quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Teorias sobre a distribuição pessoal da renda, por Carlos Aguiar de Medeiros

 O texto abaixo foi retirado do apêndice escrito para o artigo Distribuição de renda como política de desenvolvimento econômico. Carlos Aguiar de Medeiros tem doutorado pela UNICAMP e é professor do Instituto de Economia da UFRJ.



 Entre os diversos fatores apontados nas análises empíricas sobre os desníveis no grau de concentração da renda, a escolarização assume amplo predomínio. Na economia brasileira, desde o ensaio de Carlos Langoni (1973), esta abordagem predomina nos estudos aplicados. Sua referência teórica principal é a teoria do capital humano – desenvolvida por autores como Schultz, 1961; Becker, 1975 –, e baseia-se na suposição de que o rendimento do trabalhador individual é determinado por seu produto marginal. É importante recordar que, num plano teórico, a crítica às teorias da produtividade marginal foi realizada nos anos 50 e 60, por Joan Robinson, na assim chamada controvérsia do capital, e por Piero Sraffa, que estendeu e explorou suas implicações teóricas (Garegnani, 1998). 

 O núcleo central da teoria neoclássica da distribuição é baseado no princípio da substituição dos fatores de produção. É o seu funcionamento que garante a existência de uma relação inversa entre a quantidade de um fator, isto é, sua escassez relativa, e a sua remuneração – a produtividade marginal. O valor de um bem de capital qualquer é o fluxo de rendimentos futuros, descontada a taxa de juros. Desse modo, estabelece a teoria convencional, o bem de capital será adquirido até que sua eficiência marginal seja igual à taxa de juros. Joan Robinson e Sraffa demonstraram que a construção de uma medida agregada de capital envolve insuperáveis problemas analíticos. Agregar quantidades fisicamente distintas de bens de capital requer conhecer previamente a taxa de juros; por outro lado, como estes possuem distintos períodos de produção, a existência de processos como “reversibilidade das técnicas” (consideradas como uma dada relação física entre insumo e produto) impede a construção de forma não ambígua de uma relação monótona entre quantidade de fator e seu rendimento. Mas, se o valor do capital depende da taxa de juros, e tampouco é possível ordenar as técnicas de acordo com sua intensidade de capital, a noção de produtividade de fator, o edifício da teoria neoclássica de distribuição, cai por terra, pois que se torna fatalmente inconsistente.

 A despeito de alguns esforços, nenhuma defesa consistente da teoria neoclássica da distribuição foi apresentada e a controvérsia exauriu-se. Possivelmente mais por razões psicológicas e políticas do que por razões formais ou matemáticas (Galbraith, Berner 2001), a crítica do capital não alterou a forma de pensar neoclássica contemporânea, que segue do, em diferentes campos, os mesmos postulados da teoria marginalista da distribuição. A teoria do capital humano é um destes campos. De acordo com esta teoria, a unidade de distribuição são o indivíduo e sua remuneração; e a remuneração é determinada pelas qualificações e habilidades acumuladas ao longo de sua vida, adquiridas através da sua educação formal e do treinamento específico do seu trabalho. Formam-se, assim, um “mercado de capital humano” e uma taxa uniforme entre ocupações distintas. O valor presente deste capital é dado pelo fluxo esperado de rendimento ao longo do ciclo de vida do indivíduo descontado pela taxa de juros. Vale observar que as mesmas críticas feitas à teoria do capital podem ser aqui aplicadas: a agregação de trabalhos heterogêneos em diferentes tarefas numa unidade comum, e a independência da taxa de juros em relação a qualquer quantidade de capital humano. Tendo em vista a natureza elusiva do capital humano, os anos de escolaridade são, na prática, adotados como a própria medida deste capital, independente das diferenças qualitativas. Para uma resenha desta abordagem e sua aplicação no Brasil, ver Corseuil e Coelho, 2002. 

 A teoria supõe que, em condições competitivas, a taxa de retorno dos investimentos em educação se ajusta de forma que o valor presente dos ganhos dos indivíduos ao longo de sua vida seja equalizado. Imperfeições de mercado (como as que tipicamente são associadas aos países em desenvolvimento) impedem que a distribuição de educação desejada e real desenvolvase de forma equilibrada, elevando forçosamente a taxa de retorno dos investimentos em capital humano, e abrindo um indesejável hiato de renda. A distribuição desigual da educação é erigida, no caso brasileiro, como o principal determinante da desigualdade (Barros e Mendonça, 1994). A política estrutural voltada a reduzir as desigualdades de renda baseia-se, conseqüentemente, na expansão da oferta de educação, em particular de ensino superior. Para o caso brasileiro, ver Ferreira (2002) e Blom, A. et al (2001). 

 Fora do campo do mainstream, é possível identificar diversas abordagens sobre a distribuição pessoal da renda, que interpretam de forma bastante distinta as relações entre educação e salários, e os mecanismos de concentração da renda. A teoria clássica dos salários aplicada às distintas ocupações (Gleicher e Stevans, 2000), ao lado das visões keynesianas institucionalistas – desenvolvidas nos anos mais recentes por James Galbraith (2001) –, compõe uma perspectiva alternativa. A rejeição ao princípio da distribuição baseado na produtividade marginal e o deslocamento da unidade de análise do indivíduo para as ocupações (na primeira abordagem),e para a firma/setor (no segundo caso) caracterizam estas abordagens.

 Na teoria clássica dos salários ocupacionais, o elemento-chave é formado pelas reservas de emprego associadas às diferentes ocupações – que se distinguem pelos diferentes tipos de treinamento requeridos de entrada. Tal como nas visões da economia clássica e de Marx, estas reservas (o pool de trabalhadores empregados e não-empregados que possuem uma dada qualificação) condicionam o poder de barganha dos trabalhadores empregados como grupo ocupacional. O grau de concorrência entre trabalhadores, entre firmas e setores numa dada ocupação condiciona a taxa de salário paga a esta ocupação (Gleicher, Stevans). A reserva líquida, isto é, o número de trabalhadores não empregados, mas que podem desempenhar determinada ocupação, determina a intensidade desta concorrência. Nesta perspectiva, quanto maior o treinamento exigido de entrada, menor será, relativamente a outras ocupações, a reserva líquida e, conseqüentemente, menor será o risco de ser desempregado, aumentando o poder de barganha dos ocupados. Os diferenciais por qualificação – tão elevados numa economia como a brasileira – são explicados de forma muito distinta da teoria da produtividade marginal. O salário relativo do trabalho qualificado é maior porque o número de indivíduos que possui determinado conjunto de qualificações que habilita a desempenhar determinadas tarefas é relativamente baixo em relação à demanda por estas qualificações, em contraste com o excedente de mão-de-obra, ou seja, a magnitude da reserva líquida que predomina nas posições de menor qualificação. Dentro de uma dada ocupação, o treinamento formal ou específico, com custo ou sem custo, é importante na diferenciação de salários numa direção que se aproxima da teoria do capital humano (comparabilidade dos esforços educacionais), mas, ao contrário desta, a relação entre a aquisição de treinamento e rendimento é indireta, e está condicionada por mudanças externas à atividade produtiva. A educação considerada como um credencial que habilita os indivíduos portadores de um ativo escasso a obterem maior barganha no emprego é perfeitamente compatível com esta abordagem. 

 A despeito de grande convergência desta abordagem com as abordagens institucionalistas e keynesianas, estas exploram outros mecanismos para a determinação das diferenças salariais. A unidade de análise aqui é o setor produtivo ou a firma. O ponto central é que os setores produtivos enfrentam diferentes elasticidades-renda, diferentes estruturas de mercado e desigual capacidade inovativa. Esta assimetria cria rendas de monopólio apropriadas assimetricamente por empresas, e, aspecto não contemplado nas análises neoclássicas, compartilhadas de diversas formas por seus empregados. A distribuição da renda do trabalho é, assim, influenciada pelo tamanho das firmas, e pelas assimetrias nas trajetórias de crescimento entre firmas e setores. A distribuição dos salários relativos reflete, portanto, uma determinada configuração do emprego, uma determinada configuração entre homens e máquinas na economia. Naturalmente que os diferenciais salariais serão tão maiores quanto menor for o ritmo da demanda global, e quanto mais desregulado for o mercado de trabalho. Mecanismos de diferenciação entre atributos individuais dos trabalhadores (gênero, raça) integram e completam este marco interpretativo. 

 Tanto a teoria clássica dos salários ocupacionais quanto a teoria keynesiana/institucionalista buscam explicações para os salários relativos; e a taxa de salário paga ao trabalho não qualificado depende, em ambas, de aspectos institucionais, como o salário mínimo estabelecido como um salário socialmente aceitável. O nível de emprego afeta positivamente a distribuição, seja porque reduz as reservas líquidas dos trabalhadores menos qualificados aumentando o seu poder de barganha, seja porque eleva relativamente a renda das empresas/ setores com menor grau de monopólio. Em ambas as teorias, a desregulação do mercado de trabalho, facilitando os mecanismos de dispensa e rotatividade de mão-de-obra, amplifica a concentração dos salários, favorecendo os mais qualificados, quer através de um maior acúmulo de aprendizagem dos que permanecem empregados, quer através da apropriação de forma isolada das rendas de monopólio. 

 Os impactos da educação sobre a distribuição de renda são bastante distintos daqueles previstos na teoria do capital humano. Um aumento do grau de escolarização da força de trabalho permite que indivíduos antes excluídos de determinadas ocupações possam candidatar-se a elas, alterando a reserva líquida para as mesmas, e debilitando o poder de barganha daqueles antes ocupados. Este efeito distributivo depende, entretanto, de aspectos institucionais não generalizáveis. Uma redução da desigualdade pode, por seu turno, decorrer de mudanças estruturais independentes. Assim, por exemplo, se, por mudanças estruturais decorrentes da abertura econômica e da desaceleração do crescimento econômico, o desemprego ocorrer nos setores com qualificações superiores à média da força de trabalho, haverá um “nivelamento para baixo”, em que a redução das desigualdades no mercado de trabalho torna-se um resultado não desejado de um retrocesso econômico. Assim, do ponto de vista de uma política de distribuição de renda, o objetivo é reduzir as desigualdades numa configuração emprego-salário superior. Esta configuração depende da persistência do crescimento econômico e do aumento da produtividade dos setores tecnologicamente mais atrasados, de forma a reduzir os desníveis de produtividade entre setores e firmas.

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