domingo, 31 de maio de 2015

A direita e o culto do irracionalismo


Artigo de Bertone Sousa para seu blog pessoal




 Poucas pessoas entenderam quando Marilena Chauí comentou em uma palestra que a classe média é fascista, mesmo que depois a filósofa da USP tenha explicado didaticamente o sentido de sua frase. Marilena partiu de uma definição marxista de classe média para argumentar como seu desejo de tornar-se classe dominante a conduz ao extremismo político, como no Fascismo. Hoje, enquanto vivemos um momento político conturbado, podemos perceber o quanto a classe média brasileira (não aquela que ascendeu socialmente no governo Lula, mas a classe média no sentido tradicional, a quem Marilena se reportou) flerta com ideias autoritárias. Os panelaços contra Dilma são ações exclusivas desse segmento. São eles que vão às ruas protestar contra o governo e falar contra corrupção usando a camisa da seleção brasileira e a logomarca da CBF! São eles quem falam de “doutrinação de esquerda” nas escolas, pedem outro golpe militar e gritam palavras de ordem para expulsar a esquerda do jogo democrático.

 Parte dessa direita quer ser liberal, mas ela não entende que o liberalismo não funciona em países com grandes bolsões de pobreza, por isso sua defesa do fim das políticas sociais não encontra eco na sociedade; ela não compreende que as políticas sociais não são “esmolas”, mas promovem ascensão e reduzem o abismo entre ricos e pobres, além de expandir o emprego e o  aumento dos pequenos empreendimentos. Esse foi um dos principais acertos do governo Lula, e parte considerável dessa classe média não compreende que apenas se mantem nessa posição em decorrência dessas políticas cujo fim advogam.

 A direita que vai às ruas, na verdade, não está insatisfeita com a corrupção (senão não usaria a camisa da CBF), mas com a democracia. O sentimento de derrota é algo com que muitos não conseguem lidar e com a quarta vitória consecutiva do PT numa eleição presidencial o ressentimento saiu às ruas para manifestar nada mais do que ódio incontido: houve um cartaz defendendo feminicídio, bonecos de Lula e Dilma enforcados em um viaduto, entre outras aberrações que só a direita é capaz de fazer. Curiosamente, querem voltar ao espírito de 1964 e falam de um comunismo que não existe mais. Essa direita que lê apenas Veja e compreende apenas os textos prosaicos de Reinaldo Azevedo e Olavo de Carvalho está aquém até mesmo de uma discussão de ideias, porque não tem ideias, apenas papagueia o que lê de seus líderes. Foi assim que Lobão ascendeu a uma posição de destaque em seu meio. Não importa se você nunca leu nada, ser anti-petista já te projeta como um expoente e um intelectual entre eles.

 Culto ao irracionalismo. É isso que vemos hoje no Brasil e é isso o que essas manifestações representam. Numa entrevista ao Jornal Brasil de Fato, a historiadora da USP Maria Aparecida de Aquino teceu algumas considerações importantes sobre as causas do golpe de 1964 e as posturas da direita atualmente. Vou reproduzir alguns trechos da entrevista e retorno a seguir:


Enquanto você tem nos países considerados avançados, como Inglaterra, França, Alemanha, uma determinada caracterização das elites, na medida em que não existe um distanciamento tão grande entre aquele que pertence à elite e aquele que está alijado na sociedade, no Brasil e em outras nações, você tem uma distância imensa. Existem nações em que o menor salário e o maior não ultrapassa dez vezes. Aqui não dá para mensurar quantas vezes ultrapassa. Consequentemente esse distanciamento tão grande faz com que essa elite nossa não seja tão permissiva.

Ela não admite, ela não é democrática. Ela é cruel, mesquinha. No momento em que ela diz “não podem se sentar à mesa”, ela está negando o próprio desenvolvimento. Porque é do acesso dessas pessoas a bens que elas não teriam, e a possibilidade que elas teriam que, inclusive, você tem o maior desenvolvimento do país. Quanto mais gente consumindo, partilhando, mais o país será desenvolvido. Nossa elite nega inclusive o desenvolvimento. O seu próprio desenvolvimento. É predatória, talvez seja o melhor adjetivo para ela.



[…]

Hoje pouca coisa [mudou]. Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em 1964. As elites não evoluíram, não avançaram. Enquanto o Brasil mudou muito, para melhor, um país que inclui muito mais pessoas, e não só por causa dos últimos anos, vem num processo de inclusão muito importante. A realidade que vivemos hoje está a léguas de diferença da realidade de 50 anos atrás. Talvez a única que que persista é uma atitude semelhante das elites, infelizmente.

 […]

Quando você analisa as elites que estavam posicionadas em 1964 elas são claramente golpistas. Elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem, para sua destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo.

Hoje você tem uma elite que tem um pouco de receio. Ela tem um pouco de receio de dizer “para nós acabou a brincadeira, a bola é minha e não brinco mais” e assumir uma caracterização abertamente golpista. Não que ela não flerte. Não que ela não seja capaz de embarcar em um aventura terrível, pela forma como age, pelas considerações que ela faz.

Um exemplo foi quando a presidenta Dilma se elegeu. Ela teve uma capacidade eleitoral bastante grande no Nordeste. Quando você olha as redes sociais falando dos nordestinos, você vai ver a cara dessa elite. Ela é exatamente aquilo. Ela começa a dizer: “é esse tipo de gente que elegeu, e nós somos melhores”. Ela tem condições, desejo e vontade de flertar abertamente [com o autoritarismo].

Ou seja, hoje você tem um processo ou uma proposta de inclusão social, que de uma maneira ou de outra dá o acesso às pessoas que não teriam a determinadas instâncias, desde a casa própria até o ensino universitário.

Essa proposta descontentava, como descontenta hoje. A proposta de inclusão. Se o Brasil vive um momento de crise, se é que existe a crise, se ela não é fabricada pelos meios de comunicação, essa crise se deve fundamentalmente a esse descontentamento. São os mesmos grupos, a mesma raiz, que não aceita que as pessoas que não têm nem acesso às migalhas passem a se sentar na mesa.

[…]

Uma coisa é pensarmos no Brasil como um país jovem, que está vivendo um processo de ascensão das chamadas classes médias, quanto a isso não há dúvida, mas é um erro achar que nesse mesmo processo progressivo também terá o mesmo processo no sentido de qual leitura eles terão da realidade brasileira. Infelizmente, a leitura que se tem, na média, é conservadora.

Isso se deve à formação do Brasil, uma escolarização muito baixa. Teve o acesso das pessoas ao ensino, mas é um ensino transformador? Quando se pega a escola pública, que atende à vasta maioria, essa educação transforma sua mentalidade, prepara para os novos tempos? Se tivesse uma imprensa que fosse muito mais plural, também contribuiria para que tivéssemos esses debates ampliados.

 Retornando…

 Recentemente Olavo de Carvalho escreveu em uma rede social que um dos motivos pelos quais a esquerda encontra tanto apoio no Nordeste em termos eleitorais por conta do Bolsa Família é porque os ricos deixaram de dar esmola. Lembrei disso ao ler a entrevista de Aquino quando ela diz as elites querem que os pobres vivam de migalhas. É essa a mentalidade da direita. No Brasil, quando os pobres começam a não depender de esmolas isso começa a incomodar. Eu disse em outro texto que o PT deixou de fazer reformas e investimentos importantes e isso contribuiu para o ajuste fiscal que agora pesa sobre os trabalhadores e reflete em um sensível aumento do desemprego.

 Mas a direita não está preocupada com o desemprego. Nunca esteve. A direita jamais foi às ruas protestar quando dezenas de milhares de pessoas se submetiam a condições degradantes em filas quilométricas por um vaga de emprego durante o governo FHC. Também não está preocupada com a corrupção. Jamais se manifestou contra ela. E a corrupção não é exclusiva do PT, ela está presente em toda a nossa política partidária e nas prefeituras dos mais remotos rincões do país. Ela vai às ruas porque não suporta cotas para negros, porque a desigualdade social foi reduzida demais pra seu gosto e porque não consegue mais vencer eleições presidenciais.

 Sua defesa do liberalismo é ranheta. O liberalismo prega o estado mínimo apenas para os pobres, ele prega que o estado não deve investir em políticas sociais mas deve manter os arrochos salariais e proteger os interesses dos banqueiros e das grandes corporações empresariais, livrando-os da bancarrota sempre que necessário. Ora, o PT não deixou de atender a esses interesses também, porém, não deixou de descontentar quem acha que fazer políticas sociais é fazer comunismo.

 Como disse a historiadora da USP, “ela [a direita] não é democrática. Ela é cruel, mesquinha”. E agora sai às ruas para mostrar essa face que por tanto tempo escondeu sob a máscara liberal. Essa direita quer o apoio da sociedade nas ruas. Mas suas medidas econômicas, tão logo implementadas, perdem essa base de apoio e a sociedade se volta novamente para a esquerda. Ela é mesquinha porque seu projeto econômico é reduzir o papel do estado na economia e isso acarreta desemprego, terceirizações, perdas de direitos trabalhistas; e não é democrática porque, não conseguindo vencer eleições, quer criminalizar a esquerda, quer ditadura, cassação de direitos civis e políticos. Em todo caso, a direita representa o retrocesso, o irracionalismo.

PS.: CLIQUE AQUI para acessar ao vídeo onde Marilena Chauí explica a classe média.

Vinte e seis coisas sobre o ISIS e a al-Qaeda que não querem que você saiba


por Michel Chossudovsky, do Global Research (publicado anteriormente no portal O Diário e no Café Socialista)




1-Os EUA apoiaram a al-Qaeda e as suas organizações filiadas durante quase meio século, desde o apogeu da guerra afegã-soviética.

2-A CIA criou campos de treino para a al-Qaeda no Paquistão. Num período de dez anos, desde 1982 até 1992, uns 35.000 jihadistas procedentes de 43 países islâmicos foram recrutados pela CIA para lutar na jihad afegã contra a União Soviética.

3- Desde a época da Administração Reagan que Washington tem apoiado a rede terrorista islâmica. Ronald Reagan qualificou esses terroristas como “lutadores pela liberdade”.

Os EUA forneceram armas às brigadas islâmicas. Era tudo para “uma boa causa”: a luta contra a União Soviética e a mudança de regime, o que levou à desaparição de um governo secular no Afeganistão. Apenas necessitamos de recordar filmes de propaganda da época, como o célebre Rambo III…

4-Os livros de texto jihadistas foram publicados pela Universidade de Nebrasca. Os EUA gastaram milhões de dólares para fornecer livros de texto repletos de imagens violentas e ensinamentos islâmicos militantes aos estudantes afegãos.

5- Osama bin Laden, fundador da al-Qaeda e homem mais odiado pelos EUA, foi recrutado pela CIA em 1979, mesmo no início da guerra jihadista no Afeganistão contra a União Soviética. Bin Laden tinha na altura 22 anos e foi treinado num campo de treino de guerrilha patrocinado pela CIA.

Segundo o Professor Chossudovsky, a al-Qaeda estava por detrás dos ataques do 11 de Setembro. De facto, o ataque terrorista de 2001 proporcionou uma justificação para desencadear uma guerra contra o Afeganistão, sob o argumento de que Afeganistão era um estado patrocinador do terrorismo da al-Qaeda.

6- O Estado Islâmico ou ISIS era originalmente uma entidade filiada na al-Qaeda, criada pelos serviços de informações dos EUA com o apoio do MI6 Britânico, a Mossad Israelita, os serviços de informações do Paquistão e da Presidência Geral de Informações da Arabia Saudita (GIP ou Ri’āsat Al-Istikhbarat Al-‘Amah (رئاسة الاستخبارات العامة).

7- As brigadas de ISIS estiveram envolvidas no apoio à insurgência que os EUA e a NATO dirigiram contra o governo sírio de Bashar al Assad no decurso da guerra civil na Síria.

8 – A NATO o Estado-Maior da Turquia foram os responsáveis pela contratação de mercenários para ISIS e Al Nusrah desde os inícios da insurgência síria, em Março de 2011. Segundo fontes dos serviços de informações israelitas, publicadas na web DEBKA, esta iniciativa consistiu em: “Uma campanha para recrutar milhares de voluntários muçulmanos em países do Médio Oriente e do mundo muçulmano para lutar juntamente com os rebeldes sírios. O exército turco aloja estes voluntários, treina-os e assegura a sua entrada na Síria”.

9- Há membros das forças especiais ocidentais e agentes dos serviços secretos ocidentais dentro das fileiras do ISIS. Membros das Forças Especiais Britânicas e do MI6 participaram no treino dos rebeldes jihadistas na Síria.

10- Especialistas militares ocidentais contratados pelo Pentágono treinaram os terroristas no uso de armas químicas. “Os EUA e alguns aliados europeus estão utilizando agentes contratados para treinar os rebeldes sírios sobre como assegurar arsenais de armas químicas na Síria, segundo informaram à CNN um alto funcionário dos EUA e vários diplomatas de alto nível”.

11- As brutais decapitações realizadas pelos terroristas de ISIS integram os programas de treino patrocinados pela CIA em campos da Arabia Saudita e Qatar, cujo objectivo é causar pavor e comoção.

12- Muitos dos criminosos recrutados por ISIS são presidiários condenados libertados dos cárceres da Arabia Saudita, país aliado do Ocidente. Entre eles encontram-se cidadãos Sauditas condenados à morte que foram recrutados para se juntar às brigadas terroristas.

13- Na sua luta contra o governo de Al-Assad e as forças shiítas do Hezbollah, Israel tem apoiado as brigadas de ISIS e Al Nusrah dos Montes Golã. Combatentes jihadistas têm-se reunido regularmente com oficiais das Forças de Defesa Israelitas (FDI), bem como com o primeiro-ministro Netanyahu.
O alto comando das FDI reconhece tacitamente que: “elementos da jihad global dentro da Síria, membros de ISIS e Al Nusrah, são apoiados por Israel”.

14- Os soldados de ISIS dentro da Síria trabalham às ordens da aliança militar ocidental. O seu mandato tácito é causar estragos e destruição na Síria e Iraque.

15- Uma prova disso é a foto que ilustra esta matéria, em que o senador estado-unidense John McCain se reúne com líderes terroristas jihadistas na Síria.

16- As milícias de ISIS, que atualmente são o proclamado alvo de uma campanha de bombardeamentos por parte dos EUA e da NATO sob o mandato da “luta contra o terrorismo”, continuam a ser secretamente apoiadas pelo Ocidente. Forças xiitas que lutam contra ISIS no Iraque, tal como membros do próprio exército iraquiano, têm denunciado repetidamente as ajudas militares fornecidas pelos EUA aos terroristas de ISIS, ao mesmo tempo que combatem contra eles.

17- Os bombardeamentos estado-unidenses e aliados não estão apontados contra ISIS, mas têm sim o objectivo de bombardear a infra-estrutura econômica de Iraque e Síria, incluindo as suas fábricas e refinarias de petróleo.

18- O projecto de ISIS de criar um califado faz parte de uma agenda de política externa dos EUA que pretende dividir Iraque e Síria em territórios separados: um califado islamita sunita, uma República Árabe xiita e a República do Curdistão.

19- “A Guerra Global contra o Terrorismo” apresenta-se perante a opinião pública como um “choque de civilizações”, uma guerra entre valores e religiões, quando na realidade se trata de uma guerra de conquista, guiada por objetivos estratégicos e econômicos.

20- Brigadas terroristas de al-Qaeda, patrocinadas secretamente pelos serviços de informação ocidentais, instalaram-se já no Mali, Níger, Nigéria, República Centro-africana, Somália e Iémen para levar o caos a esses países e justificar uma intervenção militar ocidental.

21- Boko Haram na Nigéria, al-Shabab na Somália, o Grupo de Combate Islâmico da Líbia, (apoiado pela NATO em 2011), al-Qaeda no Magreb Islâmico e Jemaah Islamiya na Indonésia, entre outros, são grupos filiados na al-Qaeda que são secretamente apoiados pelos serviços de informações ocidentais.

22- Os EUA estão também a apoiar organizações terroristas filiadas com al-Qaeda na região autônoma Uigure da China. O seu objectivo é desencadear a instabilidade política no oeste da China.

23- ''Os terroristas ''somos nós''': ao mesmo tempo que os EUA são o oculto arquiteto do Estado Islâmico, o sagrado mandato de Obama é de proteger os EUA dos ataques do ISIL.

24- A ameaça terrorista local, como a que temos visto nos EUA ou na Europa, é uma fabricação promovida pelos governos ocidentais e apoiada pelos meios de comunicação com o objectivo de criar uma atmosfera de medo e intimidação que leve a uma anulação das liberdades civis e favoreça a instalação de um estado policial. Por seu lado, as prisões, julgamentos e condenações de “terroristas islâmicos” servem para sustentar a legitimidade do Estado de Segurança Interna dos EUA e a crescente militarização das suas forças de segurança. O objectivo final é inculcar na mente de milhões de estado-unidenses que o inimigo é real e que a Administração dos EUA protegerá a vida dos seus cidadãos. O mesmo podemos dizer de países como França, Reino Unido ou Austrália.

25- A campanha “antiterrorista” contra o Estado islâmico contribuiu para a demonização dos muçulmanos, que aos olhos da opinião pública ocidental se associam cada vez mais com os jihadistas, assentando desse modo as bases para um choque de religiões e civilizações.

26- Qualquer um que se atreva a questionar a validade da “Guerra Global contra o Terrorismo” é qualificado de terrorista vê-se sujeito às leis antiterroristas.

Imprensa obediente e entusiasta

 Com isso estabelece-se um primeiro instrumento para perseguir qualquer tipo de dissidente ideológico, associando-o com o terrorismo. Esta ferramenta poderá ser posteriormente alargada a qualquer outro tipo de dissidência ideológica. Como vemos, a administração Obama impôs finalmente um consenso diabólico com o apoio dos seus aliados e o papel cúmplice do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A imprensa ocidental abraçou esse consenso de forma obediente e entusiasta; o Estado Islâmico é descrito como uma entidade independente, surgida do nada, um inimigo exterior que ameaça os valores “pacíficos e democráticos” do mundo ocidental.

 Foi criado um inimigo que pode aparecer e atuar em qualquer momento, como um fantasma com o qual, quando for mais conveniente, se assusta a população impelindo-a a aceitar qualquer tipo de política repressiva das liberdades e qualquer tipo de ação militarista ao serviço dos grandes poderes ocidentais.

 E, pelo visto, este drama ainda está no seu início…

Escola austríaca de economia vs economia política marxista

O texto abaixo é a tradução realizada por mim e (especialmente) outros camaradas do grupo Marxonomia do artigo ''Response to Readers - Marxian Economics vs Marxism'', do blog Critique of Crisis Theory. Ainda não está completa, há divergências na forma como os tradutores puseram as referências/notas originais e, por decisão consciente, não pusemos os trechos em que o autor fala de Ron Paul, por crer que eles são mais de ordem política e local dos EUA que de descrição sobre a escola austríaca. É preciso, ainda, consertar certos aspectos formais.





 A escola austríaca é um dos ramos da economia marginalista. Difere das outras vertentes marginalistas na medida em que evita o emprego de modelos matemáticos. Por isso se especializam em abordar as ideias marginalistas em uma linguagem comum. Em contraste, a maioria das outras escolas do marginalismo moderno se especializam em construir modelos matemáticos que só são acessíveis para àqueles que já dominam as formas matemáticas mais avançadas.

 O porquê de que a escola austríaca evita a matemática é que, diferentemente da maioria dos economistas profissionais, ela dirige seus argumentos a um público "não-matemático". A escola austríaca - como sugere seu nome- começou na Áustria, originada na Alemanha. Por isto, logo se encontrou em um intenso combate ideológico com os movimentos dos trabalhadores austríacos liderados pelos marxistas. A despeito de que a maioria dos marginalistas simplesmente ignoravam Marx, a escola austríaca esforçava-se em refuta-lo.

 Dada sua ênfase em refutar Marx, os austríacos estão mais familiarizados com as ideias marxistas do que a maioria dos economistas burgueses. Como intelectuais que desfrutam de um diálogo de ideias, de fato estes absorveram certas ideias de Marx, que usaram para o seu próprios fins. Sem dúvida, a teoria econômica austríaca foi influenciada pela escola austríaca marxista austríaca, e esta, por sua vez, fora influenciada pelas ideias da escola austríaca. Examinarei abaixo alguma dessas influências mútuas.

 Como tipicamente fazem intelectuais apaixonados por suas ideias, os guerreiros da escola austríaca adoram levar suas ideias de marginalismo ao extremo. Ao mesmo tempo em que eles têm tido influência considerável sobre a moderna economia convencional burguesa marginalista na esfera da teoria, suas recomendações políticas são tão extremas que eles simplesmente não são levados a sério nos círculos de policy-makers.

 Apesar de a escola austríaca ter se originado na Áustria, nem todos os economistas austríacos são da Áustria. Murray Rothbard (1926-1955), um famoso economista ''austríaco'', era estadunidense. Hoje a maioria dos ''austríacos'', tanto quanto eu posso contar, são do mundo anglófono, em oposição ao mundo germanófono de onde a escola se originou.

 Os economistas austríacos afirmam que o sistema capitalista traz paz, e às vezes se opõem às guerras coloniais, como as guerras dos EUA/OTAN no Iraque e Afeganistão. E eles parecem fazer críticas ''radicais'' dos governos capitalistas e do imperialismo, às vezes denunciando o ''capitalismo monopolista estatal''.

 Alguns esquerdistas têm sido atraídos pelos austríacos às vezes, e os visto como potenciais aliados na luta contra o imperialismo e as guerras que o mesmo traz. Isso é uma tendência perigosa e deve ser combatida. Todos os partidários da economia austríaca são, sem exceções, inimigos da classe trabalhadora.

As teorias econômicas, políticas e ideológicas da escola austríaca

 Quais são as ideias econômicas da escola austríaca, e de onde elas vêm?

 Por volta dos anos 1870, uma nova escola de economistas burgueses surgiu e lançou um assalto extenso sobre a teoria do valor-trabalho da economia política burguesa clássica. Esses economistas incluíam William Stanley Jevons na Inglaterra, Leon Walras na Suíça e Carl Menger, o fundador da escola austríaca, na Áustrua. É interessante que o que se chama de ''revolução marginalista'' tenha ocorrido apenas 3 ou 4 anos depois da publicação do Livro Primeiro de O Capital.

 Marx demonstrou em O Capital que a mais-valia -- lucro, incluindo juro e renda -- surge na base da troca de mercadorias que em média tomam quantidades iguais de trabalho para serem produzidas [5]. Ou o que vem ser a exatamente a mesma coisa, Marx demonstrou que assim como a escravidão ou a servidão feudal, o capitalismo -- mesmo quando as mercadorias são trocadas exatamente por seus valores -- é um sistema de exploração onde os trabalhadores são forçados a realizar trabalho não-pago para a classe dominante. Nada seria o mesmo na economia de novo. O conceito de valor-trabalho tinha de ser banido da economia burguesa de uma vez por todas.

A revolução marginalista e a teoria da utilidade marginal

 Qualquer teoria do valor ''econômico'' começa com o que é conhecido por paradoxo da água e do diamante. O diamante custa uma enorme quantidade de dinheiro, mas não é necessário para a vida. A água, por sua vez, é muito barata -- embora talvez não tão barata quanto deveria ser -- mas é absolutamente necessária para a vida humana. De fato, você não consegue sobreviver mais que poucos dias sem água, mas pode atravessar a vida inteira sem nunca ter um diamante.

 Os economistas clássicos e Marx responderam esse paradoxo explicando que, em média, é preciso muito mais trabalho para achar um diamante e poli-lo do que para achar uma quantidade de água que uma garrafa possa guardar. Uma vez que um diamante representa uma quantidade muito maior de trabalho que uma garrafa cheia de água, o preço de um diamante em termos de dinheiro é muito maior que o preço de uma garrafa de água.

 Isso é ainda mais verdadeiro se substituirmos a água pelo ar. O ar é provido gratuitamente pela natureza -- não é produzido por trabalho humano -- e não tem preço monetário algum. Ainda assim não conseguimos sobreviver sem ar respirável por mais de alguns minutos.

 A economia política burguesa tem estado em profundo recuo de qualquer noção de valor trabalho desde 1830, mas os economistas burgueses ainda não substituíram a teoria do valor trabalho da economia clássica com qualquer teoria alternativa coerente [6]. Ao invés disso, os pós-ricardianos se limitaram a explicar que os preços são determinados pelos ''custos de produção''.

 Mas o que determina os custos de produção de determinada mercadoria? Por que o custo de produção das mercadorias incluindo o trabalho que é necessário para produzir a mercadoria em questão -- ou, o que acaba sendo a mesma coisa -- o preço das mercadorias é determinado pelos preços das mercadorias?  Se os economistas burgueses não pudessem fazer nada melhor que isso, a superioridade da teoria aperfeiçoada do valor-trabalho de Marx seria tão óbvia que o movimento dos trabalhadores teria uma enorme vantagem no que o ex-presidente cubano Fidel Castro chamou de ''batalha das ideias''.

Marginalismo ao resgate

 Carl Menger na Áustria, Leon Walras na França e William Stanley Jevons na Grã-Bretanha propuseram o que eles consideravam ser uma resposta alternativa coerente ao paradoxo da água e do diamante. Se eu estou num deserto morrendo de sede, eu iria -- assumindo que tenho dinheiro -- com certeza pagar mais por uma garrafa de água que salvasse a minha vida que por um diamante. Sob tais circunstâncias, minha valoração subjetiva da água seria muito maior que minha valoração subjetiva dos diamantes. Mas normalmente tenho abundância de água e se estou com sede simplesmente vou a uma torneira e obtenho outra garrafa de água por um custo nominal. Portanto minha valoração subjetiva de água adicional é normalmente bem baixa.

 Mas uma vez que diamantes são bem escassos, minha valoração subjetiva de diamante adicional comparado a uma garrafa extra de água será provavelmente muito alta, com certeza muito mais alta que minha valoração subjetiva de uma garrafa de água adicional. Eu irei sob circunstâncias normais certamente me dispôr a pagar muito mais dinheiro por um diamante adicional -- assumindo que eu sequer quero um diamante -- que do que por uma garrafa adicional de água. Portanto, Menger, Walras e Jevons concluíram, o valor de uma mercadoria é determinado não pelo ser valor de uso em si mas por seu valor de uso -- ou utilidade -- à margem.

 Enquanto a utilidade global de um diamante para alguém, comparado com a água, é bem baixa, a utilidade de um diamante adicional é normalmente bem alta. Portanto, argumentaram os fundadores da escola marginalista de economia, o valor de uma mercadoria é determinado não pela sua utilidade ou pela quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la e sim pela sua utilidade marginal.

 Diferente do conceito de valor trabalho, que é objetivo, o conceito de utilidade marginal, como foi chamado, é subjetivo. Se eu pessoalmente gosto ou odeio diamantes, por exemplo, não tem efeito sobre a quantidade de trabalho medida em termos de tempo que eles em média, sob as condições correntes de produção, levam para serem produzidos. Pode ser que eu realmente odeie diamantes, e mesmo que eu tivesse muita água estivesse disposto a pagar mais por uma garrafa de água adicional que por um diamante adicional. Mas isso é pouco provável. A maior parte das pessoas, sob condições normais, fariam uma valoração subjetiva maior sobre um diamante adicional do que fariam sobre uma garrafa de água adicional.

 Diferentemente do conceito de valor-trabalho, que parte da produção, a teoria da utilidade marginal começa com o consumo. Isso fez com que N. I. Bukharin, em seu livro contra os marginalistas, propusesse que a ascensão da teoria da utilidade marginal na economia burguesa refletia a visão dos capitalistas que se retiraram da produção -- os rentistas, ou capitalistas monetários -- em oposição aos capitalistas industriais e comerciais.

O problema com o conceito de utilidade marginal

 Marx definiu o valor como uma substância social homogênea -- trabalho humano abstrato. Todas as tentativas de reduzir utilidade -- valor de uso -- a uma substância social abstrata similar falharam. Os marginalistas convencionais que se tornaram conhecidos como ''escola neoclássica'' -- sendo que eram na verdade a negação da escola de economia clássica burguesa -- então se satisfizerem em construir modelos matemáticos do comportamento do consumidor. Nesses modelos, os consumidores fazem escolhas entre bens alternativos escassos de acordo com suas necessidades subjetivamente determinadas por um bem de tipo particular. Entretanto, essa ''solução'' não estava realmente aberta para a escola austríaca por causa de sua natureza ''não-matemática''. Portanto eles permaneceram presos à utilidade marginal.

A teoria austríaca do valor excedente -- ou juro 

 A fim de descrever -- em vez de explicar -- o valor excedente, os economistas austríacos combinam utilidade marginal e tempo. Enquanto os modernos economistas burgueses, incluindo os austríacos, explicam os lucros como os ''salários'' de capitalistas ativos, e por um trecho considerável a renda dos donos de terras como uma recompensa por ''melhorar'' a terra, isso deixa inexplicado o juro ganho por capitalistas monetários ociosos. De onde pode o juro vir senão do trabalho não pago daqueles que trabalham?

 Os economistas austríacos ''explicam'' que nós subjetivamente valoramos bens que estão imediatamente disponíveis mais do que aqueles que somente estarão disponíveis no futuro. Por exemplo, vamos assumir que eu preciso de um casaco novo para ficar quente nesse inverno. Eu não vou pagar mais por um novo casaco que eu possa levar para casa de uma vez, do que um novo casaco que não estará disponível por mais um ano? Se eu não conseguir o casaco por mais um ano, eu vou ter que usar o meu velho casaco desgastado para ficar quente nesse inverno. Eu poderia estar disposto a pagar 100 dólares se o casaco está imediatamente disponível para que eu possa usá-lo neste inverno, mas talvez apenas 90 dólares se o casaco for entregue somente daqui a um ano. Eu ''desconto'' minha avaliação subjetiva do casaco devido a um a partir de agora em comparação com um casaco que eu possa usar hoje sob essas premissas a uma taxa de 10%. De acordo com os economistas austríacos, a diferença na minha avaliação subjetiva de um bem que eu posso receber em comparação com um bem que não estará disponível até algum momento no futuro é a taxa de juro.

 Os membros ''proprietários'' da sociedade -- capitalistas -- tem duas escolhas. Eles podem consumir agora, ou abster. Se se abstiverem, terão um padrão de vida menor agora mas um maior no futuro. Numa ''sociedade livre'' -- em oposição a uma sociedade democrática onde as ''massas'' podem interferir nas escolhas livres dos ''proprietários'' -- cabe aos proprietários individuais ou capitalistas decidir o quanto eles irão poupar para o futuro ao invés de consumir no presente.

 A função da taxa de juros na perspectiva austríaca

 De acordo com os austríacos, o propósito da taxa de juros é equalizar a oferta de poupança com os investimentos. Se a sociedade - os capitalistas- deseja poupar mais, considerando as circunstâncias como constantes, a taxa de juros cairá. Isto mostra que os capitalistas, como consumidores, estão descontando subjetivamente o valor dos bens de consumo disponível no futuro em comparação com os bens disponíveis no presente, a uma taxa de juros decrescente; fazem isto quando os bens de consumo estão ficando menos escassos em relação com as suas necessidades humanas subjetivamente determinadas e imediatas. A poupança e o investimento estão se equilibrando a uma taxa de juros decrescente.

 A partir dessas condições, de acordo com a economia austríaca e o marginalismo em geral, a taxa decrescente de juros significa que a sociedade tem uma necessidade decrescente de meios de produção adicionais, o que redundará numa menor criação de meios de produção.

 Se, ao contrário, os capitalistas desejam poupar menos, a taxa de juros, permanecendo tudo constante, se elevará. Se os capitalistas desejam poupar menos, isto significa que estão descontando subjetivamente o valor dos bens de consumo disponíveis no futuro a uma taxa de juros crescente. Segundo os austríacos, isto significa que os "bens" e o "capital" necessários para produzi-los estão se tornando mais escassos em relação as necessidades humana subjetivamente determinadas e imediatas. A poupança e o investimento estão sendo nivelados a uma taxa de juros crescente. Portanto a taxa natural de juros subirá. A taxa mais alta de juros provocará um ritmo mais acelerado no processo de geração dos meios de produção - reprodução ampliada.

 De acordo com os austríacos, contando que prevaleça a liberdade e a taxa de juros do mercado não seja diferente da sua taxa natural, prevalecerá uma proporção correta entre - usando uma terminologia marxista- o departamento I, o departamento da industria que produz os meios de produção, e o departamento II, o departamento da industria que produz os meios de consumo pessoal. Aqui ocultando-se atrás dos argumentos marginalista, nos encoramos com um velho amigo, os diagramas de Marx sobre a reprodução simples e ampliada do volume II d'o "capital..

 Inevitavelmente, os capitalistas industriais individuais podem tomar e sem dúvida tomarão decisões equivocadas sobre a questão de se produzir itens de consumo no lugar de bens de capital. Isso ocorre todos os dias da semana. Mas e se mercado não recompensar aqueles capitalistas industriais que se demonstraram competentes em determinar quais são as demandas do mercado, enquanto punem aqueles que não determinaram? Empregando um pouco a lei da seleção natural da biologia, explicam os economistas austríacos, os capitalistas industriais que geralmente tomam decisões acertadas acerca do que deseja o mercado serão "selecionados" para viver um dia a mas, enquanto aqueles que tomaram as decisões equivocadas sobre o quê produzir serão eliminados.

 De acordo com os economistas austríacos, cada capitalista individual desejará incrementar a produção da mercadoria produzida até o ponto em que a sua taxa de lucro individual caia abaixo da taxa de juros. Segundo a teoria austríaca, a economia estará em perfeito equilíbrio se a taxa de lucro realizada por cada capitalista se igualar a taxa de juros do mercado, e se esta taxa de juros do mercado, por sua vez, tiver correspondência com a taxa natural de juros.

 Em um mundo real os economistas austríacos admitem que nunca será exatamente assim, mas os austríacos sustentam que o mercado é tão eficiente que, assumindo que o governo não interfira e os sindicados não existam, a economia nunca pode se afastar muito dessa posição de equilíbrio.

A Lei de Say e a teoria austríaca das crises 

 Enquanto que os economistas neoclássicos aceitam a Lei de Say, ao menos implicitamente, os austríacos a proclamam abertamente. Os economistas austríacos dão muito crédito para o Say por ter descoberto a impossibilidade de uma superprodução de mercadorias. Recordemos que segundo Say, os bens são comprados com bens - sendo o dinheiro um simples instrumento técnico para facilitar a circulação de mercadorias. Contudo, Say admitia uma parcial superprodução de certas mercadorias respaldada por uma subprodução de outras. Portanto, a Lei de Say é compatível com uma teoria das crises fundada em uma produção desproporcional.

 Mas os economistas austríacos sustentam que enquanto a taxa de juros de mercado coincidir com a taxa de juros "Natural, não pode haver nenhuma desproporção entre o departamento I e II.

 Mas o que aconteceria se a taxa de juros de mercado se desviasse da taxa de juros natural? O que aconteceria se uma instituição diabólica como o "banco central" - chamaremos de o Sistema da reserva federal- fosse criada por um governo democrático que, suscetível a influência das massas, está determinado a manter a taxa de juros de mercado abaixo da taxa de juros "natural"?

A definição austríaca de inflação 

 Enquanto que a maioria dos economistas que definem a inflação como uma situação de preços crescentes, os austríacos rechaçam essa definição comum. Segundo eles, a economia está em um patamar de inflação sempre que a taxa de juros de mercado encontra-se abaixo da taxa natural de juros, sendo que esta é a que determina a oscilação dos preços.

 Os economistas austríacos "explicam" que gente bem "intencionada" e que está desinformada sobre economia geralmente apoia políticas de redução da taxa de juros para lograr alto crescimento econômico e "pleno emprego". Isto incluem os pequenos empresários e camponeses, que muitas vezes encontram-se endividados no processo de manter suas pequenas empresas competitivas frente aos outros concorrentes muito maiores e eficientes. Naturalmente este estrato social está a favor de políticas que reduzem a taxa de juros. Exatamente por isso que a democracia é perigosa.

 Se o governo e as suas "autoridades monetários" expandem a oferta monetária de maneira tal que cause a queda da taxa de juros abaixo da taxa natural, os capitalistas individuas serão induzidos ao erro de produzir excessivamente bens de capital em comparação com uma a baixa absorção de consumo pessoal.

 Segundo a teoria austríaca, os capitalistas individuais não têm meios de distinguir a disparidade entre a taxa natural e a taxa de juros de mercado. Ao que concerne aos capitalistas, existe somente uma taxa de juros, a taxa de juros do mercado. Como já fora explicado, segundo os austríacos - e os marginalistas em geral- os capitalistas individuais incrementarão a produção da mercadoria particular que cada um produz até o ponto em que sua taxa de lucro individual iguale a taxa de juros de mercado. Portanto, sustentam os austríacos, se a taxa de juros de mercado é inferior a taxa de juros natural, os investimentos serão superestimados.

Produção assimétrica

 Em termos marxistas, o departamento I, o departamento da produção de bens de capital, se expandirá excessivamente em relação ao departamento II, que produz os bens de consumo pessoal. De acordo com o arcabouço teórico austríaco, isto é uma "produção assimétrica" ou um "mau investimento". Não há uma superprodução - a Lei de Say nunca pode ser violada - a não ser que haja uma produção desproporcional. Tal produção desproporcional, ou assimétrica, segundo a teoria austríaca, é o resultado inevitável da inflação tal como os austríacos a definem - uma situação em que a taxa de juros do mercado encontra-se abaixo da taxa de juros natural.

 Uma vez que a "produção assimétrica" se desenvolve, uma crise torna-se inevitável. Em tal situação, a única política correta é "fazer das tripas o coração" permitindo que as taxas de juros subam mais rapidamente possível até o ponto de convergência com a taxa natural, aplacando a crise o mais breve possível.

 Segundo a escola austríaca, nenhuma política de expansão monetária pode evitar que a taxa de juros de mercado se iguale a taxa natural no longo prazo. Se o banco central tentar resistir a subida das taxas de juros, a instituição se verá obrigada a introduzir mais dinheiro no mercado. Se persistirem, o resultado será uma inflação galopante, a exemplo do tipo de hiperinflação que acometera a Alemanha em 1923, a onde a moeda nacional perdera todo seu valor.

 Os austríacos sustentam que quanto mais tempo a economia se mantem em um estado inflacionário - a taxa de juros de mercado permanecendo abaixo da taxa natural- mais assimétrica se torna a produção, agravando a inevitável crise.

 Portanto, sustentam os austríacos, a solução a uma ameaça de crise é sempre uma forte subida da taxa de juros. Ao incentivar a inevitável "liquidação", explicam os economistas austríacos, a crise será amortizada e a sua intensidade reduzida.

 Mas os bancos centrais, vulneráveis a pressão popular - ou por temê-las- tentam manter a baixa da taxa de juros para protelar a crise e minimiza-la. Segundo os austríacos, a rápida redução da taxa de juros levada a cabo pelo FED e outros bancos centrais durante a crise dos últimos anos é um exemplo exato do que não se deveria fazer.

 Em seu lugar, argumentam os economistas austríaco e seus seguidores, as taxas de juros deveriam ser desobstruídas e elevadas naturalmente até que se coincidam com a taxa natural. Os economistas austríacos concebem que isto significaria que a execução hipotecária de casas e fazendas, as bancarrotas de empresas e o desemprego seriam muito maiores. Porém, explicam os austríacos e seus seguidores como o congressista Ron Paul, isto é necessário. De acordo com os austríacos, esta é a única maneira de reparar a "produção assimétrica" que está por trás da crise.

 Porém será que essa política brutal é compatível com a democracia? Obviamente que não, e é precisamente por isso que os defensores da economia austríaca querem se desfazer dela.

 A cura austríaca das crises 

 Podem as crises econômicas, segundo os austríacos, serem eliminadas do sistema capitalista? Enquanto Marx diz não, os economistas afirmam o contrário. Porém para liquidar com as possibilidades de crises, segundo os economistas austríacos, a interferência estatal na economia deve cessar. Acima de tudo, os bancos centrais - as autoridades monetárias- devem ser abolidos. O dinheiro como qualquer outra "mercadoria" deve ser produzido somente por capitalistas. Não deve haver autoridade monetária e nenhuma espécie de "planificação central" da oferta monetária.

 Se a "planificação centralizada" da oferta monetária for abolida, sustentam os austríacos, a taxa de juros de mercado não se desvinculará da taxa natural. Com a taxa de juros igualada à taxa natural, a produção "assimétrica" não seria mais possível.

 Por exemplo, aos capitalistas privados deveria lhes permitir acunhar moedas de ouro sem que nenhuma outra moeda de ouro em particular seja declarada como curso forçado. Os bancos comerciais individuais deveriam poder emitir suas próprias notas, um processo semelhante ao que ocorrera no chamado "sistema de banco livre" que prevalecera nos EUA antes da guerra civil de 1861-65. O uso de moedas de ouro deveria ser fomentado e o padrão ouro deveria ser restabelecido.

 Se isto for colocado em prática, sustentam os austríacos, a concorrência entre as várias entidades capitalistas criadoras de dinheiro - por exemplo, as companhias mineradoras e os bancos comerciais que emitem notas- assegurariam que as melhores moedas prevaleçam, tal como a livre concorrência entre os produtores de outros de "bens" assegura que os melhores produtos prevaleçam. Os que emitem "dinheiro" inferior se veriam privados do negócio tal como se sucede com os produtores de outras mercadorias inferiores.

Uma contradição na economia austríaca ( e de Friedman) 

 Tanto os austríacos como os monetaristas se opõem fortemente ao sistema bancário de reservas fracionárias - dinheiro creditício criado pelos bancos. Embora os austríacos acreditem que a produção de dinheiro deva ser conduzida pelas mãos dos capitalistas privados, eles não creem que o dinheiro criado privadamente deveria incluir alguma forma de dinheiro creditício. Segundo os austríacos, toda forma de dinheiro creditício é nefasta porque leva a taxa de juros de mercado a uma tendência de queda em relação a taxa natural.

 Mas os austríacos e os "friedmanitas" são incapazes de explicar exatamente como eles irão proibir a criação de dinheiro creditício em uma economia capitalista "livre". Caso uma leia determine que os bancos comercias mantenham uma reserva de 100% em relação aos seus depósitos na forma de papel-dinheiro criado pelo estado - Friedman- ou ouro - austríacos-, esta lei regulatória não representaria o mesmo tipo de intervenção estatal no sistema capitalista que os austríacos e monetaristas tanto rechaçam?

 Mesmo se sancionassem uma lei que exigisse 100% de reservas para respaldar os depósitos bancários, o que impediria os bancos comerciais - e outras instituições financeiras capitalistas- de emitir papel comercial ou bônus que funcionariam na prática como dinheiro creditício, isto é, formas de dinheiro que atuam como meios de compra e meios de pagamento?

 Qualquer tentativa de suprimir o crédito da maneira que advogam os austríacos e monetaristas significaria reduzir a economia a uma verdadeira camisa de força. Requiriria uma enforme policia financeira que teria que examinar minunciosamente cada transação para assegurar-se de que nenhuma nova forma de "crédito circulante" seja criada. E o mundo dos negócios sempre encontraria maneiras de criar crédito de uma forma ou de outra. Afinal, o mercado sempre vence, não?

O lado revolucionário do sistema de crédito 

 Na realidade, tanto a escola austríaca como a de Friedman percebem que o crédito e o sistema de crédito em geral permitem ao sistema capitalista desenvolver suas forças produtivas além de seus limites organicamente determinados e que um tal desenvolvimento sempre redunda, fatalmente, em alguma crise. Tanto os austríacos como os monetaristas, enquanto que se posicionam como os defensores viscerais do capitalismo, na realidade se opõem em relação ao lado revolucionário do capitalismo, seu impeto inconsciente em estabelecer um modo de produção superior, porém sem exploração. Confrontados com este lado revolucionário do capitalismo, tanto os austríacos quanto os monetaristas abandonam o liberalismo econômico e se refugiam nas formas mais draconianas e reacionárias de intervenção estatal.

Diferenças entre as teorias das crises marxista e austríaca 

 Apesar do visão austríaca, as crises do capitalismo são todas engendradas por crises de superprodução geral relativa de mercadorias. Tanto o departamento I como o departamento II super-produzem. Marx demonstrou que o juro é só uma porção do lucro - juros mais o lucro, o que em si é uma fração do total do mais-valor - lucro mais renda.

 E o que é o mais-valor? É o trabalho não pago realizado pelos trabalhadores produtivos - todos os trabalhadores que produzem mais-valor- sob pena de inanição, para aqueles que monopolizam os meios de produção na sociedade capitalista - a classe burguesa. Enquanto que as mercadorias têm preços naturais - preços de produção, ao redor dos quais flutuam os preços de mercado-, o mesmo não acontece com a taxa de juros.

 Enquanto que é certo que a taxa de juros não pode, a longo prazo, igualar ou superar a taxa de lucro sem que os juros possam ser consideravelmente inferiores.

É a taxa de juros determinada pela taxa de lucro? 

 Muitos marxistas sustentam que a taxa de juros está determinada pela taxa de lucro. Enquanto que há uma certa verdade nisto, já que a taxa de juros não pode no longo prazo ser mais alta ou sequer se igualar a taxa de lucro, esta afirmação não explica o porquê, em um certo momento, a taxa de juros é uma porcentagem dada pela taxa de lucro e não por outra qualquer.

 De acordo com Marx, a taxa de juros pode ser de 10 porcento da taxa de lucro, 25 porcento da taxa de lucro, 50 porcento, 75 porcento etc. Se existe uma porcentagem fixa da taxa de lucro a qual condicionaria a taxa de juros, poderia haver alguma justificação para falar de uma taxa natural de juros ao redor da qual flutuam as taxas de juros do mercado. Mas, de fato, não existe uma porcentagem fixa da taxa de lucro ao redor do qual flutuem as taxas de juros.

O que realmente determina a taxa de juro?

 No volume III de "O Capital", Marx dá exemplos que mostram que as taxas de juros na Inglaterra eram mais sensíveis à mudanças de acordo com o tamanho da reserva de ouro mantida pelo Banco da Inglaterra.

 Em última análise, a taxa de juro tenderá para o ponto onde a oferta e demanda por ouro - dinheiro material - são iguais. Esse é o mais próximo que podemos chegar à uma "taxa natural de juro". (8) Todas as outras coisas permanecendo iguais, um nível relativamente alto de produção de ouro - relativa à produção de outros commodities - significará uma baixa taxa de juro relativa à taxa de lucro, enquanto que um nível relativamente baixo de produção de ouro significará um alto nível de taxa de juro relativa à taxa de lucro.

 Ou, mais precisamente, uma alta taxa de produção de ouro relativa à produção total de mercadorias significará que as taxas de juros tenderão à reduzir, enquanto uma baixa taxa de produção de ouro relativa à produção total de commodities significarão que as taxas de juros tenderão a crescer.

 Uma situação onde a oferta e demande por outro - dinheiro material - são igualadas por uma taxa de juro igual ou maior que a taxa de lucro não consegue se sustentar. Nesse caso, a produção de ouro deve crescer ou à produção de commodities deve cair, ou, como é no mundo real, uma combinação de ambos ocorre. Isso é exatamente o que vemos durante crises de superprodução.

 Graças a crise, a taxa de juros é mantida a longo prazo, abaixo do limite superior demarcado pela taxa de lucro, assegurando um lucro empresarial positivo e, portanto, um incentivo real para que um setor da classe capitalista atue como produtor de mais-valia.

A taxa de juros e a superprodução

 Com efeito, quando está ocorrendo uma superprodução geral de mercadorias, a taxa de juros tenderá a subir em relação a taxa de lucro, supondo que o mais-valor produzido seja realmente realizado. Semelhante situação não pode se manter e, cedo ou tarde, deve culminar-se numa crise que reduza uma vez mais a taxa de juros.

A taxa de lucro e a superprodução 

 Uma crise é um freio violento a uma situação de superprodução generalizada. A situação de superprodução é "curada" por um período de subprodução generalizada. Durante o período de subprodução generalizada de mercadorias, a relação entre a produção do ouro e a produção de outras mercadorias, é tal que a taxa de juros tende a baixar em relação ao nível que teria a taxa de lucro, se o montante total de mais-valor estivera sendo realizado.

 As massas, para usar uma terminologia usualmente empregada pelo congressista Ron Paul para denominar a classe trabalhadora e outros trabalhadores que não "compreendem" as leis do capitalismo, exercem pressão sobre o governo e os bancos centrais para tomar medidas que evitem as crises, e quando isso se evidencia impossível, para acelerar a recuperação. Isto é o que vemos atualmente. As "massas" estão sendo estúpidas ou irresponsáveis? De modo algum!

 Eles estão se esforçando, instintivamente, para liberar as forças produtivas de seu caráter como capital. A única vantagem que os marxistas têm sobre os outros trabalhadores é que eles entendem conscientemente as leis do capitalismo das quais os trabalhadores estão tratando corretamente, ainda que inconscientemente, de libertar-se.

 Hoje vemos que as "massas" estão se tornando impacientas com o fracasso da atual 'recuperação" cíclica para gerar empregos. O que maioria das autoridades na maioria dos países imperialistas afirmam é que a taxa de contração do emprego está decaindo. Naturalmente o povo está afirmando - com bastante precisão- que isso não é suficiente!. As massas, naturalmente, estão pressionando para que o governo e o banco central - apesar de tudo, não é o banco central um órgão do governo democrático que representa o povo?- produzam uma recuperação que realmente gere empregos em quantidade suficiente para cessar o desemprego de uma vez por todas.

 Mas o congressista Ron Paul, como estudioso da escola austríaca, se queixa de que, na medida em que o governo - o sistema de reserva federal, o FED- implementa medidas para acelerar a recuperação, haveria assim uma interferência, impedindo a necessária "liquidação", e no caso do FED, este estaria forçando a taxa de juros de mercado abaixo da taxa natural. De acordo com Ron paul e outros seguidores da escola austríaca, isto levaria a somente a um agravamento da "produção assimétrica.

 A solução para as crises, segundo Ron Paul e os austríacos, é não manter a taxa de juros "baixa por um período extenso de tempo", mas sim manter "as taxas de juros elevadas por um período extenso de tempo". Somente desta maneira a produção assimétrica, que causara a crise em primeiro lugar segundo a perspectiva austríaca, poderia ser eliminada de uma vez por todas.

Há alguma verdade na teoria austríaca das crises? 

 Enquanto prevalecia o padrão ouro - uma situação em que os bancos centrais tinham que resgatar suas notas com uma certa quantidade fixa de ouro - os bancos centrais sofriam uma drenagem nas reservas de ouro caso preservassem as taxas de juro abaixo do ponto em que oferta e a procura de ouro fossem iguais. Se as taxas de juro estiverem abaixo deste ponto, o banco central teria que reduzir sua própria "demanda" e, por conseguinte, incrementar a "oferta" disponível para o "setor privado, esgotando suas próprias reservas de ouro. Enquanto perdurava o padrão ouro, os bancos centrais não podiam fazer isso por muito tempo. Se fizessem, haveria uma "corrida" para as suas reservas de ouro, vendo-se, assim, despojados do seu próprio ouro.

sábado, 30 de maio de 2015

Teorias sobre a causa da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude


 O artigo abaixo é de autoria de Alípio de Sousa Filho, Doutor em sociologia pela Sorbonne (Paris V) e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN, e foi publicado em JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Educação e diversidade sexual: problematizando a homofobia na escola brasileira. Brasília: Ministério da Educação (Coleção Educação para Todos). Dentre os comentários que tenho a fazer sobre ele estão os de que 1) há um uso excessivo de argumentos retirados da psicanálise, que tenho visto ser cada vez mais criticada e relegada à posição de pseudociência 2) não me parecer convincente quanto à não ser haver uma causa específica para a homossexualidade e 3) não ser capaz de responder (ou ignorar) evidências de uma base biológica da homossexualidade, tal como essa aqui (para outras referências de argumentos biológicos sobre a homossexualidade, ver esse artigo).



 A colonização do imaginário e a invenção da causa específica da homossexualidade 


 Pretendemos, neste artigo, tratar do preconceito em torno da homossexualidade, considerando algo de sua lógica interna, nem sempre percebida como tal. Não é desconhecido de ninguém que teorias e “pesquisas” de muitos tipos procuram causas (biológicas, psicológicas, sociais, “espirituais”) para a homossexualidade, deixando entender que os indivíduos concernidos na prática da homossexualidade – ditos homossexuais – têm qualquer coisa a menos (ou a mais) que os outros (um gene, um pedaço do cérebro, hormônios, um instinto congênito ou adquirido, etc), são indivíduos que sofreram algum “desvio” ou “suspensão” no chamado “desenvolvimento sexual normal” ou “inversão quanto ao objeto sexual”. Estas últimas sendo crenças muito difundidas, ainda hoje, entre psicólogos e psicanalistas – confundindo-se aí todas as correntes –, exceções isoladas à parte.

 A tese que sustentaremos aqui é a que uma longa história de colonização pelo preconceito, praticada sobre o imaginário de diversas sociedades, representando a homossexualidade como uma exceção ou como um desvio ou inversão no quadro de uma pretendida normalidade heterossexual, levou a que se buscasse a causa específica que produziria a homossexualidade – e não importando se esta tenha sido pensada, variando as épocas, como vício, pecado, crime, doença, perversão ou como um desvio no desenvolvimento sexual. Evidentemente, uma história que não deixou de marcar os espíritos... mesmo daqueles bem intencionados. E se sabemos que, desde a metade do século XIX, a homossexualidade não é mais tratada como “contrária à natureza” – a não ser em certos tratados de medicina legal, artigos de códigos penais ou discursos religiosos –, permanece, até hoje, a mesma sempiterna visão de que se trata de uma “tendência sexual” para cuja causa certos fatores devem ter influído, tornando-se matéria de etiologia médica, objeto de arqueologias do “inconsciente” ou, como mais recentemente, assunto de especialistas das áreas da biologia, neuroanatomia, neurociência. Num ou noutro caso, estamos no reino das pretendidas causas. O reino da ideologia [1] e do preconceito. As teorias variam – entre ideias propostas por religiões como o espiritismo (a homossexualidade seria cármica) e teses sustentadas por correntes das psicologias, passando por opiniões de biólogos –, mas a conclusão é sempre a mesma: a homossexualidade seria um fato, na vidado indivíduo afetado, que se tornaria possível explicar por alguma causa específica. Nossa reflexão é igual em conclusão à posição dos antropólogos Peter Fry e Edward MacRae, quando, em texto em que trataram do tema “que é a homossexualidade”, referindo-se brevemente ao assunto das “causas”, escreveram: “nenhuma das teorias existentes sobre as causas da homossexualidade nos convence e a nossa tendência é de tratá-las todas, sem exceção, como produções ideológicas” (FRY; MACRAE, 1983:15).

 Neste trabalho, faremos a crítica a teorias, que, de tão difundidas, tornaram-se verdadeiro senso comum social: as teorias das psicologias – a psicanálise aí incluída – e as produzidas na onda contemporânea do determinismo biológico em suas versões mais atuantes: a sociobiologia e a psicologia evolucionista. Trata-se, necessariamente, da visão de um cientista social, mas igualmente subjetiva e que não se esconde como uma visão política do problema. No combate ao preconceito (na ciência ou fora dela) e à violência que ele implica, nenhum cientista pode reivindicar objetividade e neutralidade científicas.

 Poder-se-á objetar nossa crítica dizendo que nenhum preconceito há em se pensar uma gênese específica da homossexualidade – Freud já tratava do assunto, acreditando numa “gênese psíquica da homossexualidade” (FREUD, 1910 [1970: 91 e segs.]) –, assim como se admitiria uma gênese também particular para a heterossexualidade. Nos dois casos, tratar-se-ia sempre de escolha objetal e, igualmente, existiriam aí causas implicadas: para cada um dos casos, as escolhas estariam fundadas em determinações (inconscientes), ignoradas pelo próprio sujeito, que se diferenciariam quanto apenas aos objetivos sexuais, julgamentos de valor não podendo ser aplicados a nenhum dos casos. Em outra ocasião (SOUSA FILHO, 2003b), já nos valemos desse argumento, mas ele é frágil. Ora, a questão que não aparece aí é que, como a priori o preconceito sobreatua em certas visões teóricas, as supostas determinações (inconscientes, sociais, culturais) da homossexualidade já são, de antemão, encaradas como determinações de um “problema”, de uma “inversão”, de um “desvio”, de uma “perversão”, isto é, de uma escolha não conforme a ideologia da “normalidade”. Simples é ver que o preconceito age em círculo: como a homossexualidade é a priori encarada como “inversão”, “desvio”, “anormalidade”, perversão”, etc., suas supostas “determinações” não são compreendidas como determinações de uma escolha objetal normal e saudável (uma escolha entre outras, supostamente quando haveria uma compreensão sem juízo de valor), mas, diferentemente, essas determinações são compreendidas como “causa” de um “problema”, de um “desvio” no âmbito da sexualidade dos indivíduos. Até aqui, de todo modo, é o que se pode depreender do discurso de muitos nos diversos modelos teóricos das psicologias, na pedagogia, e mesmo nas ciências sociais.

 Mas, deve-se saber, as sociedades ocidentais foram as primeiras que, na modernidade, constituíram a homossexualidade num problema clínico e os homossexuais em sujeitos clínicos – para o que, grandemente, contribuíram a psicologia e a psicanálise. Fato que se inscreve na realidade mais ampla da criação do que Michel Foucault chamou de “dispositivo de sexualidade” (FOUCAULT, 1985). Segundo o autor, o que chamamos de sexualidade é um produto histórico de um discurso sobre a sexualidade que se engendrou de muitas formas, uma invenção histórica tardia, data do século XIX. É desse período a criação histórica europeia de uma experiência social pela qual “os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma ‘sexualidade’, que abre para campos de conhecimentos bastante diversos, e que se articula num sistema de regras e coerções” (FOUCAULT, 1984:10). Isto é, a ideia da sexualidade como uma substância em si (objeto natural e universal) e a existência de toda uma “produção especulativa”, de um “hiperdesenvolvimento do discurso sobre a sexualidade” (idem, 2004:58-59) são invenções sociais que, no século XIX, articulam-se a engenhos de saber e poder em suas relações também apontadas pelo autor (idem, 1977;1979). Nossa reflexão sobre a homossexualidade insere-se nessa linha de compreensão da sexualidade conforme apontada por Michel Foucault. Autor que, fazendo sua “história da sexualidade”, indicou igualmente o trabalho a se escrever sobre a imagem-tipo desqualificadora do homossexual produzida na história do Ocidente, desde os gregos (FOUCAULT, 1984:21). Descontadas as dificuldades de sua época e não deixando de se reconhecer seus autênticos propósitos emancipatórios, os enredamentos de Freud em torno do tema da homossexualidade (é conferir os seus textos em que o assunto aparece...) deixaram para sempre um legado de ambiguidades e preconceitos, marcando profundamente o imaginário de nossas sociedades modernas e o espírito daqueles que, nas psicologias, ao que parece, não perceberam que estão diante tão somente de um modelo teórico e não diante da verdade plena e objetiva sobre um pretendido fenômeno investigado.


 Em todo caso, sugerir que a gênese da homossexualidade releva de uma “tipicidade” na escolha de objeto, por representada como contrária à pretendida normalidade ou, como 5 ainda querem alguns, não conforme a natureza da divisão sexual, não é mais do que deixar o preconceito falar, mesmo considerando a boa intenção científica ou moral. Em geral, curiosas doutrinas (médicas, psicológicas, religiosas) sobre a sexualidade humana são invocadas para “explicar” a homossexualidade em homens e mulheres. Porém, não se tratando mais do que de preconceito em forma de teoria e ciência, as conclusões dessas doutrinas são não apenas arbitrárias: os “dados” sobre os quais se apoiam são questionáveis ou inexistentes. No caso das psicologias, teóricos que, confundindo casos clínicos individuais com supostas leis gerais de “estrutura”, mas arvorando-se à condição de poder teorizar sobre a homossexualidade, praticam generalizações errôneas e profundamente preconceituosas.

 É recente a crítica teórica e o combate político ao preconceito em torno da homossexualidade. É a partir dos anos 50, e sobretudo depois dos anos 70 do século XX, que se inicia a formulação crítica, apoiada na antropologia e na história, opondo-se ao discurso até então dominante – mesmo no chamado meio científico – que apontava o caráter patológico, marginal e desviante da homossexualidade.

 Como um produto dessa visão que a priori entende a homossexualidade como um desvio a explicar, nascem as “pesquisas” determinadas a explicar a causa específica da homossexualidade – e desde já, anote-se, específica porque, no preconceito, os homossexuais constituem uma “espécie à parte”, é o chamado “terceiro sexo”... não é o específico “o que é próprio de uma espécie”? Como veremos, a procura da causa particular (ou causas) da homossexualidade revela mais os preconceitos de quem fala do assunto do que alguma coisa sobre o “fenômeno” pretensamente estudado. A pergunta que poderíamos fazer é: por que razão se procura a gênese da homossexualidade e não se procura, na mesma medida, a gênese da heterossexualidade? Por que todo um conjunto de estudos e tratados sobre a origem da homossexualidade?

 Não se torna possível compreender o que essas questões envolvem se não consideramos o processo de colonização do imaginário de nossas sociedades pelo preconceito, que foi tomando a forma de “explicações” e “teorias” sempre mais aceitas. No limite deste artigo, contudo, estaremos apenas nos ocupando de nossa intenção central, sabendo-se que bom número de estudiosos se encarregou de levantar os elementos históricos que, nas nossas sociedades, produziram, com relação ao sexual, uma educação moralizante, uma teia simbólica de culpabilizações e punições, dispositivos de regulação e disciplina (FOUCAULT, 1977; 1979; BROWN, 1990; LAQUER, 2001; BOSWELL, s/d) – elementos entre os quais o preconceito (sob diversas formas) pôde sempre ser percebido como exercendo ação destacada.

 É importante ressaltar que, no longo processo de colonização do imaginário de nossas sociedades, ganhou força uma concepção que corresponderia a uma naturalização da sexualidade humana, cujo efeito mais destacado é ter criado a ideia segundo a qual a heterossexualidade seria inata (a natureza daria os exemplos em todas as espécies), sendo então natural e normal, a homossexualidade sendo uma tendência adquirida, não sendo, pois, nem natural nem normal. Indo da opinião popular a pretensas visões científicas, essa ideia da heterossexualidade como inata, constituída na natureza das espécies e, assim, igualmente na natureza animal da espécie humana, tornaria sem razão de ser qualquer questão sobre sua origem. É dessa concepção naturalizadora da sexualidade que decorre igualmente a ideia segundo a qual, nos cromossomos e nos hormônios, estariam pré-fixadas as essências masculina e feminina que marcariam o desejo sexual e o destino social de homens e mulheres. A atração sexual entre homens e mulheres (heterossexual) seria, então, natural, definida biologicamente (seria endocrinológica, inscrita no genoma, etc.), com claros (e benéficos) impulsos voltados à reprodução da espécie – impulsos estabelecidos no processo da seleção natural. A heterossexualidade vista como inata e inerente à biologia do ser sexual humano, restava à homossexualidade a condição de uma “tendência adquirida” a ser explicada por “causas”, um “fenômeno” a ser esclarecido na história da espécie e na vida dos indivíduos: causa hormonal, causa genética, causa neurogenética, causa psicossocial...? As hipóteses são lançadas.

 Todavia, convém lembrar que a classificação da homossexualidade como uma entidade nosológica e sua medicalização remontam à metade do século XIX, quando a medicina e a psiquiatria tendem a substituir a religião e o direito na definição social da normalidade. Embora a religião nunca tenha deixado de ser uma força na produção do preconceito no imaginário de nossas sociedades ditas laicas e modernas, é no contexto, pois, do desenvolvimento da ciência moderna com fins normativos que ganha lugar a importância dada à identificação da homossexualidade como fenômeno a ser averiguadas as causas.

 Ainda que a prática da homossexualidade esteja entre as principais práticas sexuais, ao lado da heterossexualidade e da bissexualidade, na história dos diversos povos, em todas as épocas e em todos os meios sociais, observado já por filósofos como Schopenhauer, e amplamente atestado pelas pesquisas em antropologia e história – e que um meio homossexual masculino tenha se formado nas grandes cidades ocidentais desde o século XVI ao menos –, a representação do homossexual (homem ou mulher) como um tipo clínico, tal como se conhece hoje, somente aparece nas sociedades ocidentais no século XIX. Em 1870, um texto do médico alemão Carl Westphal intitulado "As Sensações Sexuais Contrárias" definiu a homossexualidade como um desvio sexual, abrindo caminho para teóricos da época e seus herdeiros tratarem de descobrir o que, na anatomia ou na história familiar do “doente”, pôde provocar sua “anomalia”. O termo passa a designar um tipo social particular, com pretendidas características psicológicas ou fisiológicas. Assinale-se, contudo, que o termo homossexual (do alemão Homosexualität) aparece, pela primeira vez, em 1869, em artigos de jornais do escritor e advogado húngaro Karol Maria Kertbeny, que, como muito bem esclarece o antropólogo brasileiro Luiz Mott, fazia uso do termo “homossexual” e “homossexualismo” como uma maneira de

lutar contra o parágrafo 175 do Código Penal Alemão, que condenava os praticantes do amor do mesmo sexo à prisão com trabalhos forçados. Para proteger sua pessoa e conferir maior respeitabilidade à defesa desta minoria discriminada, Kertbeny usou o pseudônimo de Dr. Benkert, embora nunca tivesse sido médico (MOTT, www.dhnet.org.br/direitos/militantes/luizmott/mott1.html, s/d, s/p).

 Transformada numa anormalidade, a homossexualidade foi, durante um século, combatida ao mesmo tempo como doença, vício, crime e pecado. Não é senão muito recentemente que a homossexualidade cessou de ser considerada como um problema mental, com a decisão, em 1973, da Associação dos psiquiatras americanos de retirá-la da lista das doenças mentais. Até 1975, as sociedades de psicanálise não aceitavam homossexuais como psicanalistas. E foi apenas em 1991 que a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista das doenças. Convém observar que, no Brasil, já nos anos 80, por esforço do antropólogo Luiz Mott, diversas moções de associações científicas (entre estas a Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência e a Associação Brasileira de Antropologia) foram aprovadas e importantes posições de crítica ao preconceito em torno da homossexualidade foram anunciadas (MOTT, http://br.geocities.com/luizmottbr/artigos08.html, s/d, s/p). Mas, para a maior parte das religiões, notadamente para os três monoteísmos praticados no mundo, a homossexualidade continua sendo um mal. Em 1994, o papa João Paulo II declarava que a homossexualidade era “um comportamento moralmente inaceitável”. Em 2002, o Vaticano publica seu Lexicon – que se pretende um “dicionário dos termos ambíguos” (sic.): poderíamos chamá-lo de dicionário do preconceito –, em que se pode ler a homossexualidade definida como “conflito psíquico não resolvido que a sociedade não pode institucionalizar”.

 A lista das criações preconceituosas, pronunciadas contra a homossexualidade, poderia ser aumentada se acrescentássemos diversos outros exemplos da história. Uma passada rápida de olhos na legislação de certos países, ao longo do tempo, pode também oferecer uma ideia do que o preconceito produziu e de como se constituiu em dispositivo de domesticação do imaginário de nossas sociedades, tornando-se a base histórica que faz emergir o pensamento generalizado que se pergunta pela causa específica da homossexualidade. Quantos bem intencionados não se puseram a teorizar sobre o assunto, mais vítimas do imaginário domesticado de suas épocas do que livres pensadores? Uma prática corrente na Grécia, em Roma e na China antigas, ainda que dentro de suas tradições, a homossexualidade existiu como uma instituição pedagógica entre os povos indo-europeus, base da formação dos povos europeus de hoje, tendo se expandido como uma prática social para além de sua natureza pedagógica inicial (SERGENT, 1986). Após o estabelecimento do cristianismo em Roma, ela se torna passível de condenação à morte em todo o Ocidente cristão até o fim do século XVIII. A partir do século XIII, a homossexualidade é passível da aplicação de penas comparadas às que se aplicavam aos crimes de heresia e lesa-majestade. Nos textos da prática jurídica desse tempo, a homossexualidade é associada à bestialidade. Certas cidades, como Bolonha, tinham leis próprias: no início do século XIII, a pena era o banimento perpétuo. Em Florença, para o caso de reincidência, o “crime” era punido com a fogueira. A Alemanha, em 1871, tinha disposições legais para reprimir a homossexualidade masculina, modificadas somente em 1969. No Reino Unido, ainda em 1885, leis estabeleciam penas de prisão para homens que praticassem relações homossexuais. Leis revogadas apenas entre 1967 e 1982. Na Rússia, antes da revolução socialista de 1917, as penas eram leves e eram raras as perseguições; com Stalin no poder, são previstas penas de prisão. Na França, a restrição legal introduzida em 1942, que reprimia relações homossexuais entre um maior e um menor, somente foi abolida em 1982. Irã, Sudão, Zimbábue e Iraque, entre outros, conservam a pena de morte para o que consideram o “crime de homossexualismo”. No Brasil, os homossexuais foram difamados e perseguidos pela Inquisição em processos que começam já no século XVI e seguem até o século XVIII, e os códigos Manuelino, Filipino e Afonsino, aplicados também em terras brasileiras, prescreviam a pena de morte aos sodomitas (MOTT, 1999; entre outros trabalhos do autor). Até aqui, no Brasil, continuamos como uma sociedade em que o preconceito anti-homossexual é abertamente pronunciado em programas de TV, rádio, nas escolas, por professores, padres, pastores, políticos, estando o país entre aqueles que têm taxas recordes de assassinato de homossexuais (MOTT, 2001).

 Um outro fator histórico contribuiu para reforçar a visão segundo a qual a homossexualidade seria uma exceção na sexualidade humana, retardando a crítica do preconceito, e, acrescentaríamos, retardando a crítica da ideologia das pretendidas causas: a negação da homossexualidade na história dos povos e civilizações. Os notáveis estudos de Bernard Sergent, L’homosexualité dans la mytologie greque (SERGENT, 1984) e L’homosexualité initiatique dans l’Europe ancienne (SERGENT, 1986), são esclarecedores a esse respeito: adulterando os textos originais, adaptando-os de maneira a neutralizar a realidade homoerótica ou desclassificando como bárbaras ou primitivas as sociedades nas quais a homossexualidade era abertamente praticada, bom número de historiadores e antropólogos contribuiu com a transformação da homossexualidade em um tabu e, posteriormente, na ideia de uma exceção dentro de uma suposta normalidade majoritária.

Torna-se importante destacar ainda que, na história de nossas sociedades, entre outras de suas expressões, o preconceito tomou a forma da opinião religiosa, que, misturando às crenças uma visão também naturalista da sexualidade, traduz-se na versão segundo a qual a heterossexualidade sendo a forma sexual herdada da natureza pelo homem e – sendo a natureza uma criação de Deus... Javé, Allah, os termos variam conforme as crenças... – tudo que a essa forma contraria, não apenas contraria a natureza, contraria igualmente a vontade divina. Explica-se porque a homossexualidade é banida nas religiões para o campo dos “pecados”, “atos impuros”, “anomalias”, “vícios”, “depravações” ou, na erudição de seus chefes, representa “quando menos, desordem da identidade de gênero” – os termos são de Joseph Ratzinger, logo após tornar-se Bento XVI.

 Considerando a homossexualidade como um problema (ora congênito, ora adquirido), cuja gênese seria um “mistério” que se deve procurar desvendar, as teses patologizantes e moralistas dominaram longamente sem que se lhes opusessem críticas. Apenas nas últimas décadas do século XX os estudos críticos – adotando uma perspectiva antropológica e histórica – iniciaram a desconstrução do discurso do preconceito. Estudos que vão nascendo e se fortalecendo a partir da entrada em cena dos movimentos feministas, da contracultura e do movimento gay. Em diferentes países, o movimento gay transforma o homossexual, de um (inventado) sujeito clínico, em um sujeito de desejo e em sujeito político – o que prevalece até hoje, como forma de luta contra o preconceito. É fato que – como fruto da ação daqueles que sempre resistiram à dominação em todas as épocas – uma outra concepção rivalizou sempre com o preconceito e com a ideologia naturalista que aprisiona a sexualidade numa suposta realidade natural da divisão e da atração sexual: o que chamamos de concepção histórico-antropológica (cultural, construtivista ou, como proporei chamar aqui, construcionista), antes de constituídas as ciências humanas modernas, já dava sinais de sua existência de muitas maneiras... em filósofos, escritores, poetas e em solitários pesquisadores, de pouca fama, que se pode reconhecer nas entrelinhas das citações e diálogos (explícitos ou implícitos) na obra dos famosos.


 Édipo, ratos, hormônios e genes: da ideologia à fraude das causas 


 Assim é que, situado que se trata de um produto histórico e cultural, o preconceito não deixou de fazer seus estragos. E não deixaremos de sugerir que as formulações sobre a(s) pretendida(s) causa(s) da homossexualidade, que se dissimulam como “teorias”, pretendam ou não ser “científicas”, merecem ser chamadas de fraudes (de ordem intelectual e moral), pois constituem um trabalho do pensamento preconceituoso (social, mas também o de cada um) que, embora se reconhecendo como tal, não cessa de agir. Em muitos casos, trabalho que se crê portador da verdade da homossexualidade, da qual os próprios homossexuais estariam privados, pois ignorariam a razão (desconhecida para eles; inconsciente; genética, psicossocial, etc.) de sua “tendência sexual”. E que se pretenda que no anúncio dessa verdade encontra-se uma posição ética que concorreria para uma maior aceitação social da homossexualidade ou para a liberação dos homossexuais numa maior aceitação de si, a pretensão não é menos produto do imaginário colonizado pela ideologia da heteronormatividade, colonizado pelo preconceito.

 Por efeito da longa memória dessa história de colonização pelo preconceito, pensar que existem causas específicas que produziriam a homossexualidade, estigmatizada como um desvio, tornou-se uma ideia que está na cabeça da maioria, se não de todos. Mesmo às vezes no pensamento daqueles que se creem sem preconceitos. Quando não manifesto, permanece latente, no imaginário social, a crença de que um homem ou mulher cuja identidade sexual é a de homossexual é alguém que, no seu desenvolvimento sexual, carrega algo que se constitui fundamento de uma variação não conforme a tendência sexual majoritária. O homossexual seria sempre alguém que teria uma sexualidade a ser esclarecida, investigada, por ele próprio e pelos outros, pois, não conforme uma pretensa normalidade sexual (que seria também normalidade psíquica, moral, social). Na boa “tradição europeia da confissão, que começa pela confissão católica e desemboca na psicanálise” (FOUCAULT, 2004:30), o homossexual é sempre visto como aquele a quem se deve extrair a confissão de sua sexualidade. A homossexualidade como desvio, para cuja existência pesa uma causa específica (talvez variando conforme o caso), é objeto das mais variadas fantasias... das crendices da opinião popular às dos consultórios médicos e dos divãs, passando pelos laboratórios universitários de pesquisa.

 Na psicologia e na psicanálise, uma vez que a naturalização do sexual é refutada por Freud (FREUD, 1905 [1972]), a homossexualidade aparece como uma concretização dos percalços a que a sexualidade do ser da linguagem pode regularmente ser submetida. Resumidamente, três fatores determinariam a homossexualidade masculina: o forte vínculo do filho com a mãe, a fixação na fase narcísica e problemas na “castração”. No primeiro, a homossexualidade teria início em razão de uma intensa e incomum atração do filho pela mãe, o que impediria a ele de se ligar a outra mulher. O segundo fator, a fixação no narcisismo, faria com que o indivíduo invista menos trabalho (psíquico) em se ligar ao seu igual (mesmo sexo) que a outro sexo (diferente). A homossexualidade representaria uma espécie de “estagnação” na fase narcísica, responsável por tornar o amor-sexual, para o homossexual, uma experiência sempre condicionada a encontrar um órgão genital semelhante ao dele. Terceiro fator, problemas relativos à chamada travessia da castração: isto é, dificuldades emocionais relativas a perdas e à idéia de morte, que deixariam o indivíduo resignado ou acomodado na sua psico(homo)ssexualidade.

 Nesses termos, a homossexualidade ilustraria uma falha no evento psíquico que se sucederia ao momento original no qual, na infância, a fixação libidinal se realizaria a partir da imagem de si – que não distinguiria nenhum outro traço que o igual – que, desde então, funcionaria como o protótipo dos objetos que poderão provocar a atração sexual. Como é sabido, para a teoria freudiana e de seus sucessores, o ser humano, enquanto ser da linguagem e para passar de virtual a qualquer coisa a mais, terá que atravessar uma crise psíquica singular em seus efeitos, que provocaria ordinariamente o abandono da (primeira) imagem de si em proveito de uma imagem substitutiva. Descartado que não se trata da realidade animal, em que não há escolha, mas pré-formatação instintual do sexo, no ser falante, o narcisismo (o amor da imagem de si) se encontraria na origem da escolha e da relação libidinal e manteria uma tensão nostálgica e desvalorizadora com relação aos futuros objetos substitutos da imagem de si. A crise psíquica que causaria o abandono do primeiro objeto e suas substituições foi teorizada por Freud como sendo a do Édipo e, desde aí, a atenção se voltou assim para o acesso à sexualidade humana como uma realidade produzida num processo singular, caso único entre todas as espécies animais, por se produzir a partir de uma realidade não biológica mas psíquica e social. (Sem dúvida, definir o caráter psíquico e social da sexualidade humana é uma importante contribuição de Freud para um tema que o aproxima em quase tudo da antropologia, pois essa sexualidade que é uma realidade psíquica é cultural/social no sentido antropológico, isto é, realidade que é construção de uma configuração cultural particular, nas relações sociais, que coloca cada um no roteiro que terá que seguir no drama das instituições em cada cultura – a própria psicanálise podendo ser inscrita num projeto de uma antropologia geral.) Mas se segue que aquilo que era, em certo sentido, uma teorização revolucionária em Freud – retirar o sexual do campo do biológico e inscrevê-lo na cultura – vai se tornar também o ponto de partida de elaborações de um pensamento sobre a homossexualidade (e já no próprio Freud) que não se distanciaram do preconceito de pensá-la como adquirida por vias que a afastariam do percurso normal da sexualidade, e aquisição que se poderia explicar.

 Dispondo da teoria do Édipo, o modelo freudiano proporá que, se o objeto desejado não encarna a prevalência do objeto substituto – o outro, o diferente (héteros) – sobre o amor de si – o igual, o mesmo (homós) –, algo de errado terá se passado ao nível da referenciação da crise psíquica que provocaria ordinariamente o abandono dos objetos do amor de si (homós) em proveito dos objetos do amor do outro (héteros). Conforme esse argumento, a homossexualidade seria o caso de indivíduos que não alcançariam, na sexualidade, o amor do objeto culturalizado – nem instintual, nem narcísico –, permanecendo no amor (primário) do igual, do mesmo (hómos). Por outro lado, a heterossexualidade seria o caso bem sucedido da passagem de um estado a outro da escolha objetal no psiquismo, em que sairia ganhando a reprodução da espécie e a organização social humana, baseada na diferença entre os sexos. Daí porque a heterossexualidade corresponderia a uma sexualidade perfeitamente cultural, civilizatória, própria do ser da linguagem, e resultado de uma intervenção humana (na forma do Édipo, do complexo de castração e quejandos), assinalando o acesso do indivíduo à cultura, sob o império da Lei (do Pai) da diferença sexual. Para a ideologia (no discurso freudiano e no de seus seguidores), a homossexualidade estaria para a natureza assim como a heterossexualidade estaria para a cultura?

 Ainda no modelo teórico das psicologias, a homossexualidade (masculina) seria efeito de uma mensagem da mãe, recebida pelo filho, na rivalidade com o marido. Tratarse-ia, assim, de um lado, da figura do pai, que, desde a aurora dos tempos freudianos, é identificado com a lei, e, de outro, da figura da mãe, que seria uma mulher que nutriria uma queixa essencial com relação a essa lei, pois lei que parece dispensá-la da castração e do seu reconhecimento. Mãe, ela espera do seu filho uma vingança decisiva contra a instância demasiada injusta para fazê-la submissa e demasiado absurda para separar uma mãe de seu produto. Ora, como se sabe que esse pai não está aí senão por procuração – ele é o pai simbólico –, a mãe (do homossexual), nessa fábula, o que tem é um problema com a lei (do pai) e oferece ao filho uma alternativa de ser a outra versão – (per)versão? sub-versão? – da lei do pai. A mãe, transferindo – inconsciente – o desejo de ser uma outra versão da lei do pai, deixa ao filho o combate a uma lei patriarcal que, introduzindo o pai no centro de tudo, 14 também a subjuga e oprime: “A mãe faz lei no lugar do pai”, “a mãe dita a lei ao pai” (LACAN, 1957-1958 [1999]). O homossexual seria aquele que, levado a negar a castração, terminaria riscando do seu programa a diferença entre os sexos (observar que Freud já concluía pela mesma curiosa ideia em 1915; FREUD, 1975 [1976: 356]). Nos termos propostos por Jacques Lacan, em um de seus célebres Seminários, o homossexual seria aquele que conservaria uma “relação profunda e perpétua com a mãe”, manteria “identificação com a posição da mãe”, mãe diretiva, “que cuidou mais do filho que o pai”, etc etc.

A mãe que mostra ter sido a lei para o pai num momento decisivo... no momento que a intervenção proibidora do pai deveria ter introduzido o sujeito na fase de dissolução de sua relação com o objeto do desejo da mãe, e cortado pela raiz qualquer possibilidade de ele se identificar com o falo, o sujeito encontra na estrutura da mãe, ao contrário, o suporte, o reforço... que faz com que essa crise não ocorra (LACAN, 1957-1958 [1999: 215]). 

 Não identificados com a posição do pai, os homossexuais conservariam para sempre – “não são curados” (ibid: 214]). – um “medo pavoroso de ver o órgão da mulher (...), pela suposição de que a vagina [perigosa] ingeriu o falo do pai: (...) o que é temido na penetração [homem/homossexual – mulher] é justamente o encontro com esse falo” (ibid:218). Mais ainda:

a exigência do homossexual de encontrar em seu parceiro o órgão peniano corresponde precisamente a que, na posição primitiva, aquela ocupada pela mãe que dita a lei ao pai, o que é questionado – não resolvido, mas posto em questão – é saber se, na verdade, o pai tem ou não tem, e é exatamente isso que é exigido pelo homossexual a seu parceiro, acima de qualquer outra coisa, e de um modo preponderante em relação às outras coisas (ibid: 217]).

 Tais eventos psíquicos constituem o homossexual como aquele que “agarra-se extremante à sua posição homossexual”, como aquele que tem “dificuldade de abalar sua posição” – é ler Lacan... e conferir (para todas as citações: LACAN, 1957-1958 [1999: 214-220]).

 Tais generalizações ignoram a diversidade das culturas (já MALINOWSKI, 1927 [1973], apontava críticas a Freud sobre as generalizações de sua teoria, embora críticas consideradas ingênuas por estudos posteriores (entre outros, DUVEREUX, 1972; ORTIGUES e ORTIGUES, 1989)), a variabilidade das famílias, mesmo apenas no interior das sociedades ocidentais, assim como a amplitude, variabilidade e dinamismo das relações humanas que engendram a biografia de cada indivíduo, incluindo aí a sua sexualidade – esta seguramente não sendo construída apenas pelas relações que se produzem no microcosmo familiar e na infância. Acrescente-se, igualmente, as generalizações de um tal modelo teórico (que se pretende validado pela clínica) tornam-se responsáveis pela reificação do preconceito, ao traduzir, mais uma vez, a homossexualidade como “problema”, que se quer intrínseco à sua própria natureza como orientação ou variante sexual, embora a realidade demonstre o contrário: o número daqueles que são homossexuais, para os quais a homossexualidade não é um “problema”, é muito maior do que o preconceito (da opinião popular ou do senso comum douto) é capaz de admitir.

 Convém anotar, entretanto, que nossa crítica à abordagem da homossexualidade pela psicologia e pela psicanálise não ignora a importante contribuição dessas áreas ao estudo de diversos outros fenômenos humanos. E não podemos deixar de ressaltar o importante papel que a psicanálise desempenha hoje, por exemplo, no combate às tentativas de biologização dos atos humanos, no que ela se reúne à crítica das demais ciências sociais à nova vaga do determinismo biológico. Foi exatamente esse combate que inspirou a psicanalista e historiadora das idéias Elisabeth Roudinesco a escrever seu ensaio “Por que a psicanálise?”, no qual diz:

 violentamente atacada hoje em dia pelos que pretendem substituí-la por tratamentos químicos, julgados mais eficazes porque atingiriam as chamadas causas cerebrais das dilacerações da alma (...) [a psicanálise] restaura a idéia de que o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico (ROUDINESCO, 2000: 9).

 É com a crítica ao determinismo biológico e sua tentativa de igualmente definir a gênese própria da homossexualidade que nos ocuparemos daqui por diante. A procura por explicar os fenômenos humanos a partir de bases biológicas não é um fato de hoje na história da ciência. Mas, não resta dúvida, que a onda atual do determinismo biológico tem permitido retornar com força, nas últimas décadas, explicações biologizantes de fatos sociais e fenômenos culturais, com ampla aceitação e difusão pelas mídias. Destacam-se, 16 entre outras expressões, a atuação da sociobiologia (e desde Edward Wilson) – com variações entre os autores, que podem ir de comentários mais ou menos comprometidos (ROSE, 2000), hibridismos teóricos entre antropologia cultural e sociobiologia (PARÍS, 2002) ou formulações fortemente comprometidas (WINSTON, 2006) – e a atuação do seu subproduto correspondente: a chamada psicologia evolucionista (WRIGHT, 1996; PINKER, 2004).

  Acreditando que a subjetividade humana possui fundamentos biológicos, autores dessa vertente afirmam a existência de um “componente genético” para a homossexualidade. E o fazem, ao que parece, pretendendo fundamentar uma visão “não preconceituosa”, não baseada em juízos morais, que concorreria para se ter uma compreensão (justa?) da homossexualidade. Esta definida como uma prática para cujas razões (na espécie humana e na vida do indivíduo homossexual) a natureza teria concorrido. Como escreve Robert Winston, em Instinto Humano:

Do ponto de vista da seleção natural, a homossexualidade deveria ser um beco sem saída. Não pode haver nenhuma vantagem evolucionista em ser exclusivamente gay ou lésbica. Contudo, os seres humanos não são os únicos com comportamento homossexual: os bonobos – chimpanzés pigmeus – freqüentemente são vistos se agarrando com parceiros do mesmo sexo (WINSTON, 2006: 120). 

 E mais adiante, diz o autor: a homossexualidade pode parecer ir de encontro à adaptação evolucionista, mas isto não significa que seja uma prática moralmente ruim (Ibid, 2006: 122). Uma posição semelhante parece ser a de Simon Le Vay, especialista norte-americano em neuroanatomia e autor do livro The Sexual Brain, publicado em 1991, ele próprio homossexual, que procurou enraizar a homossexualidade num “cérebro gay”, certamente por acreditar que a naturalização da homossexualidade poderia ajudar a diminuir o preconceito contra homossexuais. Essa posição não nos parece, contudo, afastarse do preconceito. Mais adiante, voltaremos ao assunto.

 As teses da sociobiologia e da psicologia evolucionista retomam a chamada controvérsia “natureza versus cultura”, conhecida de antropólogos, sociólogos, psicólogos, pedagogos. Controvérsia iniciada, no final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, nas disputas entre biólogos e psicólogos, ao discutirem os fundamentos dos chamados “traços comportamentais”, gerando uma polêmica na qual se considerava, de um lado, que certos padrões de comportamento eram herdados, inatos, inscritos nos genes (etólogos, psicólogos fisicalistas) e, de outro, que os comportamentos eram aprendidos (psicólogos behavioristas), sendo moldados ou pela seleção natural (biólogos e fisicalistas) ou pelas experiências do indivíduo (psicólogos comportamentalistas, behavioristas).

 Essa dicotomia foi retomada por Edward O.Wilson, um entomologista e biólogo de Harvard, considerado o fundador da sociobiologia (ROSE, 2000; PARÍS, 2002), para quem, mesmo numa sociedade mais igualitária, as desigualdades e hierarquias sociais continuariam a existir, como os homens dominando as mulheres, pelo peso da herança biológica animal sobre o comportamento social humano. Somos (machistas) como os macacos (PINKER, 2004). Seu projeto, apresentado no livro Sociobiologia: a nova síntese, publicado em 1975, estabelecia que “a sociobiologia, assim como as outras ciências sociais e as humanidades, são os últimos ramos da Biologia e esperam ser incluídas na moderna síntese” (apud PARÍS, 2002: 42). Nessa “ciência unificada do comportamento”, como assinala Michael Rose, “o comportamento humano deveria passar a ser estudado como o comportamento da mosca das frutas e dos gansos, num esforço sistemático de resolver ou revelar todas as motivações darwinianas inerentes a ele.” (ROSE, 2000: 195). Tese que, de lá para cá, tem ganhado cada vez mais força e adeptos, mesmo no interior das ciências humanas nas universidades.

 A sociobiologia pretende explicar as sociedades humanas (instituições sociais, padrões culturais) a partir de uma teoria evolucionista que se pretende baseada nas conclusões da biologia sobre origem e evolução das espécies animais. Uma espécie de neodarwinismo, aceito por certos darwinianos, contestado por outros [2]. Os sociobiólogos sugerem, com pequenas variações de ênfases entre eles, que os comportamentos sociais humanos, de algum modo, são determinados geneticamente e sua manutenção deve-se à seleção natural no processo da evolução da espécie (WINSTON, 2006; WRIGHT, 1996; PINKER, 2004). Nas últimas décadas, a sociobiologia e a psicologia evolucionista têm se fortalecido com a expansão da biologia molecular e com os desdobramentos do Projeto Genoma. Igualmente, sem que seja estranho à episteme de nossa época, a neurociência tem assumido a dianteira das explicações sobre comportamento humano centradas somente na biologia, na genética.

 No tocante às orientações sexuais e à homossexualidade, em particular, as teses do determinismo biológico vão variando mais ou menos conforme o tempo e os “avanços” que estabelecem. Já se falou de comparecimento de algum gene (ou grupo de genes) no zigoto do indivíduo, levando-o a apresentar um traço correspondente de comportamento sexual, sem relação com o ambiente (relações sociais, padrões culturais) no qual se desenvolve. Já se atribuiu aos hormônios funções determinantes na orientação sexual: testosterona, progesterona e estrógenos concorreriam para definir as tendências sexuais dos indivíduos. Homens homossexuais seriam “feminilizados” e mulheres homossexuais seriam “masculinizadas” pelos hormônios, estes conformando suas tendências sexuais. Por fim, mais recentemente, seguidores das ciências que estudam o cérebro acreditam que os genes, alterando a estrutura cerebral, gerariam a orientação sexual correspondente. O exemplo mais conhecido é a tentativa de reputar aos genes de certa região cerebral a responsabilidade pelas diferenças no hipotálamo e de se concluir que este fenômeno determinaria a orientação sexual. No cérebro, estaria definido se somos homossexuais ou heterossexuais.  

 Diversas críticas podem ser feitas ao determinismo biológico e não apenas quanto à sua tentativa de definir a “causa” da homossexualidade. Destacaremos rapidamente algumas delas. Como discurso científico, o determinismo biológico é uma reificação reducionista de processos e realidades (mesmo biológicas), em termos de uma natureza humana biológica fixa, que não podem ser compreendidos se não se considera suas relações com práticas culturais, históricas e sociais, que são dinâmicas e diversas. Constitui um procedimento igualmente reducionista por pretender a existência de “genes” ou “hormônios” específicos para cada gesto, emoção, atitude, desejo, eliminando a complexidade de fatores envolvida na produção dos atos humano-sociais. O mais curioso de observar, tratando-se de trabalhos no campo científico, é a inversão na ordem das coisas: o efeito torna-se a causa. É comum a descrição de fenômenos tomados como desencadeados por “ações do cérebro”, à simples vista fenômenos que são reflexos ou reações fisiológicas provocadas por situações emocionais, subjetivas, sociais. O uso das 19 imagens feitas com ressonância magnética talvez seja, hoje, o melhor exemplo dessa inversão (A edição de 31/01/07, da revista Veja, traz matéria sobre as “bases cerebrais” da atitude de compradores compulsivos, atestadas por imagens produzidas com a técnica da ressonância: são o nucleus accumbens, o córtex insular e o córtex pré-frontal médio que nos fazem comprar o carro da propaganda na TV, a camisa que está na vitrine ou o perfume que adoramos!).

 O determinismo biológico é também uma extrapolação questionável à esfera da realidade humano-social de estudos realizados com animais, tornando-se uma ampliação de modelos que se tornam válidos apenas para certos tipos de fenômenos e não para todos. Um exemplo dessa extrapolação é Gunther Dörner, que, trabalhando na Universidade Humboldt, em Berlim, e estudando cérebros de ratos, concluiu que a identidade de gênero dos bichinhos podia ser modificada, quando se interferia em partes de seu cérebro. Gunther Dörner partiu daí para fazer afirmações sobre a homossexualidade humana... Outro exemplo de extrapolação é Simon Le Vay, a quem já nos referimos: estudando cérebros de cadáveres, com tecidos naturalmente modificados pela morte, afirma ter encontrado uma diferença estrutural de tamanho nos hipotálamos de gays e lésbicas: nos homossexuais, seria de menor tamanho. O neuroespecialista estudou os cérebros de 41 cadáveres, incluindo 6 mulheres, 19 homens homossexuais e 16 outros que supôs serem heterossexuais. No seu estudo, afirma ter encontrado uma pequena área do cérebro, o INAH-3, que era de medida menor e similar em mulheres e homens homossexuais e maior em homens que supôs serem heterossexuais. Para o determinismo biológico, ratos e cadáveres servem para definir aspectos da subjetividade humana, o desejo, a gênese da homossexualidade.

 Por fim, por seus termos, o determinismo biológico corresponde a uma elisão do social, do cultural, da história e da política na vida de nossas sociedades. A constatar pelos “estudos” divulgados pela mídia, sempre com muito estardalhaço, as diversas expressões dessa corrente de pensamento estão prontas a estabelecer uma sociedade humana inteiramente dominada por genes, neurônios, hormônios, e sem instituições culturais, padrões sociais, classes, Estado, relações de poder, sujeições à ideologia, conflitos, lutas políticas, etc. Em outros termos, uma ciência do social sem sociedade.

 Mas o determinismo biológico não segue sem críticas. As ciências sociais, através de diferentes autores, nunca deixaram de realizar a crítica às tentativas de biologização e naturalização do social (SAHLINS, 1980; BOURDIEU, 1989; 1998; 1999; HÉRITIER, 1996; GODELIER, 1982; KURZ, 1997, entre outros exemplos). Hoje, diversas vozes têm se levantado para denunciar os significados conservadores de suas teses e advertir que algumas delas representam ameaças a conquistas emancipatórias importantes. Nomeando a vaga biologizante atual de “pretensões obscurantistas”, valeria mais uma vez citar Elisabeth Roudinesco, ao acusar as tentativas de biologização do social de pretenderem “reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção química” (ROUDINESCO, 2000:9). A crítica ao determinismo biológico na ciência não deve ser confundida, entretanto, com o combate à ciência como tal, empreendida por religiosos conservadores e outros.


 Homossexualidade: uma orientação sexual, uma expressão sexual como outra


 O que o preconceito oculta? O que para o preconceito se torna insuportável quando se trata de pensar a homossexualidade? Que é a homossexualidade?

 Não é mais desconhecida a formulação teórica (na psicologia, antropologia, sociologia, pedagogia, etc.) que define a homossexualidade como uma orientação sexual para pessoa do mesmo sexo. Deve-se evitar, contudo, a confusão de pensar que apenas a homossexualidade é uma orientação sexual (com talvez mais a bissexualidade), sendo a heterossexualidade outra coisa diferente de uma orientação. Que é uma orientação sexual? Em geral, define-se a orientação sexual como a atração e o desejo sexuais (paixões, fantasias) do indivíduo por um outro de um gênero particular. O gênero é a conformação física, orgânica, celular, particular que permite distinguir, nas espécies, os machos e as fêmeas e, na espécie humana, o homem e a mulher, o sexo masculino e o sexo feminino. Mas, nesses termos, uma definição ainda muito limitada, pois, para homens e mulheres, o gênero é uma construção social que se configura numa relação com o que, em cada cultura e época histórica, se define como sendo a identidade sexual, os papéis sexuais, idéias de masculinidade, feminilidade, etc. (BUTLER, 2003; HÉRITIER, 1996; BADINTER, 1985; 21 1986; 1993; BOURDIEU, 1999; CECCARELLI, 1998b). Em geral, ao gênero se vincula uma identidade sexual, mas, como advertem os estudiosos do assunto, essa relação entre gênero e identidade é uma realidade bem mais complexa: “o modelo biológico do masculino e do feminino é válido para a definição celular; mas seria ilusório pensar que a identidade sexuada poderia ser definida a partir do biológico” (CECCARELLI, 1998a, s/p) A orientação sexual, na maior parte dos casos, não interfere na identidade sexual. Ficam de fora os casos de transexualismo (CECCARELLI, 1998b) Assim, contrariamente ao que imagina a opinião popular, um homossexual masculino não se identifica como “feminino”, não se sente “mulher”. Conceber a sexualidade do indivíduo em termos de orientação sexual (e esta como atração, fantasias e desejo direcionados a indivíduos de outro, do mesmo ou de ambos os gêneros) é quase um consenso entre especialistas hoje (SUPLICY, 1983).

 Não resta a menor dúvida, o conceito de orientação sexual é válido para pensar a homossexualidade. Deve-se saber, todavia, que a orientação sexual é algo complexo, cuja compreensão envolve entender a relação sui generis de elementos diversos, que desconhecemos e deformamos ao querer captá-los em sua totalidade e como causação, alguns deles que permanecerão para sempre insondáveis. Porém, para um uso mais crítico do conceito e para evitar possíveis apropriações preconceituosas e conservadoras, torna-se importante dessubstancializar a orientação sexual, relativizando o papel que as variáveis psicológicas e pedagógicas ocupam no conceito, que tornam a orientação sexual uma substância em si (um objeto natural e universal), levando a crer, mais uma vez, que os indivíduos portam algo identificável a uma sexualidade fixa, inteligível, coerente, inteira, um conjunto de atributos idêntico a si mesmo, provavelmente também “com uma gênese específica”. Para evitar a substancialização da orientação sexual, é importante trazer a reflexão sobre o assunto para o terreno da reflexão antropológica e sociológica: a orientação sexual é uma construção subjetiva, certo!, como desejo é singular e em grande medida inconsciente, mas é igualmente uma construção de caráter social. Constituída de prazeres, sensações, fantasias, imaginação, práticas eróticas, etc., a orientação sexual é construída nos embates subjetivos e sociais, produzidos nas interações, sob padrões culturais, relações de poder, idéias sociais, configurando-se como um fenômeno individual tanto quanto coletivo. Constitui uma expressão sexual, uma manifestação das possibilidades sexuais e eróticas humanas, sempre contextualizadas e socialmente comuns a muitos indivíduos.

 Uma orientação sexual expressa a plasticidade e as possibilidades humanas no terreno da sexualidade, como em outros. Expressões das capacidades criativas e variáveis humanas. Os estudos em antropologia e sociologia, alguns deles já citados neste trabalho, demonstram que, na espécie humana, as orientações sexuais podem assumir várias formas. Os estudos também mostram que a variedade de orientações sexuais é encontrada em todas as culturas e em diferentes épocas, embora não se constituam necessariamente nas identidades sociais como conhecemos, hoje, nas sociedades ocidentais modernas.

 Definida em termos de orientação ou expressão sexual, a homossexualidade não é uma opção que depende da vontade do indivíduo, como uma deliberação consciente, mas nenhuma orientação sexual o é, assim como não é algo da ordem de uma causa específica (como pretendem as tentativas de explicação criticadas logo acima). Se há que se falar de causa, a causa da homossexualidade é a mesma de toda orientação/expressão sexual, a mesma da sexualidade humana como tal: a pulsão sexual, sobre a qual se estrutura o desejo, que, como Freud a caracterizou, não tem objeto nem fixo nem único, não se determina nenhum objetivo como natural ou normal, e que faz suas escolhas segundo uma economia cujo único princípio é o prazer (FREUD, 1905 [1972], entre outros textos do autor). Assim, heterossexualidade, homossexualidade ou bissexualidade são nomenclaturas usuais (todas com sentidos culturais e históricos) para expressões sociais do desejo sexual humano, calcadas na pulsão. A sexualidade ligada à pulsão e ao desejo não se estrutura por uma disposição orgânica ou em dados fisiológicos. Assim,

Ao buscar o prazer, a sexualidade escapa à ordem da natureza e age a serviço próprio "pervertendo" seu suposto objetivo natural: a procriação. Subordinar a sexualidade à função reprodutora é "um critério demasiadamente limitado", adverte Freud. Isto vem mostrar à biologia, à moral, à religião e à opinião popular, o quanto elas se enganam no que diz respeito à natureza da sexualidade humana: a sexualidade humana é, sem si, perversa - entendida aqui em seu sentido primeiro: desvio de uma finalidade específica. Ou seja, em se tratando de sexualidade, não existe "natureza humana" pois a pulsão sexual não tem um objeto específico, único e muito menos pré-determinado biologicamente (CECCARELLI, 2000, s/p).

 Desestabilizando ingenuidades e confrontando à opinião comum, as esferas do desejo e da sexualidade são possibilidades abertas e sempre mais surpreendentes, superando toda predeterminação e naturalismo. As diversas orientações/expressões sexuais são construtos da mesma estrutura da pulsão e dos mesmos desígnios insondáveis do desejo. A nosso favor, citaremos mais uma vez o psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli:

Tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são posições libidinais e identificatórias que o sujeito alcança dentro da particularidade de sua história: as duas formas de manifestação da sexualidade são igualmente legítimas (CECCARELLI, 2000, s/p).

 E, no âmbito do desejo e da sexualidade, toda procura de inteligibilidade – causas específicas – está fadada a cair em preconceitos, nos discursos de poder, na ideologia, porque buscarão determinações sempre arbitrárias, reducionistas, e sob o domínio dos discursos de normalidade social. Foi o próprio Freud quem escreveu que

a pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo à parte do resto da humanidade, como possuidores de características especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha-de-objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu inconsciente” (FREUD, 1905 [1972:146]) E mais adiante: “assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo (ibid: 146).

 O que toda uma abordagem histórico-sócio-antropológica tem demonstrado até aqui é que, por sobre o prazer e por sobre o desejo, a intervenção da cultura (por meio de diversas formas) elege sempre uma expressão sexual como a forma normal (ou natural) – escolha da ordem do que sociólogos e antropólogos, depois de Pierre Bourdieu, chamam de “arbitrário cultural” (BOURDIEU, 1982:20) –, foracluindo várias outras como anormalidades. Isto é, uma ordem social-cultural (em qualquer tempo e lugar), na medida em que é uma construção de caráter convencional, elege, aleatoriamente – não inteiramente consciente, e num acontecer anônimo, coletivo e impessoal –, suas instituições, padrões, crenças, etc. que se integrarão à ordem (enquanto também uma “máquina simbólica” (BOURDIEU, 1999:18)) como uma realidade única, universal e necessária, invalidando 24 todas as demais alternativas por ela não ratificadas. A sexualidade não fica menos fora desse processo, que em ciências sociais chamamos de “institucionalização” do social (BERGER E LUCKMANN, 1985) - assunto para cuja reflexão se pode igualmente mencionar Freud (FREUD, 1929 [1974]).

 Na história das nossas sociedades, o que ocorreu é que a história da heterossexualidade é a de um notável privilégio, mas não menos sustentado pela eficácia da ideologia. Sendo o sexual polimorfo, variegado, diverso, o que ocorreu, até aqui na história, é que a institucionalização social procura reduzi-lo a uma única forma, tendo sido a heterossexualidade a forma consentida e legitimada nas nossas sociedades. Fato que não guarda nenhum mistério, nem se deve a qualquer razão alheia às razões humanas: o consentimento da heterossexualidade, construída ao lado da negação da homossexualidade, não se deve a qualquer razão indiferente aos fatos que produzem a cultura, a história. Não é a heterossexualidade uma forma inata da sexualidade; como uma prática sexual ela é social e historicamente construída, e sua naturalização e hegemonia ocorreram por efeito de um longo trabalho de domesticação do imaginário social das sociedades humanas, que se fez invalidando, ao mesmo tempo, a prática da homossexualidade, excluída como uma “inversão” da sexualidade “normal”. Vê que o próprio Freud considera essa hipótese da domesticação e da “proibição terminante pela sociedade” como fator de exclusão da homossexualidade na sexualidade dos indivíduos (FREUD, 1905 [1972: 236]; 1929 [1974: passim]). Sendo uma instituição histórico-social como outra, a heterossexualidade se estabeleceu estigmatizando a homossexualidade, fato que se deu com a mesma semelhança e força com que a dominação masculina emergiu em todas as culturas. Aliás, a prevalência da dominação masculina e a supremacia da heterossexualidade são fatos que guardam relações entre si na história cultural das sociedades humanas. Porém, como assinalam diversos estudos (ROSALDO E LAMPHERE, 1979; GODELIER, 1996), o fato de não encontrarmos, nas diversas sociedades conhecidas, casos em que a dominação masculina não seja um dado antropológico, e conseqüentemente a submissão feminina seja sempre uma realidade, isso nada revela sobre uma pretendida inferioridade natural da mulher, mas, ao contrário, revela tão somente a longa história de dominação social dos homens que se estabeleceu nos modelos de sociedade que a humanidade construiu até aqui.

 O mesmo se deu com a valorização da heterossexualidade em detrimento da homossexualidade: um puro fato da história humana, que não possui nenhuma razão imanente (de qualquer ordem), mas que não foi sem conseqüência para o pensamento humano, como tem sido o caso também da questão da desigualdade entre homens e mulheres. Vale lembrar, o que toda uma perspectiva crítica – que volto a chamar construcionista [3] – tem procurado demonstrar é que a sexualidade é um construto social como outro e que sua existência se deve a um processo de construção que em nada difere de todo o processo de institucionalização da realidade. Não havendo sexualidade natural, mas social, o que ocorre com o sexual é o mesmo que ocorre com todas as demais esferas da vida social: algo que é uma construção arbitrária, uma instituição de caráter convencional e histórico, ganha, no curso histórico, a aparência de uma realidade natural, universal, necessária e irreversível, tornando inválidas todas as demais formas que ficaram foracluídas no processo da institucionalização. A homossexualidade é uma das formas foracluídas do sexual nas nossas sociedades, estigmatizada pelo discurso da instituição social da sexualidade.

 Do ponto de vista de uma constante antropológica e psíquica, ninguém está afastado da possibilidade de práticas eróticas com pessoas do mesmo sexo, de relações homossexuais. Conforme o Relatório Kinsey, já em 1948, um quarto dos jovens americanos tinham tido relações homoeróticas. Não há o que se possa chamar de pré-disposição (inata ou adquirida) à homossexualidade em alguns e sua inexistência absoluta em outros, como algo determinado por movimentos internos do psiquismo ou como fenômeno enzimático-endocrinológico. De novo aqui, Freud, por mais que tenha fechado algumas vezes a via crítica aberta por ele próprio, deve ser lembrado entre os autores que indicaram a existência de uma “bissexualidade psíquica originária” no ser humano (FREUD, 1972, 1974; cf. também ROUDINESCO, 2002: 41), o que torna possível pensar que é somente à custa de prolongada domesticação cultural que essa disposição psíquica desaparece para dar lugar à heterossexualidade ratificada como “normal” e “em conformidade com a natureza”. O preconceito inverteu as razões e apresentou a homossexualidade como um desvio de um suposto desenvolvimento normal, quando se trata de uma variante da sexualidade existindo em todos, mas inibida pela sujeição cultural – através da ideologia da heteronormatividade. A própria normalidade não sendo mais do que uma construção simbólica reversível, mas que, para se perpetuar, procura todos os meios de sua naturalização e divinização. O horror à homossexualidade manifestado por muitos sistemas de sociedade e religiões deve ser visto como expressão de uma ordem simbólica em seu temor (metafísico-ideológico) de desaparecer enquanto ordem reversível, que tem na heterossexualidade sua base.

 Assim, se a sexualidade humana como um todo tem sido objeto de visões preconceituosas, a homossexualidade, dentre as suas expressões, tem sido historicamente e incomparavelmente a que a mais ataques tem sido submetida pelos preconceitos produzidos em religiões, moral, ciência e no direito em todas as partes. Preconceito que tem constituindo fonte de opressão para milhares de homens e mulheres em todas as idades, classes sociais e nos diversos países.


Desfazendo enganos

 Por fim, quando o preconceito crê como certo que a homossexualidade é um fenômeno a ser esclarecido em sua causa específica, devemos deslocar a questão sobre a sua pretendida causa para uma outra: assim, ao invés de se querer saber “qual a causa da homossexualidade?”, deve-se perguntar: por que e qual a origem do preconceito em torno da homossexualidade?

 Muito ainda resta a ser feito. É a própria compreensão da sexualidade humana que deve ser revista ou a própria ideia de uma substância chamada sexualidade que deve desaparecer. Após séculos de condenação pela religião, pelo Estado e pela ciência (ou pseudociência?), um conhecimento livre de preconceito na compreensão da sexualidade, do desejo sexual, permanece uma construção a ser continuamente desenvolvida e um desafio a ser assumido por aqueles que tenham compromisso com a crítica do preconceito e com a emancipação e a felicidade humanas.

 A crítica ao preconceito tem sempre novas lutas a empreender. E uma delas é desfazer o engano de correntes entre os próprios homossexuais que, caídos também no determinismo biológico que criticamos antes, acreditam que encontraram nos favores da genética uma maneira de enfrentar o preconceito: admitindo a tese segunda a qual a homossexualidade é um fenômeno enzimático, endocrinológico ou genético, teria se chegado, assim, ao patamar no qual se poderia impor a verdade de uma “homossexualidade natural”, seguindo o engano de uma “heterossexualidade natural”. Poder-se-ia, assim, combater os preconceituosos, o discurso religioso, alegando a natureza natural da homossexualidade – espécie de apelo à sociedade para que aceite os homossexuais, pois tratar-se-ia de algo da ordem do nascimento (estaria, pois, nos planos do Criador) com relação ao que “não se pode ir contra”. Mais uma vez o preconceito vencerá caso se caia nessa armadilha: a aceitação da homossexualidade deve acontecer na sociedade por sua mudança de conceitos, paradigmas e valores, não por acomodação a uma pretendida “verdade” que estaria na “própria constituição genética” dos homossexuais. A invenção do “gene da homossexualidade” é outra vez o trabalho do preconceito e da ideologia na história.  

 Uma outra batalha a se empreender é fazer que se compreenda que as lutas dos homossexuais pela cidadania plena (direito ao reconhecimento pelo Estado e pela lei de suas uniões conjugais, direitos de herança, direito à adoção por casais gays, entre outros direitos que se tem conquistado em diversos países) não é um ingênuo “desejo de normalização”, uma queda na ideologia (burguesa ou outra), mas um nível de luta política em que se questionam as idéias de normalidade e de democracia, quando esta se limita a direitos que excluem significativos segmentos da população em diversos países – os homossexuais entre os mais excluídos (MOTT, s.d.).

 Por fim, poderíamos assinalar o fracasso, mais uma vez, de teses que pretendem aprisionar os homossexuais numa espécie à parte, pois as lutas pela cidadania plena desconstroem até mesmo aquelas teses que se apresentam com o charme libertário que destina aos homossexuais o papel de “sublimes perversos” da cultura, subversivos marginais da ordem, tese que, como assinalou Elisabeth Roudinesco, “está prestes a desaparecer” (ROUDINESCO, 2002: 46), com a atitude dos homossexuais que, sabendo que toda normalidade é uma construção social e histórica, procuram redefinir uma nova normalidade social, em que a homossexualidade não seja estigmatizada como exceção, desvio, inversão, patologia, anormalidade, mas seja vista como uma expressão da sexualidade humana, uma orientação sexual, entre outras, em torno da qual se pode organizar afetos, laços, famílias. Aqui quando os homossexuais questionam os próprios conceitos de normalidade social, democracia e cidadania nas sociedades nas quais vivemos.

 Amanhã, teremos superado todo o preconceito se não tivermos mais questões a colocar sobre a causa própria da homossexualidade. 


 Notas

[1] Neste artigo, estarei utilizando o termo ideologia no sentido próprio de “inversão da realidade” e de “idéias da dominação”, sentido outorgado ao termo desde Marx (MARX, 1845 [1986]). Contudo, deve-se assinalar, nas reflexões deste último, como inversão e dominação, a ideologia corresponderia ao modo particular do imaginário da sociedade capitalista. A ideologia seria a representação da realidade que a classe dominante nesta sociedade produz e procura impor a todas as demais classes, com o objetivo de garantir sua posição de classe dominante. Objetivo que realiza, ao dissimular, justo através da representação ideológica que oferece da realidade, a dominação que pratica sobre as outras classes. Embora o fenômeno da ideologia tome essa forma específica, e não há que se esquecer isso, é importante assinalar que se torna necessário, hoje, acrescentar à elaboração pioneira de Marx novas considerações sobre o fenômeno da ideologia. Em meus textos, somando à minha própria reflexão as contribuições de Louis Althusser (ALTHUSSER, 1974; 1985), Maurice Godelier (GODELIER, 1980; 1996), John Thompson (THOMPSON, 1995) e Marilena Chauí (CHAUÍ, 1980; 1981), tenho insistido em formulações na direção de um conceito de ideologia que não fique restrito à dimensão da dominação de classe, e que torne possível pensar o dado antropológico da dominação que sempre-já implica a sujeição do indivíduo humano à Cultura, através de sua sujeição a normas, costumes, padrões, crenças, mitos, instituições. Nesse sentido, deve-se entender que a ideologia torna possível a dominação pela via simbólica, desde já a sumpção do indivíduo pela linguagem, via pela qual ocorre de toda estruturação social se constituir, tornando-se uma ordem que se ratifica no simbólico, e constituindo-se ela própria numa ordem simbólica. A ideologia, assim, responde a uma exigência anterior à necessidade da reprodução das relações de produção (capitalistas ou outras) e da dominação política de classe, como ainda entendem diversos autores (marxistas ou não). Anterior a toda outra coisa, a ideologia assegura, em todo sistema de sociedade, mesmo naqueles nos quais não há classes, que a ordem social não desabe enquanto também uma Ordem Simbólica, ratificando-a, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e certas idéias sociais, como uma ordem natural, única, universal, imutável, divina. Resultado que a ideologia procura obter invertendo e ocultando o caráter de coisa construída, arbitrária e convencional de toda ordem social e suas instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida sem o recurso da força. A ideologia constitui o modo de operar de toda cultura (enquanto sistema de sociedade), ao procurar naturalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos sociais (variando do mito à ciência moderna) que oferecem as significações legitimadoras do que em cada cultura está instituído. Podemos apontar que a eficácia da ideologia, entre outras formas, realiza-se na sua ancoragem nas esferas psíquica, emocional e cognitiva (a subjetividade de cada um; uma parte dela inconsciente) dos indivíduos. O estigma da homossexualidade como prática cuja causa específica deve-se desvendar, ainda perdurante em muitas cabeças, que transforma os homossexuais em indivíduos-portadores-de-um-enigma-a-esclarecer (e, assim, objetos a dominar no trabalho da ciência, das religiões, da lei, etc.) é um entre vários exemplos que se pode oferecer da dominação dos indivíduos por meio do trabalho da ideologia no espaço da cultura. Na ideologia, a homossexualidade é um fenômeno estranho a esclarecer na vida dos indivíduos e o homossexual é portador de uma causa determinante que o torna sujeito de uma sexualidade particular. Sobre o conceito de ideologia, ver meus “Medos, mitos e castigos” (SOUSA FILHO, 2001); “Cultura, ideologia e representações” (SOUSA FILHO, 2003) e “Mito e ideologia” (SOUSA FILHO, 2006).

[2] Michael Rose, em O Espectro de Darwin, traz alguns dos problemas que aplicações do darwinismo têm acarretado. E como demonstra o autor, embora alguns chamados neodarwinistas adotem posições claramente reacionárias e de direita, o darwinismo, como concepção da origem e evolução das espécies e do ser humano, é crítico e revolucionário. Não é por outra razão que é violentamente combatido pelas diversas religiões (ROSE, 2000)

[3] Situaremos como construcionistas os estudos do configuracionismo ou de cultura e personalidade em antropologia (Ruth Benedict, Margareth Mead, Melville Herskovits), a antropologia do simbólico (LéviStrauss, Geertz), a abordagem da aprendizagem social (G. Robert Mead, Peter Berger) e os estudos socioantropológicos (Pierre Bourdieu, Maurice Godelier, Françoise Héritier, Elisabeth Badinter, Michel Foucault, Michel Maffesoli, entre outros). 



Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Lisboa: Editorial Presença; São Paulo: Martins Fontes, 1974.
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan/Marx e Freud. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
BADINTER, Elisabeth. L’un est l’autre. Paris : Odile Jacob, 1986.
BADINTER, Elisabeth. XY: Sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BERGER, Peter e LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1998.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BOSWELL, John. Cristianismo, tolerancia social y homosexualidad. Madri: Muchnik Editores, s/d.
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CECCARELLI, Paulo Roberto. “Homossexualidade e preconceito”. In: http://www.ceccarelli.psc.br (2000).
CECCARELLI, Paulo Roberto. “A construção da masculinidade”. http://www.ceccarelli.psc.br (1998a).
CECCARELLI, Paulo Roberto. “Transexualismo e identidade sexuada”. http://www.ceccarelli.psc.br (1998b).
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
CHAUÍ, Marilena. “Crítica e ideologia”. In: Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1981.
CUATRECASAS, Alfonso. Erotismo no império romano. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 (Ditos e escritos; V).

FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro, Imago, 1972 (Obras Completas, v. VII) (ed. or.: 1905).
FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. Rio de Janeiro, Imago, 1970 (Obras Completas, v. XI) (ed. or.: 1910).
FREUD, Sigmund. A vida sexual dos seres humanos. Rio de Janeiro, Imago, 1976 (Obras Completas, v. XVI) (ed. or.: 1916).
FREUD, Sigmund. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1974 (Obras Completas, v. XXI) (ed. or.: 1929).
GODELIER, Maurice. Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas. 3. ed. México : Siglo Veintiuno Editores, 1980.
GODELIER, Maurice. La production des grandes hommes. Paris, Fayard, 1996.
GODELIER, Maurice. Godelier : antropologia. São Paulo: Ática, 1981 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
HÉRITIER, Françoise. Masculin/Féminin : la pensée de la différence. Paris: Odile Jacob, 1996 LACAN, Jacques. O seminário 5 : as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
KURZ, Robert. Últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997.
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
MAFFESOLI, Michel. A sombra de dionísio: contribuição a uma sociologia da orgia. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes, 1973 (ed. or.: 1927).
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1986 (ed. or.:1932)
MOTT, Luiz . Causa mortis: homofobia. Salvador: Editora do Grupo Gay da Bahia, 2001.
MOTT, Luiz. Homossexuais da Bahia: dicionário biográfico. Salvador: Editora do Grupo Gay da Bahia (séculos XVI-XIX), 1999.
MOTT, Luiz. Violação dos direitos humanos e assassinato de homossexuais no Brasil. Salvador: Editora do Grupo Gay da Bahia, 2000.
MOTT, Luiz. www.dhnet.org.br/direitos/militantes/luizmott/mott1.htm.
MOTT, Luiz. http://br.geocities.com/luizmottbr/artigos08.html
MOTT, Luiz. http://br.geocities.com/luizmottbr/entre9.html
ORTIGUES, Marie-Cecile; ORTIGUES, Edmond. Édipo africano. São Paulo: Escuta. 1989.
PARÍS, Carlos. O animal cultural. São Carlos: EdUFSCar, 2002 (ed. or.: 19).
PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
ROSE, Michael. O espectro de Darwin: a teoria da evolução e suas implicações no mundo moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. ROUDINESCO, Elisabeth. “Psicanálise e homossexualidade”. In: Pulsional, Revista de psicanálise, ano IV, n. 161, set/2002.
SAHLINS, Marshall. Critique de la sociobiologie. Paris : Gallimard, 1980 (ed. or. : 1976).
SERGENT, Bernard. L’homosexualité dans la mythologie grecque. Paris : Payot, 1984.
SERGENT, Bernard. L’homosexualité initiatique dans l’Europe ancienne. Paris: Payot, 1986.
SOUSA FILHO, Alípio. Medos, mitos e castigos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
SOUSA FILHO, Alípio. “Cultura, ideologia e representações sociais”. In: CARVALHO, Maria do Rosário; PASSEGGI, Maria da Conceição; SOBRINHO, Moisés Domingos (Orgs.) Representações sociais. Mossoró, Fundação Guimarães Duque, 2003a.
SOUSA FILHO, Alípio. “Homossexualidade e preconceito: crítica de uma fraude nos campos científico e moral”. Recife, Bocas no Mundo (Revista da Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB), Ano I, junho, 2003b.
SOUSA FILHO, Alípio. “Mito e ideologia”. IN: Comunicologia: revista de comunicação e espistemologia da Universidade Católica de Brasília. Ano 0, Nº 1, 2006 (http//www.ucb.br). SUPLICY, Marta. Conversando sobre sexo. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.
WINSTON, ROBERT. Instinto humano: como os nossos impulsos primitivos moldaram o que somos hoje. São Paulo: Globo, 2006.
WRIGHT, Robert. O animal moral: porque somos como somos – a nova ciência da psicologia evolucionista. Rio de Janeiro: Campus, 1996.