segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O 11 de setembro que mudou a história do Chile, parte 2

A ECONOMIA SOB O COMANDO DE PINOCHET (1):


O Chile pode comemorar algum sucesso econômico. Mas isso foi resultado do trabalho do presidente Salvador Allende, que salvou a nação, milagrosamente, dez anos depois de ter sido assassinado a mando de Pinochet.

Estes são os fatos. Em 1973, ano em que o general tomou o governo, o índice de desemprego no Chile era de 4,3%. Em 1983, após 10 anos de modernização e livre mercado, o desemprego chegou a 22%. O salário real caiu cerca de 40% sob o regime militar. Em 1970, antes de Pinochet subir ao poder, 20% da população chilena vivia na pobreza. No ano em que o "presidente" Pinochet deixou o cargo, o número de destituídos havia dobrado para 40%. Que milagre!

Pinochet não destruiu a economia do Chile sozinho. Foram precisos nove anos de trabalho duro das mentes mais brilhantes da academia, aquela corja de trainees de Milton Friedman, os Garotos de Chicago. Seguindo os feitiços teóricos, o general aboliu o salário mínimo, cassou os direitos trabalhistas negociados pelos sindicatos, privatizou a previdência social, acabou com todos os impostos sobre renda e lucro, fez cortes drásticos no funcionalismo público, privatizou 212 estatais e 66 bancos e produziu superávit fiscal. O general empurrou a nação adiante na trilha "neoliberal" (livre mercado), no que seria logo seguido por Thatcher, Reagan, Bush, Clinton e o FMI.

Mas o que aconteceu realmente no Chile? Livre da presença opressiva da burocracia, dos impostos e dos sindicatos, o país deu um grande salto... para a bancarrota. Após nove anos de medidas econômicas ao estilo de Chicago, a indústria chilena definhou e morreu. Em 1982 e 1983, o produto interno caiu 19%. Isso é recessão. A experiência do livre mercado estava acabada e não tinha sobrado nenhum tubo de ensaio inteiro. O chão do laboratório estava forrado de sangue e cacos de vidro.

Ainda assim, com uma ousadia extraordinária, os cientistas loucos de Chicago declararam vitória.

Nos Estados Unidos, o Departamento de Estado do presidente Ronald Reagan divulgou um relatório conclusivo: ''O Chile é um estudo de caso sobre uma gestão econômica sadia?''. O próprio Milton Friedman cunhou a frase ''O Milagre Chileno''. O economista Art Laffer, discípulo de Friedman, vangloriava-se de que o Chile de Pinochet foi ''um exemplo do que a economia supply-side pode fazer.''

Certamente. Para ser mais exato, o Chile foi um exemplo de desregulamentação completamente fora de controle. Os Garotos de Chicago convenceram o governo militar de que o fim das restrições aos bancos nacionais iria libertá-los para atrair o capital estrangeiro, que financiaria a expansão industrial (uma década depois, tal liberalização do mercado de capitais se tornaria condição sine qua non para a globalização). Seguindo esse conselho, Pinochet vendeu os bancos estatais por um preço 40% abaixo do book value, o valor contabilístico, e eles caíram rapidamente nas mãos de dois conglomerados imperiais controlados pelos especuladores Javier Vial e Manuel Cruzat. Com os bancos nas mãos, Vial e Cruzat drenaram dinheiro para comprar todas as indústrias que podiam e então alavancaram esses ativos com empréstimos de investidores estrangeiros ávidos por conseguir uma fatia do bolo estatal.

E assim as reservas dos bancos foram entulhadas com títulos podres de empreendimentos afiliados.

Pinochet deixou os especuladores à vontade por muito tempo. Ele foi convencido de que o governo não deveria interferir na ''lógica'' do mercado. Em 1982, o jogo financeiro no Chile havia acabado. Os grupos de Vial e Cruzat ficaram inadimplentes. Indústrias foram fechadas, a previdência privada não valia mais nada, o câmbio teve uma síncope. As greves e os protestos de uma população faminta e desesperada demais para temer os fuzis fizeram Pinochet mudar o rumo da economia. E ele chutou seus queridinhos experimentalistas de Chicago.

Ainda de maneira relutante, o general ressuscitou o salário mínimo e devolveu aos sindicatos a condição de negociar coletivamente os direitos trabalhistas. Pinochet, que havia dizimado o funcionalismo público, aprovou um programa para a criação de 500 mil empregos. Seria o equivalente, nos Estados Unidos, ao governo contratar 20 milhões de pessoas. Em outras palavras, o Chile saiu da recessão graças ao maçante e antiquado remédio keynesiano: 100% Franklin Roosevelt, 0% Ronald Reagan. O governo militar instituiu uma lei restringindo a entrada do capital estrangeiro ? uma das poucas remanescentes até hoje na América do Sul.

As táticas do New Deal resgataram o Chile em 1983, mas a recuperação de longo prazo e o crescimento do país desde então são resultado - tape os ouvidos das crianças - de uma boa dose de socialismo. Para salvar a previdência social do país, Pinochet estatizou os bancos e a indústria numa escala inimaginável para o socialista Allende. O general simplesmente desapropriou à vontade, oferecendo pouco ou nada em troca.

Apesar de a maioria dessas empresas acabar voltando, após um período, para a iniciativa privada, o Estado continuou a ser proprietário da indústria do cobre.

A especialista em metais da Universidade de Montana, dra. Janet Finn, afirma: ''É absurdo retratar uma nação como exemplo do milagre da livre iniciativa quando o motor da economia continua nas mãos do governo'' (e não apenas nas mãos do governo. Uma lei de Pinochet, ainda em vigor, dá aos militares 10% dos rendimentos estatais com o cobre). Do cobre vêm entre 30% e 70% dos ganhos do país com exportações. Essa é a moeda forte que construiu o Chile de hoje, a produção das minas da Anaconda e da Kennecott, estatizadas em 1973: o presente póstumo de Allende a seu país.

O agronegócio é a segunda locomotiva da economia chilena. E esse é outro legado do governo de Allende. Segundo o professor Arturo Vasquez, da Universidade Georgetown, a reforma agrária de Allende, ou seja, o desmantelamento dos estados feudais (que Pinochet não conseguiu reverter totalmente), criou uma nova classe de lavradores-proprietários. Aliada a empresas e cooperativas, essa classe gera hoje um montante de exportações capaz de rivalizar com o cobre. ''Para conseguir um milagre econômico'', diz Vasquez, ''talvez seja necessário ter antes um governo socialista que faça a reforma agrária.''

Então é isso. Keynes e Marx, e não Milton Friedman, salvaram o Chile.


- Texto do jornalista investigativo Greg Palast, do livro ''A melhor democracia que o dinheiro pode comprar''.



Nenhum comentário:

Postar um comentário