Camaradas, publico abaixo o texto ''Subdesarollo y revolución'' (1969) do grande (e infelizmente falecido) cientista social brasileiro Ruy Mauro Marini, que foi um dos fundadores da teoria marxista da dependência e também um grande lutador social. Um documentário resumo das ideias de Marini pode ser visto
aqui.
Subdesenvolvimento e revolução
A história do subdesenvolvimento latino-americano é
a história do desenvolvimento do sistema capitalista
mundial. Seu estudo é indispensável para quem deseje
compreender a situação que este sistema enfrenta atualmente e
as perspectivas que a ele se abrem. Inversamente, apenas a compreensão
segura da evolução da economia capitalista mundial e
dos mecanismos que a caracterizam proporciona o marco adequado
para situar e analisar a problemática da América Latina.
As simplificações nas quais, por sua limitação natural, este
trabalho possa incorrer não devem fazer o leitor esquecer esta
premissa fundamental.
A vinculação ao mercado mundial
A América Latina surge como tal ao se incorporar no sistema
capitalista em formação, isto é, no momento da expansão
mercantilista europeia do século XVI. A decadência dos países
ibéricos, que primeiro se apossaram dos territórios americanos,
engendra aqui situações conflitivas, derivadas dos avanços das
demais potências europeias. Mas é a Inglaterra, mediante sua dominação
imposta sobre Portugal e Espanha, que finalmente prevalece
no controle e na exploração desses territórios.
No decorrer dos três primeiros quartos do século XIX, e
concomitantemente à afirmação definitiva do capitalismo industrial
na Europa - principalmente na Inglaterra -, a região latino-americana é chamada a uma participação mais ativa no mercado
mundial, como produtora de matérias-primas e como consumidora
de uma parte da produção leve europeia. A ruptura do monopólio
colonial ibérico se torna então uma necessidade e, com
isso, desencadeia-se o processo de independência política, cujo
ciclo termina praticamente ao final do primeiro quarto do século
XIX, dando como resultado as fronteiras nacionais em geral
ainda vigentes em nossos dias. A partir desse momento se dá a
integração dinâmica dos novos países ao mercado mundial, assumindo
duas modalidades que correspondem às condições reais
de cada país para realizar tal integração e às transformações que
esta vai sofrendo em função do avanço da industrialização nos
países centrais. [1]
Assim, num primeiro momento, os países que respondem
mais prontamente às exigências da demanda internacional são
aqueles que apresentam certa infraestrutura econômica, desenvolvida
na fase colonial, e que se mostram capazes de criar
condições políticas relativamente estáveis. Chile, Brasil e, pouco
depois, Argentina aumentam sensivelmente neste período seu
comércio com as metrópoles europeias, baseado na exportação
de alimentos e matérias-primas como cereais, cobre, açúcar, café,
carnes, couro e lã. Paralelamente, utilizando inclusive o crédito
oferecido pela Inglaterra, aumentam suas importações de bens
de consumo não duráveis e dão início à construção de um sistema
de transporte, através de obras portuárias e das primeiras ferrovias, abrindo assim um mercado complementar à incipiente
produção pesada europeia.
A partir de 1875 certas mudanças no capitalismo internacional
se fazem sentir. Novas potências se projetam para o exterior,
em especial a Alemanha e os Estados Unidos, e este último país
começa a instaurar uma política própria no continente americano,
muitas vezes em choque com os interesses britânicos. No
próprio campo do comércio, a influência estadunidense é considerável,
tornando perceptível em alguns países, principalmente
no Brasil, a tendência a direcionar suas exportações para a nova
potência do norte. [2]
Nos países centrais, por sua vez, aumenta o desenvolvimento
da indústria pesada, com a tecnologia que lhe corresponde, e
a economia se orienta a uma maior concentração das unidades
produtivas, dando lugar ao surgimento dos monopólios. Esses
traços, gerados pela acumulação capitalista realizada nas etapas
anteriores, aceleram o processo e forçam o capital a buscar campos
de aplicação fora das fronteiras nacionais, mediante empréstimos
públicos e privados, financiamentos, aplicação em ações
e, em menor medida, investimentos diretos. Portanto, diferentemente
dos créditos externos utilizados antes e que correspondiam
a operações comerciais compensatórias, a função que assume
agora o capital estrangeiro na América Latina é subtrair abertamente
uma parte da mais-valia criada dentro de cada economia
nacional, o que aumenta a concentração do capital nas economias
centrais e alimenta o processo de expansão imperialista.
Em parte pelo efeito multiplicador da infraestrutura de
transportes e pelo afluxo de capital estrangeiro, mas principalmente devido à aceleração do processo de industrialização e urbanização
nos países centrais, que infla a demanda mundial de
matérias-primas e alimentos, a economia exportadora latino-americana
conhece um auge sem precedentes. Este auge está, no
entanto, marcado por um aprofundamento de sua dependência
frente aos países industriais, a tal ponto que os novos países que
se vinculam de maneira dinâmica ao mercado mundial desenvolvem
uma modalidade particular de integração.
Efetivamente, o desenvolvimento do principal setor de exportação
tende, nos países dependentes, a ser assegurado pelo capital
estrangeiro através de investimentos diretos, deixando às classes
dominantes nacionais o controle de atividades secundárias de exportação
ou a exploração do mercado interno. [3] Mesmo os países
que haviam se integrado de forma dinâmica à economia capitalista
em sua fase anterior veem seu principal produto de exportação
cair nas mãos do capital estrangeiro - como é o caso do Chile,
primeiro com o salitre e logo com o cobre, ou da Argentina com
os frigoríficos e do Brasil com o controle da exportação de café.
Ainda que não transforme fundamentalmente o princípio
sobre o qual se assenta a economia dependente latino-americana,
esse processo tem implicações de certo alcance. De fato, em
contraste com o que ocorre nos países capitalistas centrais, onde
a atividade econômica está subordinada à relação existente entre
as taxas internas de mais-valia e de investimento, nos países
dependentes o mecanismo econômico básico provém da relação
exportação-importação, de modo que, mesmo que seja obtida no
interior da economia, a mais-valia se realiza na esfera do mercado
externo, mediante a atividade de exportação, e se traduz em rendas que se aplicam, em sua maior parte, nas importações. A diferença
entre o valor das exportações e das importações, ou seja, o
excedente passível de ser investido, sofre, portanto, a ação direta
de fatores externos à economia nacional.
Contudo, nos países em que a atividade principal de exportação
está sob o controle das classes dominantes locais existe uma
certa autonomia sobre as decisões de investimento - condicionada,
evidentemente, pela dependência da economia frente ao
mercado mundial. Em geral, o excedente é aplicado no setor mais
rentável da economia, que é precisamente a atividade de exportação
que mais excedente produziu (o que explica a afirmação
sobre a tendência à monoprodução); porém, para atender o consumo
das camadas da população que não têm acesso aos bens
importados, ou então como defesa contra as crises cíclicas que
afetam regularmente as economias centrais, parte do excedente
se orienta também para atividades vinculadas ao mercado interno.
Por isso, em alguns países - como a Argentina, o Brasil ou o
Uruguai -, ao lado de uma indústria vinculada essencialmente à
exportação (frigorífico, moinhos etc.), desenvolve-se uma indústria
leve que produz para o mercado interno, indo além do nível
artesanal e dando lugar, progressivamente, à implementação de
núcleos fabris de relativa importância.
E diferente a situação dos países em que a principal atividade
de exportação se encontra nas mãos de capitalistas estrangeiros.
A mais-valia colhida na esfera do comércio mundial pertence a
capitalistas estrangeiros, e apenas uma parte dela - cuja magnitude
varia de acordo com o poder de barganha de cada setor -
passa à economia nacional através de tributos e impostos pagos
ao Estado. [4] Daqui se derivam duas consequências: redistribuída
às classes dominantes locais - que por isso disputam o controle
do Estado -, essa parte da mais-valia se converte em demanda
de bens importados, reduzindo consideravelmente o excedente
passível de ser reinvestido; do mesmo modo, a parte da mais-valia
que permanece em mãos do capitalista estrangeiro somente
é investida no país se as condições da economia central assim
exigirem. Partes substanciais da mais-valia são subtraídas do país
através da exportação de lucros e, nos ciclos de depressão na metrópole,
ela é transferida integralmente.
Deste modo, com maior ou menor grau de dependência, a
economia que se cria nos países latino-americanos, ao longo do
século XIX e nas primeiras décadas do seguinte, é uma economia
exportadora, especializada na produção de alguns poucos bens
primários. Uma parte variável da mais-valia que aqui se produz
é drenada para as economias centrais, pela estrutura de preços
vigente no mercado mundial, pelas práticas financeiras impostas
por essas economias, ou pela da ação direta dos investidores estrangeiros
no campo da produção.
As classes dominantes locais tratam de se ressarcir desta perda
aumentando o valor absoluto da mais-valia criada pelos trabalhadores
agrícolas ou mineiros, submetendo-os a um processo de
superexploração. A superexploração do trabalho constitui, portanto,
o princípio fundamental da economia subdesenvolvida,
com tudo que isso implica em matéria de baixos salários, falta de
oportunidades de emprego, analfabetismo, subnutrição e repressão
policial.
A integração imperialista dos sistemas de produção
A consolidação do imperialismo como forma dominante do
capitalismo internacional não ocorre de forma tranquila. No curso
de sua evolução terá que passar por um período extremamente difícil, que se abre com a guerra de partilha colonial de 1914,
avança com a desorganização imposta ao mercado mundial pela
crise de 1929 e culmina com a guerra pela hegemonia mundial
de 1939. A economia que emerge deste processo re-estabelece a
tendência integradora do imperialismo, mas agora em nível mais
alto do que o anterior, na medida em que consolida definitivamente
a integração na esfera do mercado e impulsiona a etapa da
integração dos sistemas de produção compreendidos em seu raio
de ação.
Em seu aspecto mais global, este processo dá lugar a tendências
contraditórias. Por um lado, reforça o sistema imperialista,
conformando um centro hegemônico de poder - os Estados Unidos
- que impulsiona e coordena a integração, garantindo-a com
seu poder militar. Por outro lado, conduz ao surgimento de um
campo de forças opostas; o campo socialista, que nasce e se desenvolve
no fogo dos conflitos engendrados pela própria integração imperialista.
Dada a limitação deste ensaio à análise do que acontece no
interior do sistema imperialista, não podemos aprofundar o estudo
dos fenômenos específicos que se verificam nas economias
centrais. Assinalemos apenas que o processo de integração se
acompanha de uma expansão acelerada do setor de bens de capital,
particularmente notável nas indústrias que, dentro deste
setor, encontram-se vinculadas à produção bélica. Paralelamente
ocorre uma hipertrofia do aparelho estatal, que se converte no
principal agente de produção e consumo da economia, especialmente
no que se refere à indústria de guerra.
Se bem é certo que a estatização e a militarização imperialistas
se realizam em função do campo socialista, também é certo
que obedecem à própria dinâmica do sistema e expressam os mecanismos
básicos que o regem. Em última instância, esta dinâmica
e estes mecanismos se referem à acumulação de capital no interior
do sistema, que tende a concentrar - por meio da superexploração do trabalho nas economias periféricas - partes sempre
crescentes da mais-valia nos centros integradores. O aumento do
excedente passível de ser investido que estes centros dispõem, por
muito que seja malgasto em atividades não produtivas - como a
indústria bélica e a publicidade -, acarreta um aumento constante
dos investimentos diretos nas economias periféricas, através dos
quais se realiza progressivamente a integração do sistema produtivo
destas economias ao sistema do centro integrador.
Este processo se coliga com o crescimento e a diversificação
do sistema periférico. Por certo, a crise do mercado imperialista,
que estoura na segunda década do século XX, tem como mais
importante consequência a inviabilização da antiga forma de
vinculação que antes se impunha na América Latina - a forma
da economia primário-exportadora. Isso se manifesta como uma
tendência permanente, que não se limita apenas aos períodos de
retração do mercado mundial; pelo contrário: devido ao surgimento
de novas regiões produtoras (impelido pela expansão
imperialista) e ao desenvolvimento de produções similares ou
substitutos artificiais nas próprias economias centrais, constantemente
se reduzem as possibilidades de comércio da América
Latina, ao mesmo tempo em que se reduzem os termos de troca.
A crise do setor externo, representada pelas restrições às
exportações e pelas consequentes dificuldades para satisfazer o
consumo interno através das importações, exigia uma mudança
na atividade econômica da região. Assim, a industrialização via
substituição de importações se impôs, em linhas gerais, em todos
os países latino-americanos, conforme as possibilidades reais de
seus respectivos mercados internos e de acordo com o grau de
desenvolvimento alcançado na etapa anterior. Desde 1920 até o
início dos anos 1950, muitos países se lançam por esse caminho,
e alguns, como a Argentina, o Brasil e o México, chegam a criar
uma indústria leve capaz de satisfazer no essencial a demanda
interna de bens de consumo não duráveis.
O fato que mais chama a atenção é o caráter relativamente
pacífico que o trânsito da economia agrária para economia industrial
assume na América Latina, em contraste com o que ocorreu
na Europa. Isto fez com que muitos estudiosos mantivessem
equivocadamente a tese de que a revolução burguesa latino-americana
ainda está por se realizar. Ainda que fosse correto dizer
que a revolução burguesa não se concretizou na América Latina
segundo os cânones europeus, este argumento é enganoso, pois
não considera adequadamente as condições objetivas dentro das
quais se desenvolveu a industrialização latino-americana.
É preciso lembrar, por certo, que a indústria que aqui se desenvolveu
no século XIX tem um papel complementar ao setor
de exportação. Somente em alguns países se gestou uma indústria
de bens de consumo de base marcadamente artesanal, estimulada
pela crise cíclica do mercado mundial e pelo crescimento da
população urbana, que era constituída em sua maior parte por
massas com baixo poder aquisitivo.
No primeiro caso, os interesses da indústria coincidem rigorosamente
com os do setor agrário-mercantil e seu desdobramento
não causa uma diferenciação efetiva no interior das classes
dominantes. No segundo, a classe industrial, que se inclui entre as
classes médias urbanas, é formada, em geral, por imigrantes, os
quais, ao não estarem integrados plenamente na sociedade, não
chegam a participar ativamente nos choques de interesses que ali
se verificam. Oferecerão, porém, um suporte real para a ideologia
da classe média que então se desenvolve - protecionista no plano
econômico e liberal na esfera política - e que se afirmará apenas
onde alguns setores dominantes, entrando em conflito com os
grupos mais privilegiados ou tendo que enfrentar a concorrência
externa, tornam-se seu porta-voz. [5]
De qualquer forma, a existência desse setor industrial dedicado
ao mercado interno gera a base objetiva para uma transformação
da atividade econômica quando ocorre a crise do mercado
mundial. A restrição das importações abre novas possibilidades
de crescimento, com vistas a atender a demanda interna insatisfeita.
Por outro lado, esse setor irá se beneficiar com o excedente
econômico produzido na atividade exportadora, tanto pela diminuição
das oportunidades de investimento, quanto pela tendência
desse excedente fluir para a indústria através do sistema bancário.
O eixo do problema reside neste ponto. O setor exportador
soube se defender da conjuntura de depressão vigente no mercado
mundial, adotando políticas de defesa do emprego expressas
na compra de parte da produção e na formação de reservas pelo
Estado (como ocorre com o café, no Brasil), além de estabelecer
acordos comerciais desvantajosos, que garantiam, entretanto, o
escoamento da produção (por exemplo, o acordo Roca-Runciman,
assinado pela Argentina e Inglaterra). Nessas condições, o
setor exportador mantinha sua atividade e, de maneira correlata,
devido às dificuldades para importar, exercia uma pressão estimulante
sobre a oferta interna, criando a demanda efetiva que a
indústria trataria de satisfazer.
É este mecanismo que explica a possibilidade de um pacto
em benefício mútuo entre a burguesia agrário-mercantil e a burguesia
industrial ascendente, a despeito de alguns eventuais desajustes
em suas relações. O Estado que assim se estabelece é um
Estado de compromisso, que reflete a complementariedade objetiva
que cimentava suas relações. As tensões se tornaram mais
graves somente naqueles países onde o setor exportador, controlado
diretamente pelo capital estrangeiro, não dispunha das condições
necessárias para mudar sua orientação, o que deu lugar a
conflitos radicais que terminaram, porém, por conduzir a uma
situação de repressão imposta pelas antigas classes dominantes,
uma situação que se traduziu em relativa estagnação econômica.
A luta pelo desenvolvimento capitalista autônomo
O pacto estabelecido entre a burguesia agroexportadora e
a burguesia industrial expressava uma cooperação antagônica e
não excluía, portanto, o conflito de interesses no interior da coalizão
dominante. As divergências sobre a política cambial e de
crédito, as tentativas constantes da burguesia industrial de canalizar
para si o excedente gerado no setor exportador, e seu propósito
de assegurar através do Estado o desenvolvimento dos setores
básicos foram motivos de conflitos interburgueses constantes,
que se manifestaram numa instabilidade política superficial, sem
nunca colocar em xeque, de fato, as próprias bases do poder. Essas
tensões resultavam, em última instância, dos movimentos do
polo econômico vinculado ao mercado interno, em sua progressiva
busca por se libertar da dependência do polo externo e impor
seu predomínio.
A aceleração que, durante a Segunda Guerra Mundial, produz-se
no processo de industrialização latino-americano - e que
lança novos países, como a Venezuela, ao caminho percorrido
desde os anos 1930 pela Argentina, Brasil e México - reforça consideravelmente
o polo interno e cria as condições para uma luta
mais aberta pelo predomínio dentro da coalizão dominante. Nesta
luta, a burguesia industrial lançará mão da pressão das massas
urbanas, que haviam aumentado consideravelmente no período
anterior, nos marcos de um jogo político normalmente conhecido
como “populismo”. Seu fruto será o estabelecimento de regimes
de tipo bonapartista, cujo exemplo mais claro é o governo de
Juan Domingo Perón na Argentina.
Historicamente, e do ponto de vista do desenvolvimento das
forças produtivas, esta situação corresponde ao fim da etapa da
industrialização substitutiva de bens de consumo não-duráveis,
e leva à necessidade de implementar uma indústria pesada, produtora
de bens intermediários, de consumo durável e de capital. Num primeiro momento, a burguesia industrial toma consciência
desta situação pelo esgotamento relativo da expansão da indústria
leve no mercado interno. Isto conduz a burguesia industrial
a tentar ampliar a escala do mercado, o que é feito através da
abertura de frentes externas - política seguida incialmente por
Perón -, ou através da dinamização do próprio mercado interno
- mediante políticas de redistribuição da renda, que vão desde
o aumento dos salários até a proposta de uma reforma agrária
(como ocorreu, em parte, com Perón, e mais fortemente com
Vargas, em seu segundo período de governo, entre 1950 e 1954).
No entanto, o bloqueio enfrentado pela indústria leve para sua
expansão, junto às dificuldades de importar os bens intermediários e os equipamentos necessários, levam a burguesia a encarar a
segunda etapa do processo de industrialização, ou seja, a criação
de uma indústria pesada.
Na medida em que isso se combina com a exigência de ampliar
o mercado para a indústria leve e demanda um maior excedente
de capital para investir, faz-se necessário aumentar as
transferências de capital do setor exportador e instaurar barreiras
alfandegárias que defendam o mercado nacional. Assim, a burguesia
se choca simultaneamente com a classe latifundiária-mercantil
e com os trustes internacionais, aos quais a economia está
conectada pelas atividades de importação e exportação.
O bonapartismo se apresenta, nesta perspectiva, como o
recurso político utilizado pela burguesia para enfrentar seus adversários.
Fincando-se nas massas populares urbanas - seduzidas
pela fraseologia populista e nacionalista e, mais concretamente,
pelas tentativas de redistribuição da renda -, a burguesia procura
erigir um novo esquema de poder, no qual, mediante o apoio
das classes médias e do proletariado, e sem romper o esquema
de colaboração vigente, seja capaz de se sobrepor às antigas classes
latifundiária e mercantil. Devido às implicações nas relações
econômicas com o centro imperialista hegemônico, esse processo
tende a se combinar com a busca de fórmulas capazes de promover
o desenvolvimento capitalista autônomo.
Convém aqui ressaltar que essas mudanças na América Latina
se tornam visíveis no mesmo momento em que, reorganizado
o mercado mundial pela hegemonia dos Estados Unidos, o imperialismo
afirma sua tendência à integração dos sistemas de produção.
Esta integração é movida por duas razões fundamentais,
sendo a primeira relacionada com o avanço da concentração de
capital em escala mundial, o que deposita nas mãos das grandes
companhias internacionais uma superabundância de recursos
passíveis de ser investidos, que necessitam buscar novos campos
de aplicação no exterior. A tendência declinante do mercado de
matérias-primas e o desenvolvimento de um setor industrial vinculado
ao mercado interno nas economias periféricas durante a
fase de desorganização da economia mundial fizeram com que
este setor atraísse capital estrangeiro em busca de oportunidades
de investimento.
A segunda razão da integração dos sistemas de produção é
dada pelo grande desenvolvimento do setor de bens de capital
nas economias centrais, acompanhado de uma aceleração considerável
do progresso tecnológico. Isto fez com que, por um lado,
os tipos de equipamentos produzidos, sempre mais sofisticados,
devessem ser aplicados em atividades industriais mais elaboradas
nos países periféricos, existindo interesse, por parte dos países
centrais, de impulsionar ali o processo de industrialização. Por
outro lado, na medida em que o ritmo do progresso técnico reduziu,
nos países centrais, o prazo de reposição do capital fixo - que
passou de uma média de oito anos para quatro anos [6] -, surgiu a
necessidade de exportar para a periferia os equipamentos e máquinas que se tornavam obsoletos e ainda não tinham sido totalmente
amortizados.
Assim, no momento em que as burguesias nacionais dos pa
íses latino-americanos consideram conveniente desenvolver seu
próprio setor de bens de capital, topam com o assédio do capital
estrangeiro, que as pressiona para penetrar na economia periférica
e implementar este setor. É natural, portanto, que, na busca por
defender sua mais-valia e seu próprio campo de investimento - e
vale lembrar que o campo representado pela indústria leve dava
sinais de esgotamento -, a primeira reação dessas burguesias tenha
sido a resistência ao assédio, formulando uma ideologia nacionalista
orientada para a definição de um modelo de desenvolvimento
capitalista autônomo. Mas também se compreende que,
junto ao conflito já existente com as antigas classes dominantes
internas, a abertura dessa segunda frente de luta tenha conduzido
o conjunto da política burguesa ao fracasso.
O fracasso da burguesia
A causa fundamental deste fracasso se deve, em última instância,
à impossibilidade da indústria se sobrepor ao condicionamento
que o setor externo lhe impunha desde seus primeiros
passos. Suprindo a demanda criada pelas classes ricas e utilizando
tecnologia importada dos países centrais - cuja principal característica
é poupar mão de obra -, a indústria latino-americana
se deparou com um mercado reduzido, e tratava de compensá-lo
através do uso abusivo da relação entre preços e salários. Isso era
possível precisamente porque, ao mesmo tempo em que empregava
uma tecnologia poupadora de mão de obra, a indústria se
via diante de uma oferta de trabalho em constante expansão, o
que permitia fixar os salários no seu nível mais baixo. Em contrapartida,
o crescimento do mercado era extremamente lento,
compensado apenas com a alta constante dos preços, isto é, com
a inflação.
Quando se coloca o problema da criação de uma indústria
pesada, a burguesia industrial se inclina inicialmente, como já vimos,
para a reformulação desse esquema. Neste sentido, trata de
mobilizar instrumentos capazes de ampliar a escala do mercado
e procura acelerar a transferência do excedente criado pelas exportações
em direção ao setor industrial. No afã por ampliar sua
mais-valia relativa - aproveitando-se da crescente oferta mundial
de equipamentos e maquinarias no pós-guerra -, acaba por se
focar em medidas mais imediatas, tendentes a flexibilizar a curto
prazo a capacidade de importar.
Pois bem, vimos que desde os anos 1920 a capacidade para
importar se deteriorava constantemente. Para elevar o montante
de divisas disponíveis para importação de equipamentos e bens
intermediários, não sobra outra alternativa à burguesia industrial
do que ceder ao setor agroexportador, dando-lhe facilidades
e incentivos. E para fazê-lo sem limitar a acumulação de capital
necessário para enfrentar a segunda etapa da industrialização,
deve descarregar sobre as massas de trabalhadores da cidade e do
campo o esforço de capitalização, com o que afirma mais uma vez
o princípio fundamental do sistema subdesenvolvido: a superexploração
do trabalho.
Este fenômeno - claramente expresso na aceleração da inflação
e nas políticas de “estabilização”, bem como na renúncia a
realizar uma reforma agrária efetiva - tem como consequência
a ruptura da base em que se apoiava a política bonapartista. Ao
consentir com as antigas classes dominantes, a burguesia industrial
teve que abandonar sua fraseologia revolucionária, deixando
de lado também o tema das reformas estruturais e as políticas de
redistribuição da renda. Com isso se distanciou das aspirações
das grandes massas e perdeu a possibilidade de manter com elas
uma aliança tática.
O processo se completou com a renúncia da burguesia a levar
a cabo uma política de desenvolvimento autônomo. O assédio dos capitais estrangeiros, que se intensifica nos anos 1950,
coincide com a dificuldade das economias latino-americanas em
obter uma flexibilização de sua capacidade de importar mediante
a expansão das exportações tradicionais (dificuldades especialmente
sentidas ao terminar a Guerra da Coréia). Como vimos, as
companhias estrangeiras dispunham de máquinas e equipamentos
obsoletos e não amortizados nas metrópoles, que representavam
um adiantamento efetivo no nível tecnológico imperante
nos países latino-americanos. A entrada desses capitais - sob a
forma de investimentos diretos e, cada vez mais, em associação
com empresas locais - constituía uma solução conveniente para
as duas partes: para o investidor estrangeiro sua maquinaria obsoleta
permitiria lucros similares aos que poderiam ser obtidos
com um equipamento mais moderno em seu país de origem, em
virtude do preço mais baixo da mão de obra; e para a empresa
local se abria a possibilidade de conseguir uma mais-valia extraordinária
com a nova maquinaria.
Desta forma, a burguesia industrial latino-americana passa
do ideal de um desenvolvimento autônomo para uma integração
direta com os capitais imperialistas, dando lugar a um novo tipo
de dependência, muito mais radical que a anterior. O mecanismo
da associação de capitais é a forma que consagra esta integração,
que não apenas desnacionaliza definitivamente a burguesia local,
como também, entrelaçada à diminuição relativa do emprego de
mão de obra própria do setor secundário latino-americano, consolida
a prática abusiva de preços como meio para compensar a
redução concomitante do mercado, tendo em vista que os preços
se fixam segundo o custo de produção das empresas tecnologicamente
mais atrasadas. O desenvolvimento capitalista integrado
reforça o divórcio entre a burguesia e as massas populares,
intensificando a superexploração a que estas estão submetidas
e negando-lhes sua reivindicação mais elementar: o direito ao
trabalho.
A coincidência entre essas duas tendências - o abandono
da política bonapartista e das aspirações pelo desenvolvimento
autônomo - leva à queda dos regimes liberal-democráticos que
vinham tentando se afirmar desde o pós-guerra e conduz à instauração
de ditaduras tecnocrático-militares. Isso se soma à acentuação
do papel dirigente do Estado e ao aumento considerável
dos gastos militares, que vão se tornando, em escala crescente,
parte da demanda de uma oferta industrial que não pode se basear
na expansão do consumo popular. Com as deformações de
escalas inerentes a esse processo, o imperialismo reproduz nas
economias periféricas da América Latina os mesmos traços fundamentais
consolidados nas economias centrais, em sua transição para a integração dos sistemas de produção.
O desenvolvimento capitalista integrado
Nos marcos da dialética do desenvolvimento capitalista
mundial, o capitalismo latino-americano reproduziu as leis gerais
que regem o sistema em seu conjunto, mas, em sua especificidade,
acentuou-as até o limite. A superexploração do trabalho em
que se funda o conduziu finalmente a uma situação caracterizada
pelo corte radical entre as tendências inerentes ao sistema - e,
portanto, entre os interesses das classes por ele beneficiadas - e
as necessidades mais básicas das grandes massas, que se manifestam
em suas reivindicações por trabalho e consumo. A lei geral
da acumulação capitalista, que implica a concentração da riqueza
num polo da sociedade e o pauperismo absoluto da grande maioria
do povo, se expressa aqui com toda brutalidade, colocando
na ordem do dia a exigência de formular e praticar uma política
revolucionária, de luta pela socialismo.
Seria ingênuo, porém, acreditar que o êxito desta política está
inscrito na ordem natural das coisas e que se deriva necessariamente da irracionalidade cada dia mais evidente da organização
econômica imposta pelo capitalismo. Se não tomarmos consciência
da situação que atravessamos e não a contestarmos com uma
ação sistemática e radical, nós, os povos do continente, corremos
o risco de seguir perambulando durante um período imprevisível nas sombras do escravismo e do embrutecimento. Isto é tanto
mais perigoso pois o sistema já se mobiliza, seja para promover a
eliminação física de populações inteiras (através, por exemplo, de
técnicas de esterilização), seja para organizar um esquema econômico e político que possa funcionar como instrumento efetivo de
contenção das forças revolucionárias emergentes.
Neste esquema, os atuais projetos de integração regional e a
ditadura aberta de classe representada pelos regimes tecnocrático-militares desempenham um papel preponderante. A integração
da economia se estabelece, de fato, como uma forma de
levar ao auge, na América Latina, a integração imperialista dos
sistemas de produção, no quadro de uma situação econômica
marcada por uma capacidade potencial crescente da oferta e uma
restrição sistemática das possibilidades de consumo. Esta situação, diretamente relacionada à difusão de tecnologias que economizam
mão de obra numa estrutura de produção profundamente
monopolista, conduziu à formação de ilhas caracterizadas por
um relativo desenvolvimento industrial e urbano e dispersas entre
grandes áreas rurais. Na medida em que a extrema concentração da propriedade e da renda freia o desenvolvimento das áreas
rurais e das próprias ilhas industriais, não se pensou em nada
melhor que interligar estas ilhas e, voltando as costas às famintas
massas camponesas, integrá-las num sistema mais ou menos
coerente.
É evidente que isto impõe um novo esquema de divisão internacional
do trabalho, afetando não apenas as relações entre
os países latino-americanos e os centros de dominação imperialista,
mas também as relações daqueles entre si. No primeiro caso, são transferidas a esses países certas etapas inferiores do
processo de produção, reservando as etapas mais avançadas e
o controle da tecnologia corresponde aos centros imperialistas
(como a produção de computadores, de conjuntos automatizados
e de energia nuclear). Cada avanço da indústria latino-americana
afirmará, portanto, com maior força, sua dependência
econômica e tecnológica frente aos centros imperialistas. No segundo
caso, se estabelecem níveis ou hierarquias entre os países
da região, segundo os ramos de produção que se desenvolveram
ou estão em condições de se desenvolver, negando aos demais
o acesso a ditos processos de produção para torná-los simples
mercados consumidores. As características próprias do sistema
fazem com que esta tentativa de racionalizar a divisão do trabalho
propicie a formação de centros subimperialistas associados
à metrópole para explorar os povos vizinhos. Sua melhor expressão
é a política levada a cabo pelo regime militar de Castelo
Branco no Brasil, que atualmente o regime argentino procura
imitar.
A reorganização dos sistemas de produção latino-americanos,
nos marcos da integração imperialista e diante do recrudescimento
das lutas de classe na região, levou à implementação de
regimes militares de corte essencialmente tecnocrático. A tarefa
de tais regimes é dupla: por um lado, promover os ajustes estruturais
necessários para colocar em marcha a nova ordem econômica
requerida pela integração imperialista; por outro lado,
reprimir as aspirações de progresso material e os movimentos de
reformulação política originados pela ação das massas. Reproduzindo
em escala mundial a cooperação antagônica praticada
no interior de cada país, tais regimes estabelecem uma relação de
estreita dependência com seu centro hegemônico - os Estados
Unidos -, ao mesmo tempo que colidem continuamente com
este em seu desejo de tirar maiores vantagens do processo de
reorganização no qual se encontram empenhados.
Vista numa perspectiva histórica mais ampla, uma América
Latina integrada ao imperialismo não é mais viável que a sobrevivência
do próprio sistema imperialista. A superexploração do
trabalho em que se funda o imperialismo, sob cujo signo se pretende
integrar os países da região, estabelece um descompasso
entre a evolução das forças produtivas e as relações de produção,
deixando entrever a derrocada do sistema em seu conjunto, com
tudo que representa de exploração, opressão e degradação. Por
outro lado, a luta mundial dos povos contra o imperialismo, à
qual a América Latina se integrou vitoriosamente com a Revolução Cubana, não depende exclusivamente do que queiram e façam os povos deste continente, mas sofre também a influência de
acontecimentos tão importantes quanto a guerra de libertação do
povo vietnamita, a Revolução Cultural chinesa e o acirramento
das lutas de classe no interior do próprio Estados Unidos.
Contudo, parece evidente que, quanto mais avance o processo
de integração imperialista dos sistemas de produção na
América Latina e mais efetiva se torne a repressão aqui praticada
contra os movimentos revolucionários, melhores condições terá
o imperialismo para prolongar sua existência na contramão da
história. Inversamente, a generalização da revolução latino-americana
tende a destruir os principais suportes de apoio do imperialismo,
e sua vitória representará para este um golpe mortal.
Esta é a responsabilidade histórica dos povos latino-americanos
e frente a ela não cabe outra atitude possível que não a prática
revolucionária.
O futuro da revolução latino-americana
No que diz respeito à revolução latino-americana, da mesma
forma que ao ingressar na etapa de integração imperialista o capitalismo
internacional levou à formação de um campo de forças antagônicas representado pelos países socialistas, também a integração
imperialista dos sistemas de produção na América Latina
está forjando sua própria negação. Esta negação já se manifestou
no triunfo do socialismo em Cuba, e segue se desenrolando
através das lutas de classe que perpassam toda a região, com
a expressão mais visível na atividade guerrilheira levada a cabo
na Venezuela, na Guatemala, na Colômbia e em outros países.
O avanço irrefreável das massas exploradas se orienta inevitavelmente
para a substituição do atual sistema de produção por outro
que permita a plena expansão das forças produtivas e que resulte
numa elevação efetiva nos níveis de trabalho e de consumo, isto
é, o sistema socialista.
Fundamentalmente, são duas as tendências principais que
animam o atual movimento revolucionário latino-americano, e
cuja realização coloca um desafio àqueles que se interessam por
sua vitória. A primeira tem a ver com o estabelecimento de uma
relação mais efetiva entre as classes exploradas e suas vanguardas
políticas, dentre as quais muitas já se lançaram à empreitada suprema
da luta armada. A segunda se refere às relações que devem
se estabelecer entre essas classes dentro do quadro mais amplo do
contexto internacional.
O processo de industrialização na América Latina, devido às
características que assumiu, teve como principal efeito intensificar
a exploração das massas trabalhadoras da cidade e do campo.
Assim, na medida em que a indústria dependeu sempre do excedente
produzido no setor externo da economia e quis absorver
partes crescentes deste excedente, as classes beneficiadas pela exportação
buscaram compensar suas perdas através do aumento
da mais-valia absoluta arrancada das massas camponesas. Isto
não foi tão difícil já que, dada a extrema concentração da propriedade
da terra, os trabalhadores do campo se viram privados
das mínimas oportunidades de emprego e tiveram que ofertar no
mercado sua força de trabalho por um preço vil.
Um fenômeno similar se deu nas cidades. Desorganizando
a antiga produção artesanal - principal fonte de emprego para as
massas urbanas -, e se beneficiando das fortes migrações de trabalhadores
que a arcaica estrutura agrária não absorvia, os capitalistas
industriais se viram frente a uma oferta de mão de obra em
constante expansão. O fato de que, ao buscar aumentar sua mais-valia
relativa, tenham lançado mão de uma tecnologia que poupa
mão de obra importada dos países centrais, acentuou ainda mais o
crescimento relativo da oferta de trabalho, de encontro à redução
sistemática das oportunidades de emprego na indústria.
A principal consequência desta situação foi que a exploração dos trabalhadores urbanos se manteve sempre no limite do
suportável, desmentindo aqueles que insistem em ver a classe
operária latino-americana como um setor privilegiado da população.
Na melhor das hipóteses - correspondente à fase da política bonapartista -, esta pôde apenas manter seu nível de vida,
sem alcançar, porém, avanços reais, tendo que se contentar com a
extensão horizontal do emprego, que permitia aumentar a renda
global das famílias proletárias mediante o trabalho de um número
cada vez maior de seus membros. O progresso tecnológico na
região se expressou, portanto, num aumento simultâneo da mais-valia
absoluta e relativa nas empresas por ele beneficiadas, e foi a
premissa da acumulação de capital que permitiu que a burguesia
marchasse rumo à criação de uma indústria pesada.
O traço mais dramático dessa situação foi, no entanto, o crescimento
espantoso das populações marginais urbanas, aglomeradas
em bairros miseráveis, nas favelas e nas periferias. Sem uma
posição definida no sistema de produção e vivendo de trabalhos
ocasionais, esse subproletariado - que chega a superar, em certas
cidades, um terço da população total - sequer pôde se somar à
reivindicação básica do proletariado industrial - a extensão horizontal
do emprego ou, melhor dito, o direito ao trabalho -, e se
limitou, na maior parte dos casos, a reivindicações de consumo; converteu-se, assim, em massa de manobra de políticas demagógicas
por excelência, pela impossibilidade objetiva de desenvolver
uma consciência de classe, representou um dos suportes fundamentais do populismo.
As ilusões populistas e nacionalistas criadas pela burguesia
também ecoaram nas classes médias. Enfrentando a dificuldade
de se situar dentro do sistema de produção, as reivindicações destas
tenderam, no melhor dos casos, a coincidir com as reivindicações de trabalho do proletariado industrial, mas nada representan no sentido de fundar essa aspiração numa análise científica
das condições que as motivavam, ou seja, a tendência inevitável
do sistema a expulsar do processo produtivo massas crescentes da
população. Mais do que isto, a classe média, participando objetivamente
do processo de marginalização que afetava o subproletariado, coincidiu muitas vezes com este em suas reivindicações de
consumo e confundiu inclusive o movimento próprio do subproletariado
com a luta de classe dos trabalhadores industriais, tornando-se
ela própria outro suporte fundamental do populismo.
A diferenciação que o avanço da industrialização acarretava
no interior da classe burguesa trouxe ainda mais perplexidade à classe média. A concentração das unidades de produção, o desenvolvimento
da indústria pesada, a elevação do nível tecnológico
ila indústria, a associação com o capital estrangeiro - que constituíam
aspectos de um só processo -, tudo isso foi percebido por
elas como realidades independentes, que podiam ser combatidas
ou defendidas separadamente. Na medida em que isso implicou a
conformação de camadas burguesas que se beneficiavam de forma
desigual de tal processo, as classes médias tenderam a se aliar
ás camadas menos favorecidas e a desenvolver uma ação política contraditória, que não saiu nunca dos marcos dos conflitos interburgueses.
Foi assim que nasceu o mito da burguesia nacional oposta
aos interesses do imperialismo ou, mais precisamente, foi a forma que se encontrou para justificar a adoção dessa categoria, forjada
em contextos históricos diferentes. As classes médias atuaram
no sentido de subordinar o movimento progressista das massas
exploradas da cidade e do campo à burguesia mais atrasada econômica
e tecnologicamente - assumindo seu ponto de vista -,
burguesia esta que não podia sequer pleitear a possibilidade de se
associar aos capitais estrangeiros e enfrentava, ela mesma, a ameaça
da proletarização, representando o setor mais retardatário da
sociedade. Ao mesmo tempo, as classes médias se deixavam seduzir
pelo “desenvolvimentismo” dos grandes grupos econômicos,
em sua marcha rumo a um aumento da composição técnica
da produção e à implementação da indústria pesada, em associação
com o capital estrangeiro, sem se dar conta de que assim
contradiziam os interesses de sua pretensa “burguesia nacional”,
para a qual esse caminho estava fechado.
Pois bem, as vanguardas revolucionárias da América Latina
trazem, em geral, a marca das classes médias. A incompreensão
que as classes médias revelaram frente ao processo econômico
de seus países e à luta de classes que daí se deriva dificultou consideravelmente
a vinculação efetiva dessas vanguardas às forças
reais da revolução, principalmente com o que forma sua coluna
vertebral: o proletariado industrial. Com raras exceções, sua posição
ambígua em relação aos conflitos interburgueses não lhe
permitiu aliar-se ao proletariado e definir junto a este uma política operária, de luta pelo socialismo, que ponha em marcha uma
frente dos trabalhadores da cidade e do campo contra o sistema
de exploração ao qual estão submetidos.
No entanto, somente isso pode dar pleno sentido à luta anti-imperialista e levá-la a suas últimas consequências. Ao definir no
marco nacional uma política operária, as forças revolucionárias
estarão dando início a um processo que conduz necessariamente
à internacionalização da revolução e ao enfrentamento direto
com o centro hegemônico imperialista. Os opressores nacionais e estrangeiros já se previnem contra essa eventualidade, tratando
de estabelecer mecanismos de contenção, tais como os regimes
militares subordinados à estratégia do Pentágono, a Força de Polícia
Interamericana e os acordos para repetir, quando seja necessário,
a experiência dominicana.
A ação internacionalista de Guevara e a política revolucionária
de Cuba antecipam a resposta que os povos do continente
darão a seus opressores. Mais ainda, fazem que desponte no horizonte
aquilo que parece ser a contribuição mais original da América Latina para a luta do proletariado internacional: seu caráter
internacional. Tudo indica que será aqui que o internacionalismo
proletário alcançará uma nova etapa de seu desenvolvimento e
sentará as bases de uma sociedade mundial de nações livres da
exploração do homem pelo homem.
Notas
[1] As principais características dessas modalidades ou tipos foram definidas
por Celso Furtado e Aníbal Pinto em diferentes trabalhos e sistematizadas por
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em Dependencia y desarollo en America Latina, Siglo XXI, México, 1973.
[N.T.: Na primeira edição de Subdesarollo y revolución, de 1969, Marini faz
menção a um estudo ainda inédito de Fernando Henrique Cardoso. A edição
original do livro de Cardoso e Faletto é de 1969 - o texto já circulava, desde
1967, em versões internas do Instituto Latinoamericano de Planeación Económica y Social (ILPES)—; no Brasil foi publicado pela primeira vez em 1970 pela
Ed. Zahar.]
[2] () choque de interesses entre os Estados Unidos e a Inglaterra já se manifestava
na promulgação da República no Brasil (1889) e na guerra civil chilena,
para dar apenas alguns exemplos. Esse choque permite também que um país como o Uruguai possa realizar, após a ascensão de Jorge Batlle ao poder, sua
Integração dinâmica ao mercado mundial em condições similares às dos países
antes citados.
[3] Isso se deve tanto à disponibilidade crescente de capital exportável nas economias
centrais, quanto ao caráter mais sofisticado e custoso da tecnologia empregada,
que exige grandes investimentos de capital. Daí se deriva a integração
de parte do sistema de produção dos países periféricos à economia central, uma
integração que ainda se dá em função do mercado mundial, e não do mercado
interno, como ocorrerá posteriormente.
[4] A relação entre o investimento estrangeiro e o caráter mais sofisticado da
tecnologia que nele se emprega conduz a que a empresa absorva pouca mão de
obra, produzindo, assim, um montante relativamente baixo de salários. Estes
salários se orientam, em termos gerais, ao consumo de bens importados e não
repercutem de forma efetiva no mercado interno.
[5] Exemplos disso são o batllismo no Uruguai, o radicalismo argentino do começo do século XX, ou o civilismo brasileiro.
[6] Ver Ernest Mandel, Traité d'économie marxiste, Paris, 1962. Existe edição em
espanhol: Editora Era, México, 1969.