terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Conflito distributivo: a política por detrás das políticas






 Até recentemente, as autoridades brasileiras fizeram uso de uma retórica agora comum para justificar o arsenal de medidas de austeridade que efetivamente descarrilharam a economia brasileira. Estas vieram sob o pretexto do tradicional discurso ''a crise internacional me obrigou a fazer isso'', ou pela recorrência à noção de que esforços fiscais (e, neste caso, também monetários e creditícios) são o único caminho para garantir o crescimento econômico -- o bem conhecido argumento da ''contração fiscal expansionista'', ou CFE.

 Como se vê, a não-declarada finalidade do conjunto de políticas correntemente implantadas no Brasil é enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores por meio da redução dos salários reais e pelo acréscimo do desemprego. Diferentemente das economias ocidentais mais avançadas, o conjunto institucional que protege os interesses dos trabalhadores no Brasil é relativamente fraco, e falta-lhe peso orgânico e político-partidário.

 Logo, aumentar as taxas de desempregados tem o benefício adicional de efetivamente reduzir a resistência dos trabalhadores à introdução das medidas neoliberais, necessárias para reverter as vantagens adquiridas pelos trabalhadores na década passada, vistas como excessivas.

 Tão recentemente quanto em junho de 2015, o [ex-]ministro da fazenda Joaquim Levy disse a uma plateia de executivos, na presença das imprensas nacional e internacional, que era tempo de ''repensar o país'' e ''abandonar a retórica e lidar com algumas realidades''. Seu objetivo declarado foi precisamente exposto: ''nós vamos reverter essa redução da oferta de trabalho''. De acordo com ele, havia pessoas que anteriormente ''não queriam entrar no mercado de trabalho, e que agora terão de procurar por empregos'', portanto provocando um aumento na oferta de trabalho. Como corolário, a audiência foi informada de que ''não pode haver crescimento econômico sem um aumento na oferta de trabalho''.

 O interessante é que, ao dizer isto, o ministro cometeu um erro bastante rude em termos de teoria econômica. Mesmo de acordo com os dogmas da teoria ortodoxa e neoclássica do crescimento à qual ele alude, é o pleno emprego que geraria o crescimento e não o desemprego, que, por definição, nada produz.

 Politicamente, porém, a análise do Sr. Levy foi bastante precisa, e até mesmo brusca. O poder de barganha da força de trabalho brasileira foi, talvez inadvertidamente, muito acrescida por um mercado de trabalho apertado entre 2006 e 2014, tanto quanto pelas medidas introduzidas pelo governo liderado pelo PT naquele período. O desemprego caiu marcadamente e os salários reais no setor formal cresceram continuamente, numa média estável de 3% ao ano, começando em 2006. Mais relevante ainda, tendo alcançado um baixa máxima em 2004, a massa salarial em % do PIB tem se recuperado desde então.

 Depois de muita pressão política por parte da iniciativa privada (apesar dos lucros em máximas-recorde obtidos na década passada) e, ainda mais sonoramente, dos extensos grupos midiáticos e partidos de oposição, em 2015 o governo liderado pelo PT começou a agir no sentido de reverter este estado de coisas por meio de medidas progressivamente brutais.

 A rápida geração de desemprego por meio de medidas radicais de austeridade, assim como por mudanças nítidas na distribuição de renda para além dos salários, criaram um clima político em que é possível reduzir substancialmente o tamanho e a importância do Estado brasileiro na economia como um todo. Isso, por sua vez, está preparado o caminho para um decréscimo dos ganhos distributivos, direitos trabalhistas e benefícios sociais iniciados em 2003, alguns dos quais já estão sendo simultaneamente desmantelados ou significativamente reduzidos.

 Muitos militantes petistas, tanto quanto movimentos sociais e sindicatos, foram claramente pegos de surpresa por este repentino e inequívoco endorso de uma agenda neoliberal a que eles há muito se opuseram, e um que afeta sua própria base proletária o máximo possível.

 Essa reação, se compreensível, é um tanto quanto baseada em wishful thinking. Uma análise empírica mais acurada de sua história de 30 anos demonstra que o PT tem uma consolidada tradição de fugir ao conflito direto com as classes proprietárias e conservadoras do país uma vez estando no poder, quer no nível federal, quer no municipal ou estadual. Ao mesmo tempo em que sinceramente aparenta desejar mudança social, a elite governante do partido têm há muito sido dirigida por uma credo de busca de consenso segundo o qual não há situação na qual um compromisso que evite perturbar a elite endinheirada do Brasil, enquanto simultaneamente melhore a condição da majoritária classe subalterna do país, não pode ser alcançado.

 Esse peculiarmente cordial ramo da filosofia política pode parecer forçar a credulidade quando se leva em conta que o Brasil é o único país que se encontra simultaneamente no ranking das 20 maiores economias e no das 20 piores distribuições de renda do mundo. Apesar disso, essa quadratura política do círculo pareceu possível até 2011, a nível federal, no despertar de uma prosperidade no comércio externo, acompanhada de um surto tanto no consumo doméstico quanto nos níveis de lucros que se seguiram à abertura inicial das comportas da ''inclusão social''.

 Quando os esporádicos conflitos em relação à distribuição de renda na arena política tornaram-se mais difundidos, e a crítica ideológica deu lugar à indisfarçável luta de classes, o anterior humor auto-aprovativo do alto escalão governante do partido tornou-se um de desconfiança e alarme. Confrontados com um novo Congresso hostil depois de ganhar as eleições presidenciais de 2014 e afligidos por sua pesada dependência para com o financiamento por parte de grandes empresas privadas e bancos, os jeitos flexíveis e credos apaziguadores dos líderes do PT transformaram-se numa raramente vista hierárquica capitulação política.

Nenhum comentário:

Postar um comentário