O artigo abaixo é de autoria de Alípio de Sousa Filho, Doutor em sociologia pela Sorbonne (Paris V) e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN, e foi publicado em JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Educação e
diversidade sexual: problematizando a homofobia na escola brasileira. Brasília: Ministério
da Educação (Coleção Educação para Todos). Dentre os comentários que tenho a fazer sobre ele estão os de que 1) há um uso excessivo de argumentos retirados da psicanálise, que tenho visto ser cada vez mais criticada e relegada à posição de pseudociência 2) não me parecer convincente quanto à não ser haver uma causa específica para a homossexualidade e 3) não ser capaz de responder (ou ignorar) evidências de uma base biológica da homossexualidade, tal como essa aqui (para outras referências de argumentos biológicos sobre a homossexualidade, ver esse artigo).
A colonização do imaginário e a invenção da causa específica da homossexualidade
Pretendemos, neste artigo, tratar do preconceito em torno da homossexualidade, considerando algo de sua lógica interna, nem sempre percebida como tal. Não é desconhecido de ninguém que teorias e “pesquisas” de muitos tipos procuram causas (biológicas, psicológicas, sociais, “espirituais”) para a homossexualidade, deixando entender que os indivíduos concernidos na prática da homossexualidade – ditos homossexuais – têm qualquer coisa a menos (ou a mais) que os outros (um gene, um pedaço do cérebro, hormônios, um instinto congênito ou adquirido, etc), são indivíduos que sofreram algum “desvio” ou “suspensão” no chamado “desenvolvimento sexual normal” ou “inversão quanto ao objeto sexual”. Estas últimas sendo crenças muito difundidas, ainda hoje, entre psicólogos e psicanalistas – confundindo-se aí todas as correntes –, exceções isoladas à parte.
A tese que sustentaremos aqui é a que uma longa história de colonização pelo preconceito, praticada sobre o imaginário de diversas sociedades, representando a homossexualidade como uma exceção ou como um desvio ou inversão no quadro de uma pretendida normalidade heterossexual, levou a que se buscasse a causa específica que produziria a homossexualidade – e não importando se esta tenha sido pensada, variando as épocas, como vício, pecado, crime, doença, perversão ou como um desvio no desenvolvimento sexual. Evidentemente, uma história que não deixou de marcar os espíritos... mesmo daqueles bem intencionados. E se sabemos que, desde a metade do século XIX, a homossexualidade não é mais tratada como “contrária à natureza” – a não ser em certos tratados de medicina legal, artigos de códigos penais ou discursos religiosos –, permanece, até hoje, a mesma sempiterna visão de que se trata de uma “tendência sexual” para cuja causa certos fatores devem ter influído, tornando-se matéria de etiologia médica, objeto de arqueologias do “inconsciente” ou, como mais recentemente, assunto de especialistas das áreas da biologia, neuroanatomia, neurociência. Num ou noutro caso, estamos no reino das pretendidas causas. O reino da ideologia [1] e do preconceito. As teorias variam – entre ideias propostas
por religiões como o espiritismo (a homossexualidade seria cármica) e teses
sustentadas por correntes das psicologias, passando por opiniões de biólogos –,
mas a conclusão é sempre a mesma: a homossexualidade seria um fato, na vidado
indivíduo afetado, que se tornaria possível explicar por alguma causa
específica. Nossa reflexão é igual em conclusão à posição dos antropólogos
Peter Fry e Edward MacRae, quando, em texto em que trataram do tema “que é a
homossexualidade”, referindo-se brevemente ao assunto das “causas”, escreveram:
“nenhuma das teorias existentes sobre as causas da homossexualidade nos
convence e a nossa tendência é de tratá-las todas, sem exceção, como produções
ideológicas” (FRY; MACRAE, 1983:15).
Neste trabalho, faremos a crítica a
teorias, que, de tão difundidas, tornaram-se verdadeiro senso comum social: as
teorias das psicologias – a psicanálise aí incluída – e as produzidas na onda
contemporânea do determinismo biológico em suas versões mais atuantes: a
sociobiologia e a psicologia evolucionista. Trata-se, necessariamente, da visão
de um cientista social, mas igualmente subjetiva e que não se esconde como uma
visão política do problema. No combate ao preconceito (na ciência ou fora dela)
e à violência que ele implica, nenhum cientista pode reivindicar objetividade e
neutralidade científicas.
Poder-se-á objetar nossa crítica dizendo que nenhum
preconceito há em se pensar uma gênese específica da homossexualidade – Freud
já tratava do assunto, acreditando numa “gênese psíquica da homossexualidade”
(FREUD, 1910 [1970: 91 e segs.]) –, assim como se admitiria uma gênese também
particular para a heterossexualidade. Nos dois casos, tratar-se-ia sempre de escolha
objetal e, igualmente, existiriam aí causas implicadas: para cada um dos casos,
as escolhas estariam fundadas em determinações (inconscientes), ignoradas pelo
próprio sujeito, que se diferenciariam quanto apenas aos objetivos sexuais,
julgamentos de valor não podendo ser aplicados a nenhum dos casos. Em outra
ocasião (SOUSA FILHO, 2003b), já nos valemos desse argumento, mas ele é frágil.
Ora, a questão que não aparece aí é que, como a priori o preconceito sobreatua
em certas visões teóricas, as supostas determinações (inconscientes, sociais,
culturais) da homossexualidade já são, de antemão, encaradas como determinações
de um “problema”, de uma “inversão”, de um “desvio”, de uma “perversão”, isto
é, de uma escolha não conforme a ideologia da “normalidade”. Simples é ver que
o preconceito age em círculo: como a homossexualidade é a priori encarada como
“inversão”, “desvio”, “anormalidade”, perversão”, etc., suas supostas
“determinações” não são compreendidas como determinações de uma escolha objetal
normal e saudável (uma escolha entre outras, supostamente quando haveria uma
compreensão sem juízo de valor), mas, diferentemente, essas determinações são compreendidas como “causa” de um “problema”, de um “desvio” no âmbito da
sexualidade dos indivíduos. Até aqui, de todo modo, é o que se pode depreender
do discurso de muitos nos diversos modelos teóricos das psicologias, na
pedagogia, e mesmo nas ciências sociais.
Mas, deve-se saber, as sociedades
ocidentais foram as primeiras que, na modernidade, constituíram a
homossexualidade num problema clínico e os homossexuais em sujeitos clínicos –
para o que, grandemente, contribuíram a psicologia e a psicanálise. Fato que se
inscreve na realidade mais ampla da criação do que Michel Foucault chamou de
“dispositivo de sexualidade” (FOUCAULT, 1985). Segundo o autor, o que chamamos
de sexualidade é um produto histórico de um discurso sobre a sexualidade que se
engendrou de muitas formas, uma invenção histórica tardia, data do século XIX.
É desse período a criação histórica europeia de uma experiência social pela
qual “os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma
‘sexualidade’, que abre para campos de conhecimentos bastante diversos, e que
se articula num sistema de regras e coerções” (FOUCAULT, 1984:10). Isto é, a ideia
da sexualidade como uma substância em si (objeto natural e universal) e a
existência de toda uma “produção especulativa”, de um “hiperdesenvolvimento do
discurso sobre a sexualidade” (idem, 2004:58-59) são invenções sociais que, no
século XIX, articulam-se a engenhos de saber e poder em suas relações também
apontadas pelo autor (idem, 1977;1979). Nossa reflexão sobre a homossexualidade
insere-se nessa linha de compreensão da sexualidade conforme apontada por
Michel Foucault. Autor que, fazendo sua “história da sexualidade”, indicou
igualmente o trabalho a se escrever sobre a imagem-tipo desqualificadora do
homossexual produzida na história do Ocidente, desde os gregos (FOUCAULT,
1984:21). Descontadas as dificuldades de sua época e não deixando de se
reconhecer seus autênticos propósitos emancipatórios, os enredamentos de Freud
em torno do tema da homossexualidade (é conferir os seus textos em que o
assunto aparece...) deixaram para sempre um legado de ambiguidades e
preconceitos, marcando profundamente o imaginário de nossas sociedades modernas
e o espírito daqueles que, nas psicologias, ao que parece, não perceberam que
estão diante tão somente de um modelo teórico e não diante da verdade plena e
objetiva sobre um pretendido fenômeno investigado.
Em todo caso, sugerir que a gênese da homossexualidade
releva de uma “tipicidade” na escolha de objeto, por representada como
contrária à pretendida normalidade ou, como 5 ainda querem alguns, não conforme
a natureza da divisão sexual, não é mais do que deixar o preconceito falar,
mesmo considerando a boa intenção científica ou moral. Em geral, curiosas
doutrinas (médicas, psicológicas, religiosas) sobre a sexualidade humana são
invocadas para “explicar” a homossexualidade em homens e mulheres. Porém, não
se tratando mais do que de preconceito em forma de teoria e ciência, as
conclusões dessas doutrinas são não apenas arbitrárias: os “dados” sobre os
quais se apoiam são questionáveis ou inexistentes. No caso das psicologias,
teóricos que, confundindo casos clínicos individuais com supostas leis gerais
de “estrutura”, mas arvorando-se à condição de poder teorizar sobre a
homossexualidade, praticam generalizações errôneas e profundamente
preconceituosas.
É recente a crítica teórica e o combate
político ao preconceito em torno da homossexualidade. É a partir dos anos 50, e
sobretudo depois dos anos 70 do século XX, que se inicia a formulação crítica,
apoiada na antropologia e na história, opondo-se ao discurso até então
dominante – mesmo no chamado meio científico – que apontava o caráter
patológico, marginal e desviante da homossexualidade.
Como um produto dessa visão que a priori
entende a homossexualidade como um desvio a explicar, nascem as “pesquisas”
determinadas a explicar a causa específica da homossexualidade – e desde já,
anote-se, específica porque, no preconceito, os homossexuais constituem uma
“espécie à parte”, é o chamado “terceiro sexo”... não é o específico “o que é
próprio de uma espécie”? Como veremos, a procura da causa particular (ou causas)
da homossexualidade revela mais os preconceitos de quem fala do assunto do que
alguma coisa sobre o “fenômeno” pretensamente estudado. A pergunta que
poderíamos fazer é: por que razão se procura a gênese da homossexualidade e não
se procura, na mesma medida, a gênese da heterossexualidade? Por que todo um
conjunto de estudos e tratados sobre a origem da homossexualidade?
Não se torna possível compreender o que
essas questões envolvem se não consideramos o processo de colonização do
imaginário de nossas sociedades pelo preconceito, que foi tomando a forma de
“explicações” e “teorias” sempre mais aceitas. No limite deste artigo, contudo,
estaremos apenas nos ocupando de nossa intenção central, sabendo-se que bom
número de estudiosos se encarregou de levantar os elementos históricos que,
nas nossas sociedades, produziram, com relação ao sexual, uma educação
moralizante, uma teia simbólica de culpabilizações e punições, dispositivos de
regulação e disciplina (FOUCAULT, 1977; 1979; BROWN, 1990; LAQUER, 2001;
BOSWELL, s/d) – elementos entre os quais o preconceito (sob diversas formas)
pôde sempre ser percebido como exercendo ação destacada.
É importante ressaltar que, no longo
processo de colonização do imaginário de nossas sociedades, ganhou força uma
concepção que corresponderia a uma naturalização da sexualidade humana, cujo
efeito mais destacado é ter criado a ideia segundo a qual a heterossexualidade
seria inata (a natureza daria os exemplos em todas as espécies), sendo então
natural e normal, a homossexualidade sendo uma tendência adquirida, não sendo,
pois, nem natural nem normal. Indo da opinião popular a pretensas visões
científicas, essa ideia da heterossexualidade como inata, constituída na
natureza das espécies e, assim, igualmente na natureza animal da espécie
humana, tornaria sem razão de ser qualquer questão sobre sua origem. É dessa
concepção naturalizadora da sexualidade que decorre igualmente a ideia segundo
a qual, nos cromossomos e nos hormônios, estariam pré-fixadas as essências
masculina e feminina que marcariam o desejo sexual e o destino social de homens
e mulheres. A atração sexual entre homens e mulheres (heterossexual) seria,
então, natural, definida biologicamente (seria endocrinológica, inscrita no
genoma, etc.), com claros (e benéficos) impulsos voltados à reprodução da
espécie – impulsos estabelecidos no processo da seleção natural. A
heterossexualidade vista como inata e inerente à biologia do ser sexual humano,
restava à homossexualidade a condição de uma “tendência adquirida” a ser
explicada por “causas”, um “fenômeno” a ser esclarecido na história da espécie
e na vida dos indivíduos: causa hormonal, causa genética, causa neurogenética,
causa psicossocial...? As hipóteses são lançadas.
Todavia, convém lembrar que a
classificação da homossexualidade como uma entidade nosológica e sua
medicalização remontam à metade do século XIX, quando a medicina e a
psiquiatria tendem a substituir a religião e o direito na definição social da
normalidade. Embora a religião nunca tenha deixado de ser uma força na produção
do preconceito no imaginário de nossas sociedades ditas laicas e modernas, é no
contexto, pois, do desenvolvimento da ciência moderna com fins normativos que
ganha lugar a importância dada à identificação da homossexualidade como fenômeno
a ser averiguadas as causas.
Ainda que a prática da homossexualidade
esteja entre as principais práticas sexuais, ao lado da heterossexualidade e da
bissexualidade, na história dos diversos povos, em todas as épocas e em todos
os meios sociais, observado já por filósofos como Schopenhauer, e amplamente
atestado pelas pesquisas em antropologia e história – e que um meio homossexual
masculino tenha se formado nas grandes cidades ocidentais desde o século XVI ao
menos –, a representação do homossexual (homem ou mulher) como um tipo clínico,
tal como se conhece hoje, somente aparece nas sociedades ocidentais no século
XIX. Em 1870, um texto do médico alemão Carl Westphal intitulado "As
Sensações Sexuais Contrárias" definiu a homossexualidade como um desvio
sexual, abrindo caminho para teóricos da época e seus herdeiros tratarem de
descobrir o que, na anatomia ou na história familiar do “doente”, pôde provocar
sua “anomalia”. O termo passa a designar um tipo social particular, com
pretendidas características psicológicas ou fisiológicas. Assinale-se, contudo,
que o termo homossexual (do alemão Homosexualität) aparece, pela primeira vez,
em 1869, em artigos de jornais do escritor e advogado húngaro Karol Maria
Kertbeny, que, como muito bem esclarece o antropólogo brasileiro Luiz Mott,
fazia uso do termo “homossexual” e “homossexualismo” como uma maneira de
lutar contra o parágrafo 175 do Código Penal Alemão, que condenava os
praticantes do amor do mesmo sexo à prisão com trabalhos forçados. Para
proteger sua pessoa e conferir maior respeitabilidade à defesa desta minoria
discriminada, Kertbeny usou o pseudônimo de Dr. Benkert, embora nunca tivesse sido
médico (MOTT, www.dhnet.org.br/direitos/militantes/luizmott/mott1.html, s/d,
s/p).
Transformada numa anormalidade, a homossexualidade foi,
durante um século, combatida ao mesmo tempo como doença, vício, crime e pecado.
Não é senão muito recentemente que a homossexualidade cessou de ser considerada
como um problema mental, com a decisão, em 1973, da Associação dos psiquiatras
americanos de retirá-la da lista das doenças mentais. Até 1975, as sociedades
de psicanálise não aceitavam homossexuais como psicanalistas. E foi apenas em
1991 que a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista das
doenças. Convém observar que, no Brasil, já nos anos 80, por esforço do
antropólogo Luiz Mott, diversas moções de associações científicas (entre estas
a Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência e a Associação Brasileira de
Antropologia) foram aprovadas e importantes posições de crítica ao preconceito
em torno da homossexualidade foram anunciadas (MOTT,
http://br.geocities.com/luizmottbr/artigos08.html, s/d, s/p). Mas, para a maior
parte das religiões, notadamente para os três monoteísmos praticados no mundo,
a homossexualidade continua sendo um mal. Em 1994, o papa João Paulo II
declarava que a homossexualidade era “um comportamento moralmente inaceitável”.
Em 2002, o Vaticano publica seu Lexicon – que se pretende um “dicionário dos
termos ambíguos” (sic.): poderíamos chamá-lo de dicionário do preconceito –, em
que se pode ler a homossexualidade definida como “conflito psíquico não
resolvido que a sociedade não pode institucionalizar”.
A lista das criações preconceituosas, pronunciadas contra a homossexualidade,
poderia ser aumentada se acrescentássemos diversos outros exemplos da história.
Uma passada rápida de olhos na legislação de certos países, ao longo do tempo,
pode também oferecer uma ideia do que o preconceito produziu e de como se
constituiu em dispositivo de domesticação do imaginário de nossas sociedades,
tornando-se a base histórica que faz emergir o pensamento generalizado que se
pergunta pela causa específica da homossexualidade. Quantos bem intencionados
não se puseram a teorizar sobre o assunto, mais vítimas do imaginário
domesticado de suas épocas do que livres pensadores? Uma prática corrente na
Grécia, em Roma e na China antigas, ainda que dentro de suas tradições, a
homossexualidade existiu como uma instituição pedagógica entre os povos
indo-europeus, base da formação dos povos europeus de hoje, tendo se expandido
como uma prática social para além de sua natureza pedagógica inicial (SERGENT,
1986). Após o estabelecimento do cristianismo em Roma, ela se torna passível de
condenação à morte em todo o Ocidente cristão até o fim do século XVIII. A
partir do século XIII, a homossexualidade é passível da aplicação de penas
comparadas às que se aplicavam aos crimes de heresia e lesa-majestade. Nos
textos da prática jurídica desse tempo, a homossexualidade é associada à
bestialidade. Certas cidades, como Bolonha, tinham leis próprias: no início do
século XIII, a pena era o banimento perpétuo. Em Florença, para o caso de
reincidência, o “crime” era punido com a fogueira. A Alemanha, em 1871, tinha
disposições legais para reprimir a homossexualidade masculina, modificadas
somente em 1969. No Reino Unido, ainda em 1885, leis estabeleciam penas de
prisão para homens que praticassem relações homossexuais. Leis revogadas
apenas entre 1967 e 1982. Na Rússia, antes da revolução socialista de 1917, as
penas eram leves e eram raras as perseguições; com Stalin no poder, são
previstas penas de prisão. Na França, a restrição legal introduzida em 1942,
que reprimia relações homossexuais entre um maior e um menor, somente foi
abolida em 1982. Irã, Sudão, Zimbábue e Iraque, entre outros, conservam a pena
de morte para o que consideram o “crime de homossexualismo”. No Brasil, os
homossexuais foram difamados e perseguidos pela Inquisição em processos que
começam já no século XVI e seguem até o século XVIII, e os códigos Manuelino,
Filipino e Afonsino, aplicados também em terras brasileiras, prescreviam a pena
de morte aos sodomitas (MOTT, 1999; entre outros trabalhos do autor). Até aqui,
no Brasil, continuamos como uma sociedade em que o preconceito anti-homossexual
é abertamente pronunciado em programas de TV, rádio, nas escolas, por
professores, padres, pastores, políticos, estando o país entre aqueles que têm
taxas recordes de assassinato de homossexuais (MOTT, 2001).
Um outro fator histórico contribuiu para
reforçar a visão segundo a qual a homossexualidade seria uma exceção na
sexualidade humana, retardando a crítica do preconceito, e, acrescentaríamos,
retardando a crítica da ideologia das pretendidas causas: a negação da
homossexualidade na história dos povos e civilizações. Os notáveis estudos de
Bernard Sergent, L’homosexualité dans la mytologie greque (SERGENT, 1984) e
L’homosexualité initiatique dans l’Europe ancienne (SERGENT, 1986), são
esclarecedores a esse respeito: adulterando os textos originais, adaptando-os
de maneira a neutralizar a realidade homoerótica ou desclassificando como
bárbaras ou primitivas as sociedades nas quais a homossexualidade era
abertamente praticada, bom número de historiadores e antropólogos contribuiu
com a transformação da homossexualidade em um tabu e, posteriormente, na ideia
de uma exceção dentro de uma suposta normalidade majoritária.
Torna-se importante destacar ainda que, na história de nossas sociedades, entre
outras de suas expressões, o preconceito tomou a forma da opinião religiosa,
que, misturando às crenças uma visão também naturalista da sexualidade, traduz-se
na versão segundo a qual a heterossexualidade sendo a forma sexual herdada da
natureza pelo homem e – sendo a natureza uma criação de Deus... Javé, Allah, os
termos variam conforme as crenças... – tudo que a essa forma contraria, não
apenas contraria a natureza, contraria igualmente a vontade divina. Explica-se
porque a homossexualidade é banida nas religiões para o campo dos “pecados”,
“atos impuros”, “anomalias”, “vícios”, “depravações” ou, na erudição de seus
chefes, representa “quando menos, desordem da identidade de gênero” – os termos
são de Joseph Ratzinger, logo após tornar-se Bento XVI.
Considerando a homossexualidade como um
problema (ora congênito, ora adquirido), cuja gênese seria um “mistério” que se
deve procurar desvendar, as teses patologizantes e moralistas dominaram
longamente sem que se lhes opusessem críticas. Apenas nas últimas décadas do
século XX os estudos críticos – adotando uma perspectiva antropológica e
histórica – iniciaram a desconstrução do discurso do preconceito. Estudos que
vão nascendo e se fortalecendo a partir da entrada em cena dos movimentos
feministas, da contracultura e do movimento gay. Em diferentes países, o
movimento gay transforma o homossexual, de um (inventado) sujeito clínico, em
um sujeito de desejo e em sujeito político – o que prevalece até hoje, como
forma de luta contra o preconceito. É fato que – como fruto da ação daqueles
que sempre resistiram à dominação em todas as épocas – uma outra concepção
rivalizou sempre com o preconceito e com a ideologia naturalista que aprisiona
a sexualidade numa suposta realidade natural da divisão e da atração sexual: o
que chamamos de concepção histórico-antropológica (cultural, construtivista ou,
como proporei chamar aqui, construcionista), antes de constituídas as ciências
humanas modernas, já dava sinais de sua existência de muitas maneiras... em
filósofos, escritores, poetas e em solitários pesquisadores, de pouca fama, que
se pode reconhecer nas entrelinhas das citações e diálogos (explícitos ou
implícitos) na obra dos famosos.
Édipo, ratos, hormônios e genes: da ideologia à fraude das causas
Assim é que, situado que se trata de um produto histórico e
cultural, o preconceito não deixou de fazer seus estragos. E não deixaremos de
sugerir que as formulações sobre a(s) pretendida(s) causa(s) da
homossexualidade, que se dissimulam como “teorias”, pretendam ou não ser
“científicas”, merecem ser chamadas de fraudes (de ordem intelectual e moral),
pois constituem um trabalho do pensamento preconceituoso (social, mas também o
de cada um) que, embora se reconhecendo como tal, não cessa de agir. Em muitos
casos, trabalho que se crê portador da verdade da homossexualidade, da qual os
próprios homossexuais estariam privados, pois ignorariam a razão
(desconhecida para eles; inconsciente; genética, psicossocial, etc.) de sua
“tendência sexual”. E que se pretenda que no anúncio dessa verdade encontra-se
uma posição ética que concorreria para uma maior aceitação social da
homossexualidade ou para a liberação dos homossexuais numa maior aceitação de
si, a pretensão não é menos produto do imaginário colonizado pela ideologia da
heteronormatividade, colonizado pelo preconceito.
Por efeito da longa memória dessa
história de colonização pelo preconceito, pensar que existem causas específicas
que produziriam a homossexualidade, estigmatizada como um desvio, tornou-se uma
ideia que está na cabeça da maioria, se não de todos. Mesmo às vezes no
pensamento daqueles que se creem sem preconceitos. Quando não manifesto,
permanece latente, no imaginário social, a crença de que um homem ou mulher
cuja identidade sexual é a de homossexual é alguém que, no seu desenvolvimento
sexual, carrega algo que se constitui fundamento de uma variação não conforme a
tendência sexual majoritária. O homossexual seria sempre alguém que teria uma
sexualidade a ser esclarecida, investigada, por ele próprio e pelos outros,
pois, não conforme uma pretensa normalidade sexual (que seria também
normalidade psíquica, moral, social). Na boa “tradição europeia da confissão,
que começa pela confissão católica e desemboca na psicanálise” (FOUCAULT,
2004:30), o homossexual é sempre visto como aquele a quem se deve extrair a
confissão de sua sexualidade. A homossexualidade como desvio, para cuja
existência pesa uma causa específica (talvez variando conforme o caso), é
objeto das mais variadas fantasias... das crendices da opinião popular às dos
consultórios médicos e dos divãs, passando pelos laboratórios universitários de
pesquisa.
Na psicologia e na psicanálise, uma vez
que a naturalização do sexual é refutada por Freud (FREUD, 1905 [1972]), a
homossexualidade aparece como uma concretização dos percalços a que a
sexualidade do ser da linguagem pode regularmente ser submetida. Resumidamente,
três fatores determinariam a homossexualidade masculina: o forte vínculo do
filho com a mãe, a fixação na fase narcísica e problemas na “castração”. No
primeiro, a homossexualidade teria início em razão de uma intensa e incomum
atração do filho pela mãe, o que impediria a ele de se ligar a outra mulher. O
segundo fator, a fixação no narcisismo, faria com que o indivíduo invista menos
trabalho (psíquico) em se ligar ao seu igual (mesmo sexo) que a outro sexo
(diferente). A homossexualidade representaria uma espécie de “estagnação” na
fase narcísica, responsável por tornar o amor-sexual, para o homossexual, uma
experiência sempre condicionada a encontrar um órgão genital semelhante ao
dele. Terceiro fator, problemas relativos à chamada travessia da castração:
isto é, dificuldades emocionais relativas a perdas e à idéia de morte, que
deixariam o indivíduo resignado ou acomodado na sua psico(homo)ssexualidade.
Nesses termos, a homossexualidade
ilustraria uma falha no evento psíquico que se sucederia ao momento original no
qual, na infância, a fixação libidinal se realizaria a partir da imagem de si –
que não distinguiria nenhum outro traço que o igual – que, desde então,
funcionaria como o protótipo dos objetos que poderão provocar a atração sexual.
Como é sabido, para a teoria freudiana e de seus sucessores, o ser humano,
enquanto ser da linguagem e para passar de virtual a qualquer coisa a mais,
terá que atravessar uma crise psíquica singular em seus efeitos, que provocaria
ordinariamente o abandono da (primeira) imagem de si em proveito de uma imagem
substitutiva. Descartado que não se trata da realidade animal, em que não há
escolha, mas pré-formatação instintual do sexo, no ser falante, o narcisismo (o
amor da imagem de si) se encontraria na origem da escolha e da relação
libidinal e manteria uma tensão nostálgica e desvalorizadora com relação aos
futuros objetos substitutos da imagem de si. A crise psíquica que causaria o
abandono do primeiro objeto e suas substituições foi teorizada por Freud como
sendo a do Édipo e, desde aí, a atenção se voltou assim para o acesso à
sexualidade humana como uma realidade produzida num processo singular, caso
único entre todas as espécies animais, por se produzir a partir de uma
realidade não biológica mas psíquica e social. (Sem dúvida, definir o caráter
psíquico e social da sexualidade humana é uma importante contribuição de Freud
para um tema que o aproxima em quase tudo da antropologia, pois essa
sexualidade que é uma realidade psíquica é cultural/social no sentido
antropológico, isto é, realidade que é construção de uma configuração cultural
particular, nas relações sociais, que coloca cada um no roteiro que terá que
seguir no drama das instituições em cada cultura – a própria psicanálise
podendo ser inscrita num projeto de uma antropologia geral.) Mas se segue que
aquilo que era, em certo sentido, uma teorização revolucionária em Freud –
retirar o sexual do campo do biológico e inscrevê-lo na cultura – vai se tornar
também o ponto de partida de elaborações de um pensamento sobre a
homossexualidade (e já no próprio Freud) que não se distanciaram do
preconceito de pensá-la como adquirida por vias que a afastariam do percurso
normal da sexualidade, e aquisição que se poderia explicar.
Dispondo da teoria do Édipo, o modelo
freudiano proporá que, se o objeto desejado não encarna a prevalência do objeto
substituto – o outro, o diferente (héteros) – sobre o amor de si – o igual, o
mesmo (homós) –, algo de errado terá se passado ao nível da referenciação da
crise psíquica que provocaria ordinariamente o abandono dos objetos do amor de
si (homós) em proveito dos objetos do amor do outro (héteros). Conforme esse
argumento, a homossexualidade seria o caso de indivíduos que não alcançariam,
na sexualidade, o amor do objeto culturalizado – nem instintual, nem narcísico
–, permanecendo no amor (primário) do igual, do mesmo (hómos). Por outro lado,
a heterossexualidade seria o caso bem sucedido da passagem de um estado a outro
da escolha objetal no psiquismo, em que sairia ganhando a reprodução da espécie
e a organização social humana, baseada na diferença entre os sexos. Daí porque a
heterossexualidade corresponderia a uma sexualidade perfeitamente cultural,
civilizatória, própria do ser da linguagem, e resultado de uma intervenção
humana (na forma do Édipo, do complexo de castração e quejandos), assinalando o
acesso do indivíduo à cultura, sob o império da Lei (do Pai) da diferença
sexual. Para a ideologia (no discurso freudiano e no de seus seguidores), a
homossexualidade estaria para a natureza assim como a heterossexualidade
estaria para a cultura?
Ainda no modelo teórico das psicologias, a homossexualidade (masculina) seria
efeito de uma mensagem da mãe, recebida pelo filho, na rivalidade com o marido.
Tratarse-ia, assim, de um lado, da figura do pai, que, desde a aurora dos
tempos freudianos, é identificado com a lei, e, de outro, da figura da mãe, que
seria uma mulher que nutriria uma queixa essencial com relação a essa lei, pois
lei que parece dispensá-la da castração e do seu reconhecimento. Mãe, ela
espera do seu filho uma vingança decisiva contra a instância demasiada injusta
para fazê-la submissa e demasiado absurda para separar uma mãe de seu produto.
Ora, como se sabe que esse pai não está aí senão por procuração – ele é o pai
simbólico –, a mãe (do homossexual), nessa fábula, o que tem é um problema com
a lei (do pai) e oferece ao filho uma alternativa de ser a outra versão –
(per)versão? sub-versão? – da lei do pai. A mãe, transferindo – inconsciente –
o desejo de ser uma outra versão da lei do pai, deixa ao filho o combate a uma
lei patriarcal que, introduzindo o pai no centro de tudo, 14 também a subjuga e
oprime: “A mãe faz lei no lugar do pai”, “a mãe dita a lei ao pai” (LACAN,
1957-1958 [1999]). O homossexual seria aquele que, levado a negar a castração,
terminaria riscando do seu programa a diferença entre os sexos (observar que
Freud já concluía pela mesma curiosa ideia em 1915; FREUD, 1975 [1976: 356]).
Nos termos propostos por Jacques Lacan, em um de seus célebres Seminários, o
homossexual seria aquele que conservaria uma “relação profunda e perpétua com a
mãe”, manteria “identificação com a posição da mãe”, mãe diretiva, “que cuidou
mais do filho que o pai”, etc etc.
A mãe que mostra ter sido a lei para o pai num momento decisivo... no momento
que a intervenção proibidora do pai deveria ter introduzido o sujeito na fase de dissolução
de sua relação com o objeto do desejo da mãe, e cortado pela raiz qualquer possibilidade
de ele se identificar com o falo, o sujeito encontra na estrutura da mãe, ao contrário, o
suporte, o reforço... que faz com que essa crise não ocorra (LACAN, 1957-1958 [1999:
215]).
Não identificados com a posição do pai, os homossexuais conservariam para sempre
– “não são curados” (ibid: 214]). – um “medo pavoroso de ver o órgão da mulher (...),
pela suposição de que a vagina [perigosa] ingeriu o falo do pai: (...) o que é temido na
penetração [homem/homossexual – mulher] é justamente o encontro com esse falo”
(ibid:218). Mais ainda:
a exigência do homossexual de encontrar em seu parceiro o órgão peniano
corresponde precisamente a que, na posição primitiva, aquela ocupada pela mãe que dita a
lei ao pai, o que é questionado – não resolvido, mas posto em questão – é saber se, na
verdade, o pai tem ou não tem, e é exatamente isso que é exigido pelo homossexual a seu
parceiro, acima de qualquer outra coisa, e de um modo preponderante em relação às
outras coisas (ibid: 217]).
Tais eventos psíquicos constituem o homossexual como aquele que “agarra-se
extremante à sua posição homossexual”, como aquele que tem “dificuldade de abalar sua
posição” – é ler Lacan... e conferir (para todas as citações: LACAN, 1957-1958 [1999:
214-220]).
Tais generalizações ignoram a diversidade das culturas (já MALINOWSKI, 1927
[1973], apontava críticas a Freud sobre as generalizações de sua teoria, embora críticas consideradas ingênuas por estudos posteriores (entre outros, DUVEREUX, 1972;
ORTIGUES e ORTIGUES, 1989)), a variabilidade das famílias, mesmo apenas no interior
das sociedades ocidentais, assim como a amplitude, variabilidade e dinamismo das relações
humanas que engendram a biografia de cada indivíduo, incluindo aí a sua sexualidade –
esta seguramente não sendo construída apenas pelas relações que se produzem no
microcosmo familiar e na infância. Acrescente-se, igualmente, as generalizações de um tal
modelo teórico (que se pretende validado pela clínica) tornam-se responsáveis pela
reificação do preconceito, ao traduzir, mais uma vez, a homossexualidade como
“problema”, que se quer intrínseco à sua própria natureza como orientação ou variante
sexual, embora a realidade demonstre o contrário: o número daqueles que são
homossexuais, para os quais a homossexualidade não é um “problema”, é muito maior do
que o preconceito (da opinião popular ou do senso comum douto) é capaz de admitir.
Convém anotar, entretanto, que nossa crítica à abordagem da homossexualidade
pela psicologia e pela psicanálise não ignora a importante contribuição dessas áreas ao
estudo de diversos outros fenômenos humanos. E não podemos deixar de ressaltar o
importante papel que a psicanálise desempenha hoje, por exemplo, no combate às tentativas
de biologização dos atos humanos, no que ela se reúne à crítica das demais ciências sociais
à nova vaga do determinismo biológico. Foi exatamente esse combate que inspirou a
psicanalista e historiadora das idéias Elisabeth Roudinesco a escrever seu ensaio “Por que a
psicanálise?”, no qual diz:
violentamente atacada hoje em dia pelos que pretendem substituí-la por
tratamentos químicos, julgados mais eficazes porque atingiriam as chamadas causas
cerebrais das dilacerações da alma (...) [a psicanálise] restaura a idéia de que o homem é
livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico
(ROUDINESCO, 2000: 9).
É com a crítica ao determinismo biológico e sua tentativa de igualmente definir a
gênese própria da homossexualidade que nos ocuparemos daqui por diante. A procura por
explicar os fenômenos humanos a partir de bases biológicas não é um fato de hoje na
história da ciência. Mas, não resta dúvida, que a onda atual do determinismo biológico tem
permitido retornar com força, nas últimas décadas, explicações biologizantes de fatos
sociais e fenômenos culturais, com ampla aceitação e difusão pelas mídias. Destacam-se,
16
entre outras expressões, a atuação da sociobiologia (e desde Edward Wilson) – com
variações entre os autores, que podem ir de comentários mais ou menos comprometidos
(ROSE, 2000), hibridismos teóricos entre antropologia cultural e sociobiologia (PARÍS,
2002) ou formulações fortemente comprometidas (WINSTON, 2006) – e a atuação do seu
subproduto correspondente: a chamada psicologia evolucionista (WRIGHT, 1996;
PINKER, 2004).
Acreditando que a subjetividade humana possui fundamentos biológicos, autores
dessa vertente afirmam a existência de um “componente genético” para a
homossexualidade. E o fazem, ao que parece, pretendendo fundamentar uma visão “não
preconceituosa”, não baseada em juízos morais, que concorreria para se ter uma
compreensão (justa?) da homossexualidade. Esta definida como uma prática para cujas
razões (na espécie humana e na vida do indivíduo homossexual) a natureza teria
concorrido. Como escreve Robert Winston, em Instinto Humano:
Do ponto de vista da seleção natural, a homossexualidade deveria ser um beco sem
saída. Não pode haver nenhuma vantagem evolucionista em ser exclusivamente gay ou
lésbica. Contudo, os seres humanos não são os únicos com comportamento homossexual:
os bonobos – chimpanzés pigmeus – freqüentemente são vistos se agarrando com parceiros
do mesmo sexo (WINSTON, 2006: 120).
E mais adiante, diz o autor: a homossexualidade pode parecer ir de encontro à
adaptação evolucionista, mas isto não significa que seja uma prática moralmente ruim
(Ibid, 2006: 122). Uma posição semelhante parece ser a de Simon Le Vay, especialista
norte-americano em neuroanatomia e autor do livro The Sexual Brain, publicado em 1991,
ele próprio homossexual, que procurou enraizar a homossexualidade num “cérebro gay”,
certamente por acreditar que a naturalização da homossexualidade poderia ajudar a
diminuir o preconceito contra homossexuais. Essa posição não nos parece, contudo, afastarse
do preconceito. Mais adiante, voltaremos ao assunto.
As teses da sociobiologia e da psicologia evolucionista retomam a chamada
controvérsia “natureza versus cultura”, conhecida de antropólogos, sociólogos, psicólogos,
pedagogos. Controvérsia iniciada, no final do século XIX até as primeiras décadas do
século XX, nas disputas entre biólogos e psicólogos, ao discutirem os fundamentos dos
chamados “traços comportamentais”, gerando uma polêmica na qual se considerava, de um lado, que certos padrões de comportamento eram herdados, inatos, inscritos nos genes
(etólogos, psicólogos fisicalistas) e, de outro, que os comportamentos eram aprendidos
(psicólogos behavioristas), sendo moldados ou pela seleção natural (biólogos e fisicalistas)
ou pelas experiências do indivíduo (psicólogos comportamentalistas, behavioristas).
Essa dicotomia foi retomada por Edward O.Wilson, um entomologista e biólogo de
Harvard, considerado o fundador da sociobiologia (ROSE, 2000; PARÍS, 2002), para
quem, mesmo numa sociedade mais igualitária, as desigualdades e hierarquias sociais
continuariam a existir, como os homens dominando as mulheres, pelo peso da herança
biológica animal sobre o comportamento social humano. Somos (machistas) como os
macacos (PINKER, 2004). Seu projeto, apresentado no livro Sociobiologia: a nova síntese,
publicado em 1975, estabelecia que “a sociobiologia, assim como as outras ciências
sociais e as humanidades, são os últimos ramos da Biologia e esperam ser incluídas na
moderna síntese” (apud PARÍS, 2002: 42). Nessa “ciência unificada do comportamento”,
como assinala Michael Rose, “o comportamento humano deveria passar a ser estudado
como o comportamento da mosca das frutas e dos gansos, num esforço sistemático de
resolver ou revelar todas as motivações darwinianas inerentes a ele.” (ROSE, 2000: 195).
Tese que, de lá para cá, tem ganhado cada vez mais força e adeptos, mesmo no interior das
ciências humanas nas universidades.
A sociobiologia pretende explicar as sociedades humanas (instituições sociais,
padrões culturais) a partir de uma teoria evolucionista que se pretende baseada nas
conclusões da biologia sobre origem e evolução das espécies animais. Uma espécie de
neodarwinismo, aceito por certos darwinianos, contestado por outros [2]. Os sociobiólogos
sugerem, com pequenas variações de ênfases entre eles, que os comportamentos sociais
humanos, de algum modo, são determinados geneticamente e sua manutenção deve-se à
seleção natural no processo da evolução da espécie (WINSTON, 2006; WRIGHT, 1996;
PINKER, 2004). Nas últimas décadas, a sociobiologia e a psicologia evolucionista têm se
fortalecido com a expansão da biologia molecular e com os desdobramentos do Projeto Genoma. Igualmente, sem que seja estranho à episteme de nossa época, a neurociência tem
assumido a dianteira das explicações sobre comportamento humano centradas somente na
biologia, na genética.
No tocante às orientações sexuais e à homossexualidade, em particular, as teses do
determinismo biológico vão variando mais ou menos conforme o tempo e os “avanços” que
estabelecem. Já se falou de comparecimento de algum gene (ou grupo de genes) no zigoto
do indivíduo, levando-o a apresentar um traço correspondente de comportamento sexual,
sem relação com o ambiente (relações sociais, padrões culturais) no qual se desenvolve. Já
se atribuiu aos hormônios funções determinantes na orientação sexual: testosterona,
progesterona e estrógenos concorreriam para definir as tendências sexuais dos indivíduos.
Homens homossexuais seriam “feminilizados” e mulheres homossexuais seriam
“masculinizadas” pelos hormônios, estes conformando suas tendências sexuais. Por fim,
mais recentemente, seguidores das ciências que estudam o cérebro acreditam que os genes,
alterando a estrutura cerebral, gerariam a orientação sexual correspondente. O exemplo
mais conhecido é a tentativa de reputar aos genes de certa região cerebral a
responsabilidade pelas diferenças no hipotálamo e de se concluir que este fenômeno
determinaria a orientação sexual. No cérebro, estaria definido se somos homossexuais ou
heterossexuais.
Diversas críticas podem ser feitas ao determinismo biológico e não apenas quanto à
sua tentativa de definir a “causa” da homossexualidade. Destacaremos rapidamente
algumas delas. Como discurso científico, o determinismo biológico é uma reificação
reducionista de processos e realidades (mesmo biológicas), em termos de uma natureza
humana biológica fixa, que não podem ser compreendidos se não se considera suas relações
com práticas culturais, históricas e sociais, que são dinâmicas e diversas. Constitui um
procedimento igualmente reducionista por pretender a existência de “genes” ou
“hormônios” específicos para cada gesto, emoção, atitude, desejo, eliminando a
complexidade de fatores envolvida na produção dos atos humano-sociais. O mais curioso
de observar, tratando-se de trabalhos no campo científico, é a inversão na ordem das coisas:
o efeito torna-se a causa. É comum a descrição de fenômenos tomados como
desencadeados por “ações do cérebro”, à simples vista fenômenos que são reflexos ou
reações fisiológicas provocadas por situações emocionais, subjetivas, sociais. O uso das
19
imagens feitas com ressonância magnética talvez seja, hoje, o melhor exemplo dessa
inversão (A edição de 31/01/07, da revista Veja, traz matéria sobre as “bases cerebrais” da
atitude de compradores compulsivos, atestadas por imagens produzidas com a técnica da
ressonância: são o nucleus accumbens, o córtex insular e o córtex pré-frontal médio que
nos fazem comprar o carro da propaganda na TV, a camisa que está na vitrine ou o perfume
que adoramos!).
O determinismo biológico é também uma extrapolação questionável à esfera da
realidade humano-social de estudos realizados com animais, tornando-se uma ampliação de
modelos que se tornam válidos apenas para certos tipos de fenômenos e não para todos. Um
exemplo dessa extrapolação é Gunther Dörner, que, trabalhando na Universidade
Humboldt, em Berlim, e estudando cérebros de ratos, concluiu que a identidade de gênero
dos bichinhos podia ser modificada, quando se interferia em partes de seu cérebro. Gunther
Dörner partiu daí para fazer afirmações sobre a homossexualidade humana... Outro
exemplo de extrapolação é Simon Le Vay, a quem já nos referimos: estudando cérebros de
cadáveres, com tecidos naturalmente modificados pela morte, afirma ter encontrado uma
diferença estrutural de tamanho nos hipotálamos de gays e lésbicas: nos homossexuais,
seria de menor tamanho. O neuroespecialista estudou os cérebros de 41 cadáveres,
incluindo 6 mulheres, 19 homens homossexuais e 16 outros que supôs serem
heterossexuais. No seu estudo, afirma ter encontrado uma pequena área do cérebro, o
INAH-3, que era de medida menor e similar em mulheres e homens homossexuais e maior
em homens que supôs serem heterossexuais. Para o determinismo biológico, ratos e
cadáveres servem para definir aspectos da subjetividade humana, o desejo, a gênese da
homossexualidade.
Por fim, por seus termos, o determinismo biológico corresponde a uma elisão do
social, do cultural, da história e da política na vida de nossas sociedades. A constatar pelos
“estudos” divulgados pela mídia, sempre com muito estardalhaço, as diversas expressões
dessa corrente de pensamento estão prontas a estabelecer uma sociedade humana
inteiramente dominada por genes, neurônios, hormônios, e sem instituições culturais,
padrões sociais, classes, Estado, relações de poder, sujeições à ideologia, conflitos, lutas
políticas, etc. Em outros termos, uma ciência do social sem sociedade.
Mas o determinismo biológico não segue sem críticas. As ciências sociais, através
de diferentes autores, nunca deixaram de realizar a crítica às tentativas de biologização e
naturalização do social (SAHLINS, 1980; BOURDIEU, 1989; 1998; 1999; HÉRITIER,
1996; GODELIER, 1982; KURZ, 1997, entre outros exemplos). Hoje, diversas vozes têm
se levantado para denunciar os significados conservadores de suas teses e advertir que
algumas delas representam ameaças a conquistas emancipatórias importantes. Nomeando a
vaga biologizante atual de “pretensões obscurantistas”, valeria mais uma vez citar
Elisabeth Roudinesco, ao acusar as tentativas de biologização do social de pretenderem
“reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção química”
(ROUDINESCO, 2000:9). A crítica ao determinismo biológico na ciência não deve ser
confundida, entretanto, com o combate à ciência como tal, empreendida por religiosos
conservadores e outros.
Homossexualidade: uma orientação sexual, uma expressão sexual como outra
O que o preconceito oculta? O que para o preconceito se torna insuportável quando
se trata de pensar a homossexualidade? Que é a homossexualidade?
Não é mais desconhecida a formulação teórica (na psicologia, antropologia,
sociologia, pedagogia, etc.) que define a homossexualidade como uma orientação sexual
para pessoa do mesmo sexo. Deve-se evitar, contudo, a confusão de pensar que apenas a
homossexualidade é uma orientação sexual (com talvez mais a bissexualidade), sendo a
heterossexualidade outra coisa diferente de uma orientação. Que é uma orientação sexual?
Em geral, define-se a orientação sexual como a atração e o desejo sexuais (paixões,
fantasias) do indivíduo por um outro de um gênero particular. O gênero é a conformação
física, orgânica, celular, particular que permite distinguir, nas espécies, os machos e as
fêmeas e, na espécie humana, o homem e a mulher, o sexo masculino e o sexo feminino.
Mas, nesses termos, uma definição ainda muito limitada, pois, para homens e mulheres, o
gênero é uma construção social que se configura numa relação com o que, em cada cultura
e época histórica, se define como sendo a identidade sexual, os papéis sexuais, idéias de
masculinidade, feminilidade, etc. (BUTLER, 2003; HÉRITIER, 1996; BADINTER, 1985;
21
1986; 1993; BOURDIEU, 1999; CECCARELLI, 1998b). Em geral, ao gênero se vincula
uma identidade sexual, mas, como advertem os estudiosos do assunto, essa relação entre
gênero e identidade é uma realidade bem mais complexa: “o modelo biológico do
masculino e do feminino é válido para a definição celular; mas seria ilusório pensar que a
identidade sexuada poderia ser definida a partir do biológico” (CECCARELLI, 1998a,
s/p) A orientação sexual, na maior parte dos casos, não interfere na identidade sexual.
Ficam de fora os casos de transexualismo (CECCARELLI, 1998b) Assim, contrariamente
ao que imagina a opinião popular, um homossexual masculino não se identifica como
“feminino”, não se sente “mulher”. Conceber a sexualidade do indivíduo em termos de
orientação sexual (e esta como atração, fantasias e desejo direcionados a indivíduos de
outro, do mesmo ou de ambos os gêneros) é quase um consenso entre especialistas hoje
(SUPLICY, 1983).
Não resta a menor dúvida, o conceito de orientação sexual é válido para pensar a
homossexualidade. Deve-se saber, todavia, que a orientação sexual é algo complexo, cuja
compreensão envolve entender a relação sui generis de elementos diversos, que
desconhecemos e deformamos ao querer captá-los em sua totalidade e como causação,
alguns deles que permanecerão para sempre insondáveis. Porém, para um uso mais crítico
do conceito e para evitar possíveis apropriações preconceituosas e conservadoras, torna-se
importante dessubstancializar a orientação sexual, relativizando o papel que as variáveis
psicológicas e pedagógicas ocupam no conceito, que tornam a orientação sexual uma
substância em si (um objeto natural e universal), levando a crer, mais uma vez, que os
indivíduos portam algo identificável a uma sexualidade fixa, inteligível, coerente, inteira,
um conjunto de atributos idêntico a si mesmo, provavelmente também “com uma gênese
específica”. Para evitar a substancialização da orientação sexual, é importante trazer a
reflexão sobre o assunto para o terreno da reflexão antropológica e sociológica: a
orientação sexual é uma construção subjetiva, certo!, como desejo é singular e em grande
medida inconsciente, mas é igualmente uma construção de caráter social. Constituída de
prazeres, sensações, fantasias, imaginação, práticas eróticas, etc., a orientação sexual é
construída nos embates subjetivos e sociais, produzidos nas interações, sob padrões
culturais, relações de poder, idéias sociais, configurando-se como um fenômeno individual
tanto quanto coletivo. Constitui uma expressão sexual, uma manifestação das possibilidades sexuais e eróticas humanas, sempre contextualizadas e socialmente comuns a
muitos indivíduos.
Uma orientação sexual expressa a plasticidade e as possibilidades humanas no
terreno da sexualidade, como em outros. Expressões das capacidades criativas e variáveis
humanas. Os estudos em antropologia e sociologia, alguns deles já citados neste trabalho,
demonstram que, na espécie humana, as orientações sexuais podem assumir várias formas.
Os estudos também mostram que a variedade de orientações sexuais é encontrada em todas
as culturas e em diferentes épocas, embora não se constituam necessariamente nas
identidades sociais como conhecemos, hoje, nas sociedades ocidentais modernas.
Definida em termos de orientação ou expressão sexual, a homossexualidade não é
uma opção que depende da vontade do indivíduo, como uma deliberação consciente, mas
nenhuma orientação sexual o é, assim como não é algo da ordem de uma causa específica
(como pretendem as tentativas de explicação criticadas logo acima). Se há que se falar de
causa, a causa da homossexualidade é a mesma de toda orientação/expressão sexual, a
mesma da sexualidade humana como tal: a pulsão sexual, sobre a qual se estrutura o desejo,
que, como Freud a caracterizou, não tem objeto nem fixo nem único, não se determina
nenhum objetivo como natural ou normal, e que faz suas escolhas segundo uma economia
cujo único princípio é o prazer (FREUD, 1905 [1972], entre outros textos do autor). Assim,
heterossexualidade, homossexualidade ou bissexualidade são nomenclaturas usuais (todas
com sentidos culturais e históricos) para expressões sociais do desejo sexual humano,
calcadas na pulsão. A sexualidade ligada à pulsão e ao desejo não se estrutura por uma
disposição orgânica ou em dados fisiológicos. Assim,
Ao buscar o prazer, a sexualidade escapa à ordem da natureza e age a serviço
próprio "pervertendo" seu suposto objetivo natural: a procriação. Subordinar a
sexualidade à função reprodutora é "um critério demasiadamente limitado", adverte Freud.
Isto vem mostrar à biologia, à moral, à religião e à opinião popular, o quanto elas se
enganam no que diz respeito à natureza da sexualidade humana: a sexualidade humana é,
sem si, perversa - entendida aqui em seu sentido primeiro: desvio de uma finalidade
específica. Ou seja, em se tratando de sexualidade, não existe "natureza humana" pois a
pulsão sexual não tem um objeto específico, único e muito menos pré-determinado
biologicamente (CECCARELLI, 2000, s/p).
Desestabilizando ingenuidades e confrontando à opinião comum, as esferas do
desejo e da sexualidade são possibilidades abertas e sempre mais surpreendentes, superando
toda predeterminação e naturalismo. As diversas orientações/expressões sexuais são
construtos da mesma estrutura da pulsão e dos mesmos desígnios insondáveis do desejo. A
nosso favor, citaremos mais uma vez o psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli:
Tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são posições libidinais e
identificatórias que o sujeito alcança dentro da particularidade de sua história: as duas
formas de manifestação da sexualidade são igualmente legítimas (CECCARELLI, 2000,
s/p).
E, no âmbito do desejo e da sexualidade, toda procura de inteligibilidade – causas
específicas – está fadada a cair em preconceitos, nos discursos de poder, na ideologia,
porque buscarão determinações sempre arbitrárias, reducionistas, e sob o domínio dos
discursos de normalidade social. Foi o próprio Freud quem escreveu que
a pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os
homossexuais, colocando-os em um grupo à parte do resto da humanidade, como
possuidores de características especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se
manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma
escolha-de-objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu inconsciente” (FREUD,
1905 [1972:146]) E mais adiante: “assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse
sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser
elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo (ibid: 146).
O que toda uma abordagem histórico-sócio-antropológica tem demonstrado até aqui
é que, por sobre o prazer e por sobre o desejo, a intervenção da cultura (por meio de
diversas formas) elege sempre uma expressão sexual como a forma normal (ou natural) –
escolha da ordem do que sociólogos e antropólogos, depois de Pierre Bourdieu, chamam de
“arbitrário cultural” (BOURDIEU, 1982:20) –, foracluindo várias outras como
anormalidades. Isto é, uma ordem social-cultural (em qualquer tempo e lugar), na medida
em que é uma construção de caráter convencional, elege, aleatoriamente – não inteiramente
consciente, e num acontecer anônimo, coletivo e impessoal –, suas instituições, padrões,
crenças, etc. que se integrarão à ordem (enquanto também uma “máquina simbólica”
(BOURDIEU, 1999:18)) como uma realidade única, universal e necessária, invalidando
24
todas as demais alternativas por ela não ratificadas. A sexualidade não fica menos fora
desse processo, que em ciências sociais chamamos de “institucionalização” do social
(BERGER E LUCKMANN, 1985) - assunto para cuja reflexão se pode igualmente
mencionar Freud (FREUD, 1929 [1974]).
Na história das nossas sociedades, o que ocorreu é que a história da
heterossexualidade é a de um notável privilégio, mas não menos sustentado pela eficácia da
ideologia. Sendo o sexual polimorfo, variegado, diverso, o que ocorreu, até aqui na história,
é que a institucionalização social procura reduzi-lo a uma única forma, tendo sido a
heterossexualidade a forma consentida e legitimada nas nossas sociedades. Fato que não
guarda nenhum mistério, nem se deve a qualquer razão alheia às razões humanas: o
consentimento da heterossexualidade, construída ao lado da negação da homossexualidade,
não se deve a qualquer razão indiferente aos fatos que produzem a cultura, a história. Não é
a heterossexualidade uma forma inata da sexualidade; como uma prática sexual ela é social
e historicamente construída, e sua naturalização e hegemonia ocorreram por efeito de um
longo trabalho de domesticação do imaginário social das sociedades humanas, que se fez
invalidando, ao mesmo tempo, a prática da homossexualidade, excluída como uma
“inversão” da sexualidade “normal”. Vê que o próprio Freud considera essa hipótese da
domesticação e da “proibição terminante pela sociedade” como fator de exclusão da
homossexualidade na sexualidade dos indivíduos (FREUD, 1905 [1972: 236]; 1929 [1974:
passim]). Sendo uma instituição histórico-social como outra, a heterossexualidade se
estabeleceu estigmatizando a homossexualidade, fato que se deu com a mesma semelhança
e força com que a dominação masculina emergiu em todas as culturas. Aliás, a prevalência
da dominação masculina e a supremacia da heterossexualidade são fatos que guardam
relações entre si na história cultural das sociedades humanas. Porém, como assinalam
diversos estudos (ROSALDO E LAMPHERE, 1979; GODELIER, 1996), o fato de não
encontrarmos, nas diversas sociedades conhecidas, casos em que a dominação masculina
não seja um dado antropológico, e conseqüentemente a submissão feminina seja sempre
uma realidade, isso nada revela sobre uma pretendida inferioridade natural da mulher, mas,
ao contrário, revela tão somente a longa história de dominação social dos homens que se
estabeleceu nos modelos de sociedade que a humanidade construiu até aqui.
O mesmo se deu com a valorização da heterossexualidade em detrimento da
homossexualidade: um puro fato da história humana, que não possui nenhuma razão
imanente (de qualquer ordem), mas que não foi sem conseqüência para o pensamento
humano, como tem sido o caso também da questão da desigualdade entre homens e
mulheres. Vale lembrar, o que toda uma perspectiva crítica – que volto a chamar
construcionista [3] – tem procurado demonstrar é que a sexualidade é um construto social
como outro e que sua existência se deve a um processo de construção que em nada difere
de todo o processo de institucionalização da realidade. Não havendo sexualidade natural,
mas social, o que ocorre com o sexual é o mesmo que ocorre com todas as demais esferas
da vida social: algo que é uma construção arbitrária, uma instituição de caráter
convencional e histórico, ganha, no curso histórico, a aparência de uma realidade natural,
universal, necessária e irreversível, tornando inválidas todas as demais formas que ficaram
foracluídas no processo da institucionalização. A homossexualidade é uma das formas
foracluídas do sexual nas nossas sociedades, estigmatizada pelo discurso da instituição
social da sexualidade.
Do ponto de vista de uma constante antropológica e psíquica, ninguém está
afastado da possibilidade de práticas eróticas com pessoas do mesmo sexo, de relações
homossexuais. Conforme o Relatório Kinsey, já em 1948, um quarto dos jovens americanos
tinham tido relações homoeróticas. Não há o que se possa chamar de pré-disposição (inata
ou adquirida) à homossexualidade em alguns e sua inexistência absoluta em outros, como
algo determinado por movimentos internos do psiquismo ou como fenômeno enzimático-endocrinológico.
De novo aqui, Freud, por mais que tenha fechado algumas vezes a via
crítica aberta por ele próprio, deve ser lembrado entre os autores que indicaram a existência
de uma “bissexualidade psíquica originária” no ser humano (FREUD, 1972, 1974; cf.
também ROUDINESCO, 2002: 41), o que torna possível pensar que é somente à custa de
prolongada domesticação cultural que essa disposição psíquica desaparece para dar lugar à
heterossexualidade ratificada como “normal” e “em conformidade com a natureza”. O
preconceito inverteu as razões e apresentou a homossexualidade como um desvio de um suposto desenvolvimento normal, quando se trata de uma variante da sexualidade existindo
em todos, mas inibida pela sujeição cultural – através da ideologia da heteronormatividade.
A própria normalidade não sendo mais do que uma construção simbólica reversível, mas
que, para se perpetuar, procura todos os meios de sua naturalização e divinização. O horror
à homossexualidade manifestado por muitos sistemas de sociedade e religiões deve ser
visto como expressão de uma ordem simbólica em seu temor (metafísico-ideológico) de
desaparecer enquanto ordem reversível, que tem na heterossexualidade sua base.
Assim, se a sexualidade humana como um todo tem sido objeto de visões
preconceituosas, a homossexualidade, dentre as suas expressões, tem sido historicamente e
incomparavelmente a que a mais ataques tem sido submetida pelos preconceitos produzidos
em religiões, moral, ciência e no direito em todas as partes. Preconceito que tem
constituindo fonte de opressão para milhares de homens e mulheres em todas as idades,
classes sociais e nos diversos países.
Desfazendo enganos
Por fim, quando o preconceito crê como certo que a homossexualidade é um
fenômeno a ser esclarecido em sua causa específica, devemos deslocar a questão sobre a
sua pretendida causa para uma outra: assim, ao invés de se querer saber “qual a causa da
homossexualidade?”, deve-se perguntar: por que e qual a origem do preconceito em torno
da homossexualidade?
Muito ainda resta a ser feito. É a própria compreensão da sexualidade humana que
deve ser revista ou a própria ideia de uma substância chamada sexualidade que deve
desaparecer. Após séculos de condenação pela religião, pelo Estado e pela ciência (ou
pseudociência?), um conhecimento livre de preconceito na compreensão da sexualidade,
do desejo sexual, permanece uma construção a ser continuamente desenvolvida e um
desafio a ser assumido por aqueles que tenham compromisso com a crítica do preconceito e
com a emancipação e a felicidade humanas.
A crítica ao preconceito tem sempre novas lutas a empreender. E uma delas é
desfazer o engano de correntes entre os próprios homossexuais que, caídos também no
determinismo biológico que criticamos antes, acreditam que encontraram nos favores da
genética uma maneira de enfrentar o preconceito: admitindo a tese segunda a qual a
homossexualidade é um fenômeno enzimático, endocrinológico ou genético, teria se
chegado, assim, ao patamar no qual se poderia impor a verdade de uma “homossexualidade
natural”, seguindo o engano de uma “heterossexualidade natural”. Poder-se-ia, assim,
combater os preconceituosos, o discurso religioso, alegando a natureza natural da
homossexualidade – espécie de apelo à sociedade para que aceite os homossexuais, pois
tratar-se-ia de algo da ordem do nascimento (estaria, pois, nos planos do Criador) com
relação ao que “não se pode ir contra”. Mais uma vez o preconceito vencerá caso se caia
nessa armadilha: a aceitação da homossexualidade deve acontecer na sociedade por sua
mudança de conceitos, paradigmas e valores, não por acomodação a uma pretendida
“verdade” que estaria na “própria constituição genética” dos homossexuais. A invenção do
“gene da homossexualidade” é outra vez o trabalho do preconceito e da ideologia na
história.
Uma outra batalha a se empreender é fazer que se compreenda que as lutas dos
homossexuais pela cidadania plena (direito ao reconhecimento pelo Estado e pela lei de
suas uniões conjugais, direitos de herança, direito à adoção por casais gays, entre outros
direitos que se tem conquistado em diversos países) não é um ingênuo “desejo de
normalização”, uma queda na ideologia (burguesa ou outra), mas um nível de luta política
em que se questionam as idéias de normalidade e de democracia, quando esta se limita a
direitos que excluem significativos segmentos da população em diversos países – os
homossexuais entre os mais excluídos (MOTT, s.d.).
Por fim, poderíamos assinalar o fracasso, mais uma vez, de teses que pretendem
aprisionar os homossexuais numa espécie à parte, pois as lutas pela cidadania plena
desconstroem até mesmo aquelas teses que se apresentam com o charme libertário que
destina aos homossexuais o papel de “sublimes perversos” da cultura, subversivos
marginais da ordem, tese que, como assinalou Elisabeth Roudinesco, “está prestes a
desaparecer” (ROUDINESCO, 2002: 46), com a atitude dos homossexuais que, sabendo
que toda normalidade é uma construção social e histórica, procuram redefinir uma nova normalidade social, em que a homossexualidade não seja estigmatizada como exceção,
desvio, inversão, patologia, anormalidade, mas seja vista como uma expressão da
sexualidade humana, uma orientação sexual, entre outras, em torno da qual se pode
organizar afetos, laços, famílias. Aqui quando os homossexuais questionam os próprios
conceitos de normalidade social, democracia e cidadania nas sociedades nas quais vivemos.
Amanhã, teremos superado todo o preconceito se não tivermos mais questões a
colocar sobre a causa própria da homossexualidade.
Notas
[1] Neste artigo, estarei utilizando o termo ideologia no sentido próprio de “inversão da realidade” e de “idéias
da dominação”, sentido outorgado ao termo desde Marx (MARX, 1845 [1986]). Contudo, deve-se assinalar,
nas reflexões deste último, como inversão e dominação, a ideologia corresponderia ao modo particular do
imaginário da sociedade capitalista. A ideologia seria a representação da realidade que a classe dominante
nesta sociedade produz e procura impor a todas as demais classes, com o objetivo de garantir sua posição de
classe dominante. Objetivo que realiza, ao dissimular, justo através da representação ideológica que oferece
da realidade, a dominação que pratica sobre as outras classes. Embora o fenômeno da ideologia tome essa
forma específica, e não há que se esquecer isso, é importante assinalar que se torna necessário, hoje,
acrescentar à elaboração pioneira de Marx novas considerações sobre o fenômeno da ideologia. Em meus
textos, somando à minha própria reflexão as contribuições de Louis Althusser (ALTHUSSER, 1974; 1985),
Maurice Godelier (GODELIER, 1980; 1996), John Thompson (THOMPSON, 1995) e Marilena Chauí
(CHAUÍ, 1980; 1981), tenho insistido em formulações na direção de um conceito de ideologia que não fique
restrito à dimensão da dominação de classe, e que torne possível pensar o dado antropológico da dominação
que sempre-já implica a sujeição do indivíduo humano à Cultura, através de sua sujeição a normas, costumes,
padrões, crenças, mitos, instituições. Nesse sentido, deve-se entender que a ideologia torna possível a
dominação pela via simbólica, desde já a sumpção do indivíduo pela linguagem, via pela qual ocorre de toda
estruturação social se constituir, tornando-se uma ordem que se ratifica no simbólico, e constituindo-se ela
própria numa ordem simbólica. A ideologia, assim, responde a uma exigência anterior à necessidade da
reprodução das relações de produção (capitalistas ou outras) e da dominação política de classe, como ainda
entendem diversos autores (marxistas ou não). Anterior a toda outra coisa, a ideologia assegura, em todo
sistema de sociedade, mesmo naqueles nos quais não há classes, que a ordem social não desabe enquanto
também uma Ordem Simbólica, ratificando-a, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e
certas idéias sociais, como uma ordem natural, única, universal, imutável, divina. Resultado que a ideologia
procura obter invertendo e ocultando o caráter de coisa construída, arbitrária e convencional de toda ordem
social e suas instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e
reproduzida sem o recurso da força. A ideologia constitui o modo de operar de toda cultura (enquanto sistema
de sociedade), ao procurar naturalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos sociais (variando do
mito à ciência moderna) que oferecem as significações legitimadoras do que em cada cultura está instituído.
Podemos apontar que a eficácia da ideologia, entre outras formas, realiza-se na sua ancoragem nas esferas
psíquica, emocional e cognitiva (a subjetividade de cada um; uma parte dela inconsciente) dos indivíduos. O
estigma da homossexualidade como prática cuja causa específica deve-se desvendar, ainda perdurante em
muitas cabeças, que transforma os homossexuais em indivíduos-portadores-de-um-enigma-a-esclarecer (e,
assim, objetos a dominar no trabalho da ciência, das religiões, da lei, etc.) é um entre vários exemplos que se
pode oferecer da dominação dos indivíduos por meio do trabalho da ideologia no espaço da cultura. Na
ideologia, a homossexualidade é um fenômeno estranho a esclarecer na vida dos indivíduos e o homossexual
é portador de uma causa determinante que o torna sujeito de uma sexualidade particular. Sobre o conceito de
ideologia, ver meus “Medos, mitos e castigos” (SOUSA FILHO, 2001); “Cultura, ideologia e representações”
(SOUSA FILHO, 2003) e “Mito e ideologia” (SOUSA FILHO, 2006).
[2] Michael Rose, em O Espectro de Darwin, traz alguns dos problemas que aplicações do darwinismo têm
acarretado. E como demonstra o autor, embora alguns chamados neodarwinistas adotem posições claramente
reacionárias e de direita, o darwinismo, como concepção da origem e evolução das espécies e do ser humano,
é crítico e revolucionário. Não é por outra razão que é violentamente combatido pelas diversas religiões
(ROSE, 2000)
[3] Situaremos como construcionistas os estudos do configuracionismo ou de cultura e personalidade em
antropologia (Ruth Benedict, Margareth Mead, Melville Herskovits), a antropologia do simbólico (LéviStrauss,
Geertz), a abordagem da aprendizagem social (G. Robert Mead, Peter Berger) e os estudos
socioantropológicos (Pierre Bourdieu, Maurice Godelier, Françoise Héritier, Elisabeth Badinter, Michel
Foucault, Michel Maffesoli, entre outros).
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