quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O Brasil em transe histórico

Por Lindbergh Farias (Senador da república pelo PT-RJ) e Jaldes Meneses (Professor Associado no curso de História na UFPB); artigo originalmente publicado na revista virtual Esquerda Petista, n.º 4 (setembro de 2015), disponível aqui

Já se passaram oito meses do segundo governo da presidenta Dilma Rousseff e o programa que foi vitorioso nas urnas e nas ruas contra Aécio Neves e o PSDB, principalmente na economia, foi arquivado

I. Os erros e acertos na política  

 O Brasil vive um momento de transe histórico. Já se passaram oito meses do segundo governo da presidenta Dilma Rousseff e o programa que foi vitorioso nas urnas e nas ruas contra Aécio Neves e o PSDB, principalmente na economia, foi arquivado. O que era otimismo virou decepção e, como resultado, os sinais da correlação de forças se inverteram.

 Ao contrário de muitos otimistas panglossianos no PT e na esquerda, prevíamos que as eleições de 2014 seriam dificílimas. Desde as mobilizações de massas de junho de 2013, que reuniram circunstancialmente forças sociais heterogêneas e projetualmente conflitantes -- a exemplo da juventude do novo precariado e as classes médias tradicionais --, já estava claro, para quem se dispusesse a ver, que o período histórico iniciado com a vitória de Lula nas eleições de 2002, se quisesse continuar mudando o Brasil, teria, necessariamente, de dar novos passos à frente.

Até certo ponto, no auge das mobilizações de junho, a presidenta Dilma e o núcleo político do governo pressentiram a necessidade de reorientar à esquerda o nosso projeto, no pronunciamento público de rádio e televisão de 21 de junho, quando ela mencionou a urgência de uma reforma política “ampla, profunda” e que “amplie a participação popular”. Mas logo recuaram, pressionados pelo PMDB e consortes. 

 Já em plena campanha do ano passado, quando surgiram as bolhas de crescimento eleitoral de Marina Silva e depois de Aécio Neves, novamente o discurso popular de Dilma reapareceu em cena, neste caso desconstruindo as receitas “políticas de austeridade” produzidas por intelectuais como Armínio Fraga (Aécio) e Eduardo Giannetti (Marina) nos aparelhos privados de hegemonia da burguesia financeira. 

 Existe ainda alguma dúvida de que esse desmascaramento feito por nós, na campanha de televisão e nas ruas, das intenções subterrâneas de um hipotético governo de Aécio ou Marina (retorno das privatizações, independência do Banco Central, corte dos programas sociais etc.) foi decisivo para a nossa vitória?

 Não foi à toa que a oposição, sentindo a nossa ofensiva e sem poder responder com sinceridade os nossos questionamentos e denúncias dos objetivos programáticos antipopulares, partiu para o diversionismo, acusando-nos de “baixar o nível”. Desde quando falar a verdade é baixar o nível? 

 Tratar da campanha pela campanha, sem estabelecer as conexões e liames, significa pendurar a análise na epiderme dos fatos. Indo mais fundo na análise, muitas foram as transformações recentes, políticas e sociais, da sociedade brasileira no período de governos do PT no Executivo Nacional.

 Em primeiro lugar, no âmbito das classes sociais, os vários segmentos da burguesia brasileira -- principalmente a industrial e agrária -- beneficiaram-se momentaneamente da explosão de consumo das classes populares e do boom internacional das commodities. Mas não só. Mesmo as burguesias bancária, rentista e financeira, devido à alavancagem dos investimentos em bolsa, o aumento do número de correntistas, o empréstimo consignado, entre outras medidas, foram, no mínimo, neutralizadas. Por seu turno, as burguesias regionais, como a de Pernambuco, beneficiaram-se das oportunidades de investimento do Estado. 

 Lula e Dilma fortaleceram o mercado interno, ampliaram o peso do sistema financeiro público, promoveram o aumento real do salário mínimo, asseguraram o nível de emprego, sustentaram os programas sociais, reduziram as desigualdades sociais e, ainda, fortaleceram todas as iniciativas voltadas para a construção de uma nova ordem internacional. O banco e o fundo de compensação dos BRICS são exemplares nesse sentido.

 As classes populares também viveram um momento de emergência social. Até mesmo o surto grevista havido entre 2008 e 2012 e as negociações salariais entre trabalho e capital, que permitiram a massa salarial crescer, em típico conflito distributivo, devem ser vistos como sintomas de uma sociedade em processo contraditório de crescimento econômico. 

 Mas nem tudo eram flores. A afluência social dos pobres começou a incomodar setores da classe média tradicional, cuja renda cresceu, no período, em menor intensidade. Esse setor remediado começou a se descolar - já a partir de 2006, principalmente em São Paulo - da esquerda e do PT. Compensou a evasão de votos dos setores médios o fenômeno que André Singer, em Os sentidos do lulismo, chamou de “realinhamento eleitoral”, ocorrido nas eleições de 2006 e reiterado em 2010 e 2014 - os pobres votaram em massa em Lula e depois em Dilma.

 Contribuiu sobremaneira para o deslocamento das classes médias as campanhas sistemáticas de mídia, de combate político e ideológico sem trégua ao PT, aproveitando as seguidas denúncias de corrupção.

 Decerto, como quase sempre, as classes médias não se comportaram univocamente, além de serem regionalmente muito diferenciadas no Brasil. Uma parte, ainda expressiva, continuou com o PT e outra buscou abrigo em setores de crítica à esquerda aos governos de Lula e Dilma. Vale dizer: os setores médios da sociedade, embora as condições atuais sejam difíceis, estão ainda em disputa e constitui um erro político grasso assimilá-las em bloco ao lado dos adversários.

 A situação conjuntural na qual quase todas as classes, especialmente as do andar “de cima” e as do “de baixo”, ganham (fenômeno designado por Marco Aurélio Garcia de “ganha-ganha”) não poderia durar muitos anos nem render paz duradoura. Mesmo com os ganhos divididos desigualmente -- os de cima ganharam muito mais e os de baixo bem menos --, mesmo vantajoso para as classes dominantes, esse equilíbrio era instável. O capitalismo brasileiro é historicamente desigual e dependente, as fraturas de classes do arranjo social brasileiro persistiram e logo viriam cobrar a fatura. 

 Embora muito tenha sido feito, estivemos longe de afrontar os grandes dilemas históricos nacionais. Fizemos políticas sociais inclusivas de transferência de renda, de elevação do valor real do salário mínimo e expansão de vagas nas Universidades Federais e no ensino técnico, entre muitas outras. Entretanto, essas políticas sociais não vieram acompanhadas, como se dizia nos tempos do governo de João Goulart, de “reformas de base”, como a urbana, a agrária e do sistema financeiro. Construímos um processo de afluência social rico, complexo e contraditório, porém sem empenho para alterar as relações de força estruturais da sociedade.

 Do ponto de vista político, o compromisso de classes do período Lula-Dilma foi operado por dentro do perverso sistema político tradicional brasileiro. O governo inovou, convocando a sociedade civil para parcerias, abrindo o Estado à participação dos movimentos sociais nos conselhos e conferências. Mas esse movimento foi limitado. Na outra ponta -- a sociedade política --, o sistema político institucional continuou operando através do chamado “presidencialismo de coalizão”, funcionando como sempre, desde a assunção do “centrão” no governo Sarney, balcanizando e fatiando as estruturas do Estado. Ganhamos a Presidência da República por quatros vezes (e ainda estados e municípios importantes), aplicamos nos governos um programa socialmente inclusivo, ativamos o desenvolvimento econômico, mas não mexemos no sistema político, que continuou no essencial oligárquico, corrupto e conservador.

 Os “donos do poder” continuaram mandando, ocupando os postos-chave nos estados, nos municípios e até mesmo no governo federal, feito Cavalos de Tróia. Essa contradição política começou a explodir na campanha de 2014 -- uma das mais radicalizadas da histórica da República -- e definitivamente, nos dias de hoje, a corda se rompeu.

 Em suma, escolhemos, conscientemente, a política do compromisso e da menor resistência. No começo do segundo governo Dilma, somou-se a esses problemas e escolhas estratégicas, que já vinham de antes, o maior dos erros. Cedendo principalmente às chantagens do capital financeiro, adotou-se o programa econômico derrotado nas eleições, num pastiche mal feito e piorado da política econômica adotada por Antonio Palocci, logo no começo do primeiro governo Lula.

 Sucede que 2015 não é 2003. Em 2003, estávamos começando a jornada às voltas com a “herança maldita” do governo FHC, que deixou o salto de inflação elevada, reservas externas em baixa e juros estratosféricos. As condições políticas eram outras. Lula foi eleito, em segundo turno, com 62% dos votos, acachapando o candidato adversário, José Serra, e começou a governar rodeado de expectativa popular positiva, em torno de 80%. Já em 2015, por sua vez, a jornada já ancorava na décima terceira estação.

 Nesse sentido, era preciso ter percebido que as condições econômicas e políticas que permitiram a concretização da política adotada nos últimos 12 anos se esgotaram. No plano da economia internacional, para citar um elemento da maior importância, a realidade favorável passou a ser outra. A conjuntura internacional mudou para pior: o boom dos preços das commodities, verificado no período 2002-2011, puxado principalmente pela demanda da China, esgotou-se.

 Nesse ponto, é importante registrar que a estratégia careceu de uma perspectiva mais ampla. Havia se disseminado em nossos arraiais uma crença ingênua, um senso comum rasteiro de que a política do ganha-ganha seria infinita. Foi eterna enquanto durou. Assim, não construímos um plano de ação de médio/longo prazos, que considerasse o acirramento da disputa de interesses de classe antagônicos. 

 Resultado: a reserva de capital político do governo evaporou-se em pouquíssimo tempo. A partir dessa evidente fragilidade, começaram uma série brutal de golpes contra o governo, o PT e a perspectiva histórica que representamos de transformação do país, contra os diretos dos trabalhadores, dos jovens, das mulheres, dos homossexuais, contra a soberania nacional e o controle das nossas riquezas naturais. 

 Essa ofensiva possui dimensões objetivas, com o ataque aos direitos, mas tem também dimensões subjetivas, com a tentativa de reduzir os mandatos do PT a casos de corrupção. Assim, assistimos a uma operação de desmoralização política e ideológica do PT, como forma de desconstituição simbólica de toda a esquerda brasileira.

 De alguma maneira, essa investida é uma resposta aos êxitos, embora parciais, do nosso projeto, embora seja também fruto dos limites dos nossos governos.

 Nos últimos 12 anos, houve uma inversão na lógica do desenvolvimento brasileiro em comparação com os governos neoliberais do PSDB, que desregulamentaram os mercados e debilitaram o Estado. O nosso governo conferiu maior centralidade ao papel do Estado, com foco na consolidação de um mercado interno de massas. 

 O Diretório Nacional do PT assinalou corretamente, em dezembro de 2014, que “além da quarta vitória eleitoral consecutiva – um fato inédito na história brasileira – podemos considerar um quinto êxito do nosso projeto. Foi a maneira como enfrentamos a crise de 2008, que se prolonga até hoje. Em contraste com as medidas de austeridade impostas pelo neoliberalismo na Europa e EUA, nossos governos não transferiram o ônus da crise dos rentistas para os trabalhadores e a população em geral”.

 Lula e Dilma fortaleceram o mercado interno, ampliaram o peso do sistema financeiro público, promoveram o aumento real do salário mínimo, asseguraram o nível de emprego, sustentaram os programas sociais, reduziram as desigualdades sociais e, ainda, fortaleceram todas as iniciativas voltadas para a construção de uma nova ordem internacional.

 Para manter as condições de o nosso projeto disputar a sociedade, é preciso reconhecer que, ao não politizarmos a sociedade, não travamos a luta ideológica e cultural que superasse a lógica meramente consumista da afluência social que nós mesmos ajudamos a produzir. Ao não enfraquecermos o poder das elites com reformas estruturais, facilitamos a pavimentação de um bloco de classes reacionário e antipopular que hoje se vê em condições de “acabar com essa raça”, como explicitou um ex-famoso político da direita, hoje recolhido ao ostracismo. Esse reconhecimento é necessário, porque reforça a necessidade de uma reorientação de rumos do governo e do PT. 

 Mais do que nunca é verdadeira a ideia de que é possível derrotar a oposição de direita se tivermos ajuda do governo, e que é possível derrotar momentaneamente a oposição de direita sem a ajuda do governo. No entanto, é impossível impor uma derrota estratégica à direita se o governo dividir a esquerda e alimentar a direita.

II. O Ajuste Fiscal 

É urgente o governo abandonar o programa dos derrotados e retomar o programa vitorioso na campanha de 2014, marcada por intensa polarização em torno do debate sobre a política econômica, o embate sobre a participação social, a reforma política, a democratização dos oligopólios da mídia e temas como o combate à homofobia. 

 A composição do governo e as primeiras medidas da equipe econômica tiveram como centro a implementação de um ajuste fiscal. O governo lançou mão de uma política econômica de austeridade, com medidas provisórias que retiram direitos trabalhistas e previdenciários, aumento da taxa de juros e cortes no orçamento.

 Essas medidas desconsideram que o modelo de política econômica conformado nos anos de 2006/2010 deu certo, embora tenha demonstrado seus limites. Portanto, deveria ser mantido e, ao mesmo tempo, aperfeiçoado. Era um modelo de estímulo ao consumo, ao investimento e de orientação de expectativas dos empresários e trabalhadores. Foi um período em que o modelo econômico produziu excelentes resultados sociais e fiscais. 

 Havia uma política fiscal anticíclica. A equipe econômica e o presidente Lula estimulavam os empresários ao investimento e as famílias ao consumo. Era um modelo que visava o crescimento econômico. No caso da economia brasileira, há um resultado muito conhecido que vem do crescimento: é o aumento do emprego com carteira assinada. E, além disso, é conhecido historicamente que o crescimento reduz o desemprego e melhora a situação orçamentária do governo. 

 Em 2006, teve início a política de valorização do salário mínimo; em 2007, foi lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (o PAC). 2009 foi o ano da crise financeira americana. Ao final de 2008, o governo anunciou a redução do superávit primário e aumentou os investimentos da Petrobras (em 2009, eles foram 22% maiores que em 2008). Em seguida, lançou o programa Minha Casa Minha Vida. O Banco Central reduziu os juros e o Tesouro fez aporte de recursos ao BNDES ao longo de 2009. E o presidente foi para a televisão estimular os brasileiros a não desistirem dos sonhos de uma máquina de lavar ou da reforma da casa. O Brasil soube enfrentar a crise internacional e saiu com poucos arranhões.

 A economia entrou o ano de 2010 voando, com crescimento de 7,6%. O crescimento do investimento foi superior a 21%. A relação dívida pública/PIB foi reduzida de mais de 60% (em 2002) para 39,2%. Foram gerados mais 2,8 milhões de empregos formais. Em relação ao ano de 2002, o volume de vendas do comércio varejista cresceu 76%, a renda per capita cresceu 37,5% e o desemprego foi reduzido em quase 50%. O período que se encerra em 2010 gerou ganhos sociais advindos dos ganhos econômicos, ou seja, a geração de emprego e renda possibilitou a melhoria da vida de milhões de brasileiros.

 Houve distribuição de renda. A vida do trabalhador e de sua família melhorou. O indivíduo desempregado e excluí- do mudou de vida. Milhões entraram no mercado de consumo, de serviços e de trabalho. As exigências a partir de então passaram a ser outras. O trabalhador teve acesso ao consumo e passou a almejar ser um cidadão pleno, isto é, ser incluído num sistema de bem-estar. Renda e emprego deveriam ser mantidos, mas agora as exigências eram também de acesso a um sistema público de saúde com qualidade, de educação formal gratuita com qualidade, de transporte barato e eficiente, com iluminação nas ruas, com coleta de lixo, com saneamento, segurança pública e acesso à água potável.

 Esse era o grande desafio a partir de 2010. Portanto, mais investimentos públicos e mais políticas de articulação com governadores e prefeitos deveriam ter sido os objetivos do governo federal. Além disso, tal estratégia exigiria uma hábil política de enfrentamento aos interesses econômicos contrários. Diferentemente da etapa de crescimento com distribuição de renda (2006-2010), quando todos ganharam com a dinamização da economia, agora, mais saúde pública, estatal e de qualidade reduziria lucros dos empresários da área; mais educação pública de qualidade, em todos os níveis, diminuiria o lucro dos donos de escolas privadas; transportes mais eficientes e baratos comprimiriam lucros das chamadas máfias dos ônibus urbanos; e assim sucessivamente.

 O governo federal não fez essa opção. Não elaborou uma política de enfrentamento aos opositores de um sistema de bem-estar. Objetivou fazer mais do mesmo e apostar mais nas iniciativas do setor privado do que nas suas próprias políticas. Reduziu o investimento público e o investimento de estatais. Apostar no setor privado é correto. O equívoco foi não ter aperfeiçoado o modelo de 2009- 2010 - o que significaria aprofundar o modelo de desenvolvimento -, ofertando, de forma ampla, equipamentos e serviços públicos de qualidade.

 Todas as iniciativas, desde 2011, foram de reduzir custos empresariais. Foi reduzida a taxa de empréstimos do BNDES (a TJLP), houve redução de tarifas de energia elétrica, desoneração da folha de pagamentos e até a tentativa (positiva) de reduzir a taxa de juros Selic. Essa não vingou porque os empresários brasileiros também são rentistas e, em aliança com banqueiros, combateram tal medida que teve início em agosto de 2011. Até então, a política tinha sido de elevações sucessivas da taxa de juros Selic. Deve ser lembrado que o governo declarou no início de 2011 que reduziria o crescimento: elevou o superávit primário, fez contingenciamentos de recursos e elevou a taxa de juros Selic.

 Deve-se destacar que as medidas contracionistas têm início em janeiro de 2011 e que a crise das dívidas europeias que afeta o mundo somente ocorre no 4º trimestre daquele ano. Portanto, a freada brusca que a economia brasileira sofreu em 2011 decorreu das políticas econômicas adotadas. A partir de 2012, a economia estagnou. Era o resultado de um clima externo e interno negativo devido à perversa combinação do cenário internacional com as políticas internas paralisantes - que esperavam uma reação espontânea do setor privado. Era a velha e equivocada crença de que empresários investem quando seus custos são reduzidos. Mas, na verdade, eles investem quando esperam lucros maiores. Quando custos são menores e a economia não cresce, empresários simplesmente aumentam seus lucros. E esse foi o resumo do que ocorreu entre 2011-2014.

 Em 2015, o governo perdeu o rumo do projeto de desenvolvimento, que tem como base o crescimento, a geração de emprego e renda. Optou por colocar em prática um programa de austeridade, fazendo uma brusca contração fiscal conjugada com algumas reformas estruturais. Durante anos, as finanças públicas têm mostrado solidez. Exceto no ano passado, em que houve um problema fiscal.

 As causas do desequilíbrio fiscal de 2014 foram o baixo crescimento, as desonerações fiscais e as elevadas despesas com pagamento de juros. O déficit nominal (receitas menos despesas do governo) foi de 6,7% do PIB, mas só as despesas com juros alcançaram 6,1% do PIB -- ou mais de R$ 300 bilhões. É necessário reorganizar as finanças públicas. Precisamos delas para combater as ameaças de desemprego, realizando investimentos públicos, e para fazer políticas sociais cada dia mais eficazes. Baixo desemprego e políticas públicas que promovem o bem-estar social são as bases do desenvolvimento de que necessitamos.




 A questão é: qual o caminho que devemos adotar? Paramos o país cortando gastos e elevando juros ou promovemos o crescimento? O primeiro caminho busca atingir o objetivo cortando despesas (e, contraditoriamente, elevando despesas quando se aumentam os juros que remuneram a dívida pública). Já o segundo caminho deseja equilibrar as finanças públicas elevando as receitas resultantes da dinamização econômica. Além disso, sem crescimento não haverá desenvolvimento.

 Não é uma questão de livre escolha diante de duas opções. O caminho do aperto fiscal e monetário, além de não equilibrar o orçamento, está promovendo um retrocesso econômico e social. A arrecadação está mais fraca. Os investimentos públicos e privados despencaram (contração de 7,8% em relação ao primeiro trimestre de 2014). O desemprego está aumentando e a formalização do trabalho caindo.

 Os cortes anunciados de R$ 70 bilhões atingem todos os ministérios e todas as áreas. Isso significa que todas as políticas sociais sofrerão cortes ou ficarão estagnadas. E, por outro lado, somente a política de elevação dos juros já tem custo superior a R$ 150 bilhões. O resultado sobre o crescimento já está sendo previsto pelos mais diversos analistas: uma contração econômica em torno de 2% esse ano e recessão também em 2016. E o pior, apesar do ajuste ter sido feito para melhorar a situação fiscal, o déficit nominal acumulado nos últimos 12 meses subiu de 6,7 em dezembro para 7,9 em maio. Esse resultado é decorrente da queda da arrecadação devido à recessão e também do impacto fiscal da incompreensível política monetária. Isto leva as agências de rating a ameaçar rebaixar a nota do Brasil pela desaceleração econômica e pela piora do quadro fiscal. E há quem diga que Dilma escolheu Levy justamente para evitar essa decisão dessas agências -- desmoralizadas em todo o mundo -- de classificação de risco.

 Só há uma saída: o crescimento da economia e a retomada do desenvolvimento. Contudo, há outra questão: como financiar o crescimento se as finanças públicas estão combalidas? De onde viriam os recursos? Não é possível aumentar o déficit fiscal. Será preciso, então, reduzir a taxa de juros e arrecadar mais fazendo justiça tributária.

 O sistema tributário brasileiro é injusto porque impõe sacrifício elevado para aqueles que têm rendas baixa ou média e alivia aqueles que têm altas rendas e são ricos, milionários ou até bilioná- rios. Segundo estudo do IPEA (Instituto de Economia Aplicada, órgão do governo Federal), os 10% mais pobres destinam 32% das suas rendas para pagar impostos. Enquanto isso, os 10% mais ricos pagam somente 21%.

 A grande injustiça começa pelo fato de que a maior parte da arrecadação vem de impostos cobrados quando compramos alguma mercadoria, seja um eletrodoméstico, seja um pacote de macarrão. No ato da compra, o pobre e o rico pagam o mesmo imposto. Embora o valor do imposto cobrado seja o mesmo, para o pobre essa cobrança representa sacrifício, para o rico é uma cobrança nem percebida. 

 Apesar de percebermos a existência de grandes latifúndios, sítios com áreas enormes, apartamentos suntuosos, carros luxuosos, iates, helicópteros e jatinhos, a receita tributária advinda do patrimônio é de menos de 4% do total arrecadado. E os impostos sobre as rendas representam algo em torno de 18% da arrecadação tributária. Então, do total de impostos arrecadados, somente 22% vêm dos tributos cobrados sobre a renda e o patrimônio. E mais de 50% vêm dos impostos sobre o consumo e os serviços. Em países como o Canadá, o Reino Unido e os Estados Unidos, a soma dos impostos coletados sobre as rendas e o patrimônio é superior a 50% do total.

 Devem contribuir com o equilíbrio fiscal aqueles que têm maior capacidade contributiva. O governo acertou quando aumentou a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido dos bancos de 15 para 20%. Esse é o caminho – e não a retirada de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários (tais como fizeram as Medidas Provisórias 664 e 665). 

 No Brasil, lucros e dividendos não são tributados quando são transferidos aos donos das empresas. O empresário recebe seus ganhos e isso é considerado pela legislação atual como “rendimento não-tributável”. Jatinhos, iates e helicópteros não pagam IPVA. Multinacionais enviam lucros para o exterior e também não pagam nenhum imposto sobre essa movimentação. E a Constituição prevê a cobrança de imposto sobre grandes fortunas, mas até hoje não foi aprovada pelo Congresso Nacional. 

A justiça tributária poderia começar já, antes de uma reforma, com a cobrança daqueles que comprovadamente devem impostos e não pagaram. Segundo a Procuradoria da Fazenda, são devidos ao governo federal R$ 1 trilhão em impostos não pagos. Mas o governo federal consegue recuperar somente 1,3% desse montante ao ano.

 Há fontes de financiamento para promover o crescimento, o reequilíbrio fiscal e o desenvolvimento, sem fazer um ajuste fiscal que jogará nossa economia na recessão. Basta escolher o caminho certo. E a escolha desse caminho é uma decisão política do governo, que não pode continuar atacando a própria base.




III. O que fazer?

 Escrevemos este artigo depois da Convenção Nacional do PSDB e do espalhafatoso anúncio feito pelo deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara, de “rompimento” com o governo Dilma. Enfatizamos esses dois episódios para observar que, embora a crise seja econômica e se espraie pelo social, ela é essencialmente política e somente pela política encontraremos a porta de saída.

 Os pronunciamentos na convenção do PSDB e os bastidores políticos em Brasília desenterram, no novo século, o fantasma -- pelo visto insepulto -- da velha tradição golpista brasileira, chaga permanente na história do século XX. No passado, os golpistas se comportavam como “vivandeiras de quartéis”, clamando pela intervenção militar. Por enquanto, os quartéis estão serenados.

 Atualmente, trama-se um golpe de genealogia igualmente violenta, no entanto, aparentemente, mais “clean”. A natureza da tentativa de golpe em curso foi definida com precisão cirúrgica na importante Carta dos Governadores do Nordeste (Teresina, 17/07) como as três “vias tortuosas” da “judicialização da política [processo de impeachment com base na rejeição das contas do governo], da politização da justiça [cassação pelo TSE dos diplomas de Dilma e Temer] ou da parlamentarização forçada [adoção de um regime parlamentarista, à maneira da solução desastrosa que permitiu a posse de Jango, em 1961].

 É preciso dar nomes aos bois. Por trás das modalidades de golpe, estão equidistados os interesses, circunstancialmente distintos, de três lideranças da oposição: Aécio Neves (eleições já), José Serra (parlamentarismo) e Geraldo Alckmin (eleições em 2018). Esses tucanos são espécimes curiosos: de público, posam de Varões de Plutarco; nos bastidores, vendem a setores do PMDB e a outros partidos da “base” do governo a ideia de que Dilma foi omissa e leniente ao não controlar e dar “autonomia demais” à Polícia Federal e ao Ministério Público.

 Por enquanto, a circunstancial divisão de interesses dos adversários tem retardado a execução imediata do golpe. Porém, não podemos (nem devemos) nos fiar apenas na imobilidade circunstancial dos adversários, enquanto eles não se acertam nas tratativas sujas. É preciso agir! 
 Vale observar que esses interesses não são meramente pessoais das lideranças da oposição de direita. Golpe não é somente conspiração, pressupõe a adesão de um bloco orgânico de forças sociais e um programa para “o dia seguinte”. Nesse sentido, do ponto de vista do programa econômico, as forças golpistas irão adotar o mesmo programa de Joaquim Levy. No entanto, do ponto de vista das conquistas das políticas sociais, dos direitos, da liberdade e democracia, a vitória do golpe significará um retrocesso sem par na vida brasileira.
 Diante de tudo isso, o que fazer? Propomos três ações políticas combinadas, uma autêntica rota de navegação em mar revolto:

1. Reorientar a política econômica 

 A economia não está desvinculada da política. O governo precisa mudar na política econômica para sobreviver, criando as condições objetivas para reorganizar a nossa base social, que terá que se mobilizar para fazer o enfrentamento diante dos interesses do capital financeiro e das empresas multinacionais. O crescimento do desemprego, a queda da renda dos trabalhadores e o corte de programas sociais darão uma base de massas para as forças golpistas que articulam o impeachment da presidenta Dilma. Além disso, deixarão neutralizadas as centrais sindicais, os movimentos populares e entidades estudantis que apoiam o nosso projeto, mas terão dificuldades para sair às ruas para defender um governo que implementa medidas contra os seus interesses. 

 É triste ter que admitir isso, mas Dilma dificilmente concluirá seu mandato se essa política econômica colocar o país num longo período de recessão que poderá se estender até 2017. Não há como sobrevivermos neste contexto. O ajuste não é um movimento tático do ministro Levy. É estratégico. Dilma e o governo têm que reagir, defender seu governo lançando medidas de estímulo ao crescimento, mudando o rumo para defender os empregos, os investimentos e as políticas sociais.

 2. Apresentar um novo governo à nação e reconstruir a base de apoio no Congresso

 O sistema “Presidencialismo de Coalizão” vigente já se exauriu e, pior ainda, tenta sobreviver através do golpismo. Tendo em vista a gravidade da situação, Dilma precisa buscar forças na sociedade e apresentar um novo governo à Nação para enfrentar as várias crises. Este novo governo teria como epicentro a composição de um novo ministério de ampla respeitabilidade social e política, indo buscar personalidades representativas da sociedade civil, dos intelectuais, dos clérigos, dos movimentos sociais, dos trabalhadores e dos empresários. O novo ministério precisa, logo que empossado, de um programa claro e decidido de combate à crise. Ao mesmo tempo e no mesmo compasso, precisamos de uma base partidária coesa, menos dispersa e mais comprometida com o nosso programa e decidida no apoio ao governo. Nos duros embates que se avizinham no Parlamento, o objetivo central é aglutinar uma espécie de base defensiva, em torno de 200 deputados, convictos em impedir, em nome da democracia e contra o golpismo, um processo de impeachment, bem como a aprovação de Projetos de Emendas Constitucionais que retirem direitos.

3. Construir uma Frente Popular

 Os desafios postos pelo atual quadro da luta política impõem aos movimentos sociais, aos partidos políticos progressistas, às entidades estudantis, às denominações religiosas comprometidas com os diretos civis, aos coletivos de cultura e comunicação, aos intelectuais e artistas a construção de uma grande frente política, com a capacidade de galvanizar amplos segmentos da sociedade em torno de um programa de defesa da legalidade democrática e de enfrentamento ao golpe, mas, que seja também de aprofundamento das transformações e de reformas estruturais. 

 O segundo turno da eleição presidencial de 2014, antecedido das mobilizações sociais de 2013, mostrou, na prática, a necessidade da unidade do maior leque possível de forças progressistas, populares, nacionais e democráticas para evitar que a derrota do projeto em curso implique em retrocessos para o país. Diante das grandes chances de vitória de Aécio Neves, militantes dos partidos progressistas, das centrais sindicais, dos movimentos sociais e das entidades de estudantes, mulheres, negros e homossexuais, agentes de cultura e comunicadores arregaçaram as mangas para derrotar os tucanos e eleger Dilma. No final das contas, tiveram um papel decisivo, visto que o resultado final foi apertado.

 A lição que precisamos tirar daquela eleição é que nenhuma força política no Brasil de hoje, isoladamente, tem capacidade, autoridade e legitimidade de enfrentar sozinha a ofensiva das forças neoliberais e a onda conservadora. Assim, com um espírito de unidade, de generosidade e firmeza para derrotar a direita, temos que construir uma frente popular, pactuar um programa de transformações estruturais e reorganizar as forças progressistas para a luta política

 Uma frente com incidência na luta política na atual conjuntura, mas que nas lutas e através do debate político se consolide como portadora de um projeto de transformação que seja uma referência para as organizações da classe trabalhadora. Essa articulação não pode se pautar simplesmente na disputa eleitoral-partidária. Bem mais além das eleições, precisa reunir as mais diferentes formas de organizações populares. Nesse sentido, devem integrar a frente tanto setores que defendem o governo Dilma quanto setores situados no campo da oposição de esquerda. O pacto de ação comum de todos nós é a unidade contra o golpe da direita e uma aglutinação em torno de um programa de defesa das conquistas dos trabalhadores e de uma pauta de reformas. 

 Um programa que tenha entre seus principais eixos a defesa dos direitos dos trabalhadores; a defesa da democracia e da legalidade democrática; a reorientação NACIONAL da política econômica; a resistência frente a essa pauta conservadora que inclui temas como a redução da maioridade penal, Estatuto da Família, Estatuto do Desarmamento; a defesa da soberania nacional, ameaçada por vários projetos que atacam o modelo de partilha e a condição da Petrobras de operadora única do pré-sal; a defesa das grandes reformas estruturais, para democratizar a política, o Judiciário, o Estado e os meios de comunicação, a reforma tributária, a reforma educacional, a reforma do sistema de saúde, a reforma agrária e a reforma urbana.

 Os primeiros passos de construção da Frente Popular já foram dados. Várias reuniões têm acontecido, todas no clima de fraternidade que nossos valores comuns permitem. A mais importante decisão foi a de organizar uma grande Conferência Nacional, no dia 5 de setembro de 2015, em Belo Horizonte (MG), que vai definir um calendário de atividades, aprofundar as elaborações sobre a organização interna e o programa de resistência. 

 Nada disso é fácil de fazer. Mas precisamos fazer tudo isso.

OBS.: Este artigo foi escrito antes das manifestações de agosto e do lançamento da chamada “Agenda Brasil”.


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