sexta-feira, 18 de abril de 2014

Ruanda - 20 anos do genocídio de 94


Em 1994, Ruanda seria o local do pior massacre da história do século XX pós-2ª guerra mundial. Traídos pelo Estado, pela Igreja e possivelmente pelas nações-potência daquela época, os membros da etnia tútsi (e os hutus dissidentes que não concordaram com o que estava acontecendo) passaram por uma experiência trágica e dolorosa, e suas feridas ainda não cicatrizaram. Trata-se de uma lição para a humanidade - uma lembrança de que não devemos sucumbir aos preconceitos que tentam se impôr, nem aceitar submissos os chauvinismos nacionalistas ou religiosos, lembrando que não há povos arianos ou escolhidos de deus, mas que somos todos membros de um único povo - a raça humana, e habitantes de uma única grande nação - a Terra. O caso Ruanda é uma mancha de sangue nas mãos daqueles que, por amor ao poder ou à sua ideologia, desprezaram seres humanos igualmente capazes de sentir dor e raiva e que acabariam por se vingar com a mesma moeda de brutalidade com que foram atingidos, lembrando-nos que a violência só gera a violência, e nada mais.
Abaixo, três textos: o primeiro da Redação do site Opera Mundi, sobre a denúncia de envolvimento das nações ticas com o preparamento político do genocídio; o segundo, do jornalista André Langer para o jornal belga DH, sobre a denúncia de omissão da Igreja Católico perante o massacre que ocorria; e o terceiro, um trecho do livro God is not Great, do jornalista e intelectual britânico Christopher Hitchens, sobre as atrocidades cometidas por membros do clero católico no país em massacre.

RUANDA LEMBRA 20 ANOS DO GENOCÍDIO LAMENTANDO ENVOLVIMENTO DE POTÊNCIAS OCIDENTAIS

Presidente ruandês disse que "ainda há assuntos que são tabu, como a participação-chave de potências ocidentais".

O presidente de Ruanda, Paul Kagame, criticou novamente nesta segunda-feira (07/04), de maneira velada, o envolvimento da França e de outros países no genocídio que há 20 anos arrasou com o país africano. O massacre resultou na morte estimada de 800 mil a 1 milhão de integrantes da etnia tútsi e também dos hutus considerados moderados.

Em resposta, Paris anulou a participação de um ministro nos atos oficiais e o embaixador da França foi excluído nesta segunda das cerimônias.


Kagame advertiu que "nenhum país é tão poderoso que possa mudar os fatos, mesmo quando pensa que é", em referência a Paris. "A passagem do tempo não deve obscurecer os fatos, diminuir a responsabilidade ou transformar as vítimas em vilões", disse em um discurso durante um ato oficial do aniversário da tragédia.
O presidente de Ruanda acusa a França e a Bélgica de terem desempenhado um papel direto na “preparação política do genocídio”. A França, aliada do governo hutu na época, sempre negou qualquer implicação no massacre, considerado um dos mais graves da história do século 20, apesar de apoiado militarmente os agressores.

Em entrevista a uma revista francesa, Kagame afirmou que "ainda há assuntos que são tabu, como a participação-chave de potências ocidentais nos acontecimentos da época”.

Hoje, em Kigali, o presidente disse que "o legado mais devastador do controle europeu em Ruanda foi a transformação das distinções sociais. Fomos classificados, de acordo com um marco inventado em outro lugar", lamentou. A diferenciação social entre os grupos hutu e tútsi durante a colonização belga está na origem do enfrentamento étnico que desembocou no massacre, principalmente de tútsis, durante 100 dias.

A Bélgica herdou o território de Ruanda como espólio da Primeira Guerra Mundial e fez estudos antropomórficos da população, medindo o tamanho do nariz, da testa e altura para classificar os habitantes da região de acordo com o tipo físico. As diferenças foram classificadas e depois exploradas como forma de controle. 

A cerimônia em Kigali foi realizada na presença de familiares das vítimas de todo o país e representantes governamentais de vários países. Entre eles estava o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon; o ex-primeiro-ministro do Reino Unido Tony Blair; e o ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki.



RUANDA DENUNCIA IGREJA CATÓLICA POR ENCOBRIR GENOCÍDIO DE 1994

''Milhares de crianças, mulheres e homens foram trucidados, e sacerdotes se mantiveram em silêncio'', disse o embaixador.

O representante da Ruanda na Unesco denunciou na segunda-feira, dia 07, a atitude da Igreja católica durante o genocídio de 1994, afirmando que “alguns de seus membros encobriram essas ações criminosas".

O embaixador francês junto à Unesco, Philippe Lalliot, não se manifestou depois da cerimônia na tribuna da agência da ONU, contrariamente ao que anunciou no programa da “Jornada internacional de reflexão sobre o genocídio de 1994 na Ruanda”.

“A Igreja católica, poder moral, instituição importante na vida internacional, refugiou-se no silêncio”, declarou o embaixador da Ruanda na França e representante junto à Unesco, Jacques Kabalé.

“Seu abandono foi vivamente sentido, mais ainda porque alguns de seus membros encobriram essas ações criminosas”, acrescentou. “Muitas igrejas na Ruanda tornaram-se lugares de memória de massacres de dezenas de milhares de tutsis que foram até elas para encontrar refúgio”.

O papa Francisco exortou, na quinta-feira, os bispos ruandeses a tomar “a iniciativa” de trabalhar pela reconciliação nacional, “fortalecendo as relações de confiança com o Estado” e apoiando as famílias feridas. Ele pediu à Igreja católica ruandesa para “falar uma só voz” “superando os preconceitos e as divisões étnicas”.

A diretora-geral da Unesco, Irina Bokova, convidou para “tirar lições desse drama”. “Construir a paz é, é verdade, virar a página, disse. Mas, antes de virar a página é preciso lê-la e não omitir nada, nem esquecer nada, nem esconder nenhuma ação, da passividade da comunidade internacional”.

Sábado, Paris cancelou a participação da sua ministra da Justiça, Christiane Taubira, das cerimônias em Kigali, após as acusações feitas pelo presidente ruandês Paul Kagame contra a França. No domingo à noite, o embaixador da França foi visto retirando a acreditação do governo ruandês permitindo-lhe participar das cerimônias oficiais desta segunda-feira, comemorativas do genocídio de 1994.

No dia 7 de abril de 1994, começaram os 100 dias mais ferozes da história da Ruanda e, talvez, da humanidade inteira depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Por mais de três meses, perpetrou-se um massacre sistemático que o mundo não soube prever nem enfrentar, muito menos parar.

O detonador da explosão de horror que resultou em décadas de conflito entre as etnias hutu e tutsi foi um atentado: no dia anterior, haviam sido mortos o presidente ruandês, Juvénal Habyarimana, e burundês, Cyprien Ntaryamira, quando foi derrubado o seu avião que estava aterrissando no aeroporto da capital ruandesa, Kigali. Com eles morreram dois ministros do Burundi, cinco funcionários da Ruanda e os três membros da tripulação francesa do avião.

Os dois presidentes voltavam de uma cúpula de chefes de Estado da África Central, realizada em Dar-es-Salaam, naTanzânia, e dedicada justamente à guerra que, há anos, via a contraposição entre os hutu e os tutsi que vivem nos dois países.

Não foram suficientes para parar o conflito nem mesmo os acordos assinados no dia 4 de agosto do ano anterior, em Arusha, também na Tanzânia, que previam um governo de transição na Ruanda, também com expoentes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR), o grupo armado dos tutsi, liderado pelo atual presidente Paul Kagame.

Nenhuma investigação internacional jamais determinou quais foram os responsáveis pelo atentado. Mas a violência transbordou imediatamente, antes na capital Kigali e depois no resto da Ruanda, contra os tutsi e os hutu moderados.

Os soldados hutu da guarda presidencial se lançaram contra o bairro de Kigali onde estavam alojadas as milícias da FPR, que consideravam como os autores do atentado. Entre as primeiras vítimas, estavam dez soldados das forças de paz belgas da UNAMIR, a missão da ONU que começou em outubro do ano anterior. Os militares belgas foram capturados quando tentavam proteger a fuga da primeira-ministra, Agathe Uwilingiyimana, também ela morta, assim como outros expoentes do governo.

Por 100 dias, centenas de milhares de mulheres e de homens, de idosos e de crianças, foram trucidados em todas as localidades, durante uma caçada humana aterrorizante. Um ano depois, também foi atroz a vingança dos tutsi que chegaram ao poder. No campo de Kibeho, milhares de hutu foram mortos, incluindo mulheres e crianças, enquanto, em Kigali, o novo governo reivindicava "o direito de separar os refugiados dos autores do genocídio".

As forças da ONU, depois de terem assistido, impotentes, ao primeiro e aterrorizante ataque, conseguiram resgatar milhares de crianças, muitas vezes encontradas ao lado dos cadáveres das mães. Aquelas horas marcaram para sempre a memória de quem as viveu. Aquelas crianças não falavam, não choravam, algumas estavam enlouquecidas. Também vacilou a razão daqueles que fizeram o máximo para tornar aquele horror, embora minimamente, menos cruel ou daqueles que tiveram que relatá-lo.

Um aspecto do conflito entre hutu e tutsi, populações de grande maioria católica, não pode ser calado: o do envolvimento de muitos religiosos. Desde o início, o sangue marcou a Igreja ruandesa muitas vezes com a cor do martírio, mas às vezes – e é algo que ainda surpreende – manchando mãos culpadas.

Não por acaso, recebendo os bispos ruandeses justamente nessa semana, o Papa Francisco recordou os "tantos sofrimentos e feridas, ainda longes de serem cicatrizadas" e os exortou a "seguir resolutamente em frente, testemunhando incessantemente a verdade", ressaltando que "a Igreja tem um lugar importante na reconstrução de uma sociedade reconciliada".

Uma impressão amarga se difundiu nas consciências naquela primavera de 1994. Mas a comunidade internacional não captou imediatamente o assustador porte dos acontecimentos. O Conselho de Segurança da ONU se limitou a solicitar que o então secretário-geral, Boutros Boutros-Ghali, tomasse "as medidas necessárias para assegurar a segurança" dos cidadãos estrangeiros na Ruanda.

Uma década depois, Kofi Annan, o sucessor de Boutros-Ghali, que em 1994 era responsável pelas missões militares da ONU, admitiu, ele mesmo, que tinha subestimado a situação. Assim como, um ano depois, em julho de 1995, as forças de paz francesas da ONU demonstraram ser impotentes diante de outro genocídio, o de Srebrenica, na Bósnia Herzegovina.

Além disso, nem mesmo a trágica história balcânica realmente envolveu o norte rico e poderoso do mundo, onde se viviam os anos do fim do bipolarismo leste-oeste com um alívio que as décadas posteriores se encarregariam de demonstrar que era infundado.

O que estava sendo preparado e o que depois aconteceu nos Bálcãs e na região dos Grandes Lagos pegou despreparada a comunidade internacional. No entanto, aquelas imagens, aquelas notícias de massacres, de campos de concentração que viam encadeados homens concretos e a própria dignidade do homem, valas comuns onde se enterravam cadáveres e a própria humanidade, não eram novas.

Não eram tão inéditas a ponto de parecerem incríveis. Acontecia de novo, como acontecera 50 anos antes na Europa. A imprensa propunha evidências cruas e ressuscitava memórias dolorosas. Mas essa insistência da memória não soube se tornar compaixão ativa, reflexão atenta, vigilância solícita.

Declinava, entregando os seus horrores ao duro julgamento da posteridade, um século marcado pelas atrocidades, o século que inventara os campos de concentração, as limpezas étnicas, os genocídios sistemáticos, que tinha proposto a epidemia recorrente dos totalitarismos, que devastara a fisiologia das nações com a patologia dos nacionalismos, que havia transformado a identidade étnica na máscara zombeteira do racismo.



TRECHO DO CAPÍTULO 13 DE ''GOD IS NOT GREAT''

(...) O caso Ruanda, em 1992, deu ao mundo um novo sinônimo para genocídio de sadismo. Essa antiga possessão belga é o pais mais cristão da África, exibindo a maior proporção de igrejas per capita, 65 por cento dos ruandeses professando o catolicismo romano e outros 15 por cento pertencente a várias seitas protestantes.  As palavras per capita ganharam um tom macabro em 1992, quando a um sinal as milícias racistas do Poder Hutu, incitadas pelo Estado e pela Igreja, se lançaram sobre seus vizinhos tútsis e os chacinaram em massa. 
 Não foi um espasmo atávico de derramamento de sangue, e sim uma versão africana friamente ensaiada da Solução Final nazista, que estava sendo preparada havia algum tempo. O primeiro sinal disso surgiu em 1987, quando um visionário católico com o nome enganadoramente folclórico de Little Pebbles começou a anunciar que ouvia vozes e tinha visões, derivadas da Virgem Maria. As ditas vozes e visões eram pertubadoramente sanguinárias, prevendo massacre e apocalipse, mas também - como compensação - o retorno de Jesus Cristo no domingo de Páscoa de 1994. Aparições de Maria no alto de uma montanha chamada Kibeho foram investigadas pela Igreja Católica e consideradas confiáveis. A esposa do presidente de Ruanda, madame Agathe Habyarimana, ficou especialmente fascinada com essas visões e mantinha um relacionamento muito próximo com o bispo de Kigali, a capital do país. Esse homem, o monsenhor Vincent Nsengiyumva, era também membro do comitê central do partido único do presidente Habyarimana, o Movimento Nacional Revolucionário pelo Desenvolvimento, ou MRND. O partido, juntamente com outros órgãos do Estado, se preocupava em prender quaisquer mulheres que fossem desaprovadas como sendo ''prostitutas'' e em encorajar ativistas católicos a atacar quaisquer lojas que vendessem contraceptivos. Com o tempo, se espalhou a notícia de que a profecia seria cumprida e que as ''baratas'' - a minoria tútsi - logo teriam o que mereciam.

 Quando finalmente chegou o ano apocalíptico de 1994 e começaram os ataques premeditados e coordenados, muitos tútsis e hutus dissidentes assustados foram imprudentes o bastante para buscar refúgio nas igrejas. Isso facilitou consideravelmente a vida dos intereahamwe, ou esquadrões da morte governamentais e militares, que sabiam onde encontrá-los e que podiam confiar em que padres e freiras indicariam os locais. ( Por isso muitas das covas coletivas que foram fotografadas em solo consagrado, e também por isso vários clérigos e freiras estão no banco dos réus nos atuais julgamentos por genocídio em Ruanda.) O notório padre Wenceslas Munyeshyaka, por exemplo, figura importante da Catedral da Santa Família de Kigali, foi retirado do país às escondidas com a ajuda de um padre francês, mas foi acusado de genocídio, de fornecer listas de civis aos intereahamwe e de estuprar jovens refugiadas. Ele de modo algum é o único clérigo a enfrentar acusações semelhantes. Para que não pensamos que ele foi apenas um padre ''patife'', temos a palavra de outro membro da hierarquia ruandesa, o bispo de Gilkongoro, conhecido como monsenhor Augustin Misago. Para citar um relato cuidadoso daqueles acontecimentos terríveis:

 ''O bispo Misago foi muitas vezes descrito como um simpatizante do Poder Hutu; ele foi publicamente acusado de impedir a entrada de Tútsis em locais de refúgio, de criticar colegas do clero que ajudaram 'baratas' e de pedir a um missionário do Vaticano em visita a Ruanda em junho de 1994 para dizer ao papa que este devia 'encontrar um lugar para os padres tútsis, pois o povo de Ruanda não os quer mais'. Acima de tudo, no dia 4 de maio daquele ano, pouco antes da última aparição de Maria no Kibeho, o bispo apareceu pessoalmente lá com uma equipe de policiais e disse a um grupo de noventa crianças tútsis em idade escolar que estavam sendo preparadas para o massacre que não se preocupassem, porque a polícia iria protegê-los. Três dias depois a polícia ajudou a massacrar 82 das crianças.''

Crianças em idade escolar ''preparadas para o massacre''... Talvez você se lembre da denúncia pelo papa desse crime indelével e da cumplicidade de sua igreja nele. Ou talvez não, já que nunca foi feito nenhum comentário assim. Paul Ruseabagina, o herói de Hotel Ruanda, recorda-se do padre Wenceslas Munyeshyaka se referindo até mesmo à sua mãe tútsi como uma ''barata'', mas isso não impediu que ele, antes de sua prisão na França, recebesse da Igreja francesa autorização para retomar seus ''deveres pastorais''. Quanto ao bispo Misago, houve aqueles no ministério da Justiça de Ruanda depois da guerra que acharam que ele também deveria ser acusado. Mas, como disse um dos funcionários do ministério, ''o Vaticano é excessivamente convicto para que ataquemos bispos. Já ouviu falar em infalibilidade?''



Leia mais em: 
http://www.paulopes.com.br/2014/04/ruanda-denuncia-igreja-catolica-por-encobrir-genocidio.html#ixzz2zG8G3n93 
 e  
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/34714/ruanda+lembra+20+anos+do+genocidio+lamentando+envolvimento+de+potencias+ocidentais.shtml

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