a região. Em 1986, a CIA e a agência de inteligência do Paquistão, o ISI, começaram a recrutar pessoas de todo o mundo para aderirem à jihad afegã. O multimilionário saudita, Osama bin Laden foi um deles. Operacionais que acabaram por se juntar aos talibãs e à al-Qaeda, foram recrutados numa faculdade islâmica em Brooklyn, Nova Iorque, e receberam formação militar num campo da CIA na Virgínia. Chamaram-lhe a "Operação Ciclone" . O seu êxito foi festejado em 1996, quando o último presidente PPDA do Afeganistão, Mohammed Najibullah – que fora pessoalmente à Assembleia Geral das Nações Unidas para pedir ajuda – foi enforcado num candeeiro pelos talibãs.



 O "ricochete" da Operação Ciclone e dos seus "muçulmanos conflituosos" foi o 11 de Setembro de 2001. A Operação Ciclone passou a ser a "guerra contra o terrorismo", em que perderiam a vida inúmeros homens, mulheres e crianças no mundo muçulmano, do Afeganistão ao Iraque, ao Iémen, à Somália e à Síria. A mensagem dos "polícias" foi e continua a ser: "Ou estão connosco ou são contra nós".

 A habitual ameaça do fascismo, no passado e no presente, é o assassínio em massa. A invasão americana do Vietname teve as suas "zonas livres de fogo", "contagem de corpos" e "danos colaterais". Na província de Quang Ngai, de onde enviei notícias, muitos milhares de civis ("gooks") foram assassinados pelos EUA; mas só se recorda um massacre, em My Lai. No Laos e no Camboja, o maior bombardeamento da história provocou uma época de terror marcado hoje pelo espectáculo de crateras unidas por bombas que, vistas do ar, parecem monstruosos colares. O bombardeamento deu ao Camboja o seu ISIS, chefiado por Pol Pot.

 Actualmente, a maior campanha de terror do mundo envolve a execução de famílias inteiras, de convidados em casamentos, de acompanhantes em funerais. Estas são as vítimas de Obama. Segundo o New York Times, Obama faz a sua selecção a partir de uma "lista de matança" da CIA que lhe é apresentada todas as terças-feiras na Sala da Situação da Casa Branca. Ele então decide, sem uma ponta de justificação legal, quem viverá e quem morrerá. A sua arma de execução é o míssil Hellfire transportado por um avião sem piloto conhecido por "drone"; estes assam as vítimas e engalanam a área com os seus despojos. Cada "ataque" ("hit") é registado num ecrã duma longínqua consola conhecida por "esmagador de insetos" (bugsplat).

"Os passos-de-ganso", escreveu o historiador Norman Pollock, "foram substituídos pela militarização aparentemente mais inócua da cultura total. Para o líder bombástico, temos o reformista falhado, a trabalhar jovialmente, planeando e executando assassínios, sorrindo todo o tempo".

 O que une o antigo fascismo e o novo é o culto da superioridade. "Acredito na excelência americana com todas as fibras do meu ser", disse Obama, fazendo lembrar declarações de fetichismo nacional dos anos 30. Como assinalou o historiador Alfred W. McCoy, foi Car Schmitt, admirador de Hitler, quem disse; "O soberano é ele que decide a excepção". Isto resume o americanismo, a ideologia dominante do mundo. Que isso continue a não ser reconhecido como uma ideologia predatória é a façanha duma igualmente não reconhecida lavagem ao cérebro. Insidiosa, não declarada, apresentada inteligentemente como uma iluminação, este conceito insinua-se na cultura ocidental. Eu cresci no meio duma dieta cinéfila da glória americana, quase toda ela uma distorção. Não tinha a menor ideia de que fora o Exército Vermelho que destruíra a maior parte da máquina de guerra nazi, com um custo de 13 milhões de soldados. Em contraste, as perdas dos EUA, incluindo as do Pacífico, foram de 400 mil. Holywood virou tudo ao contrário.

 A diferença agora é que as audiências do cinema são convidadas a retorcer as mãos com a "tragédia" de psicopatas americanos terem que matar pessoas em locais distantes – tal como o próprio Presidente as mata. A encarnação da violência de Hollywood, o actor e director Clint Eastwood, foi nomeado para um Óscar este ano pelo seu filme, "Sniper Americano", que é sobre um assassino paranóico autorizado. O New York Times descreveu-o como um "filme patriótico, pró-família que bateu todos os recordes de assistência nos primeiros dias de exibição".

 Não há filmes heróicos sobre a adesão da América ao fascismo. Durante a Segunda Guerra Mundial, a América (e a Grã-Bretanha) foram para a guerra contra os gregos que se tinham batido heroicamente contra o nazismo e estavam a resistir à progressão do fascismo grego. Em 1967, a CIA ajudou a subida ao poder duma junta militar fascista em Atenas – tal como no Brasil e na maior parte da América Latina. Os alemães e os europeus de leste que se haviam conluiado com a agressão nazi e com os crimes contra a humanidade receberam um porto de abrigo seguro nos EUA; muitos deles foram apaparicados e os seus talentos recompensados. Wernher von Braun foi o "pai" da bomba terrorista nazi V-2 e do programa espacial dos EUA.

 Nos anos 90, quando as antigas repúblicas soviéticas, a Europa do leste e os Balcãs passaram a ser postos militares avançados da NATO, os herdeiros dum movimento nazi na Ucrânia tiveram a sua oportunidade., Responsável pelas mortes de milhares de judeus, polacos e russos, durante a invasão nazi da União Soviética, o fascismo ucraniano foi reabilitado e a sua "nova vaga" saudada pelo braço armado como "nacionalista".

 Isso atingiu o seu apogeu em 2014, quando a administração Obama gastou cinco mil milhões de dólares num golpe contra o governo eleito. As tropas de choque eram neonazis conhecidos como o Setor de Direita e Svoboda. Os seus líderes incluíam Oleh Tyahnybok, que apelou a um expurgo da "máfia moscovita-judaica" e "outra escumalha", incluindo homossexuais, feministas e os da esquerda política.

 Estes fascistas estão hoje integrados no governo golpista de Kiev. O primeiro presidente do parlamento ucraniano, Andriy Parubiy, líder do partido do governo, é cofundador do Svoboda. A 14 de Fevereiro, Parubly anunciou que ia a Washington pedir que "os EUA nos dêem armamento moderno de precisão". Se o conseguir, isso será considerado um ato de guerra pela Rússia.



 Nenhum líder ocidental comentou o reacender do fascismo no coração da Europa – com excepção de Vladimir Putin, cujo povo perdeu 22 milhões numa invasão nazi que entrou pela fronteira da Ucrânia. Na recente Conferência de Segurança de Munique, a subsecretária de Estado dos EUA para os Assuntos Europeus e Euro-asiáticos, Victoria Nuland, considerou uma ofensa que os líderes europeus se opusessem a que os EUA fornecessem armamento ao regime de Kiev. Referiu-se ao ministro alemão da Defesa como "o ministro para o derrotismo". Foi Nuland quem arquitectou o golpe em Kiev. Mulher de Robert D. Kagan, uma importante luminária neoconservadora e cofundadora do Projecto para um Novo Século Americano, da ala de extrema-direita, foi conselheira de política externa de Dick Cheney.

 O golpe de Nuland não correu conforme o planeado. A NATO foi impedida de se apoderar da base naval, histórica, legítima, de águas tépidas, da Rússia, na Crimeia. A população da Crimeia, de maioria russa – anexada ilegalmente à Ucrânia por Nikita Krushchev em 1954 – votou esmagadoramente pelo regresso à Rússia, conforme tinham feito nos anos 90. O referendo foi voluntário, popular e observado internacionalmente. Não houve qualquer invasão.

 Simultaneamente, o regime de Kiev virou-se contra a população de etnia russa no Leste com a ferocidade da limpeza étnica. Colocou milícias neonazis ao estilo das Waffen-SS, que bombardearam e cercaram vilas e cidades. Usaram a fome como arma, cortando a electricidade, congelando contas bancárias, suspendendo a segurança social e as pensões. Mais de um milhão de refugiados atravessaram a fronteira em direcção à Rússia. Nos media ocidentais, foram tratados como pessoas que fugiam da "violência" provocada pela "invasão russa". O comandante da NATO, general Breedlove – cujo nome e acções podiam ter sido inspirados pelo Dr. Strangelove de Stanley Kubrik – anunciou que estavam a "reunir-se" 40 mil tropas russas. Na era de provas forenses por satélite, não apresentou nenhuma.

 As pessoas de língua russa e as bilingues da Ucrânia – um terço da população – há muito que procuram uma federação que reflicta a diversidade étnica do país e seja autónoma e independente de Moscovo. A maior parte não são "separatistas" mas apenas cidadãos que querem viver em segurança na sua pátria e se opõem à tomada de poder verificada em Kiev. A sua revolta e a instituição de "estados" autónomos são uma reacção aos ataques de Kiev contra eles. Poucas destas coisas têm sido explicadas às audiências ocidentais.

 A 2 de Maio de 2014, em Odessa, 41 cidadãos de etnia russa foram queimados vivos na sede dos sindicatos, guardada por polícias. O líder do Sector de Direita, Dmytro Yarosh considerou o massacre como "mais um dia de glória na nossa história nacional". Nos media americanos e britânicos, foi noticiado como uma "tragédia sombria" resultante dos "choques" entre "nacionalistas (neonazis) e "separatistas" (pessoas que recolhiam assinaturas para um referendo sobre uma Ucrânia federal).
O New York Times enterrou a notícia e reduziu a "propaganda russa" os alertas sobre as políticas fascistas e anti-semitas dos novos clientes de Washington. O Wall Street Journal condenou as vítimas – "Fogo ucraniano mortal provavelmente ateado por rebeldes, diz o Governo". Obama felicitou a Junta pelo seu "comedimento".

 Se Putin puder ser provocado a ir em auxílio deles, o seu papel de "pária" pré-encomendado no Ocidente justificará a mentira de que a Rússia está a invadir a Ucrânia. A 29 de Janeiro, o supremo comandante militar da Ucrânia, o general Viktor Muzhemko, quase destruiu inadvertidamente a base das sanções dos EUA e da UE à Rússia, quando disse enfaticamente numa conferência de imprensa: "O exército ucraniano não está a combater contra unidades regulares do Exército russo". Havia "cidadãos individuais" que eram membros de "grupos armados ilegais", mas não havia nenhuma invasão russa. Não era novidade nenhuma. Vadym Prystaiko, o vice-ministro dos Estrangeiros de Kiev, apelara a uma "guerra em grande escala" contra a Rússia com armamento nuclear.

 A 21 de Fevereiro, o senador americano James Inhofe, um Republicano de Oklahoma, apresentou um projeto-de-lei que autorizaria armas americanas para o regime de Kiev. Na apresentação ao Senado, Inhofe usou fotografias que afirmou serem de tropas russas a entrar na Ucrânia, que há muito tinham sido denunciadas como falsificações. Fez recordar as fotos falsas de Ronald Reagan de uma instalação soviética na Nicarágua, e as provas falsas de Colin Powell à ONU de armas de destruição maciça no Iraque.

 A intensidade da campanha de calúnias contra a Rússia e a apresentação do seu presidente como o vilão duma pantomina não tem paralelo com nada do que já vi até hoje enquanto repórter. Robert Parry, um dos mais conhecidos jornalistas de investigação da América, que revelou o escândalo Irão-Contra, escreveu há pouco: "Nenhum governo europeu, desde a Alemanha de Adolfo Hitler, achou justo enviar tropas de choque nazis para entrar em guerra com uma população interna, mas o regime de Kiev fez isso e fê-lo reconhecidamente. No entanto, por todo o espectro media/político do Ocidente, tem sido feito um esforço brutal para esconder esta realidade, chegando ao ponto de ignorar factos que já estão solidamente estabelecidos… Se ficarem a pensar como é que o mundo pode encontrar-se numa terceira guerra mundial – tal como se encontrou na primeira guerra mundial há cem anos – basta olhar para a loucura na Ucrânia que se tem mostrado impenetrável aos factos ou à razão".

 Em 1946, o promotor público do Tribunal de Nuremberga afirmou quanto aos media alemães: "É bem conhecido o uso que os conspiradores nazis fizeram da guerra psicológica. Antes de cada agressão principal, com algumas excepções com base na conveniência, iniciavam uma campanha de imprensa, destinada a enfraquecer as suas vítimas e a preparar psicologicamente o povo alemão para o ataque… No sistema de propaganda do Estado de Hitler, as armas mais importantes foram a imprensa diária e a rádio". No Guardian de 2 de Fevereiro, Timothy Garton-Asg apelou mesmo à guerra mundial. "É preciso fazer parar Putin", dizia o cabeçalho. "Por vezes só canhões podem fazer calar canhões". Reconhecia que a ameaça de guerra podia "alimentar uma paranóia russa de cerco", mas tudo bem. Ele mencionava o equipamento militar necessário para a tarefa e esclareceu os leitores de que "a América tinha o melhor equipamento".

 Em 2003, Garton-Ash, professor em Oxford, repetia a propaganda que levou à chacina no Iraque. "Saddam Hussein", escreveu, "armazenou, conforme [Colin] Powell documentou, grandes quantidades de terríveis armas químicas e biológicas e está a esconder o que resta delas. Continua a tentar arranjar as nucleares". Elogiava Blair como um "intervencionista gladstoniano, liberal cristão". Em 2006, escreveu: "Agora enfrentamos o maior teste do Ocidente, depois do Iraque: o Irão".
As explosões [de entusiasmo] – ou, como Garton-Ash prefere, a sua "torturada ambivalência liberal" – são típicas daqueles que pertencem à elite liberal transatlântica que fizeram um acordo faustiano. O criminoso de guerra Blair é o seu líder perdido. O Guardian, onde apareceu o artigo de Garton-Ash, publicou um anúncio de página inteira para um bombardeiro Stealth americano. Numa imagem ameaçadora do monstro de Lockheed Martin havia as palavras: "O F-35. ÓTIMO para a Grã-Bretanha". Este "equipamento" americano custará aos contribuintes britânicos 1,3 mil milhões de libras esterlinas, depois de os seus antecessores modelo-F terem chacinado por todo o mundo. Em coro com o anunciante, o editorial do Guardian defendia um aumento nas despesas militares.
Mais uma vez, há um objectivo profundo. Os dirigentes do mundo não querem a Ucrânia só como uma base de mísseis. Querem a sua economia. A nova ministra das Finanças de Kiev, Natalie Jaresko, é uma antiga funcionária sénior do Departamento de Estado dos EUA, encarregada do "investimento" dos EUA no ultramar. Foi-lhe concedida à pressa a cidadania ucraniana. Querem a Ucrânia por causa do gás abundante. O filho do vice-presidente Joe Biden faz parte da administração da maior empresa de petróleo, de gás e de refinação da Ucrânia. Os fabricantes de sementes geneticamente modificadas, empresas como a pérfida Monsanto, querem o rico solo agrícola da Ucrânia.

 Sobretudo, querem o poderoso vizinho da Ucrânia, a Rússia. Querem balcanizar ou desmembrar a Rússia e explorar a maior fonte de gás natural do planeta. Enquanto o gelo do Árctico se derrete, querem controlar o Oceano Árctico e as suas riquezas energéticas, e a longa fronteira terrestre do Árctico na Rússia. O seu homem em Moscovo era Boris Yeltsin, um bêbado, que entregou a economia do país ao Ocidente. O seu sucessor, Putin, restabeleceu a Rússia como uma nação soberana; o seu crime é esse.

 A responsabilidade de todos nós é clara, É identificar e denunciar as mentiras incessantes dos defensores da guerra e nunca pactuar com elas. É reacender os grandes movimentos populares que trouxeram uma frágil civilização aos modernos estados imperialistas. Mais importante ainda, é impedir a conquista de nós mesmos: dos nossos espíritos, da nossa humanidade, do nosso auto-respeito. Se nos mantivermos calados, a vitória sobre nós é garantida e um holocausto nos acena.
[NR] Não é caso único. Os EUA, após o golpe de Fevereiro de 2014 em Kiev, também roubaram as reservas-ouro do Banco Nacional da Ucrânia (40 t).