segunda-feira, 30 de junho de 2014

Deus está morto?

Por Rafael Trindade, para o blog Razão Inadequada

                   

O Homem Louco – [...] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmo nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então” (Nietzsche, Gaia Ciência, §125).

Esta talvez seja a frase mais famosa e incompreendida de Nietzsche: “Deus está morto!”. Por que ele disse tais palavras? Para um homem cujo ateísmo era convicto, não fazia sentido anunciar a morte de algo em que não acreditava.

A grande razão para tal declaração tem motivos históricos. Através desta afirmação o filósofo procura condensar o espírito de sua época. Nietzsche faz todo o diagnóstico de sua cultura e denuncia o niilismo de seu tempo. Não interessa se Deus existe ou não, o que Nietzsche afirma é que a influência da religião em nossas vidas é cada vez menor. A igreja, os mitos, as idéias, os ritos, a moral por trás da teologia, tudo isso está desaparecendo. Não temos mais medo de deus, ele é fraco. Não ligamos para as datas religiosas, apenas para o feriado.

Deus está morto como uma verdade eterna, como alguém que controla e conduz o mundo, como um ser bondoso que justifica os acontecimentos. A secularização da civilização prova isso cada vez mais. Deus está morto como um grande ditador divino que exige obediência de seus servos. Ele já não é uma questão importante para se tratar.

A morte dos ideais divinos, o início da morte desta doença chamada cristianismo é uma constatação nietzschiana. O sentido está perdido, a Verdade Eterna está acabada, de agora em diante precisamos encarar o caos do mundo à nossa frente. Todo idealismo e platonismo estão se perdendo. Por isso enfrentamos o grande perigo do niilismo: estamos perdidos sem justificações supra-sensíveis e não sabemos para onde ir.

O primeiro momento da morte de Deus se dá com o niilismo passivo. Não sabemos o que fazer, como proceder, não sabemos mais o que é certo e errado sem um padre ou um livro velho para nos guiar. A falta de referencial externo é desesperador para o homem, ele fica aterrorizado diante do mundo. Passa então a buscar qualquer coisa para se segurar: razão, humanismo, ciência. Deus morreu, mas ainda velamos seu corpo em várias outras práticas que não encontram justificação no próprio mundo, mas em outros lugares. A fé virou razão. Nossa nova religião é o progresso do homem.

A única alternativa frente a esse niilismo passivo é tomarmos as rédeas da situação e fazer deste niilismo um novo modo de vida. “Nietzsche diz que o importante não é a notícia de que deus está morto, mas o tempo que ela leva a dar seus frutos” (Deleuze, Anti-Édipo). É só com a morte de Deus que temos finalmente a chance de criar novos e autênticos valores para nós. Sem ninguém para dizer o que é certo e errado, bem ou mal, temos plena liberdade para decidir por nós mesmos. Adquirimos assim a responsabilidade e a felicidade de sermos autores de nossa própria vida. O niilismo ativo, segundo momento do niilismo, significa que “se o homem não quiser perecer nas dificuldades que o sufocam, será preciso que as desfaça de um só golpe criando os seus próprios valores. A morte de Deus não dá nada por terminado e só pode ser vivida com a condição de preparar uma ressurreição” (Camus, O Homem Revoltado).

Ai está o valor da morte de Deus. Mesmo que ele exista, é importante que nós o matemos, para andar com nossas próprias pernas. Somos o filho que cresceu e quer agora libertar-se. Não podemos mais nos esconder atrás da sombra divina e dizer “Deus quis assim”. A responsabilidade agora é toda nossa, para desfazer as verdades antigas e criarmos novas e melhores formas de dizer sim à vida.

De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o Velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’“ (Nietzsche, Gaia Ciência, §343).

domingo, 29 de junho de 2014

Ato, potência e erro



Aristóteles, ao afirmar que os seres são formados por substância (aquilo que seria estrutural e essencial do ser) e acidente (aquilo que seria atributo circunstancial e não essencial do ser), podendo esses acidentes - casualidades quaisquer - interferir na concretização, em ato, das potências de um ser ignora que a própria essência do ser, o que ele se tornaria sob condições ideais, só surge mediante um ''diálogo'' com o que é externo ao ser, com as ''casualidades''.

 Diz Aristóteles que o movimento, a transitoriedade ou a mudança das coisas se resumem na passagem da potência (possibilidades de ser, capacidade de ser, aquilo que ainda não é mas pode vir a ser) para o ato (a manifestação atual do ser). Dá-se como exemplo uma árvore que está sem flores e que pode tornar-se, com o tempo, florida. Ao adquirir flores, essa árvore manifestaria em ato aquilo que já continha, intrinsecamente, em potência.

 Por outro lado, utilizando ainda o exemplo da árvore, poderia acontecer que, em virtude de certas condições climáticas, uma árvore frutífera não venha a dar frutos (o que contraria a potência de dar frutos). Esse caso é o que Aristóteles classificar como acidente, algo que não ocorre sempre e que não faz parte da essência da árvore.

 Essa maneira metafísica de pensar se dissolve ao perceber-se que a própria ''essência'' da árvore surgiu somente do contato e fusão entre ''casualidades'', através do processo hoje denominado seleção natural - numa dialética permanente com a natureza. E mesmo as suas ''potencialidades'' só podem se dar sob condições climáticas específicas - a árvore não é capaz de viver e se desenvolver per se, ela necessita do externo. O ser em potência, portanto, é qualquer coisa, visto que depende inteiramente das condições externas. O ser só é o que é.

terça-feira, 17 de junho de 2014

O Chandra, o Cosmos e a Química

Cassiopeia-A. Crédito: NASA/CXC/SAO

 Química, o estudo das danças intrincadas e dos agrupamentos de elétrons de baixa energia que formam as moléculas dos vários elementos que compõe o mundo em que vivemos, pode parecer distante do calor termonuclear no interior das estrelas e do poder das supernovas. No entanto, existe uma ligação fundamental entre elas.

 A formação dos elementos começou cerca de 14 bilhões de anos atrás, nos primeiros minutos do Big Bang. Após esses 20 minutos, a matéria comum no Universo era uma mistura de 75% prótons e núcleos de hidrogênio, 25% núcleos de hélio e elétrons livres, que começariam a se juntar em átomos em algumas centenas de milhares de anos depois. Essencialmente, a história da formação dos elementos pode ser dividida em duas fases principais: uma que terminou depois dos primeiros 20 minutos, e a outra que está em curso desde a formação das primeiras estrelas, há mais de 13 bilhões de anos.

 Após os 20 minutos iniciais, o Universo em expansão resfriou abaixo do ponto onde a fusão nuclear poderia operar. Isso significava que nenhuma evolução da matéria poderia ocorrer até que as estrelas fossem formadas alguns milhões de anos mais tarde, quando o acúmulo de elementos mais pesados que o hélio pudesse começar.

 Estrelas evoluem através de uma sequência de estágios em que as reações de fusão nuclear em suas regiões centrais acumulam hélio e outros elementos. A energia fornecida por reações de fusão cria a pressão necessária para segurar a estrela contra a gravidade. Ventos de gás que escapam das estrelas distribuem um pouco dessa matéria transformada no espaço de uma forma relativamente suave e as supernovas fazem isso violentamente.

A imagem do Chandra da SNR Cassiopeia-A mostra material ejetado rico em ferro fora do material ejetado rico em silício, indicando assim que mistura turbulenta e uma explosão asférica virou grande parte da estrela original do avesso.

 Imagens e espectros de remanescentes de supernovas individuais do Chandra revelam nuvens de gás ricas em elementos como oxigênio, silício, enxofre, cálcio e ferro, e acompanham a velocidade com que estes elementos foram ejetados na explosão. A imagem do Chandra da SNR Cassiopeia-A mostra material ejetado rico em ferro fora do material ejetado rico em silício, indicando assim que mistura turbulenta e uma explosão asférica virou grande parte da estrela original do avesso. Observações de linhas de emissão Doppler para Cassiopeia A e outras remanescentes de supernovas estão fornecendo informação tridimensional sobre a distribuição e velocidade do material ejetado da supernova que irá ajudar a restringir modelos para a explosão. Em observações da mesma linha da remanescente de supernova N49 revelam uma nuvem de gás na forma de uma bala rica em neon, silício e enxofre que foram ejetados para o gás circundante, a uma velocidade de 5 milhões de km/h.

N49. Crédito: NASA/STScI/UIUC/Y.H.Chu & R.Williams et al.

 Em uma escala maior, as observações de galáxias submetidas a surtos de formação de estrelas mostram que vastas regiões destas galáxias foram enriquecidas pela ação combinada de milhares de supernovas. O sistema de galáxias Antenas foi produzido pela colisão de duas galáxias. Esta colisão criou explosões de formação estelar e, alguns milhões de anos mais tarde, milhares de supernovas que aqueceram e enriqueceram nuvens de gás com milhares de anos-luz de extensão.

 Um agente inesperado para a distribuição de elementos pesados ​​em toda a galáxia é um buraco negro supermassivo no centro de uma galáxia. Gás em espiral na direção dos buracos negros podem sobreaquecer e produzir um vento de gás que flui para longe do buraco negro, ou pode criar um intenso campo eletromagnético que impulsiona material enriquecido nos alcances exteriores da galáxia e além.

 O gás enriquecido pode também ser retirado de uma galáxia, se a galáxia cair em um aglomerado de galáxias. A pressão do gás quente difuso que permeia um aglomerado de galáxias sopra o gás para fora da galáxia, para o meio intergalático, enriquecendo-o.

 Em uma escala maior ainda, o oxigênio tem sido detectado em filamentos galáticos de milhões de anos-luz de comprimento. Esse oxigênio foi provavelmente produzido há mais de 10 bilhões de anos, em algumas das primeiras supernovas que ocorreram na história do Universo. Se a taxa de supernovas fica tão alta, os efeitos combinados de muitas ondas de choque de supernovas dirigem um vento em escala galática que sopra o gás para fora da galáxia. Um bom exemplo é a galáxia M82.

M82. Crédito: Inset: X-ray: NASA/CXC/Tsinghua Univ./H. Feng et al.; Full-field: X-ray: NASA/CXC/JHU/D.Strickland; Optical: NASA/ESA/STScI/AURA/The Hubble Heritage Team; IR: NASA/JPL-Caltech/Univ. of AZ/C. Engelbracht

Ventos galácticos como o de M82 são raros hoje em dia, mas eram comuns bilhões de anos atrás, quando as galáxias eram muito jovens e as estrelas estavam se formando rapidamente por causa de colisões frequentes entre galáxias. O Chandra mostrou que o Sculptor Wall, uma coleção de gás e galáxias que se estende por dezenas de milhões de anos-luz, contém um vasto reservatório de gás enriquecido com oxigênio dos ventos galáticos. O Wall Sculptor é considerado parte de uma enorme teia de gás quente difuso que pode conter até metade de toda a matéria comum no Universo.

 Como o enriquecimento do gás interestelar e intergalático avançou sobre vastas extensões de espaço e tempo, a química do cosmos tornou-se mais rica também. As gerações subsequentes de estrelas se formaram a partir do gás interestelar enriquecido em elementos pesados​​. Nosso Sol, Sistema Solar, e de fato a existência de vida na Terra são resultados diretos desta longa cadeia de nascimento, morte e renascimento estelar. Desta forma, a evolução da matéria, estrelas e galáxias estão todas intrinsecamente ligadas e assim também estão astronomia e química.

Texto traduzido (por Jéssica Mapo, do Universo Racionalista) de: Chandra X-Ray Observatory

domingo, 15 de junho de 2014

''O que é ideologia?'', por Júlia Falivene Alves

''Desde que o termo surgiu, em 1801, ele foi usado de formas variadas por diferentes pensadores. Deixaremos no entanto de discuti-las aqui, limitando-nos a esclarecer, embora rápida e grosseiramente, o significado dado ao termo por Karl Marx, que será o usado por nós nesse livro.*

 Marilena Chauí analisa muito bem a questão no seu livro O que é ideologia? (São Paulo, Brasiliense, 1984, n.13, coleção Primeiros Passos). Ela diz mais ou menos o seguinte:

 Para Marx as ideias dominantes em uma sociedade nascem das condições materiais de produção, da existência e das relações sociais por elas geradas em determinado momento histórico. As ideias estão, pois, ligadas à maneira como são apropriados os bens, como é organizado o trabalho, estruturadas as divisões sociais etc, mudando quando também mudam essas condições.

 As sociedades de classe se caracterizam por se estruturarem na exploração do trabalho de uns por outros que detém a propriedade dos meios de produção. Isso significa que a maioria deve desempenhar as tarefas mais pesadas, menos prazerosas e pouco recompensadoras, para que a minoria, proprietária, possa ter suas necessidades mais amplamente satisfeitas e seus poderes e privilégios assegurados.

 Mas como podem se manter por longo tempo essas sociedades que beneficiam a tão poucos à custa da exploração de muitos?

 Nessas sociedades a ideologia aparece justamente como o conjunto de ideias, valores, regras e sentimentos que tem por objetivo justificar como racional, natural ou normal as diferenças sociais, políticas ou culturais, tornando-as mais aceitáveis e ocultando sua verdadeira causa - a luta de classes.

 A ideologia nasce da classe dominante  mas é assumida pelas demais, dando aos membros de cada sociedade certa coesão e sentimento de identidade. Isso é possível porque, entre outras coisas, os elementos ideológicos aparecem como valores humanos universais e não como valores de uma classe em particular, mesmo porque seus objetivos são exatamente minimizar as diferenças sociais e ocultar a dominação.

 A ideologia tem como função exatamente levar os membros de cada sociedade a se conformarem, sem críticas e revoltas, com a sua organização, que é apresentada como a única possível e desejável, sendo cada um o que é por ter se esforçado, por ter escolhido, ou por dispor de talento ou não para ocupar determinadas funções.

 A ideologia é portanto um ocultamente e não uma revelação da realidade. Justificando e legitimando a divisão de classes, funciona como instrumento de dominação.

Ao contrário, porém, do que pode parecer, ela não é uma construção consciente, uma invenção ou falsificação voluntária da realidade por parte de seus dominantes. Na verdade ela é a visão que a classe dominante tem do seu modo de existência e da realidade, conforme suas próprias experiências e condições.

 A ideologia é, pois, um fato social produzido pelas relações sociais em um determinado momento histórico, independente do desejo ou de 'maquinações cerebrais' da classe que tem o poder.''


*A invasão cultural norte-americana

Epígrafe de Marx a respeito da meritocracia na ideologia capitalista



''A acumulação primitiva desempenha na economia política relativamente o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã, e o pecado surgiu no mundo. A origem do pecado explica-se por uma aventura que teria se passado alguns dias depois da criação do mundo.

 Da mesma maneira, teria havido outrora, faz muito tempo isso, uma época em que a sociedade se dividia em dois campos: acolá pessoas de elite, laboriosas, inteligentes e, sobretudo, dotadas de aptidões administrativas; aqui uma porção de folgazões, divertindo-se de manhã à noite e de noite ao dia seguinte.

 Naturalmente, aqueles acumularam tesouros sobre tesouros, enquanto estes encontraram-se em breve desprovidos de tudo.

 Daí a pobreza da grande massa que, a despeito de um trabalho ininterrupto, devem sempre pagar com o sacrifício de sua própria pessoa, e, por outro lado, a riqueza de um pequeno número que, sem mover um dedo, recolhe todos os frutos e benefícios do trabalho alienado.

 A história do pecado original faz-nos ver, é verdade, como e por que o homem foi condenado pelo Senhor a ganhar seu pão com o suor de seu rosto; mas a do pecado econômico preenche uma lamentável lacuna revelando-nos como e por que há homens que escapam a esta ordem do Senhor.''

Fragmento de A origem do capital.

Em suma, a ideologia (falsa consciência) do capitalismo - cujos instrumentos de ação foram tema de uma obra de Louis Althusser chamada Aparelhos Ideológicos do Estado - funcionam replicando a ideia de que a miséria dos pobres é culpa dos mesmos, castigo divino ou mesmo ''ordem natural das coisas'', ocultando o fato de que ela é consequência dos séculos de exploração dos menos favorecidos pelas classes dominantes, sendo, portanto, uma condição social, que pode (e deve!) ser findada por meio de uma transformação das relações de produção.


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Como a livre concorrência termina invariavelmente em oligo ou monopólio



''O aumento de capitais, que faz elevar o salário, tende a baixar o lucro, em virtude da concorrência entre os capitalistas. (1)

  Caso, por exemplo, o capital que é necessário para o comércio de mercearias de uma cidade 'estiver dividido entre dois diferentes comerciantes, a concorrência levará cada um deles a vender mais barato do que se o capital se encontrasse nas mãos de um só; e se estivesse dividido entre 20, a concorrência seria maior, e menor seria a possibilidade de eles se entenderem entre si para subir o preço de suas respectivas mercadorias.' (2)

  Agora que já sabemos que os preços do monopólio são tão altos quanto possível, porque o interesse dos capitalistas se opõe ao interesse da sociedade, porque o aumento do lucro do capital com os juros compostos vai afetar o preço das mercadorias, segue-se que a concorrência constitui a única proteção contra os capitalistas, concorrência que, de acordo com a evidência da economia política, tem o efeito saudável de subir os salários e reduzir o preço dos produtos, em favor do público consumidor.

  Mas a concorrência só é possível se os capitais se multiplicarem, e, evidentemente, em muitas mãos. A formação de muitos capitais só é possível como resultado de múltipla acumulação, mas a múltipla acumulação torna-se necessariamente uma acumulação para poucos. A concorrência entre os capitais aumenta a concentração de capitais. A acumulação, que sob o domínio da propriedade privada significa concentração de capitais em poucas mãos, é uma consequência necessária quando os capitais se abandonam ao seu livre curso natural. É pela concorrência que o caminho fica aberto a essa natural tendência do capital.

  Já observamos que o lucro do capital é proporcional à sua grandeza. Independentemente de qualquer grandeza deliberada, um grande capital acumula mais rapidamente, em proporção com sua grandeza, do que um pequeno capital.

  Em consequência disto, independentemente da concorrência, a acumulação do grande capital é muito mais rápida que a do pequeno capital. Mas adiantemo-nos mais um pouco neste processo.

  Com o aumento dos capitais, diminuem os lucros, em virtude da concorrência. Assim, o primeiro a sofrer é o pequeno capitalista.

  Além do mais, o aumento dos capitais e um grande número de capitais pressupõe uma condição de crescente riqueza num país.

'Num país que atingiu um alto grau de riqueza, a taxa ordinária de lucro é tão pequena que a taxa de juro que esse lucro permite pagar é demasiado baixa para que outras pessoas, além das muito ricas, possam viver do juro do próprio dinheiro. Todas as pessoas de fortunas médias se veriam obrigadas a gerenciar pessoalmente a aplicação do seu capital, a ser homens de negócios ou a lançar-se a qualquer ramo dos negócios.' (3)

  Essa situação é a que é mais favorável à economia política.

'A proporção que existe entre a soma dos capitais e a renda determinam em toda parte a proporção em que se encontra a indústria e a ociosidade; onde o capital é predominante, impera a indústria; onde o rendimento é predominante, impera a ociosidade.' (4)

  O que acontece com o emprego do capital nesta situação de concorrência intensificada?

'Com o aumento dos capitais, deve aumentar a quantidade de recursos que são emprestados a juros; com a multiplicação destes recursos diminui necessariamente o juro. 1) Porque o preço de mercado das mercadorias baixa à medida que aumenta a sua quantidade. 2) Porque com o aumento dos capitais num determinado país torna-se mais difícil aplicar um novo capital de modo lucrativo. Surge uma concorrência entre os diferentes capitais, enquanto o proprietário de um capital faz todos os esforços possíveis para se apoderar do negócio que se encontra ocupado por outro capital. Mas, na maior parte dos casos, não pode ter esperanças de excluir do seu lugar esse capital senão pela oferta de melhores condições para negociar. Deve não só vender mais barato o produto, mas, muitas vezes, a fim de obter a oportunidade de venda, tem de o comprar mais caro. Quanto mais aumentarem os recursos para a manutenção do trabalho produtivo, maior será também a procura do trabalho; os trabalhadores encontram emprego com facilidade, mas os capitalistas tem dificuldade em encontrar trabalhadores. A concorrência dos capitalistas faz subir os salários de trabalho e diminuir o lucro.' (5)

  Consequentemente, o pequeno capitalista precisa escolher: 1) ou consumir o seu capital, visto que já não pode continuar a viver dos lucros, deixando de ser um capitalista; ou 2) montar pessoalmente um negócio, vender mais barato as suas mercadorias e comprá-las mais caro do que o capitalista mais rico e pagar salários mais altos; portanto, arruinar-se a si mesmo, uma vez que o preço do mercado já se encontra muito baixo como resultado da intensa concorrência por nós pressuposta. Se, em compensação, o grande capitalista quiser derrubar o pequeno capitalista, possui em relação a ele todas as vantagens que o capitalista enquanto capitalista terá em relação ao trabalhador. As pequenas taxas de lucro são-lhe compensadas pelo maior volume do seu capital, e consegue mesmo suportar perdas momentâneas até que o pequeno capitalista se arruíne e ele se veja livre da concorrência. Desta maneira, acumula também os lucros do pequeno capitalista.

  Além disso, o grande capitalista compra sempre mais barato que o pequeno, porque compra em grandes quantidades. Por essa razão, também pode vender mais barato sem prejuízo.

  Mas se a baixa taxa de juros transforma os capitalistas médios, de homens com meios privados, em negociantes, por sua vez o aumento dos capitais comerciais e o pequeno lucro daí resultante provocam a descida da taxa de juros.

'Mas quando o melhoramento que é possível alcançar pelo uso de um capital decresce, diminui também o preço que se pode pagar pelo uso desse capital.' (6)

'Ao aumentar a riqueza, a indústria e a população, tanto mais diminui o juro - por consequência, também o lucro dos capitais; entretanto, apesar do decréscimo do lucro, eles continuam a aumentar, mais rapidamente do que antes... Um volumoso capital, embora com pequenos lucros, cresce de maneira geral mais rapidamente do que um pequeno capital com grandes lucros. O dinheiro faz dinheiro, diz o ditado.' (7)

  Deste modo, se a este grande capital se contrapõem os pequenos capitais com lucros menores, como acontece nas condições pressupostas de intensa concorrência, este abaterá aqueles por completo.''

Notas:

1- Say, op. cit., H, pp.78.
2- Smith, op. cit., p.322.
3- Smith, I, p.86.
4- Ibid, p.301.
5 e 6-Smith, I, p.316.
7- Ibid, p.83.

MARX, Karl. Primeiro manuscrito - lucro do capital, parte 4: o acúmulo dos capitais e a concorrência entre capitalistas. In Manuscritos econômico-filosóficos. 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Um apêndice de Marx sobre a teoria do valor


''Equivocar-vos-eis por inteiro, caso acrediteis que o valor do trabalho ou de qualquer outra mercadoria se determina, em última análise, pelo jogo da procura e da oferta. A oferta e a procura só regulam as oscilações temporárias dos preços no mercado. Explicam por que o preço de um artigo no mercado se eleva acima ou desce abaixo do seu valor, mas não explicam jamais esse valor em si mesmo. Vamos supor que oferta e a procura se equilibrem ou, como dizem os economistas, se cubram mutuamente.

 No preciso instante em que essas duas forças contrárias se nivelam, elas se paralisam mutuamente, deixam de atuar num ou noutro sentido. No mesmo instante em que a oferta e a procura se equilibram e deixam, portanto, de atuar, o preço de uma mercadoria no mercado coincide com o seu valor real, com o preço normal em torno do qual oscilam seus preços no mercado. Por conseguinte, se queremos investigar o caráter desse valor, não nos devemos preocupar com os efeitos transitórios que a oferta e a procura exercem sobre os preços do mercado.
E outro tanto caberia dizer dos salários e dos preços de todas as demais mercadorias."

- MARX, Karl. In SALÁRIO, PREÇO E LUCRO - Fonte Karl Marx: Informe pronunciado por Marx nos dias 20 a 27 de junho de 1865 nas sessões do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. Publicado pela primeira vez em folheto à parte, em Londres, 1898, com o título Value, Price and Profit.